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“Sobre Simetria” de Ernst Mach – uma tradução comentada

“On Symmetry” by Ernst Mach – a commented translation

Resumos

Apresento aqui uma tradução comentada do texto “Sobre Simetria” do físico e filósofo austríaco Ernst Mach (1838–1916), publicado originalmente em Praga em 1872. O texto é uma das suas 12 conferências, realizadas entre 1864–1894, traduzidas para o inglês e reunidas em “Popular Scientific Lectures” por Thomas J. McCormack (1865–1932) em 1895. A tradução que aqui apresentamos foi realizada a partir da tradução inglesa, que em 1894 foi lida e prefaciada pelo próprio Mach. Sua abordagem, embora pouco usual para maioria dos praticantes das ciências físicas contemporâneas, nos ajuda a compreender intrigantes aspectos da fluidez das fronteiras disciplinares.

Palavras-chave:
Ernst Mach; simetria; história da ciência


I present a commented translation of the text “On Symmetry” by the Austrian physicist and philosopher Ernst Mach (1838–1916), published originally in Prague in 1872. The text is one of his 12 lectures, held between 1864–1894, translated into English and collected in “Popular Scientific Lectures” by Thomas J. McCormack (1865–1932) in 1895. The translation presented here was made from the English translation, which in 1894 was read and prefaced by Mach himself. Although unusual for most practitioners of contemporary physical sciences, his approach helps us understand intriguing aspects of the fluidity of disciplinary boundaries.

Keywords:
Ernst Mach; symmetry; history of science


1. Introdução

Ernst Mach (1838–1916) nasceu no povoado Chirlitz/Chrlice, na província da Morávia (Europa Central), que na época era parte da Áustria, mas que atualmente pertence a República Tcheca. Foi educado em casa pelo pai, em cuja biblioteca, aos quinze anos de idade, ele se deparou com um polêmico livro do filósofo Immanuel Kant. Tratava-se de “Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik. die als Wissenschaft wird auftreten können” (Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa apresentar-se como ciência), de 1783, onde Kant reflete sobre a ciência e a metafísica, questionando-se acerca da viabilidade desta última se constituir enquanto ciência. Ao longo do seu amadurecimento como cientista-filósofo – ainda que tenha rejeitado expressamente a alcunha de “filósofo” – Mach adotaria a perspectiva da incompatibilidade entre a ciência e a metafísica. Para ele, a ciência estava preocupada com o que poderia ser imediatamente sentido ou percebido e não com o que se pensava existir além dos limites conscientes. Essa atitude “presentista” era justificada por ele pela necessidade de conciliar a física com a psicologia [1[1] J. Blackmore, R. Itagaki e S. Tanaka (ed.), Ernst Mach’s Vienna 1895–1930 – or Phenomenalism as Philosophy of Science (Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 2001).].

Ainda muito jovem, Mach rejeitaria definitivamente a “coisa em si ” kantiana e adotaria um fenomenalismo epistemológico e ontológico fundado nas sensações (que ele denominava “elementos”). Neste sentido, os dados sensoriais formavam o bloco constituinte da experiência e da realidade, o que lhe permitiria impedir todo e qualquer discurso sobre entidades que pudessem existir para além da experiência humana [2[2] A.A.P. Videira, Principia 13, 371 (2009).]. Uma consequência desse seu fundamento filosófico pode ser encontrado na sua rejeição ao atomismo, como também na sua crítica (que teria significativos desdobramentos futuros) aos conceitos de espaço e tempo absolutos de Newton, que ele considerava como obscuridades metafísicas [3[3] A.K.T. Assis e A. Zylberstayn, Science and Education 10, 137 (2001).].

Mas será necessário muito cuidado e atenção para não nos deixarmos seduzir por uma espécie de clichê, não raro associado ao papel das sensações na filosofia de Mach. Sua compreensão das relações da física com a realidade exigirá muito mais, aliás bastante mais do que o simples comentário que aqui apresentamos. O caráter impessoal da sua filosofia, longe de qualquer tipo de solipsimo, nos desafia a superar tanto o subjetivismo quanto o objetivismo [4[4] R.S. Cohen, em: Ernst Mach: Physicist and Philosopher, editado por R.S. Cohen e R.J. Seeger (Reidel, Dordrecht, 2001).].

Um dos aspectos mais interessantes da sua trajetória intelectual foi a sua grande diversidade de interesses e contribuições [5[5] F. Ratliff, em: Ernst Mach: Physicist and Philosopher, editado por R.S. Cohen e R.J. Seeger (Reidel, Dordrecht, 1970)., 6[6] J. Blackmore, Ernst Mach: His Work, Life and Influence (University of California Press, Berkeley, 1972).], passando pelo enfrentamento de questões não apenas de física, mas também de psicologia, biologia, metodologia científica, história das ideias e da tecnologia, além de cultura geral e metafísica. A fisiologia sensorial, ao lado da física experimental, constituiram o foco dos seus interesses na Universidade de Viena, na qual ingressou em 1855 para estudar matemática, física e filosofia. Ao se tornar um Privatdozent1 1 (NT). Trata-se de um título universitário próprio das universidades de língua alemã na Europa. Ele designa professores que receberam uma habilitação – reconhecimento formal de uma aptidão e autorização para exercê-la – mas que não receberam a cátedra de ensino ou de pesquisa. É considerado um pré-requisito para obtenção definitiva da cátedra. em física nesta mesma universidade, logo após seu doutorado em física em 1860, ele passou a adotar os mesmos pressupostos epistemológicos e ontológicos, tanto para a física quanto para a fisiologia e a psicologia.

Mach deixa claro o seu interesse em uma abordagem do domínio da fisiologia e psicologia sensorial a partir de fenômenos do mundo físico. Os exemplos escolhidos estão relacionados aos agradáveis efeitos produzidos em nosso cérebro por simetrias presentes em figuras e objetos do nosso cotidiano. Segundo ele, tais efeitos se devem principalmente à repetição de sensações produzidas. Para que possamos ter a dimensão da importância dessas considerações, vale lembrar aqui a íntima relação existente entre nossas percepções de beleza e determinados princípios de simetria.

Após caracterizar, do ponto de vista sensorial, o que é uma simetria – usando o reflexo de figuras e objetos em espelhos planos (simetria reflexiva) – ele nos conduz à identificação da sutil e intrigante diferença entre simetrias verticais e horizontais.

Por exemplo, a semelhança de duas formas com simetria vertical é fácilmente reconhecida por nós, ao contrário do que acontece com a simetria horizontal. Segundo Mach, isso ocorre porque, diferente da simetria horizontal, a simetria vertical produz uma repetição das mesmas (ou quase as mesmas) sensações. Tudo parece indicar que a facilidade de distinguir ou confundir formas simétricas parece relacionada à orientação e simetrias correspondentes dos nossos próprios corpos. Como ilustração, Mach nos apresenta uma situação, já vivenciada por muitos de nós, relacionada à dificuldade de algumas crianças (sobretudo em período de alfabetização) em distinguir algumas letras maiúsculas do alfabeto.

A apresentação continua com exemplos de simetria rotacional e o estabelecimento de vínculos com a fisiologia do olho humano, deixando claro que a repetição de sensações produzidas por simetrias aplicam-se ao domínio do visível, mas não ao domínio dos sons. É quando ele nos conduz a um lúdico campo de experiências sonoras – produzidas por um piano a partir da execução de frases musicais geometricamente simétricas – que nos demonstram a assimetria de sensações associada a produção simétrica de sons.

Mach ainda nos lembra que o progresso da física tem sido de grande ajuda para o desenvovlimento da psicologia e que, a retribuição desta última já se fazia notar no âmbito da física através da teoria dos sentidos e do espaço. Isso porque para Mach nossa razão está acima dos nossos sentidos, o que nitidamente o faz transcender a um positivismo estreito a que muitas vezes seu pensamento é confinado pela tradição. Como já lembrado anteriormente, clichês e reducionismos são perigosos, porque capazes de sequestrar e aprisionar nosso pensamento.

“Sobre Simetria”, foi originalmente publicado em Praga em 1872 e é uma das suas 12 conferências realizadas entre 1864–1894, traduzidas para o inglês e reunidas em “Popular Scientific Lectures” [Conferências Científicas Populares] [7[7] E. Mach, em: Popular Scientific Lectures, organizado por T.J. McComack (Open Court, Chicago, 1895).] por Thomas J. McCormack (1865–1932) em 1895. Nossa tradução foi foi realizada a partir da tradução inglesa, que em 1894 foi lida e prefaciada pelo próprio Mach.

Para quem, pelo título, espera uma dissertação mais formal e matemática do tema, a surpresa será grande e não menos agradável, ao se deparar com “Sobre Simetria”, um texto que, além de sinalizar um permanente interesse em aproximar ciência e filosofia, é um exemplo do estilo universalista de alguém que teve indiscutível influência na cultura científica e filosófica do século XX.

2. A Tradução

2.1. Sobre Simetria

Um antigo filósofo observou certa vez que as pessoas que quebravam a cabeça sobre a natureza da lua o lembravam de homens que discutiam as leis e instituições de uma cidade distante da qual não tinham ouvido nada além do nome. O verdadeiro filósofo, disse ele, deveria voltar seu olhar para dentro, estudar a si mesmo e suas noções de certo e errado; somente daí ele poderia tirar proveito real.

Esta antiga fórmula para a felicidade pode ser reafirmada nas palavras familiares do Salmo2 2 (NT). Salmo é uma expressão usada para designar uma composição que se pronuncia ou entoa (na forma de canção) para louvar uma divindade. Assim, o Livro dos Salmos reúne um conjunto de orações e hinos da Bíblia hebráica e do Antigo Testamento da Bíblia cristã, que contém cânticos de adoração compostos durante um longo período da história de Israel. Eles são utilizados tanto na cultura judáica quanto cristã. Nesta citação, o autor utiliza um trecho de Salmos 37:3, que diz: ”Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra, e alimenta-te da verdade”. :

“Habita na terra, e alimenta-te da verdade”.

Hoje, se esse filósofo pudesse ressuscitar dos mortos e andar entre nós, ele ficaria muito surpreso com o rumo diferente que as coisas tomaram.

Os movimentos da lua e dos outros corpos celestes são conhecidos com precisão. Nosso conhecimento dos movimentos de nosso próprio corpo não é tão completo. As montanhas e as divisões naturais da lua foram delineadas com precisão em mapas, mas os fisiologistas estão apenas começando a se orientar na geografia do cérebro. A constituição química de muitas estrelas fixas já foi investigada. Os processos químicos do corpo dos animais são muito mais difíceis e complexos. Temos a nossa Mecânica celeste, mas resta escrever uma Mecânica social ou uma Mecânica moral de igual confiabilidade.

Nosso filósofo realmente admitiria que fizemos um grande progresso. Mas não seguimos seu conselho. O paciente se recuperou, mas usou para sua recuperação um remédio exatamente contrário àquele receitado pelo médico.

A humanidade retornou muito mais sábia de sua jornada no espaço celestial, contra a qual foi tão solenemente advertida. Parece absurdo, mas é verdade que só depois de pensarmos na lua é que conseguimos nos ocupar de nós próprios. Era necessário que adquiríssemos ideias simples e claras em um domínio menos complicado – sobretudo aquele fornecido pela astronomia – para logo entrarmos no muito mais complexo domínio da psicologia.

Seria presunçoso tentar aqui qualquer descrição desse movimento estupendo – que originalmente emergiu das ciências físicas, transcendeu seu domínio e agora se ocupa com os problemas da psicologia. Tentarei apenas ilustrar com alguns exemplos simples os métodos pelos quais o domínio da psicologia pode ser alcançado a partir de eventos do mundo físico – especialmente aqueles vinculados à percepção sensorial. Vale advertir que minha breve tentativa não deve ser tomada como uma medida do estado atual de tais questões científicas.

É fato bem conhecido que alguns objetos nos agradam, enquanto outros não. De um modo geral, tudo o que é construído de acordo com regras fixas e logicamente seguidas é um produto de beleza satisfatória. Vemos assim a própria natureza, que sempre age de acordo com regras fixas, constantemente produzindo essas coisas bonitas. Todo dia o físico é confrontado em seu local de trabalho com as mais belas figuras de vibração, figuras de som, fenômenos de polarização e formas de difração.

Uma regra pressupõe sempre uma repetição. As repetições, portanto, provavelmente desempenharão um papel importante na produção de efeitos agradáveis. Claro, a natureza dos efeitos agradáveis não se esgota nisso. Além disso, a repetição de um evento físico torna-se fonte de efeitos agradáveis apenas quando está ligada a uma repetição de sensações.

Um excelente exemplo de que a repetição de traços conduz a efeitos agradáveis é fornecido pelo caderno de caligrafia dos estudantes, que geralmente é um tesouro de tais coisas, e basta um Abade Domenech para o tornar famoso. Qualquer figura, não importa quão imperfeita ou ruim, se repetida várias vezes em série, produzirá um contorno satisfatório (Fig.1).

Figura 1:
Figura original apresentada por Mach como exemplo do uso de um padrão repetitivo na elaboração de um desenho geométrico. A numeração Fig. 25 é a que foi utilizada no original.

O agradável efeito da simetria também se deve à repetiçåo de traços. Mergulhemos por um momento neste pensamento, mais sem imaginar que, uma vez o tenhamos desenvolvido, teremos exaurido completamente a natureza do agradavel, e muito menos do belo.

Inicialmente vamos obter uma concepção clara do que é simetria. Tomemos uma imagem viva ao invés de uma definição. Você sabe que o reflexo de um objeto em um espelho se assemelha bastante ao próprio objeto. Todas as suas proporções e contornos são os mesmos. No entanto, você logo se dará conta de que há uma diferença entre o objeto e seu reflexo no espelho.

Segure sua mão direita diante de um espelho, e você verá no espelho uma mão esquerda. Sua luva direita produzirá seu par no vidro. Você nunca poderia usar o reflexo de sua luva direita, se ela fosse real, para cobrir sua mão direita, mas apenas para cobrir sua mão esquerda. Da mesma forma, sua orelha direita refletirá uma orelha esquerda; e você perceberá imediatamente que a metade esquerda de seu corpo poderia facilmente ser substituída pelo reflexo de sua metade direita. Agora, assim como, apesar de toda semelhança de forma, uma orelha esquerda não pode ser colocada no lugar de uma orelha direita ausente – a menos que o lóbulo da orelha seja virado para cima, ou a abertura da concha para trás – o reflexo de um objeto nunca pode tomar o lugar do próprio objeto3 3 Kant também faz referência a este fato em seu Prolegomena zu jeder künftigen Metaphysik [Prolegômenos a Toda Metafísica Futura], mas com um propósito diferente. .

A razão dessa diferença entre o objeto e seu reflexo é simples. O reflexo aparece tão atrás do espelho quanto o objeto está à sua frente. Dessa forma, tanto as partes do objeto quanto do reflexo estão à mesma distância do espelho. Consequentemente, a sucessão das partes no reflexo estará invertida, como pode se ver melhor no reflexo de um rosto ou de um manuscrito atentamente observados.

Também rapidamente se perceberá que se um ponto do objeto for unido com seu reflexo na imagem, a linha de junção cortará o espelho em ângulos retos e será dividida por ele. Isso vale para todos os pontos correspondentes do objeto e da imagem.

Se agora dividirmos um objeto por um plano em duas metades de modo que cada metade, conforme vista na reflexão no plano da divisão, seja uma reprodução da outra metade, tal objeto é denominado simétrico, e o plano de divisão é chamado de plano de simetria.

Se o plano de simetria for vertical, podemos dizer que o corpo é verticalmente simétrico. Um exemplo de simetria vertical é uma catedral gótica.

Se o plano de simetria for horizontal, dizemos que o objeto é horizontalmente simétrico. Uma paisagem refletida na água nas margens de um lago é um sistema de simetria horizontal

Aqui encontramos uma diferença notável. A simetria vertical de uma catedral gótica nos impressiona de imediato, ao passo que podemos subir e descer toda a extensão do Reno ou do Hudson sem nos darmos conta da simetria entre os objetos e seus reflexos na água. A simetria vertical nos agrada, enquanto a simetria horizontal nos é indiferente e somente é percebida pelo olho experiente.

De onde surge essa diferença? Me refiro ao fato de que a simetria vertical produz uma repetição da mesma sensação, enquanto a simetria horizontal não. Agora mostrarei que é assim.

Vejamos as seguintes letras:

d b q p

É um fato conhecido por todas as mães e professores, que as crianças em suas primeiras tentativas de ler e escrever, constantemente confundem d e b, e q e p, mas nunca d e q, ou b e p. Agora d e b e q e p são os duas metades de uma figura verticalmente simétrica, enquanto d e q, e b e p são duas metades de uma figura horizontalmente simétrica. Os dois primeiros são confundidos; mas a confusão só é possível com coisas que nos provocam sensações iguais ou semelhantes.

As imagens de duas floristas são freqüentemente vistas na decoração de jardins e salas de estar, uma delas carrega um cesto de flores na mão direita e a outra um cesto de flores na mão esquerda. Todos sabem como somos propensos a confundir essas duas imagens uma com a outra, a menos que tenhamos muito cuidado.

Enquanto o olho dificilmente notará a virada de uma coisa da direita para a esquerda, ele não será indiferente a virada de cabeça para baixo dessa mesma coisa. Dificilmente um rosto humano virado de cabeça para baixo é reconhecível como um rosto e causa uma impressão totalmente estranha. A razão disso não deve ser buscada na inadequação da visão, pois é igualmente difícil reconhecer um arabesco invertido, quando não se está habituado. Esse fato curioso é a base das brincadeiras familiares feitas com as fotos de personagens impopulares, que quando apresentadas na posição vertical, tem-se uma imagem exata da pessoa, mas ao ser invertida, aparece a imagem de algum animal popular.

Assim, é um fato que as duas metades de uma figura verticalmente simétrica são facilmente confundidas e, portanto, provavelmente produzem quase as mesmas sensações. Então surge a questão: por que as duas metades de uma figura verticalmente simétrica produzem sensações iguais ou semelhantes? A resposta é: porque nosso instrumento de visão, que consiste em nossos olhos e no mecanismo muscular que o acompanha, é verticalmente simétrico4 4 Compare Mach, Fichte’s Zeitschrft für Philosophie, 1864, p. I .

Quaisquer que sejam as semelhanças externas que um olho possa ter com o outro, eles ainda não são equivalentes. O olho direito de um homem não pode substituir o olho esquerdo, assim como a orelha esquerda ou a mão esquerda não podem substituir a direita. Por meios artificiais, podemos mudar o papel que cada um de nossos olhos desempenha (Pseudoscópio de Wheatstone5 5 (NT) Um pseudoscópio é um instrumento ótico binocular que reverte a percepção de profundidade. É usado para estudar a percepção estereoscópica humana. Os objetos vistos através dele aparecem do avesso, por exemplo: uma caixa no chão apareceria como um buraco em forma de caixa no chão. ). Portanto, nos encontramos em um mundo totalmente novo e estranho. O que é convexo parece côncavo; o que é côncavo, convexo. O que está distante parece próximo, e o que está próximo parece distante.

O olho esquerdo e sua retina sensível à luz são um reflexo do olho direito. Isto é válido para todas as suas outras funções.

A lente do olho, como uma lanterna mágica, projeta imagens de objetos na retina. E você pode imaginar a retina do olho que sente a luz, com seus incontáveis nervos, como uma mão com inúmeros dedos, adaptada para sentir a luz. As extremidades dos nervos visuais, como nossos dedos, são dotadas de vários graus de sensibilidade. As duas retinas agem como uma mão direita e uma mão esquerda; a sensação de toque e a sensação de luz nas duas instâncias são semelhantes.

Examine a parte direita da letra T. Imagine senti-la como objeto concreto em suas duas mãos, ao invés de imaginá-la projetada em suas duas retinas. Quando segura pela mão direita ela fornece uma sensação diferente do que quando segura pela mão esquerda. Mas, se a virarmos de lado, da direita para o esquerda, ela fornecerá na mão esquerda a mesma sensação que fornecia na direita. A sensação se repete.

Se segurarmos um T inteiro (como objeto), a sensação produzida será igual nas duas mãos. A forma simétrica fornece a mesma sensação.

Se girarmos esse mesmo T 90 graus à esquerda, ou invertermos a metade do T, desde que não mudemos de mão, o raciocínio anterior não é mais válido.

De fato, as retinas são exatamente como nossas duas mãos. Elas também têm seus polegares e indicadores, embora neste caso eles sejam da ordem de milhares; e ainda podemos dizer que os polegares estão do lado do olho perto do nariz, e os dedos restantes do outro lado, lado longe do nariz.

Com isso, espero ter deixado perfeitamente claro que o efeito agradável da simetria se deve principalmente à repetição de sensações e que ocorre em figuras simétricas apenas quando há repetição de sensação. O efeito agradável de figuras regulares, a preferência que as linhas retas desfrutam, especialmente as linhas retas verticais e horizontais, baseia-se em uma razão semelhante. Uma linha reta, tanto na posição horizontal como na vertical, pode projetar nas duas retinas a mesma imagem que, além disso, incide em pontos simetricamente correspondentes. Isso também, ao que parece, é a razão de nossa preferência psicológica por linhas retas em vez de curvas, e não suas propriedades de serem a menor distância entre dois pontos. Resumindo, a linha reta é sentida como simétrica a si mesma, o que também é o caso do plano. Linhas curvas são sentidas como desvios de linhas retas, ou seja, como desvios de simetria6 6 O fato de que o primeiro e o segundo coeficientes diferenciais de uma curva são vistos diretamente, mas os coeficientes mais altos não, é explicado de maneira muito simples. O primeiro dá a posição da tangente, a inclinação da reta a partir da posição de simetria, o segundo a inclinação da curva a partir da reta. Talvez não seja inútil observar aqui que o método comum de testar réguas e superfícies planas (por aplicações inversas) é verificar o desvio do objeto da simetria em relação si mesmo. .

A presença de um senso de simetria em pessoas que possuem apenas um olho desde o nascimento é realmente um enigma. Claro, o senso de simetria, embora adquirido principalmente por meio dos olhos, não pode ser totalmente limitado aos órgãos visuais. Também deve estar profundamente enraizado em outras partes do organismo por anos de prática e, portanto, não pode ser eliminado imediatamente pela perda de um olho. Além disso, quando um olho é perdido, o aparato muscular de simetria, assim como o aparelho simétrico de inervação, permanece.

Parece, no entanto, inquestionável que os fenômenos mencionados têm, principalmente, sua origem na estrutura peculiar de nossos olhos. Ver-se-á, portanto, de imediato, que nossas noções do que é belo e feio sofreriam uma mudança se nossos olhos fossem diferentes. Além disso, se essa visão estiver correta, a teoria do chamado eternamente belo está um tanto equivocada. Dificilmente se pode duvidar que nossa cultura, ou forma de civilização, que imprime no corpo humano seus traços inconfundíveis, também não deveria modificar nossas concepções do belo. Antigamente, o desenvolvimento de toda beleza musical não se restringia aos estreitos limites de uma escala de cinco tons?

O fato de uma repetição de sensações produzir efeitos agradáveis não se restringe ao domínio do visível. Hoje, tanto o músico quanto o físico sabem que a adição harmônica ou melódica de um tom a outro nos afeta agradavelmente apenas quando o tom adicionado reproduz uma parte da sensação que o primeiro gerou. Quando acrescento uma oitava a um tom fundamental, ouço na oitava uma parte do que foi ouvido no tom fundamental (Helmholtz). Mas não é meu propósito desenvolver essa ideia completamente aqui7 7 Ver a conferência Sobre as Causas da Harmonia. (NT) Trata-se da terceira das conferências reunidas em Conferências Científicas Populares. . Perguntaremos apenas se existe algo semelhante à simetria das figuras no domínio dos sons.

Olhe para o reflexo do seu piano no espelho. Você notará imediatamente que nunca viu tal piano no mundo real, pois ele tem as teclas altas à esquerda e as baixas à direita. Esses pianos não são fabricados.

Se você pudesse se sentar em tal piano e tocar da maneira usual, cada passo que você imaginasse realizar na escala ascendente seria claramente executado como um passo correspondente na escala descendente. O efeito seria surpreendente.

Para o músico experiente que está sempre acostumado a ouvir certos sons produzidos quando certas teclas são tocadas, é um espetáculo bastante anômalo ver um tocador no espelho e observar que ele sempre faz o oposto do que ouvimos.

Ainda mais notável seria o efeito de tentar produzir uma harmonia em tal piano. Para uma melodia, faz diferença se executamos uma sequência em uma escala ascendente ou descendente. No caso de uma harmonia, a diferença produzida pela inversão não é tão grande. A consonância sempre se mantém, quer se acrescente a uma nota fundamental uma terça superior ou inferior. Apenas a ordem dos intervalos da harmonia é invertida. Na verdade, quando executamos um movimento em tom maior em nosso piano refletido, ouvimos um som em tom menor e vice-versa.

Resta agora executar os experimentos indicados. Em vez de tocar piano no espelho, o que é impossível, ou de mandar construir um piano desse tipo, que seria um tanto caro, podemos realizar nossos experimentos de maneira mais simples, como segue:

  1. Tocamos nosso próprio piano da maneira usual, olhamos no espelho e depois repetimos em nosso piano real o que vemos no espelho. Desta forma, transformamos todos os passos para cima em passos correspondentes para baixo. Tocamos um movimento, e depois outro movimento, que, em relação ao teclado, é simétrico ao primeiro.

  2. Colocamos um espelho sob a música, onde as notas são refletidas como em uma superfície de água e tocamos de acordo com as notas no espelho. Desta forma também, todos os passos para cima são transformados em correspondentes passos iguais para baixo.

  3. Viramos a música de cabeça para baixo e lemos as notas da direita para a esquerda e de baixo para cima. Ao fazer isso, devemos considerar todos os sustenidos como bemóis e todos os bemóis como sustenidos, porque eles correspondem a meias linhas e espaços. Além disso, neste uso da música só podemos empregar a clave de fá, pois somente nesta clave as notas não são alteradas por inversão simétrica.

Você pode julgar o efeito dessas experiências a partir dos exemplos que aparecem no recorte musical da Fig.2. A posição das notas nos pentagramas superiores é simetricamente invertida nos pentagramas inferiores.

Figura 2:
Pentagrama musical com sequência de notas simetricamente invertida. A numeração Fig. 26 é a que foi utilizada no original.

O efeito dos experimentos pode ser brevemente expresso. A melodia fica irreconhecível. A harmonia sofre uma transposição de tom maior para tom menor e vice-versa. O estudo desses belos efeitos, que há muito são familiares aos físicos e músicos, foi revivido há alguns anos por Von Oettingen8 8 A. von Oettingen, Harmoniesystem in dualer Entwicklung. Leipsic and Dorpat, 1866. (NT). Nesta obra, o físico e teórico da música alemão Arthur von Oettingen (1836–1920) faz uma defesa de uma teoria das relações acústicas – conhecida como “dualismo harmônico”, de autoria do musicólogo e historiador da música alemão Hugo Riemann (1849–1919). .

Agora, embora em todos os exemplos anteriores eu tenha trasformado passos para cima em passos iguais e semelhantes para baixo – ou seja, tocado para cada movimento o seu oposto simétrico – o ouvido percebe pouco ou nada de simetria. A transposição de uma tonalidade maior para uma menor é a única indicação de simetria restante. Neste caso a simetria existe para a mente, mas carece de sensação. Não existe simetria para o ouvido, porque uma inversão de sons musicais não condiciona a repetição de sensações. Se tivéssemos um ouvido para altura e outro para profundidade, assim como temos olho para a direita e olho para a esquerda, também descobriríamos que estruturas sonoras simétricas existem para nossos órgãos auditivos. O contraste de maior e menor para o ouvido corresponde à inversão para o olho, que também é simetria para a mente, mas não para a sensação.

Complementando o que eu disse, acrescentarei uma breve observação para meus leitores matemáticos.

Nossa notação musical é essencialmente uma representação gráfica de uma peça musical na forma de curvas, onde o tempo é a abcissa e os logaritmos do número de vibrações as ordenadas. Tomado este princípio, os desvios da notação musical visam apenas possibilitar a interpretação, ou são meros acasos.

Se ainda observarmos que a sensação de altura também é proporcional ao logaritmo do número de vibrações, e que os intervalos entre as notas correspondem às diferenças dos logaritmos do número de vibrações, teremos aí a justificativa para chamar as harmonias e melodias que aparecem no espelho, de simétricas às originais.

Eu simplesmente desejo lembrar-lhes, por meio dessas observações fragmentadas, que o progresso das ciências físicas tem sido de grande ajuda para aqueles ramos da psicologia que não menosprezaram os resultados da pesquisa física. Por outro lado, a psicologia começa a retribuir, por assim dizer, com espírito de gratidão, o poderoso estímulo que recebeu da física.

As teorias da física que reduzem todos os fenômenos ao movimento e ao equilíbrio das menores partículas, as chamadas teorias moleculares, foram gravemente ameaçadas pelo progresso da teoria dos sentidos e do espaço, e podemos dizer que seus dias estão contados.

Já mostrei em outro lugar que a escala musical é simplesmente uma espécie de espaço – um espaço de apenas uma dimensão e unilateral. Se agora uma pessoa, que só pode ouvir, tentar desenvolver uma concepção de mundo neste seu espaço linear, ela se envolveria em muitas dificuldades, pois seu espaço seria incompetente para compreender as várias facetas das relações da realidade. Mas, de algum modo, seria mais justificável para nós, tentar ajustar o mundo inteiro ao espaço do nosso olho, em aspectos nos quais ele não é acessível ao olho? No entanto, este é o dilema de todas as teorias moleculares.

Apesar disso, possuímos uma capacidade que, no que diz respeito ao alcance das relações que ela pode abranger, é mais rica do que qualquer outra. Trata-se da nossa razão. Ela está acima dos sentidos. Só ela é competente para fundamentar uma visão permanente e suficiente do mundo. A concepção mecânica do mundo realizou maravilhas desde a época de Galileu. Mas agora ela deve ceder espaço a uma visão mais ampla das coisas. Um desenvolvimento adicional dessa ideia está além dos limites do meu propósito atual.

Mais um ponto e finalizo. O conselho do nosso filósofo de nos restringirmos em nossas pesquisas ao que está próximo de nós, o que encontra uma espécie de exemplificação no atual clamor dos investigadores por limitação e divisão do trabalho, não deve ser seguido com subserviência. No isolamento de nossos gabinetes, muitas vezes quebramos a cabeça em vão para realizar um trabalho, cujo meio de realização está logo ali, diante de nós. Se faz parte do trabalho de um sapateiro martelar constantemente, talvez seja permitido que ele seja um sapateiro do tipo de Hans Sachs9 9 (NT). Hans Sachs (1494–1576) foi um alemão, sapateiro de profissão, mas que também era poeta, escritor, cantor e dramaturgo e ator. Foi autor de mais de seis mil poemas, escritos no estilo popular burguês do Meistersang (poesia que une canto religioso e poesia, cantada nas escolas gremiais do século XVI). , que não considerava inferior dar uma olhada de vez em quando no trabalho de seu vizinho. e comentar as ações deste último.

Peço desculpas se abandonei por um momento hoje a última de minhas especialidades.

Agradecimentos

O autor agradece ao Instituto de Física da Universidade de Brasília pelo apoio institucional, e aos revisores deste artigo pelos comentários e significativas contribuições que ajudaram a melhorá-lo.

Referências

  • [1]
    J. Blackmore, R. Itagaki e S. Tanaka (ed.), Ernst Mach’s Vienna 1895–1930 – or Phenomenalism as Philosophy of Science (Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 2001).
  • [2]
    A.A.P. Videira, Principia 13, 371 (2009).
  • [3]
    A.K.T. Assis e A. Zylberstayn, Science and Education 10, 137 (2001).
  • [4]
    R.S. Cohen, em: Ernst Mach: Physicist and Philosopher, editado por R.S. Cohen e R.J. Seeger (Reidel, Dordrecht, 2001).
  • [5]
    F. Ratliff, em: Ernst Mach: Physicist and Philosopher, editado por R.S. Cohen e R.J. Seeger (Reidel, Dordrecht, 1970).
  • [6]
    J. Blackmore, Ernst Mach: His Work, Life and Influence (University of California Press, Berkeley, 1972).
  • [7]
    E. Mach, em: Popular Scientific Lectures, organizado por T.J. McComack (Open Court, Chicago, 1895).
  • 1
    (NT). Trata-se de um título universitário próprio das universidades de língua alemã na Europa. Ele designa professores que receberam uma habilitação – reconhecimento formal de uma aptidão e autorização para exercê-la – mas que não receberam a cátedra de ensino ou de pesquisa. É considerado um pré-requisito para obtenção definitiva da cátedra.
  • 2
    (NT). Salmo é uma expressão usada para designar uma composição que se pronuncia ou entoa (na forma de canção) para louvar uma divindade. Assim, o Livro dos Salmos reúne um conjunto de orações e hinos da Bíblia hebráica e do Antigo Testamento da Bíblia cristã, que contém cânticos de adoração compostos durante um longo período da história de Israel. Eles são utilizados tanto na cultura judáica quanto cristã. Nesta citação, o autor utiliza um trecho de Salmos 37:3, que diz: ”Confia no Senhor e faze o bem; habita na terra, e alimenta-te da verdade”.
  • 3
    Kant também faz referência a este fato em seu Prolegomena zu jeder künftigen Metaphysik [Prolegômenos a Toda Metafísica Futura], mas com um propósito diferente.
  • 4
    Compare Mach, Fichte’s Zeitschrft für Philosophie, 1864, p. I
  • 5
    (NT) Um pseudoscópio é um instrumento ótico binocular que reverte a percepção de profundidade. É usado para estudar a percepção estereoscópica humana. Os objetos vistos através dele aparecem do avesso, por exemplo: uma caixa no chão apareceria como um buraco em forma de caixa no chão.
  • 6
    O fato de que o primeiro e o segundo coeficientes diferenciais de uma curva são vistos diretamente, mas os coeficientes mais altos não, é explicado de maneira muito simples. O primeiro dá a posição da tangente, a inclinação da reta a partir da posição de simetria, o segundo a inclinação da curva a partir da reta. Talvez não seja inútil observar aqui que o método comum de testar réguas e superfícies planas (por aplicações inversas) é verificar o desvio do objeto da simetria em relação si mesmo.
  • 7
    Ver a conferência Sobre as Causas da Harmonia. (NT) Trata-se da terceira das conferências reunidas em Conferências Científicas Populares.
  • 8
    A. von Oettingen, Harmoniesystem in dualer Entwicklung. Leipsic and Dorpat, 1866. (NT). Nesta obra, o físico e teórico da música alemão Arthur von Oettingen (1836–1920) faz uma defesa de uma teoria das relações acústicas – conhecida como “dualismo harmônico”, de autoria do musicólogo e historiador da música alemão Hugo Riemann (1849–1919).
  • 9
    (NT). Hans Sachs (1494–1576) foi um alemão, sapateiro de profissão, mas que também era poeta, escritor, cantor e dramaturgo e ator. Foi autor de mais de seis mil poemas, escritos no estilo popular burguês do Meistersang (poesia que une canto religioso e poesia, cantada nas escolas gremiais do século XVI).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2023
  • Revisado
    18 Maio 2023
  • Aceito
    22 Maio 2023
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