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O Sistema de Mundo de Newton e as geometrias não-euclidianas no século XIX: relações possíveis?

Newton’s System or World and the non-euclidean geometries in the XIX century: possible relationships?

Resumos

No presente trabalho tivemos como objetivo investigar como a teoria de gravitação de Isaac Newton, presente no Livro III dos Principia – Sistema de Mundo – foi abordada durante o século XIX, quando as geometrias não-euclidianas estavam sendo empregadas no estudo da mecânica em superfícies com curvatura diferente de zero. Para isso, realizamos um estudo dos principais aspectos do Livro III e da geometria utilizada por Newton; apresentamos os princípios da geometria não-euclidiana em discussão no século XIX e realizamos uma busca bibliográfica na Royal Society em busca de trabalhos que relacionassem esses dois temas. Como resultado, encontramos apenas um trabalho durante o século XIX em que alguns conceitos newtonianos de movimento são discutidos sob as ideias riemannianas de métrica, em que a curvatura do espaço adotado não influencia as equações de movimento. Concluímos assim que não houve uma diferenciação, em termos dos movimentos dos corpos celestes, no espaço absoluto de Newton mesmo quando a geometria não euclidiana trazia novas interpretações e possibilidades.

Palavras-chave:
Século XIX; Sistema de Mundo; Geometrias não-euclidianas


In the present work we aimed to investigate how Isaac Newton’s theory of gravitation, present in Book III of Principia – System of World – was approached during the 19th century, when non-Euclidean geometries were being used in the study of mechanics on surfaces with curvature other than zero. For this, we carried out a study of the main aspects of Book III and the geometry used by Newton; we present the principles of non-euclidean geometry under discussion in the 19th century and we carried out a bibliographic search in the Royal Society’s database in search of works that related these two themes. As a result, we find only one work during the 19th century in which some Newtonian concepts of motion are discussed under Riemannian ideas of metric, in which the curvature of the adopted space does not influence the equations of motion. We therefore conclude that there was no differentiation, in terms of the movement of celestial bodies, in Newton’s absolute space even when non-Euclidean geometry brought new interpretations and possibilities.

Keywords:
19th century; World System; Non-Euclidean geometries


1. Introdução

Publicado em 1687, a obra Princípios Matemáticos de Filosofia Natural1 1 A obra original foi publicada em latim. Neste trabalho usamos três versões diferentes na análise: a tradução para português da EDUSP [1], a tradução de Andrew Motte com revisão de Florian Cajori [2] e a tradução para o português da Fundação Gulbekian [3]. – ou Principia [1[1] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Edusp, São Paulo, 2008).], de Isaac Newton (1643/44-1727/28), só foi efetivamente aceita a partir da segunda metade do século XVIII, com as expedições que confirmaram o achatamento da Terra nos polos e a consequente variação da gravidade sobre a superfície terrestre. Durante o século XVIII, vários estudiosos desenvolveram alguns problemas que não estavam muito claros na obra newtoniana, não somente na parte sobre a mecânica do ponto material, mas também com relação à luz, considerada ali como de natureza corpuscular. Um exemplo desse tipo de estudo é a especulação de John Michell (1724–1793) sobre a possível existência de corpos escuros e do desvio sofrido pela luz na presença de corpos massivos, que explicaria a paralaxe das estrelas [4[4] A.P.B. Silva, B.A. Moura e T.R.M. Medeiros, Revista Brasileira de História da Ciência 13, 320 (2020).].

Com a expressiva divulgação da teoria da relatividade geral (TRG) de Albert Einstein (1879–1955) na década de 1920, a teoria newtoniana passou a ser utilizada apenas nos casos de pequenas velocidades. Com relação ao cosmos, parecia não haver mais sentido em adotar Newton, uma vez que observações posteriores cada vez mais corroboravam com a hipótese de os campos gravitacionais alterarem o espaço-tempo [5[5] O.D. Miranda, Conexões-Ciência e Tecnologia 13, 7 (2019).]. Essa posição foi revista na década de 1930, quando E. A. Milne e W. H. McCrea propuseram uma “cosmologia neo-newtoniana”, assumindo uma geometria euclidiana e modificando a métrica (ds ) com fatores invariantes adequados, conforme proposto por Milner [6[6] S.R. Milner, Proceedings of the Royal Society of London. Series A, Containing Papers of a Mathematical and Physical Character 139, 349 (1933).,7[7] W.H. McCrea e E.A. Milne, The Quarterly Journal of Mathematics 1, 73 (1934).,8[8] J.C. Fabris e H.E.S. Velten, Revista Brasileira de Ensino de Física 34, 4302 (2012).].

De certa forma, a discussão anterior mostra o quanto o conhecimento científico não é estático, mas está em constante modificação [9[9] S. Pumfrey, The British Journal for the History of Science 24, 61 (1991).], o que justifica a importância de se conhecer a história da ciência para uma formação ampla também sob o ponto de vista de conceitos e teorias, e que pode até mesmo trazer novos elementos de pesquisa na área.

Entre a aceitação dos Principia e a publicação da TRG por Einstein, observa-se uma lacuna quanto a trabalhos produzidos no século XIX considerando-se os pressupostos da teoria da gravitação newtoniana. Por outro lado, é durante o século XIX que as geometrias não-euclidianas apresentam maior desenvolvimento, seja num espaço tridimensional como em n -dimensões [10[10] A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006).,11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).]. Também foi durante o século XIX que a mecânica e a geometria não-euclidiana foram diretamente relacionadas no estudo de geodésicas, aplicando-se princípios mecânicos no estudo de superfícies [12[12] E. Beltrami, Rendiconti del Reale Istituto Lombardo di Scienze e Lettere, 1, 708 (1868).]. Assim, é possível que já no século XIX tenha havido trabalhos no sentido de rever a teoria da gravitação newtoniana considerando-se o novo formalismo geométrico que admite a curvatura do espaço.

Portanto, questiona-se: como o Sistema de Mundo de Newton e sua teoria da gravitação foram representados pelo novo formalismo da geometria não-euclidiana? Pode-se admitir o conceito de espaço – absoluto e homogêneo em Newton – com curvatura diferente de zero e com propriedades dependentes da matéria – a partir da definição de métrica2 2 O conceito de geodésica de Riemann, apresentado em 1854, já admitia que as propriedades físicas alterariam a distância entre dois pontos pertencentes à multiplicidade [13]. riemannia? Para tentar responder essas perguntas, esse trabalho foi desenvolvido em três etapas. Inicialmente analisamos o Livro III dos Principia - Sistema de Mundo – buscando compreender a geometria adotada. Depois revisamos as geometrias não-euclidianas desenvolvidas durante o século XIX e como elas estabeleceram as propriedades do espaço considerando diferentes curvaturas. Por fim, realizamos uma busca por trabalhos na Royal Society, em que pudesse haver uma revisão da teoria da gravitação de Newton usando um espaço com curvatura e as novas geometrias.

2. O Livro Sistema de Mundo e Algumas Considerações Geométricas

A obra Principia é formada por três livros. Antes mesmo de iniciar o primeiro deles, Newton apresenta suas definições e axiomas ou leis do movimento. Dentre as definições, encontramos a quantidade de matéria e de movimento; a definição de vis insita , força impressa e força centrípeta. Cabe ressaltar que as definições dadas por Newton não podem ser interpretadas exatamente como as entendemos agora. Vários estudiosos debruçaram-se e ainda se debruçam na compreensão desta obra e é impossível esgotá-la num simples artigo. O próprio conceito de força utilizado por Newton possui várias interpretações, desde um ponto de vista mais matemático até sua concepção como entidade real, o que não faz parte do escopo deste trabalho3 3 Para aprofundamento sugerimos a leitura de Martins [11]. . O mesmo também se pode dizer quanto à geometria utilizada na exposição das leis do movimento. Não se trata da geometria euclidiana na sua versão da Antiguidade, mas também não é totalmente a geometria analítica que será desenvolvida por Euler, Lagrange e outros matemáticos do século XVIII [14[14] R.A. Martins, em Ensaios sobre a História e Filosofia das Ciências I (Quamcumque Editum, Extrema, 2021).]. Conforme Santos [15[15] R.B. Santos, O nascimento da ciência empírico-matemática: um estudo sobre o programa metodológico dos Principia de Isaac Newton. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Paraná (2021).] e Cohen [16[16] B. Cohen e R.S. Westfall (org.), Newton: textos, antecedentes, comentários. (Eduerj/Contraponto, Rio de Janeiro, 2002).] argumentam, Newton desenvolve uma “geometria dinâmica”, desenvolvida pela e para a mecânica e o movimento.

Assim, se consideramos como geometria euclidiana aquela descrita nos Elementos [17[17] Euclides, The thirteen books of Euclid’s Elements (Dover, New York, 1956).], ela não foi estritamente aplicada na obra de Newton. Mas podemos identificar algumas similaridades na forma como os Principia foram escritos e a estrutura dos Elementos de Euclides: definições, noções comuns (axiomas) e proposições, que só se tornam demonstráveis a partir das definições e axiomas dados. Newton também estrutura inicialmente suas definições e axiomas para só depois trazer suas proposições4 4 Não é do escopo deste trabalho tratar da metodologia e do arcabouço filosófico envolvido nos Principia como um todo, para o que sugerimos a leitura de Santos [15]. . No escólio no início dos Principia [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 29] Newton traz o conceito de espaço absoluto. Por ser um dos principais conceitos que diferencia a teoria da gravitação newtoniana da TRG, julgamos importante reproduzir aqui sua definição:

2. Espaço absoluto, de sua própria natureza sem relação com qualquer coisa de externo, permanece sempre semelhante e imóvel. Espaço relativo é qualquer medida ou porção móvel dos espaços absolutos, determinada pelos nossos sentidos segundo a sua posição em relação a corpos; e é tomado comummente como espaço imóvel. Por exemplo, a porção de um espaço subterrâneo, aéreo ou celeste, determinado pela sua posição em relação à Terra. Espaço absoluto e relativo são os mesmos em figura e grandeza, mas não permanecem sempre iguais numericamente. Por exemplo, quando a Terra se move, um espaço do nosso ar, fixo em relação à Terra e permanecendo sempre o mesmo em relação a ela, será em dado instante uma parte do espaço absoluto; assim, falando em termos absolutos, está em permanente mudança [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 29].

A definição de espaço absoluto torna-se relevante na escolha dos referenciais relativos no movimento. Newton não explicita em suas definições a presença de qualquer matéria sutil preenchendo esse espaço, mas também não explicita o vazio total. Tal posicionamento é um reflexo das duas correntes existentes naquele momento, a cartesiana, que não aceitava a existência do vazio; e as ideias atomistas [16[16] B. Cohen e R.S. Westfall (org.), Newton: textos, antecedentes, comentários. (Eduerj/Contraponto, Rio de Janeiro, 2002).]. Há uma série de consequências em relação à matéria sutil que preenche o espaço, inclusive quanto à causa da gravidade, por exemplo; e, também, quanto ao próprio movimento e o conceito de dimensões como sugere Martins [11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).]. Aqui apenas nos interessa destacar que o espaço absoluto de Newton é um espaço matemático, hipostásico, como diria Koyré [16[16] B. Cohen e R.S. Westfall (org.), Newton: textos, antecedentes, comentários. (Eduerj/Contraponto, Rio de Janeiro, 2002)., p. 87].

Dentre as leis do movimento, o corolário I da lei 3 merece destaque.

Um corpo, actuado simultaneamente por duas forças, descreverá a diagonal do paralelogramo cujos lados seriam descritos pelo corpo, no mesmo tempo, se fosse actuado por essas forças em separado [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 43].

Ainda que Newton faça considerações entre traçados e movimento, numa demonstração de uma geometria que vinha se estruturando no século XVII5 5 Santos [15] apresenta uma discussão bem completa a esse respeito. Martins [14] apresenta a dedução da lei do somatório de forças de uma forma mais simplificada que Newton. em complemento à euclidiana, é possível identificar que a curvatura do espaço não é levada em consideração. A lei de composição de movimentos já havia sido discutida anteriormente por Aristóteles; em Newton a mudança se refere a uma definição dinâmica, relativa à soma de forças [18[18] R.A. Dugas, A history of mechanics (Dover, New York, 2012).]. A soma de forças ou regra do paralelogramo pressupunha considerações sobre o espaço, como por exemplo, sua curvatura. Durante os séculos XVIII e XIX outros trabalhos propuseram formas diferentes de realizar a soma de forças, como o trabalho de Foncenex [11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).]. Esses dois exemplos foram trazidos apenas para reforçar que na geometria dinâmica de Newton não há menção a propriedades do espaço que possam alterar distâncias, argumento que será recuperado posteriormente.

No Livro I Newton trata do movimento dos corpos. Utilizando-se da sua geometria dinâmica, associada com movimento, Newton discute as consequências para o movimento sob a ação de forças, das leis apresentadas anteriormente. O movimento vale para qualquer corpo, desde que atenda às definições e axiomas iniciais. Ou seja, Newton está igualando os movimentos dos corpos terrestres aos celestes, o que pode ser tomado como o rompimento final com a física de Aristóteles.

No Livro II, Newton introduz um meio resistivo onde o corpo se move. É no Livro II que Newton estuda os efeitos da força da gravidade na variação da velocidade do corpo e, consequentemente, na sua trajetória. O estudo do movimento num meio resistivo poderia, por exemplo, rever as ideias cartesianas do movimento de corpos celestes no vórtice. Portanto, de maneira geral, pode-se concluir que os Livros I e II preparam a discussão que será tratada no Livro III, principalmente do ponto de vista matemático, como argumenta o próprio Newton:

Nos livros precedentes, apresentei princípios de filosofia [natural] que, de resto, eram filosóficos, mas estritamente matemáticos – aqueles princípios sobre os quais o estudo da filosofia [natural] se deve basear. Estes princípios são as leis e as condições dos movimentos e das forças, que dizem especial respeito à filosofia. Mas para evitar que estes princípios pareçam estéreis, ilustrei-os com alguns escólios filosóficos (quer dizer, escólios respeitantes à filosofia natural), a respeito de tópicos que são gerais e parecem os mais fundamentais para a filosofia, como a densidade e a resistência dos corpos, espaços vazios de corpos, e o movimento da luz e dos sons. Resta-nos apresentar o sistema do mundo a partir destes mesmos princípios. Sobre este assunto cheguei a escrever uma antiga versão do Livro III em estilo popular6 6 Newton está se referindo à uma versão publicada em 1685, portanto antes da publicação dos Principia. Nessa versão, o texto possui 73 tópicos e poucas demonstrações geométricas. Partes dela podem ser encontradas em Cohen [16, p. 315–333]. , de modo a encontrar mais leitores. Mas aqueles que não compreenderam suficientemente os princípios aí expostos, certamente não perceberam a força das conclusões, nem vão libertar-se dos preconceitos aos quais foram acostumados durante largos anos. E por isso, a fim de evitar disputas, traduzi a substância da versão antiga num conjunto de proposições em estilo matemático, de modo que possam ser lidos apenas por aqueles que previamente dominaram os princípios. Mas, como nos Livros I e II ocorre um grande número de proposições que podem ser cansativas, mesmo para os leitores competentes em matemáticas, não aconselho ninguém a estudar cada uma dessas proposições. Será suficiente ler com cuidado as Definições, as Leis do Movimento e as três primeiras seções do Livro I, e passar logo a este livro III sobre o sistema do mundo, consultando eventualmente as outras proposições dos livros I e II que até aqui apresentei [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 645–647].

Antes de iniciar o Livro III, Newton estabelece suas regras para filosofar. A primeira regra afirma que “Não se devem admitir para as coisas da Natureza mais causas do que aquelas que simultaneamente são verdadeiras e suficientes para explicar os fenômenos” [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017).]. Ou seja, eliminam-se entes sobrenaturais e argumentos metafísicos; a natureza é simples e dispensa “o luxo de causas supérfluas” [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017).].

Já a quarta regra para filosofar expressa outra característica fundamental deste terceiro livro, afirmando que “Em filosofia experimental, as proposições extraídas dos fenômenos por indução devem ser consideradas exactamente ou muito aproximadamente verdadeiras não obstante quaisquer hipóteses em contrário, até que outros fenômenos tornem estas proposições ou mais exactas ou passíveis de excepções” [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017).]. A forma como Newton introduz o Livro III, tanto na versão “para divulgação” quanto na versão dos Principia parece deixar claras suas intenções: a eliminação dos vórtices e a introdução de razões matemáticas em substituição à considerações metafísicas; em oposição clara às ideias cartesianas de constituição e movimento celeste7 7 Não é intenção deste trabalho detalhar os pressupostos de Newton quanto ao Sistema de Mundo. Para isso sugerimos a leitura de Cohen [16] e Santos [15]. . Em decorrência dessas intenções, no Sistema de Mundo, diferentemente dos livros anteriores, Newton inicia pelos fenômenos relacionados aos movimentos dos corpos celestes e satélites. Tais fenômenos são [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 652–658]:

Fenômeno 1: Os satélites de Júpiter, pelos raios que os unem ao centro de Júpiter, descrevem áreas proporcionais aos tempos, e os seus períodos – estando as estrelas fixas em repouso – são proporcionais às potências de expoente 3/2 das suas distâncias àquele centro.

Fenômeno 2: Os satélites de Saturno, pelos raios que os unem ao centro de Saturno, descrevem áreas proporcionais aos tempos, e os seus períodos – estando as estrelas fixas em repouso – são proporcionais às potências de expoente 3/2 das suas distâncias àquele centro.

Fenômeno 3: As órbitas dos cinco planetas primários – Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno – rodeiam o Sol

Fenômeno 4: Os períodos dos cinco planetas primários e o do Sol em torno da Terra ou da Terra em torno do Sol – estando as estrelas fixas em repouso – são proporcionais às potências de expoente 3/2 das suas distâncias médias ao Sol.

Fenômeno 5: Os planetas primários, por raios traçados para a Terra, descrevem áreas de nenhum modo proporcionais aos tempos, mas, por raios traçados para o Sol, atravessam áreas proporcionais aos tempos.

Fenômeno 6: A Lua, por um raio traçado para o centro da Terra, descreve áreas proporcionais aos tempos.

Ao abordar os seis fenômenos citados, Newton referencia os astrônomos responsáveis pelas observações que correspondem aos fenômenos, apresentando as tabelas com os dados observados, os instrumentos e métodos utilizados para as medições. Tomando a quarta regra como ponto de partida, ele inicia a exposição de proposições que podem ser extraídas desses fenômenos e, por indução, levar à universalização das causas no movimento dos corpos celestes. Destaca-se nos fenômenos o referencial das estrelas fixas (em repouso) para a determinação dos movimentos relativos. Dentre as proposições, merece destaque a IV:

A Lua gravita para a Terra e pela força da gravidade é continuamente desviada do movimento rectilíneo e mantida na sua órbita [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 663]

Para que haja desvio do movimento retilíneo, é preciso uma força impressa, conforme o primeiro axioma, posto no Livro I, que estabelece que “Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que ele seja forçado a mudar aquele estado por forças impressas sobre ele” [1[1] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Edusp, São Paulo, 2008).]. Com o objetivo de deduzir a natureza dessa força, Newton, a partir das observações, define que a distância média da Lua à Terra nas sizígias8 8 Sizígia é um termo da astronomia que, de forma geral, identifica o alinhamento de três corpos pertencentes a um sistema gravitacional. é de 60 diâmetros da Terra, que uma revolução da Lua é completada em 27 dias, 7 horas e 43 minutos e que a circunferência da Terra chega a 123.249.600 pés de Paris9 9 Atualmente, 1 pé ≈ 0,30 m. Porém, deve-se levar em consideração que as unidades de comprimento no século XVII ainda não possuíam um padrão de medidas semelhante ao Sistema Internacional e isso é apenas uma aproximação. . Para que a Lua tenha esse movimento, ela está sob a ação de uma força que é equivalente à força da gravidade na Terra. “Pois se a gravidade fosse diferente dessa força, os corpos que tendem para a Terra por estas duas forças [a da gravidade e a causa da órbita] actuando em conjunto desceriam com o dobro da velocidade, e no espaço de um segundo de queda descreveriam 30 1/6 pés, o que é inteiramente contrário à experiência” [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017)., p. 665].

Com isso, demonstra que a força com que a Lua é mantida em sua órbita na superfície da Terra é igual à força da gravidade que observamos nos corpos pesados na Terra. Logo, admitindo-se a segunda regra para filosofar, enunciada como “portanto, aos mesmos efeitos naturais temos de atribuir as mesmas causas, tanto quanto possível” [1[1] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Edusp, São Paulo, 2008).], temos que a força com que a Lua é mantida em órbita é a mesma que chamamos de gravidade. Como consequência, a partir do fenômeno IV e proposição II do Livro I, define na proposição III do Livro III que a força com que a Lua é mantida em sua órbita tende ao centro da Terra, logo é uma força centrípeta e é inversamente proporcional ao quadrado da distância de sua posição ao centro da terra.

Sendo assim, o autor, ao ter em vista os fenômenos observáveis, utiliza elementos da sua geometria dinâmica e traça retas em espaços sem curvatura, para demonstrar que a partir de sua descrição da gravidade seria possível explicar o movimento dos corpos celestes e suas consequências. Newton também aplicou a sua teoria da gravitação a outros problemas em aberto em sua época e suas demonstrações foram capazes de certificar a validade de sua teoria, como por exemplo: na proposição XXIV, teorema XIX que explica que o fluxo e refluxo do mar surgem das ações do Sol e da Lua; na proposição XXXVIII, problema XIX, determina qual é a forma do corpo da Lua; na proposição XLI, problema XXI, a partir de três observações dadas, determina a órbita de um cometa que se movimenta em parábola, mostrando sua regularidade e opondo-se às ideias de Descartes, para quem o cometa não teria uma órbita [1[1] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Edusp, São Paulo, 2008).].

É válido ressaltar que as equações associadas atualmente ao trabalho de Isaac Newton, foram desenvolvidas a partir do final do século XVIII [14[14] R.A. Martins, em Ensaios sobre a História e Filosofia das Ciências I (Quamcumque Editum, Extrema, 2021).]. Além do mais, por vezes o autor utiliza o conceito de proporcionalidade em suas definições, pois no século XVII, não se utilizava o conceito de igualdade entre grandezas distintas; por esse motivo, as demonstrações em seu trabalho são executadas utilizando sua geometria dinâmica e considerando alguns elementos definidos na geometria euclidiana, como linhas retas e paralelas em superfícies sem considerar sua curvatura10 10 Na proposição XX, problema IV, por exemplo, em que Newton encontra e compara os pesos nas diferentes regiões da Terra, ele não considera sua curvatura na determinação das distâncias. .

3. Algumas Considerações Sobre Geometrias Não-Euclidianas

O conceito “geometria não-euclidiana” pode ser tomado a partir de diferentes perspectivas. A geometria não-euclidiana “clássica” parte das incoerências do quinto postulado de Euclides. Esse postulado, chamado também de postulado das paralelas (Figura 1), é definido por “se uma linha reta que corta duas outras linhas retas forma ângulos interiores do mesmo lado cuja soma é menor que dois ângulos retos, as duas linhas retas, se prolongadas indefinidamente, se encontrarão no lado em que a soma dos ângulos é menor do que dois ângulos retos” [17[17] Euclides, The thirteen books of Euclid’s Elements (Dover, New York, 1956).]. Devido a importância do postulado, que é utilizado na demonstração de várias proposições como a soma dos ângulos de um triângulo, diversos matemáticos se ativeram a tentar demonstrá-lo, apesar da sua complexidade.

Figura 1:
Representação do quinto postulado, as retas r e s se encontram do lado em que os ângulos interiores α e β somam menos que 180°. Fonte: Silva [10[10] A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006).].

Muitas dessas tentativas levaram a resultados incoerentes ou a novas abordagens [10[10] A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006).]. Porém, são os trabalhos de Janos Bolyai (1802–1860), em 1832, e de Nikolai Lobačevskiǐ (1793–1856), em 1829, que trarão outra possibilidade de pensar a geometria. Assumindo definições e desenvolvendo de forma independente suas geometrias, pode-se considerar que tanto Bolyai quanto Lobačevskiǐ partiram de um mesmo pressuposto: assumiram uma definição diferente de “reta”, o que implicava que poderia haver mais de uma paralela a uma dada “reta”, e mantiveram o espaço tridimensional euclidiano. Para Lobačevskiǐ as observações astronômicas poderiam servir para explicar como o espaço físico equivaleria ao espaço matemático da sua geometria imaginária, como no caso do cálculo da paralaxe das estrelas [10[10] A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006)., 11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).]. Ao tomar conhecimento das geometrias de Bolyai e Lobačevskiǐ, Eugênio Beltrami (1835–1900) interpretou-as de forma diferente, considerando que a modificação deveria ser no espaço em que as novas definições eram adotadas. Nesse caso, num espaço com a curvatura negativa, como uma sela, uma reta traçada a partir do movimento, como propunha Lobačevskiǐ, comportaria mais de uma paralela. Com a interpretação de Beltrami, as geometrias de Bolyai e Lobačevskiǐ levaram a uma nova concepção de espaço, que não necessariamente era um espaço físico, mensurável [10[10] A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006).].

Em paralelo à essa abordagem clássica, desenvolvia-se a geometria diferencial para o estudo de superfícies curvas. Fazendo uso de um espaço tridimensional euclidiano, em que vale o quinto postulado, em 1827 Carl Friedrich Gauss (1777–1855) desenvolveu o estudo da geodésica para superfícies em que a curvatura era diferente de zero [19[19] A.P. Silva e R.A. Martins, As “Investigações gerais sobre superfícies curvas” de Gauss: texto e análise (Booklink/Unicamp, Rio de Janeiro/Campinas, 2008).]. Para investigar ponto a ponto uma superfície curva, Gauss cria a ideia de esfera auxiliar: uma esfera de raio unitário que tangencia toda a superficie curva varrendo-a com a normal (Figura 2). Desta forma, é possível traçar um plano tangente em cada ponto da superfície curva e descrever uma reta normal, ou um vetor normal a esse plano. Temos que o vetor normal tem direção definida por um raio paralelo na esfera auxiliar, e a partir disso, cada ponto na superfície curva, estará associado a um ponto na esfera de referência.

Figura 2:
A direção da reta r é dada pelo ponto P sobre a esfera auxiliar. Fonte: Silva [10[10] A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006)., p. 34].

Assim, a correspondência entre os pontos da superfície e da esfera é feita através da direção da normal. A partir disso, utilizando coordenadas intrínsecas, Gauss é capaz de deduzir a métrica pela Equação (1):

(1) d s 2 = E d p 2 + 2 F d p d q + G d q 2

Na qual, E, F, G são as funções das coordenadas intrínsecas p, q e permitem calcular o elemento de linha. Além disso, a expressão não depende das coordenadas cartesianas x, y, z; apenas das coordenadas p, q sobre a superfície curva. Podemos denominar a geometria diferencial de Gauss de não-euclidiana por tratar de um espaço curvo; porém ainda se restringe a um espaço de três dimensões. É interessante notar que o trabalho de Gauss tinha como objetivo uma aplicação prática. Tanto é que ao final do trabalho ele aplica seu teorema egregium11 11 “O excesso que ultrapassa 180∘ da soma dos ângulos de um triângulo formado por linhas mais curtas [geodésicas] sobre uma superfície côncava-côncava [curvatura positiva], ou aquilo que falta para 180∘ da soma dos ângulos de um triângulo formado por linhas mais curtas sobre uma superfície côncva-convexa [curvatura negativa], é medido pela área da parte da superfície esférica que corresponde, pelas direções das normais, àquele triângulo, se a superfície total [da esfera] for considerada igual a 720 graus” [19, p. 133]. para determinar com maior precisão a distância entre três cidades na atual Alemanha [19[19] A.P. Silva e R.A. Martins, As “Investigações gerais sobre superfícies curvas” de Gauss: texto e análise (Booklink/Unicamp, Rio de Janeiro/Campinas, 2008)., p. 192]. Ou seja, mesmo para pequenas distâncias sobre a superfície terrestre causaria diferença a assunção da curvatura.

As dimensões do espaço também foram objeto de discussões durante o século XIX não somente na matemática, como também na teologia, literatura e na física. A tridimensionalidade era empiricamente mensurável, mas o que poderia corresponder a uma quarta dimensão? Como poderia ser mensurada? Havia várias implicações de se considerar uma quarta – quinta, sexta, até n -dimensão [11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).]. É nesse contexto que a assunção do tempo como uma quarta dimensão (a noção de espaço-tempo) e a possibilidade de espaços geométricos com mais de três dimensões levam a um outro tipo de geometria não-euclidiana empregada posteriormente na TRG.

Partindo da ideia de espaços com mais de três dimensões, Bernhard Riemann (1826–1866) irá descrever um novo espaço [13[13] B. Riemann, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1, 109 (1989).], onde a métrica seria variável de acordo com os fenômenos físicos aos quais está submetida, distinguindo-se da concepção dos físicos e matemáticos contemporâneos, que definiam a métrica como fixa. Riemann generaliza o teorema elaborado por Gauss (Equação 1), para o caso n -dimensional, em que os coeficientes da métrica (E, F, G) dependem das propriedades do espaço. Adotando-se uma notação atual, a métrica de Riemann pode ser escrita como na Equação (2):

(2) d s 2 = i j g i j d x i d x j

onde os gij=gji são funções das variáveis xi. O trabalho de Riemann traz outras considerações, como, por exemplo, a introdução do conceito de “multiplicidade” (Mannigfaltgkeit ) que pode assumir diferentes significados, e não somente o geométrico. Sobre uma multiplicidade, as grandezas não dependem da posição e assumem valores relativos às próprias coordenadas.

As determinações métricas requerem uma independência das grandezas em relação à posição, independência essa que pode se realizar de várias maneiras. A hipótese que se apresenta em primeiro lugar e da qual vou tratar aqui é a de que o comprimento das linhas é independente de suas posições e, por conseguinte, toda linha é mensurável por meio de outra linha [13[13] B. Riemann, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1, 109 (1989)., p. 415].

Ao considerar que uma multiplicidade pode possuir n -dimensões e que suas coordenadas dependem das propriedades do espaço, Riemann passa a interpretar a geometria não-euclidiana numa forma diferente da de Gauss, Bolyai e Lobačevskiǐ. Com o primeiro, temos uma geometria euclidiana num espaço de três dimensões com curvatura (geometria diferencial); com os outros dois, temos uma geometria não-euclidiana “clássica”, considerando definições e teoremas diferentes; com Riemann temos um espaço diferente, onde as propriedades intrínsecas alteram os comprimentos.

Em 1915, Albert Einstein (1879–1955) utilizou a geometria não-euclidiana de Riemann em sua descrição da gravidade, associando-a à métrica de Minkowski, onde espaço e tempo são indissociáveis e passam a formar um contínuo espaço-tempo quadridimensional. Além de utilizar a métrica de Riemann, Einstein ainda faz uso do cálculo diferencial absoluto, desenvolvido por Ricci e Levi-Civita em 1899, para expressar as coordenadas e suas variações ao longo do espaço [18[18] R.A. Dugas, A history of mechanics (Dover, New York, 2012).]. Mesmo antes de Einstein, Hermann Minkowski (1864–1909) já havia reinterpretado a métrica de Riemann, considerando uma variedade quadridimensional, que foi assumida como o tempo [20[20] D. Soares, Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20190262 (2020).]. Ao combinar a métrica de Riemann e Minkowski, utilizando o cálculo diferencial absoluto, Einstein obteve uma teoria onde o espaço-tempo manifesta curvatura na presença de matéria ou energia.

Por não levar em consideração as propriedades do espaço e sua curvatura, como nos exemplos que apresentamos en passant na seção 2 2. O Livro Sistema de Mundo e Algumas Considerações Geométricas A obra Principia é formada por três livros. Antes mesmo de iniciar o primeiro deles, Newton apresenta suas definições e axiomas ou leis do movimento. Dentre as definições, encontramos a quantidade de matéria e de movimento; a definição de vis insita , força impressa e força centrípeta. Cabe ressaltar que as definições dadas por Newton não podem ser interpretadas exatamente como as entendemos agora. Vários estudiosos debruçaram-se e ainda se debruçam na compreensão desta obra e é impossível esgotá-la num simples artigo. O próprio conceito de força utilizado por Newton possui várias interpretações, desde um ponto de vista mais matemático até sua concepção como entidade real, o que não faz parte do escopo deste trabalho3. O mesmo também se pode dizer quanto à geometria utilizada na exposição das leis do movimento. Não se trata da geometria euclidiana na sua versão da Antiguidade, mas também não é totalmente a geometria analítica que será desenvolvida por Euler, Lagrange e outros matemáticos do século XVIII [14]. Conforme Santos [15] e Cohen [16] argumentam, Newton desenvolve uma “geometria dinâmica”, desenvolvida pela e para a mecânica e o movimento. Assim, se consideramos como geometria euclidiana aquela descrita nos Elementos [17], ela não foi estritamente aplicada na obra de Newton. Mas podemos identificar algumas similaridades na forma como os Principia foram escritos e a estrutura dos Elementos de Euclides: definições, noções comuns (axiomas) e proposições, que só se tornam demonstráveis a partir das definições e axiomas dados. Newton também estrutura inicialmente suas definições e axiomas para só depois trazer suas proposições4. No escólio no início dos Principia [3, p. 29] Newton traz o conceito de espaço absoluto. Por ser um dos principais conceitos que diferencia a teoria da gravitação newtoniana da TRG, julgamos importante reproduzir aqui sua definição: 2. Espaço absoluto, de sua própria natureza sem relação com qualquer coisa de externo, permanece sempre semelhante e imóvel. Espaço relativo é qualquer medida ou porção móvel dos espaços absolutos, determinada pelos nossos sentidos segundo a sua posição em relação a corpos; e é tomado comummente como espaço imóvel. Por exemplo, a porção de um espaço subterrâneo, aéreo ou celeste, determinado pela sua posição em relação à Terra. Espaço absoluto e relativo são os mesmos em figura e grandeza, mas não permanecem sempre iguais numericamente. Por exemplo, quando a Terra se move, um espaço do nosso ar, fixo em relação à Terra e permanecendo sempre o mesmo em relação a ela, será em dado instante uma parte do espaço absoluto; assim, falando em termos absolutos, está em permanente mudança [3, p. 29]. A definição de espaço absoluto torna-se relevante na escolha dos referenciais relativos no movimento. Newton não explicita em suas definições a presença de qualquer matéria sutil preenchendo esse espaço, mas também não explicita o vazio total. Tal posicionamento é um reflexo das duas correntes existentes naquele momento, a cartesiana, que não aceitava a existência do vazio; e as ideias atomistas [16]. Há uma série de consequências em relação à matéria sutil que preenche o espaço, inclusive quanto à causa da gravidade, por exemplo; e, também, quanto ao próprio movimento e o conceito de dimensões como sugere Martins [11]. Aqui apenas nos interessa destacar que o espaço absoluto de Newton é um espaço matemático, hipostásico, como diria Koyré [16, p. 87]. Dentre as leis do movimento, o corolário I da lei 3 merece destaque. Um corpo, actuado simultaneamente por duas forças, descreverá a diagonal do paralelogramo cujos lados seriam descritos pelo corpo, no mesmo tempo, se fosse actuado por essas forças em separado [3, p. 43]. Ainda que Newton faça considerações entre traçados e movimento, numa demonstração de uma geometria que vinha se estruturando no século XVII5 em complemento à euclidiana, é possível identificar que a curvatura do espaço não é levada em consideração. A lei de composição de movimentos já havia sido discutida anteriormente por Aristóteles; em Newton a mudança se refere a uma definição dinâmica, relativa à soma de forças [18]. A soma de forças ou regra do paralelogramo pressupunha considerações sobre o espaço, como por exemplo, sua curvatura. Durante os séculos XVIII e XIX outros trabalhos propuseram formas diferentes de realizar a soma de forças, como o trabalho de Foncenex [11]. Esses dois exemplos foram trazidos apenas para reforçar que na geometria dinâmica de Newton não há menção a propriedades do espaço que possam alterar distâncias, argumento que será recuperado posteriormente. No Livro I Newton trata do movimento dos corpos. Utilizando-se da sua geometria dinâmica, associada com movimento, Newton discute as consequências para o movimento sob a ação de forças, das leis apresentadas anteriormente. O movimento vale para qualquer corpo, desde que atenda às definições e axiomas iniciais. Ou seja, Newton está igualando os movimentos dos corpos terrestres aos celestes, o que pode ser tomado como o rompimento final com a física de Aristóteles. No Livro II, Newton introduz um meio resistivo onde o corpo se move. É no Livro II que Newton estuda os efeitos da força da gravidade na variação da velocidade do corpo e, consequentemente, na sua trajetória. O estudo do movimento num meio resistivo poderia, por exemplo, rever as ideias cartesianas do movimento de corpos celestes no vórtice. Portanto, de maneira geral, pode-se concluir que os Livros I e II preparam a discussão que será tratada no Livro III, principalmente do ponto de vista matemático, como argumenta o próprio Newton: Nos livros precedentes, apresentei princípios de filosofia [natural] que, de resto, eram filosóficos, mas estritamente matemáticos – aqueles princípios sobre os quais o estudo da filosofia [natural] se deve basear. Estes princípios são as leis e as condições dos movimentos e das forças, que dizem especial respeito à filosofia. Mas para evitar que estes princípios pareçam estéreis, ilustrei-os com alguns escólios filosóficos (quer dizer, escólios respeitantes à filosofia natural), a respeito de tópicos que são gerais e parecem os mais fundamentais para a filosofia, como a densidade e a resistência dos corpos, espaços vazios de corpos, e o movimento da luz e dos sons. Resta-nos apresentar o sistema do mundo a partir destes mesmos princípios. Sobre este assunto cheguei a escrever uma antiga versão do Livro III em estilo popular6, de modo a encontrar mais leitores. Mas aqueles que não compreenderam suficientemente os princípios aí expostos, certamente não perceberam a força das conclusões, nem vão libertar-se dos preconceitos aos quais foram acostumados durante largos anos. E por isso, a fim de evitar disputas, traduzi a substância da versão antiga num conjunto de proposições em estilo matemático, de modo que possam ser lidos apenas por aqueles que previamente dominaram os princípios. Mas, como nos Livros I e II ocorre um grande número de proposições que podem ser cansativas, mesmo para os leitores competentes em matemáticas, não aconselho ninguém a estudar cada uma dessas proposições. Será suficiente ler com cuidado as Definições, as Leis do Movimento e as três primeiras seções do Livro I, e passar logo a este livro III sobre o sistema do mundo, consultando eventualmente as outras proposições dos livros I e II que até aqui apresentei [3, p. 645–647]. Antes de iniciar o Livro III, Newton estabelece suas regras para filosofar. A primeira regra afirma que “Não se devem admitir para as coisas da Natureza mais causas do que aquelas que simultaneamente são verdadeiras e suficientes para explicar os fenômenos” [3]. Ou seja, eliminam-se entes sobrenaturais e argumentos metafísicos; a natureza é simples e dispensa “o luxo de causas supérfluas” [3]. Já a quarta regra para filosofar expressa outra característica fundamental deste terceiro livro, afirmando que “Em filosofia experimental, as proposições extraídas dos fenômenos por indução devem ser consideradas exactamente ou muito aproximadamente verdadeiras não obstante quaisquer hipóteses em contrário, até que outros fenômenos tornem estas proposições ou mais exactas ou passíveis de excepções” [3]. A forma como Newton introduz o Livro III, tanto na versão “para divulgação” quanto na versão dos Principia parece deixar claras suas intenções: a eliminação dos vórtices e a introdução de razões matemáticas em substituição à considerações metafísicas; em oposição clara às ideias cartesianas de constituição e movimento celeste7. Em decorrência dessas intenções, no Sistema de Mundo, diferentemente dos livros anteriores, Newton inicia pelos fenômenos relacionados aos movimentos dos corpos celestes e satélites. Tais fenômenos são [3, p. 652–658]: Fenômeno 1: Os satélites de Júpiter, pelos raios que os unem ao centro de Júpiter, descrevem áreas proporcionais aos tempos, e os seus períodos – estando as estrelas fixas em repouso – são proporcionais às potências de expoente 3/2 das suas distâncias àquele centro. Fenômeno 2: Os satélites de Saturno, pelos raios que os unem ao centro de Saturno, descrevem áreas proporcionais aos tempos, e os seus períodos – estando as estrelas fixas em repouso – são proporcionais às potências de expoente 3/2 das suas distâncias àquele centro. Fenômeno 3: As órbitas dos cinco planetas primários – Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno – rodeiam o Sol Fenômeno 4: Os períodos dos cinco planetas primários e o do Sol em torno da Terra ou da Terra em torno do Sol – estando as estrelas fixas em repouso – são proporcionais às potências de expoente 3/2 das suas distâncias médias ao Sol. Fenômeno 5: Os planetas primários, por raios traçados para a Terra, descrevem áreas de nenhum modo proporcionais aos tempos, mas, por raios traçados para o Sol, atravessam áreas proporcionais aos tempos. Fenômeno 6: A Lua, por um raio traçado para o centro da Terra, descreve áreas proporcionais aos tempos. Ao abordar os seis fenômenos citados, Newton referencia os astrônomos responsáveis pelas observações que correspondem aos fenômenos, apresentando as tabelas com os dados observados, os instrumentos e métodos utilizados para as medições. Tomando a quarta regra como ponto de partida, ele inicia a exposição de proposições que podem ser extraídas desses fenômenos e, por indução, levar à universalização das causas no movimento dos corpos celestes. Destaca-se nos fenômenos o referencial das estrelas fixas (em repouso) para a determinação dos movimentos relativos. Dentre as proposições, merece destaque a IV: A Lua gravita para a Terra e pela força da gravidade é continuamente desviada do movimento rectilíneo e mantida na sua órbita [3, p. 663] Para que haja desvio do movimento retilíneo, é preciso uma força impressa, conforme o primeiro axioma, posto no Livro I, que estabelece que “Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que ele seja forçado a mudar aquele estado por forças impressas sobre ele” [1]. Com o objetivo de deduzir a natureza dessa força, Newton, a partir das observações, define que a distância média da Lua à Terra nas sizígias8 é de 60 diâmetros da Terra, que uma revolução da Lua é completada em 27 dias, 7 horas e 43 minutos e que a circunferência da Terra chega a 123.249.600 pés de Paris9. Para que a Lua tenha esse movimento, ela está sob a ação de uma força que é equivalente à força da gravidade na Terra. “Pois se a gravidade fosse diferente dessa força, os corpos que tendem para a Terra por estas duas forças [a da gravidade e a causa da órbita] actuando em conjunto desceriam com o dobro da velocidade, e no espaço de um segundo de queda descreveriam 30 1/6 pés, o que é inteiramente contrário à experiência” [3, p. 665]. Com isso, demonstra que a força com que a Lua é mantida em sua órbita na superfície da Terra é igual à força da gravidade que observamos nos corpos pesados na Terra. Logo, admitindo-se a segunda regra para filosofar, enunciada como “portanto, aos mesmos efeitos naturais temos de atribuir as mesmas causas, tanto quanto possível” [1], temos que a força com que a Lua é mantida em órbita é a mesma que chamamos de gravidade. Como consequência, a partir do fenômeno IV e proposição II do Livro I, define na proposição III do Livro III que a força com que a Lua é mantida em sua órbita tende ao centro da Terra, logo é uma força centrípeta e é inversamente proporcional ao quadrado da distância de sua posição ao centro da terra. Sendo assim, o autor, ao ter em vista os fenômenos observáveis, utiliza elementos da sua geometria dinâmica e traça retas em espaços sem curvatura, para demonstrar que a partir de sua descrição da gravidade seria possível explicar o movimento dos corpos celestes e suas consequências. Newton também aplicou a sua teoria da gravitação a outros problemas em aberto em sua época e suas demonstrações foram capazes de certificar a validade de sua teoria, como por exemplo: na proposição XXIV, teorema XIX que explica que o fluxo e refluxo do mar surgem das ações do Sol e da Lua; na proposição XXXVIII, problema XIX, determina qual é a forma do corpo da Lua; na proposição XLI, problema XXI, a partir de três observações dadas, determina a órbita de um cometa que se movimenta em parábola, mostrando sua regularidade e opondo-se às ideias de Descartes, para quem o cometa não teria uma órbita [1]. É válido ressaltar que as equações associadas atualmente ao trabalho de Isaac Newton, foram desenvolvidas a partir do final do século XVIII [14]. Além do mais, por vezes o autor utiliza o conceito de proporcionalidade em suas definições, pois no século XVII, não se utilizava o conceito de igualdade entre grandezas distintas; por esse motivo, as demonstrações em seu trabalho são executadas utilizando sua geometria dinâmica e considerando alguns elementos definidos na geometria euclidiana, como linhas retas e paralelas em superfícies sem considerar sua curvatura10. , e também na sua definição de espaço e tempo absolutos, a teoria da gravitação de Newton passou a ser considerada um caso particular da TRG após a “comprovação empírica” em 1920 com o eclipse de Sobral/CE e o desvio da luz na proximidade de um corpo massivo12 12 O desvio da luz na especulação de Michell mencionada na introdução seria devido à variação da velocidade da luz na presença de um corpo massivo, uma vez que pela teoria da gravitação newtoniana havia desaceleração; Quando Michell propôs isso, sabia-se que a luz possuía velocidade finita, mas não que era constante. . Entretanto, a publicação em 1930 da abordagem de Milne e McCrea permite manter a teoria newtoniana como válida quando adotados outros invariantes locais na métrica, como a pressão, sem modificar a curvatura do espaço13 13 As escalas analisadas devem ser inferiores à 100 Mpc. [7[7] W.H. McCrea e E.A. Milne, The Quarterly Journal of Mathematics 1, 73 (1934).].

4. Geometria Não-Euclidiana e Teoria Newtoniana no Século XIX

Conforme aponta Martins [11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).] os estudos sobre outras geometrias e dimensões e suas implicações para a física já estavam em pauta desde o século XVIII em diferentes campos de conhecimento. No entanto, apenas no século XIX é que podemos encontrar uma concepção mais estruturada do que seria uma geometria não-euclidiana que teria implicações diretas na teoria da gravitação, visto que levaria em consideração um espaço que admite uma curvatura determinada por propriedades como a presença de corpos massivos.

Assim, para responder nossa pergunta inicial, restringimos nossa pesquisa à busca por referências do século XIX (1801 a 1890) que fizessem uma revisão da teoria da gravitação newtoniana e citassem geometrias não-euclidianas. A base de dados para a pesquisa foi os periódicos da Royal Society, entendendo-se que esta sociedade estava diretamente vinculada aos ideais newtonianos. Para os filtros considerados na pesquisa, o artigo que mais se aproximou de nossa pergunta foi “On the Dynamics of a rigid body in Elliptic Space”, de R. S. Heath, fellow no Trinity College [21[21] R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884).]. Sendo assim, analisaremos este trabalho para compreender como Heath conectou a geometria riemanniana à teoria de Newton.

O objetivo do autor é tratar do movimento de um corpo rígido sob a ação de quaisquer forças, utilizando a concepção de distância (métrica) da geometria não-euclidiana. O espaço escolhido para análise é o espaço elíptico devido à sua perfeita dualidade e simetria. Pela justificativa apontada pelo autor, observa-se que se trata de uma geometria não-euclidiana baseada nas ideias de Riemann, já que leva em consideração um espaço diferente em que irá determinar distâncias.

Na determinação das características para o espaço a ser empregado, o autor baseia-se em diferentes autores como Cayley, Clifford, Cox entre outros, mostrando que o trabalho fazia parte de discussões entre os acadêmicos da época. Porém, nenhum dos trabalhos apresentados constam em periódicos acessíveis pela base de dados da Royal Society, o que justifica não termos localizado esse material na nossa busca. Nas primeiras vinte e uma seções, o autor faz uma introdução à ideia de uma quádrica Absoluta de Cayley. Segundo Heath, Cayley define absoluta como uma forma geométrica fixa, que “consiste em um par de pontos imaginários em uma linha real, a saber, os pontos circulares no infinito” [21[21] R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884).]. Considerando-se a Absoluta , é possível determinar três tipos diferentes de geometria do espaço [21[21] R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884).]:

  1. Geometria elíptica, na qual todos os elementos da Absoluta são imaginários;

  2. Geometria hiperbólica, na qual a superfície da Absoluta é real, mas não contém linhas retas reais, e nos rodeia;

  3. Geometria parabólica, na qual a Absoluta degenera em uma cônica imaginária num plano real.

A Absoluta assemelha-se muito à esfera de raio unitário criada por Gauss para a análise da superfície curva. No caso, trata-se de uma forma geométrica totalmente imaginária empregada como recurso para a projeção de um objeto num espaço diferente, em que a distância entre dois pontos assume uma função logaritmica do tipo clogz1z2, onde z1 e z2 são dois pontos da linha de intersecção entre a Absoluta e a quádrica a ser medida, e c é uma constante arbitrária.

A ausência total de figuras no trabalho de Heath (e de Cayley) dificulta bastante a compreensão, mas pode-se inferir tratar-se de uma análise totalmente geométrica, sem significados físicos, diferente do que Gauss fez quanto ao mapeamento. Para determinar a curvatura de uma superfície, Gauss considera que ela pode ser mapeada em pequenos “quadrados infinitesimais”, chamados de diferenciais, onde as coordenadas são intrínsecas [19[19] A.P. Silva e R.A. Martins, As “Investigações gerais sobre superfícies curvas” de Gauss: texto e análise (Booklink/Unicamp, Rio de Janeiro/Campinas, 2008).], e também que uma reta normal, que corresponde ao raio unitário de uma esfera, nomeada como esfera auxiliar, tenha início em cada um dos diferenciais. A esfera auxiliar pode tangenciar a superfície curva exatamente no ponto onde se quer determinar a curvatura e para que o faça em apenas um ponto, a normal vai assumir diferentes direções. Dessa forma, se ao traçar uma figura sobre a superfície curva as direções das normais permanecem as mesmas da esfera auxiliar, a curvatura é positiva; caso contrário, a curvatura é negativa (Figura 3). Assim, mesmo que o método faça uso de uma esfera auxiliar externa à superfície, as coordenadas são intrínsecas, o que permite determinar o comprimento ou área da figura traçada a partir das propriedades da própria superfície.

Figura 3:
Ao projetar o raio da esfera auxiliar sobre a superfície curva, este é assumido como a direção da normal naquele ponto. Se as direções das normais são as mesmas da esfera auxiliar, então a curvatura é positiva. Se as direções se invertem, a curvatura é negativa. Fonte: Silva e Martins [19[19] A.P. Silva e R.A. Martins, As “Investigações gerais sobre superfícies curvas” de Gauss: texto e análise (Booklink/Unicamp, Rio de Janeiro/Campinas, 2008).].

Semelhantemente, Heath situa a reta normal nos pontos de tangência e estabelece a sua direção a partir da Absoluta externa à superfície curva, que para ele é um elipsóide [21[21] R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884).]. Ao manter as coordenadas intrínsecas à superfície, é capaz de determinar a curvatura pela direção da normal. Por outro lado, a fim de delimitar a normal, transpassa o elipsóide com um triângulo e um prisma. Então, ao circunscrever diferentes sólidos no elipsóide encontra os pontos de tangência. Assim, é capaz de concluir que a curvatura é constante no espaço elíptico, pois sempre é possível encontrar um sólido, a quádrica, que indique a curvatura (Figura 4).

Figura 4:
Baseando a direção da normal a partir de um sólido geométrico externo à superfície curva (elipsoide), circunscreve-se diferentes sólidos no elipsoide. Ao tomar os pontos de tangenciamento, é possível determinar as normais que servirão para determinar a curvatura em cada ponto. Fonte: Izmestiev [22[22] I. Izmestiev, em: Eighteen essays on non-Euclidean geometry, editado por V. Alberge e A. Papadopoulos (European Mathematical Society, Switzerland, 2019).].

Heath faz todo o estudo das propriedades trigonométricas de um plano no espaço elíptico (geometria elíptica) e conclui, referenciando-se a Riemann:

Portanto, a geometria de qualquer plano no espaço elíptico é o mesmo que a geometria de uma esfera no espaço comum. Uma linha reta no plano corresponde a um grande círculo na esfera. Além disso, a distância entre dois pontos medidos na maneira como indicamos [logaritmica] é periódica, sendo a duração de um período completo de 2π. Portanto, inferimos que o raio de qualquer grande círculo da esfera é a unidade. Assim, qualquer linha e qualquer plano podem ter uma curvatura positiva unitária uniforme [21[21] R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884)., p. 284].

Assumindo que o espaço elíptico possui curvatura positiva uniforme, Heath deduz as equações das cônicas e dos sólidos nesse espaço elíptico. Feito isso, ele parte para o estudo da cinemática de um corpo rígido, definindo-o como “uma coleção de partículas tão unidas que a distância entre qualquer par delas permanece a mesma, mesmo que o sistema se mova no espaço. Em geral, se assumirmos um sistema arbitrário de relações de medida como a base de nossa definição de distância, um corpo rígido não poderia existir” [21[21] R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884).]. Porém, como o espaço elíptico possui curvatura uniforme e constante, o movimento do corpo será realizado sem qualquer deformação na distância entre suas partes, conforme a definição de Riemann para o movimento numa multiplicidade [13[13] B. Riemann, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1, 109 (1989).]. Ou seja, Heath está considerando que a curvatura constante e uniforme permite o traslado do corpo sem que ele sofra deformações e assim seja possível determinar que o movimento do todo é o mesmo movimento das partes.

Nas seções seguintes, Heath dedica-se a encontrar a cinemática de um corpo rígido, assumindo como objeto de estudo um tetraedro quadrantal como corpo. Ele determina suas coordenadas, translações e rotações do corpo a partir da posição do tetraedro em relação à Absoluta. Depois ele trata da cinética do corpo, admitindo que não há mudanças nas definições de aceleração, momentum e energia cinética da partícula no espaço elíptico.

Toda a análise de Heath restringe-se à dinâmica do corpo rígido e ao desenvolvimento das leis de movimento de Newton assumindo novas coordenadas num espaço elíptico. Ele não chega a fazer considerações quanto aos coeficientes da métrica de Riemann, uma vez que assume que associar o espaço elíptico a uma esfera de curvatura unitária positiva e uniforme elimina qualquer efeito da curvatura sobre o movimento em si.

O trabalho de Heath não atende ao que esperávamos na associação das geometrias não-euclidianas no estudo dos corpos celestes e a lei da gravitação. Dele concluímos que a adoção de um espaço com propriedades que deformam a métrica – geometria riemanniana – não trouxe consequências diretas na interpretação newtoniana de espaço absoluto para a determinação do movimento relativo.

5. Considerações Finais

Neste trabalho analisamos a relação da teoria da gravitação de Newton com a geometria euclidiana, a qual o autor utilizou em alguns de seus pressupostos e demonstrações. Durante o século XIX, vários estudiosos propuseram geometrias não-euclidianas que assumiam diferentes perspectivas. Com isso esperava-se que já no século XIX alguns pressupostos da teoria newtoniana tivessem sido revistos considerando agora um espaço que poderia ter curvatura, ou mais de três dimensões ou ainda em que a definição de paralelas influenciasse nos resultados.

Porém a pesquisa bibliográfica realizada na base de dados da Royal Society trouxe apenas um trabalho em que havia uma relação direta entre a geometria riemanniana e as leis de Newton, e ainda assim não se tratava de uma apropriação dos conceitos de curvatura e propriedades do espaço como aqueles que ocorrem na TRG.

Por outro lado, encontramos referências que trazem a influência das geometrias não-euclidianas em outros campos da física que não a teoria da gravitação de Newton, como a soma de forças por Foncenex e a obtenção da paralaxe das estrelas por Lobačevskiǐ.

Assim, somos levadas a concluir que parece não ter havido relação direta entre a adoção de um espaço das geometrias não-euclidianas, com propriedades e curvatura, e a teoria da gravitação de Newton. Consequentemente, isso leva a refletir que a TRG não precisa ser a única e última abordagem para tratar o movimento dos corpos celestes, reforçando a necessária presença de desacordos entre os cientistas na complexidade do conhecimento científico.

Agradecimentos

As autoras agradecem à Universidade Estadual da Paraíba pela bolsa de Iniciação Científica – cota 2021–2022 – que gerou esse trabalho; e aos pareceristas pelas contribuições e sugestões.

Referências

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  • [9]
    S. Pumfrey, The British Journal for the History of Science 24, 61 (1991).
  • [10]
    A.P.B. Silva, O desenvolvimento das mecânicas não-euclidianas durante o século XIX. Tese de Doutorado, Instituto de Física Gleb Wataghin, São Paulo (2006).
  • [11]
    R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).
  • [12]
    E. Beltrami, Rendiconti del Reale Istituto Lombardo di Scienze e Lettere, 1, 708 (1868).
  • [13]
    B. Riemann, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1, 109 (1989).
  • [14]
    R.A. Martins, em Ensaios sobre a História e Filosofia das Ciências I (Quamcumque Editum, Extrema, 2021).
  • [15]
    R.B. Santos, O nascimento da ciência empírico-matemática: um estudo sobre o programa metodológico dos Principia de Isaac Newton Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Paraná (2021).
  • [16]
    B. Cohen e R.S. Westfall (org.), Newton: textos, antecedentes, comentários. (Eduerj/Contraponto, Rio de Janeiro, 2002).
  • [17]
    Euclides, The thirteen books of Euclid’s Elements (Dover, New York, 1956).
  • [18]
    R.A. Dugas, A history of mechanics (Dover, New York, 2012).
  • [19]
    A.P. Silva e R.A. Martins, As “Investigações gerais sobre superfícies curvas” de Gauss: texto e análise (Booklink/Unicamp, Rio de Janeiro/Campinas, 2008).
  • [20]
    D. Soares, Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20190262 (2020).
  • [21]
    R.S. Health, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 175, 281 (1884).
  • [22]
    I. Izmestiev, em: Eighteen essays on non-Euclidean geometry, editado por V. Alberge e A. Papadopoulos (European Mathematical Society, Switzerland, 2019).
  • 1
    A obra original foi publicada em latim. Neste trabalho usamos três versões diferentes na análise: a tradução para português da EDUSP [1[1] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Edusp, São Paulo, 2008).], a tradução de Andrew Motte com revisão de Florian Cajori [2[2] I. Newton, Principles of Natural Philosophy (University of Chicago, Chicago, 1978).] e a tradução para o português da Fundação Gulbekian [3[3] I. Newton, Principios Matemáticos da Filosofia Natural (Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2017).].
  • 2
    O conceito de geodésica de Riemann, apresentado em 1854, já admitia que as propriedades físicas alterariam a distância entre dois pontos pertencentes à multiplicidade [13[13] B. Riemann, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1, 109 (1989).].
  • 3
    Para aprofundamento sugerimos a leitura de Martins [11[11] R.A. Martins, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 13, 67 (1995).].
  • 4
    Não é do escopo deste trabalho tratar da metodologia e do arcabouço filosófico envolvido nos Principia como um todo, para o que sugerimos a leitura de Santos [15[15] R.B. Santos, O nascimento da ciência empírico-matemática: um estudo sobre o programa metodológico dos Principia de Isaac Newton. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Paraná (2021).].
  • 5
    Santos [15[15] R.B. Santos, O nascimento da ciência empírico-matemática: um estudo sobre o programa metodológico dos Principia de Isaac Newton. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Paraná (2021).] apresenta uma discussão bem completa a esse respeito. Martins [14[14] R.A. Martins, em Ensaios sobre a História e Filosofia das Ciências I (Quamcumque Editum, Extrema, 2021).] apresenta a dedução da lei do somatório de forças de uma forma mais simplificada que Newton.
  • 6
    Newton está se referindo à uma versão publicada em 1685, portanto antes da publicação dos Principia. Nessa versão, o texto possui 73 tópicos e poucas demonstrações geométricas. Partes dela podem ser encontradas em Cohen [16[16] B. Cohen e R.S. Westfall (org.), Newton: textos, antecedentes, comentários. (Eduerj/Contraponto, Rio de Janeiro, 2002)., p. 315–333].
  • 7
    Não é intenção deste trabalho detalhar os pressupostos de Newton quanto ao Sistema de Mundo. Para isso sugerimos a leitura de Cohen [16[16] B. Cohen e R.S. Westfall (org.), Newton: textos, antecedentes, comentários. (Eduerj/Contraponto, Rio de Janeiro, 2002).] e Santos [15[15] R.B. Santos, O nascimento da ciência empírico-matemática: um estudo sobre o programa metodológico dos Principia de Isaac Newton. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Paraná (2021).].
  • 8
    Sizígia é um termo da astronomia que, de forma geral, identifica o alinhamento de três corpos pertencentes a um sistema gravitacional.
  • 9
    Atualmente, 1 pé 0,30 m. Porém, deve-se levar em consideração que as unidades de comprimento no século XVII ainda não possuíam um padrão de medidas semelhante ao Sistema Internacional e isso é apenas uma aproximação.
  • 10
    Na proposição XX, problema IV, por exemplo, em que Newton encontra e compara os pesos nas diferentes regiões da Terra, ele não considera sua curvatura na determinação das distâncias.
  • 11
    “O excesso que ultrapassa 180 da soma dos ângulos de um triângulo formado por linhas mais curtas [geodésicas] sobre uma superfície côncava-côncava [curvatura positiva], ou aquilo que falta para 180 da soma dos ângulos de um triângulo formado por linhas mais curtas sobre uma superfície côncva-convexa [curvatura negativa], é medido pela área da parte da superfície esférica que corresponde, pelas direções das normais, àquele triângulo, se a superfície total [da esfera] for considerada igual a 720 graus” [19[19] A.P. Silva e R.A. Martins, As “Investigações gerais sobre superfícies curvas” de Gauss: texto e análise (Booklink/Unicamp, Rio de Janeiro/Campinas, 2008)., p. 133].
  • 12
    O desvio da luz na especulação de Michell mencionada na introdução seria devido à variação da velocidade da luz na presença de um corpo massivo, uma vez que pela teoria da gravitação newtoniana havia desaceleração; Quando Michell propôs isso, sabia-se que a luz possuía velocidade finita, mas não que era constante.
  • 13
    As escalas analisadas devem ser inferiores à 100 Mpc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2022
  • Revisado
    14 Abr 2023
  • Aceito
    10 Maio 2023
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