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A circulação de pessoas, ideias e técnicas: a FFCL da USP no início das pesquisas de Física Nuclear no Brasil

The circulation of people, ideas and techniques: USP’s FFCL the beginning of Nuclear Physics research in Brazil

Resumos

O presente trabalho se baseia na pesquisa histórica sobre o grupo de pesquisas em raios cósmicos formado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, liderado por Gleb Wataghin. Nesse sentido, o trabalho busca entender como a formação da nova universidade no estado de São Paulo e a contratação de professores estrangeiros foi um fator que gerou reflexos nas pesquisas ali desenvolvidas. A partir da análise das correspondências trocadas entre os personagens desse episódio histórico, à luz do conceito da circulação de pessoas, ideias e técnicas, buscamos entender como foi possível que a ciência nacional obtivesse algum protagonismo no cenário internacional e também como foi possível o desenvolvimento e na consolidação da física nuclear brasileira. Essa circulação contribuiu intensamente para que esse grupo de pesquisa se estabelecesse e mantivesse contato com grandes centros de ciência mundial, impulsionando assim uma institucionalização da física nuclear no país. A partir desse episódio, buscamos entender também como a sua compreensão nos ajuda a entender a dimensão política da ciência e possíveis reflexos existentes até os dias de hoje.

Palavras-chave:
História da Ciência Nacional; História Cultural da Ciência; Física Nuclear; Ciência Nacional; USP


The present work is based on historical research on the formation of the cosmic ray research group at the Faculty of Philosophy, Science and Letters, in the University of São Paulo, led by Gleb Wataghin. In this sense, the work seeks to understand how the formation of the new university in the state of São Paulo and the hiring of foreign professors was a factor that generated reflections on the research carried out there. Based on the analysis of the correspondence exchanged between the characters of this historical episode, we also sought to understand how the process of circulation of people, ideas and techniques took place. This process contributed for this research group to establish itself and maintain contact with major centers of world science, thus allowing Brazilian science to have some prominence on the international scene in the post-war period and also boosted the institutionalization of nuclear physics in the country.

Keywords:
History of National Science; Cultural History of Science; Nuclear Physics; National Science; USP


1. Introdução

O processo de construção da ciência nacional é tema recorrentemente estudado por historiadores da ciência no Brasil. Trabalhos e trajetórias de cientistas renomados, como Cesar Lattes, José Leite Lopes e Jayme Tiomno foram estudados por historiadores da ciência [1[1] J.M.F. Bassalo e F. Caruso, em: Os 60 anos do CBPF e a gênese do CNPq, editado por A. Troper, A.A.P. Videira e C.L.Vieira (CBPF, Rio de Janeiro, 2010)., 2[2] F. Costa e H.M. Ottoni, Ciência e Sociedade 5, 13 (2018)., 3[3] V.C. Silva, Ciência e Sociedade 6, 35 (2019)., 4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020).]. Nesse sentido, encontramos uma literatura vasta sobre a formação e desenvolvimento de instituições científicas brasileiras, como é o caso do CBPF, do CNPq e da CNEN [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999)., 6[6] A.M.R. Andrade, Opção nuclear: 50 anos rumo à autonomia (Museu de Astronomia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, 2006)., 7[7] A.M.R. Andrade em: Os 60 anos do CBPF e a gênese do CNPq, editado por A. Troper, A.A.P. Videira e C.L. Vieira (CBPF, Rio de Janeiro, 2010)., 8[8] H. Tavares, Revista Contemporânea 6, 67 (2015)., 9[9] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 33, 2603 (2011)., 10[10] A.A.P. Videira, Saber y Tiempo 5, 71 (2004)., 11[11] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Fênix 4, 1 (2007)., 12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014)., 13[13] H. Tavares, A.A.P. Videira e A. Bagdonas, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).]. A partir desses estudos, pesquisadores defendem que o estabelecimento e a institucionalização de certas áreas da ciência no país, como é o caso da criação do CBPF e do CNPq, reflete a defesa de interesses científicos nacionais, por parte dos atores sociais envolvidos nesse processo. Além disso, esses estudos apontam que a presença de professores estrangeiros como Luigi Sobrero, Gleb Wataghin e Bernhard Gross em instituições brasileiras foram importantes no processo de formação de uma geração de físicos nos anos 1940, que despontou no cenário internacional.

A partir desse cenário, desenvolvemos uma pesquisa que teve por objetivo analisar como a circulação de pessoas, ideias e técnicas em torno ao desenvolvimento da física nuclear no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 contribuiu para o processo de formação da ciência nacional e os fatores que permitiram que essa circulação se estabelecesse naquele cenário. A escolha por esse recorte deve-se à sua importância no estabelecimento não só da física nuclear, mas também da ciência brasileira com reflexos até os dias de hoje.

Para cumprir o objetivo traçado, estudamos a formação e consolidação do grupo de pesquisa em física nuclear na Universidade de São Paulo (USP). Consideramos como fontes primárias principais da pesquisa as correspondências trocadas entre Gleb Wataghin e outros personagens envolvidos nesse episódio, bem como entrevistas concedidas por eles tanto para jornais e veículos de imprensa, quanto para resultados de pesquisas que tiveram por objetivo estudar as trajetórias desses personagens. Juntamente a isso, consideramos, também, relatórios e documentos oficiais do acervo da USP.

Muitas dessas fontes [1[1] J.M.F. Bassalo e F. Caruso, em: Os 60 anos do CBPF e a gênese do CNPq, editado por A. Troper, A.A.P. Videira e C.L.Vieira (CBPF, Rio de Janeiro, 2010)., 2[2] F. Costa e H.M. Ottoni, Ciência e Sociedade 5, 13 (2018)., 3[3] V.C. Silva, Ciência e Sociedade 6, 35 (2019)., 4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020)., 10[10] A.A.P. Videira, Saber y Tiempo 5, 71 (2004).] permitiram pesquisas que analisaram como os físicos brasileiros dessa geração se uniram em prol de um ideal de ciência nacional, de forma a tornar possível a realização de pesquisas em física nuclear em território nacional. Além disso, algumas pesquisas [1[1] J.M.F. Bassalo e F. Caruso, em: Os 60 anos do CBPF e a gênese do CNPq, editado por A. Troper, A.A.P. Videira e C.L.Vieira (CBPF, Rio de Janeiro, 2010)., 5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999)., 9[9] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 33, 2603 (2011)., 10[10] A.A.P. Videira, Saber y Tiempo 5, 71 (2004)., 12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014)., 13[13] H. Tavares, A.A.P. Videira e A. Bagdonas, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).] destacaram como ocorreu o processo de criação de instituições científicas, como o caso do CBPF, depois dos resultados dos experimentos obtidos por Cesar Lattes na Inglaterra e nos EUA.

Com esse cenário já estabelecido na literatura, esse trabalho busca compreender como se deram as articulações político-diplomáticas para que cientistas e estudantes circulassem do Brasil para centros de pesquisas internacionais e para o Brasil, assim como, ideias e técnicas participassem dessa circulação e como esse processo contribuiu para a institucionalização e estabelecimento da Física Nuclear do Brasil, e, ainda, como aquelas articulações refletem na ciência brasileira até os dias de hoje.

Para isso, nos apoiaremos no conceito de circulação como trabalhado pela historiadora da ciência Ana Simões [14[14] A. Simões, P.M.P. Raposo, M. Patiniotis e J.R. Bertomeu-Sánchez, Centaurus 56, 167 (2014)., 15[15] A. Simões, Centaurus 61, 254 (2019).]. Nesse conceito, que ainda não foi utilizado em outros trabalhos para analisar esse episódio, a ideia de circulação não está limitada à movimentação e mobilidade dos corpos, mas sim às transformações que os conhecimentos e as práticas sofrem nessa movimentação.

Nesse sentido não podemos considerar que qualquer coisa circula. Kapil Raj [16[16] K. Raj, Circulação não é fluidez, disponível em: http://www.sbhc.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=944, acessado em: 10/04/2021.
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] exemplifica que o dinheiro, mesmo circulando ao redor do mundo, não se modifica. Logo ele não é um objeto que se encaixa nessa perspectiva de circulação, que está voltada para as mudanças produzidas nas ideias e práticas do universo científico ao longo dessas movimentações e, ainda, no porque elas acontecem.

Dessa forma, a ideia de circulação busca entender como os objetos, os humanos, suas práticas e seus saberes incorporados mudam, se transformam, a partir do fenômeno do deslocamento. A circulação não é mais sobre a mobilidade de itens e artefatos científicos de um contexto para outro, normalmente pensada de um centro para um local mais periférico cientificamente. Se opõe às noções de disseminação e difusão de ideias e práticas científicas, implicando em encontros mutuamente transformadores entre diferentes localidades [14[14] A. Simões, P.M.P. Raposo, M. Patiniotis e J.R. Bertomeu-Sánchez, Centaurus 56, 167 (2014)., 15[15] A. Simões, Centaurus 61, 254 (2019)., 17[17] K. Raj, British Journal for the History of Science 43, 513 (2010)., 18[18] K. Raj, Isis 104, 337 (2013).]. A circulação, portanto, implica na existência de um aspecto incremental e não uma simples reprodução no espaço de estruturas e noções já formadas, trazidas de outros locais.

Nesse sentido, não iremos pensar no conhecimento que se desenvolveu em um local e se difundiu para outros, mas sim em como esse conhecimento apresentou um processo de construção que se deu ao longo dessa circulação. Os trabalhos dos físicos nucleares brasileiros serão analisados à luz dessa perspectiva, com eles não sendo receptores passivos de um conhecimento desenvolvido na Europa e nos EUA, mas como um conhecimento que foi construído pela circulação desses cientistas. Além disso, buscaremos entender como essa circulação construiu conhecimentos e práticas científicas que refletiram diretamente no funcionamento da ciência brasileira, não só nas pesquisas desenvolvidas por eles.

Ana Simões [14[14] A. Simões, P.M.P. Raposo, M. Patiniotis e J.R. Bertomeu-Sánchez, Centaurus 56, 167 (2014)., 15[15] A. Simões, Centaurus 61, 254 (2019).] destaca ainda que essa concepção de circulação como um processo de produção de conhecimento abre caminho para novos tipos de atores históricos serem visibilizados. Diferente da historiografia positivista da ciência, onde os trabalhos de grandes pensadores moldaram definitivamente as grandes ideias científicas, a perspectiva da circulação como um local de produção contínua de conhecimento tem potencial para revelar o trabalho daqueles sujeitos interculturais que se movem através das fronteiras disciplinares e territoriais, lidando com possibilidades e restrições, construindo espaços adaptados à sua própria atividade, cultivando soluções para problemas e mantendo um funcionamento através de uma espécie de rede. E o olhar para isso pode ajudar os historiadores a contar histórias mais ricas e complexas sobre os encontros culturais, negociações sociais e potencialidades materiais que contribuíram para o processo de construção da ciência

Os historiadores da ciência devem então estar cada vez mais atentos às localidades, à pluralidade de agentes, à dinâmica de negociações e as redes envolvendo todos tipos de espaços e mediadores. Ao conceber a ciência também do ponto de vista da comunicação, somos capazes de abandonar os superados modelos difusionistas do conhecimento e a suposição de uma transferência unidirecional de conhecimento pronto dos centros para as periferias. Ao realizarmos essa mudança de perspectiva, nos aproximamos de uma visão mais complexa da circulação.

O interesse por essa perspectiva de circulação desenvolveu-se a partir de discussões historiográficas e reflexões, a partir da virada espacial do conhecimento, sobre o papel das viagens na construção da ciência moderna europeia. Essa noção revisada de circulação está ainda associada à ideia de que o tipo de movimento envolvido na circulação se repete e tende a retornar a um ponto de origem [14[14] A. Simões, P.M.P. Raposo, M. Patiniotis e J.R. Bertomeu-Sánchez, Centaurus 56, 167 (2014)., 15[15] A. Simões, Centaurus 61, 254 (2019).]. Como resultado, a circulação afeta em igual grau todos os atores envolvidos nesse processo. Nesse sentido, buscamos utilizar esse mesmo caminho para analisar as viagens realizadas pelos físicos nucleares brasileiros.

Ao circularem entre o Brasil e os centros de pesquisa estrangeiros, os físicos brasileiros seguiram caminhos geográficos e intelectuais, mas que nunca estiveram separados dos cenários locais em que suas atividades culturais e científicas estavam enraizadas. Reconhecemos que eles passaram por mudanças intelectuais e culturais durante suas jornadas, mas esse efeito transformador da viagem é exercido tanto no viajante quanto pelo viajante. Ao longo do texto perceberemos esse efeito nos deslocamentos de Cesar Lattes, Leite Lopes, Gleb Wataghin e outros físicos dessa geração.

Para melhor apresentarmos respostas ao objetivo deste artigo, o dividiremos em duas partes. Cada uma delas se reporta a um aspecto do episódio histórico que possui o mesmo peso e importância para que a institucionalização da ciência no Brasil, mais especificamente a física nuclear, tomasse corpo e a ciência brasileira se estabelecesse até os dias de hoje.

A primeira parte terá foco na criação da USP como uma nova universidade e com ela a criação e consolidação do grupo de pesquisa de física nuclear e a participação de Gleb Wataghin nesse processo. Na segunda parte do artigo, exploramos como a circulação de pessoas, ideias e técnicas em torno à física nuclear, a partir de eventos estabelecidos e a estadia de brasileiros em centros de pesquisa internacionais. Finalizamos o artigo com algumas considerações gerais.

2. Da criação da USP à consolidação do grupo de pesquisas em raios cósmicos

Para melhor expor os resultados da pesquisa aqui relatada, tomaremos como marco inicial a criação da USP, pois foi lá que se iniciou e, posteriormente, se consolidou a prática da circulação que nos referimos. A fundação da USP, em 1934, não está desvinculada dos movimentos no Brasil, das décadas de 1910 e 1920, que reivindicaram investimentos em ciência, sem que o objetivo fosse atender imediatamente à indústria [19[19] L.V.S. Silva e B.J. Bontempi, Journal of Russian History 19, 965 (2020).].

Até o início da década de 1930, era vigente no ensino superior brasileiro o modelo pombalino herdado de Portugal, que estimulava, nas universidades, um ensino voltado para a ciência aplicada, capaz de gerar algum tipo de riqueza para o país [20[20] A.E. Almeida, A Faculdade Nacional de Filosofia e a Criação de Instituições Científicas: O Caso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (1992).]. Em contraposição a esse modelo, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Associação Brasileira de Educação (ABE), fundadas respectivamente em 1916 e 1924 iniciaram uma luta em prol das pesquisas em ciências puras, organizando conferências e encontros para discutir o papel das universidades nesse tipo de pesquisa. Esse movimento ganhou força e apoio das elites brasileiras ao longo da década de 1930, intensificando, assim, a busca por um modelo de universidade que permitisse mais espaço para pesquisas sem aplicação direta [20[20] A.E. Almeida, A Faculdade Nacional de Filosofia e a Criação de Instituições Científicas: O Caso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (1992).].

Luciana Vieira Silva e Rogério Monteiro [21[21] L.V.S. Silva e R. Monteiro, Italie et Méditerranée 2, 407 (2018).] destacam, entretanto, que a criação da USP não se deu sob influência exclusiva da busca por espaço para pesquisas puras. Os autores consideram que o projeto da criação da universidade também foi reflexo da derrota paulista na Revolução de 1930, relacionada à crise de 1929, quando a queda na bolsa de valores de Nova York, que levou à quebra de exportações de café para os EUA e ao enfraquecimento da elite paulista. Nesse contexto, o governo brasileiro estimulou a imigração de técnicos estrangeiros em detrimento da capacitação da mão de obra nacional. E a elite paulistana, buscou retomar o prestígio nacional de outrora, com um plano de criação de uma nova elite intelectual no estado. Para tal, houve incentivo ao aprimoramento das instituições existentes e criação de novas instituições, como a USP [22[22] I.A.R. Cardoso, A Universidade da Comunhão Paulista: O projeto de criação da Universidade de São Paulo (Cortez Editora, São Paulo, 1982).].

O objetivo da elite paulista com a nova universidade era formar pessoas que pudessem constituir uma elite intelectual alinhada com os temas científicos e culturais mais importantes da época [23[23] L.V S. Silva, Em Construção 1, 43 (2020).]. Nesse caminho, foram, também, criadas a Escola Livre de Sociologia e a Escola Paulista de Medicina.

A USP foi criada para ser pública, laica e com autonomia administrativa e acadêmica, de forma a diminuir entraves burocráticos na contratação de pessoas e compra de materiais [24[24] J.L. Lopes, Depoimento, 1977, (CPDOC, Rio de Janeiro, 2010), disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/jose-leite-lopes, acessado em 10/10/2021.
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]. Seu núcleo central foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), e investiu-se na contratação de professores estrangeiros e experientes, visando a construção de uma instituição de excelência acadêmica [25[25] Caderno Especial comemorativo dos 50 anos da USP, O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 de janeiro de 1984, disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19840129-33407-nac-0150-cul-10-not.
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].

Importante aqui destacar que a USP foi criada tentando seguir modelos de universidades europeias, como a Sorbonne e Cambridge. Nesse processo, Theodoro Ramos, que era professor de mecânica racional da Escola Politécnica de São Paulo, criada em 1893 e incorporada à USP em 1934, foi convidado para ser o diretor da FFCL [11[11] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Fênix 4, 1 (2007)., 13[13] H. Tavares, A.A.P. Videira e A. Bagdonas, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).]. Como diretor, Ramos viajou em missão a vários países europeus para conhecer experiências exitosas e contratar cientistas e professores para criar os novos cursos da FFCL. Luciana Vieira Souza da Silva e Bruno Bontempi Junior [19[19] L.V.S. Silva e B.J. Bontempi, Journal of Russian History 19, 965 (2020).] destacam que a elite paulista esperava que, por meio da nova universidade, esses acadêmicos lançassem as sementes da cultura europeia em São Paulo, permitindo ao estado ser o grande modelo para o Brasil. No contexto europeu dos anos 1930, a USP acabou por atrair cientistas que estavam com dificuldade de seguir suas pesquisas em países da Europa, como o caso dos perseguidos pelos regimes fascista e nazista [11[11] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Fênix 4, 1 (2007).].

A presença de grande número de imigrantes italianos no Brasil e as relações com escolas de medicina e direito na Itália foram fatores relevantes para a vinda de professores italianos para a USP. A chamada missão italiana da FFCL trouxe para a USP Luigi Fantappiè e Giacomo Albanese para a matemática, Gleb Wataghin para a física, Francesco Piccolo e Giuseppe Ungaretti para a literatura italiana, Luigi Galvani, para a estatística, Ettore Onorato e Ottorino de Fiori di Cropani, para a geologia, Attilio Venturi e Vittorio de Falco, para a literatura grega [26[26] L.V.S. Silva, A Missão Italiana da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: ciência, educação e fascismo (1934-1942). Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo 2015.].

Nesse contexto, Wataghin chegou a USP em 1934. Ele trabalhava com temáticas relacionadas física nuclear, estudos em raios cósmicos e eletrodinâmica quântica1 1 A física de partículas emergiu dessas três áreas. e foi indicado por Enrico Fermi, que recusara o convite de Theodoro Ramos. Apesar de não ser um dos nomes mais fortes no cenário da física naquele período, Wataghin mantinha contato profissional com cientistas europeus e americanos de renome à época, como: Enrico Fermi, Niels Bohr, Paul Dirac, Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli, Walter Heitler, Ernest Rutherford e Piotr Kapitza [13[13] H. Tavares, A.A.P. Videira e A. Bagdonas, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).].

Incialmente, Wataghin recusou a proposta de vir para o Brasil por considerar que ele aqui se isolaria da comunidade científica internacional [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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]. Para atrair Wataghin para São Paulo, foi lhe oferecido um salário maior do que a média oferecida no período nas universidades brasileiras e a oportunidade de voltar à Europa uma vez por ano. Além disso, ele teria liberdade de determinar o tema de pesquisa do grupo que lideraria no Brasil.

De acordo com o próprio Wataghin [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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], ele foi convencido, pois com o fascismo na Itália se tornara difícil conseguir uma cátedra como professor em uma universidade italiana [13[13] H. Tavares, A.A.P. Videira e A. Bagdonas, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).]. Ele aceitou vir para a USP por período de 6 meses de experiência. Ao retornar à Itália no fim desse período, percebeu que o fascismo estava com toda a força no país e, então, decidiu voltar e se estabelecer no Brasil [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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]. Essa decisão pode, também, estar ligada ao fato de Wataghin ter encontrado um cenário melhor do esperava no Brasil, como ele relatou em entrevista a Cylon Eudóxio Silva, da Fundação Getúlio Vargas, em 1975: “No início, pensava que vinha para um país primitivo, como são algumas ilhas do Pacífico até hoje. Depois, descobri que o país já possuía cientistas formados que necessitavam de condições de estudar, assistir aulas e ir a bibliotecas” [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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].

Em 1935, com Wataghin trabalhando na USP, foram abertas as inscrições para os primeiros cursos da FFCL. As aulas tiveram início em 11 de março de 1935, com um total de 177 alunos nos cursos oferecidos pela faculdade. A nova Faculdade não teve grande procura dos jovens paulistas e menos ainda dos filhos das famílias importantes de São Paulo, que aspiravam ser médicos ou advogados, as profissões de prestígio à época [28[28] S. Schwartzman, Um Espaço para a ciência: A formação da comunidade científica no Brasil (Ministério de Ciência e Tecnologia, Brasília, 2001).].

Nesse cenário, Gleb Wataghin implementou cursos sobre temas de fronteira na física e os estudantes participavam da realização de experiências desenvolvidas pelos físicos da instituição, possibilitando conjugar a pesquisa e ensino. Assim, ele liderou a construção de um ambiente científico semelhante ao que havia experimentado na Itália. Para tema principal de pesquisa, ele escolheu os estudos de raios cósmicos por avaliar que as pesquisas nesse tema não necessitavam de muitos aparatos técnicos. Além disso, os equipamentos a serem usados poderiam ser construídos na própria universidade [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999).].

Wataghin era um professor que buscava levar para a USP estudantes que considerava de excelência. Foi dessa forma que uma grande geração de físicos foi se formando ao redor dele [29[29] M. Schenberg, Depoimento de 1978, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/mario-schenberg, acessado em 10/10/2021.
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]. Assim, em menos de uma década após sua chegada a São Paulo, ele já havia conseguido estabelecer um grupo de pesquisa e contava com bom reconhecimento na comunidade científica internacional [30[30] K. Fornazier e A.A.P. Videira, Ciência e Sociedade 5, 1 (2018).].

Outro ponto relevante é que Wataghin se empenhou em construir uma rede de contato com cientistas e políticos brasileiros, aproximando-se, por exemplo, dos membros da ABC. Ele não apenas participava de eventos na academia, como mantinha proximidade com os professores italianos que lá fizeram conferências, como Luigi Fantappiè e Tullio Levi-Civita [23[23] L.V S. Silva, Em Construção 1, 43 (2020).]. Essa rede de contatos o permitiu conseguir apoio financeiro do governo federal para pesquisas, como para as experiências de detecção de chuveiros penetrantes, cuja publicação dos resultados foi fundamental para o sucesso do grupo da USP [31[31] G. Wataghin, M.D. Souza Santos e P. Pompeia, Physical Review 57, 339 (1940).].

Importante ressaltar que Wataghin destacou em entrevista [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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] que a partir de uma carta enviada por Marcelo Damy, formado na USP em 1936, durante a estadia deste em Cambridge foi possível a realização dos experimentos que posteriormente identificaram os chuveiros penetrantes. Nessa carta, Damy apresentou a Wataghin um novo método de multivibrador, que ampliava a capacidade do contador de partículas detectadas. Paulus Pompeia, estudante e integrante do grupo de raios cósmicos da USP, viu a descrição e os desenhos do mecanismo e construiu na instituição um novo contador seguindo as recomendações de Damy.

O grupo de Wataghin realizou, então, experimentos com os chuveiros penetrantes, tanto em altitudes de 750 m, em Campos de Jordão, como em 30 m de profundidade, utilizando como espaço de experimentação a obra do túnel da avenida 9 de Julho na cidade de São Paulo [32[32] C. Dobrigkeit, em: História da Astronomia no Brasil, editado por O.T. Matsuura (MAST, Recife, 2013).]. Os estudos realizados pelo grupo da USP mostraram que os chuveiros penetrantes tinham a capacidade de penetrar por metros, e não centímetros, como já era conhecido até o momento [33[33] A.G.I. Oliveira, M.R. Silva e A.A. Pacini, Rev. Bras. Ensino Fís. 36, 2316 (2014).]. Percebemos aqui como a circulação se fez presente na construção de conhecimento científico. A comunicação constante entre Wataghin e seus alunos, que estavam fora do brasil, permitia criar um ambiente de circulação que era favorável ao desenvolvimento da ciência no Brasil.

Na mesma entrevista de 1975, já citada, Wataghin narrou sobre os anos iniciais de seu trabalho em São Paulo e como os primeiros alunos do curso de física foram fundamentais para que o grupo de raios cósmicos da USP tivesse sucesso:

“Tive a sorte, já em 1936, de conseguir ótimos alunos e colaboradores. Quando cheguei ao Brasil eles me disseram: você tem que montar um laboratório experimental. Minhas simpatias pessoais sempre foram pela teoria. A única coisa que eu poderia começar, que me interessou, foram os raios cósmicos, altas energias. E descobri duas pessoas – Marcello Damy de Souza Santos e Paulus Pompeia – que deram uma ajuda fundamental. Eles eram verdadeiros físicos experimentais e sabiam construir circuitos elétricos, soldar, tudo isso” [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/histor...
].

Os trabalhos do grupo de Wataghin com os chuveiros penetrantes tiveram grande repercussão internacional. Vale destacar que esses trabalhos carregavam uma grande relação com o seu local de produção [34[34] D.N. Livingstone, Putting science in its place: Geographies of scientific knowledge (University of Chicago Press, Chicago, 2003)., 35[35] D.N. Livingstone, em: Geographies of Science. Knowledge and Space, editado por P. Meusburger, D.N. Livingstone e H. Jöns (Springer, Dordrecht, 2010).]. Os chuveiros penetrantes foram identificados em função das medições feitas na cidade de São Paulo e em cidades próximas à capital paulista. Dessa forma, os locais onde os experimentos foram realizados nos ajudam a perceber que o conhecimento, até então produzido pelos físicos da USP, estava diretamente ligado às condições de pesquisa que encontraram no estado de São Paulo, às articulações políticas e científicas feitas por Wataghin no Brasil, assim como as altitudes que eles tinham disponíveis para a realização daqueles experimentos e também das informações que obtinha de seus alunos que passavam temporadas no exterior.

Importante destacar que grande parte das escolhas feitas por Wataghin para conduzir as pesquisas em solo brasileiro esteva ligada ao fato de ele estar na USP naquele momento. Então, assim como ele optou por estudar os raios cósmicos em função das condições do local no qual se encontrava e, a partir disso, os chuveiros penetrantes foram identificados, sua maneira de fazer ciência também refletiu na maneira em como a agenda científica brasileira começou a ser moldada a partir da consolidação desse grupo de pesquisa. E isso foi fundamental para o desenrolar das pesquisas que seriam realizadas na USP, para a divulgação dos resultados obtidos e, principalmente, para a formação dos físicos que ali ingressavam [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999).].

De acordo com Heráclio Tavares [36[36] H. Tavares, Estilo de pensamento em física nuclear e de partículas no Brasil (1934-1975): César Lattes entre raios cósmicos e aceleradores. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2017).], o sucesso de Wataghin na USP está relacionado, entre outras coisas, ao fato de ter conseguido ter um ambiente científico semelhante ao que ele havia experimentado na Europa. O cientista ítalo-ucraniano implementou um modelo de trabalho que já vivenciara. E, assim, atuou para manter uma rede de contato nacional e internacional. Wataghin conseguiu manter intercâmbio com os grupos de pesquisa dos grandes centros da Europa e EUA, conseguindo tanto enviar brasileiros para esses locais como reunir, no grupo de pesquisa da USP, informações teóricas e experimentais que circulavam nos principais locais de pesquisa em física do mundo [37[37] H. Tavares e A.A.P. Videira, Revista de História (USP) 179, a1241 (2020).]. Dessa forma, Wataghin conseguiu estabelecer uma circulação tanto de pessoas, quanto de ideias e técnicas, criando assim um ambiente científico no Brasil que estava diretamente ligado a esses ambientes experimentados por ele e seus alunos, quando estiveram fora do Brasil.

Esse sistema de intercâmbio de pessoas e a articulação para que ele fosse possível produziu uma intensa circulação de pessoas do Brasil para centros de pesquisa do exterior e de lá para cá. A esse respeito Wataghin destaca: “Na mesma época, decidi que a melhor coisa para o Brasil era formar aquele pouco que eu podia dar e depois mandar logo embora” [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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].

Importante ressaltar que, nesse momento, não havia um sistema de pós-graduação como nos dias de hoje, no cenário acadêmico brasileiro. Existiam alguns seminários em São Paulo, na própria FFCL, ou as reuniões da ABC, que eram os fóruns adequados para apresentações e discussões de ideias científicas para além da graduação [30[30] K. Fornazier e A.A.P. Videira, Ciência e Sociedade 5, 1 (2018).].

Nesse contexto, alguns físicos do Rio de Janeiro se uniram ao grupo de raios cósmicos da USP. O deslocamento da então capital federal para São Paulo foi um caminho feito por José Leite Lopes e Jayme Tiomno. Após terminarem sua graduação e trabalhem por algum tempo na Faculdade Nacional de Filosofia no Rio de Janeiro como professores assistentes, eles receberam uma bolsa de um ano da Fundação Zerrenner2 2 Essa fundação pertencia à empresa produtora de cerveja Antártica, sediada em São Paulo, e concedia bolsas para pesquisas científicas. para continuarem suas formações na USP [38[38] J. Tiomno, Depoimento de 1977, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/jayme-tiomno, acessado em 10/10/2021.
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].

Nesse período, o corpo docente do Departamento de Física da USP superava o número de discentes. Esse fato atrelado à prática semanal da realização de seminários, nos quais resultados de pesquisas eram apresentados, ajudava a tornar o ambiente acadêmico propício para o estreitamento de interações entre professores e alunos [13[13] H. Tavares, A.A.P. Videira e A. Bagdonas, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).]. Como relembra Mario Schenberg [29[29] M. Schenberg, Depoimento de 1978, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/mario-schenberg, acessado em 10/10/2021.
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], “Da primeira turma, só um aluno se graduou em física, que foi o Marcelo Damy. As turmas seguintes eram sempre muito pequenas, com poucos estudantes”. Esse cenário de proximidade entre alunos e professores teve importância para que Wataghin conseguisse conhecer e atrair estudantes para as pesquisas com raios cósmicos.

Os estudantes brasileiros que foram para os centros de pesquisa europeus e americanos mantiveram intensa correspondência com Wataghin, o que possibilitou que o grupo que permaneceu no Brasil pudesse desenvolver pesquisas alinhadas com as realizadas em outros países. Wataghin reconheceu a importância dessa troca de correspondência, como destacou na entrevista concedida a Cylon Eudóxio Silva, em 1975: “Eles me escreviam, mostrando soluções para problemas técnicos, como melhorar um circuito que tínhamos feito aqui, por exemplo. Assim, aprendia com meus alunos. E os formei, ajudado por grandes físicos de toda a Europa, da Alemanha, Inglaterra e Itália” [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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].

Podemos perceber nessa passagem que o estabelecimento dessa circulação foi um meio para a formação tanto dos físicos dessa geração, quanto do ambiente científico brasileiro nesse período. Wataghin conseguia criar na USP um ambiente científico que tinha características ligadas à realidade brasileira, mas com alguns pontos comuns à cenários científicos europeus. E, a partir dessa circulação, a ciência brasileira foi caminhando e produzindo resultados.

Mesmo com o sucesso do grupo de raios cósmicos da USP, houve limitações orçamentárias e de pessoal. Devido a essas limitações, projetos muito ambiciosos não eram desenvolvidos. Apesar da resistência inicial de vir para o Brasil, Wataghin [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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] declarou que permaneceu no Brasil, mesmo com os problemas encontrados, porque entendia que a ciência não deveria ser vista como um privilégio dos países europeus e que era importante seguir exemplo de nações menos expressivas, como China e Índia, que conseguiam ter excelentes cientistas, mesmo com as dificuldades econômicas. Ele declarou, ainda, que nesses países, assim como no Brasil, existiam pessoas bem capacitadas para fazer ciências, e, assim, buscava fazer com que a FFCL fosse o local onde seus alunos conseguissem desenvolver seu potencial em Física.

Percebemos assim que a vinda de Wataghin para a USP e a sua busca por não se manter isolado da comunidade internacional fez com que ele estimulasse a ida de estudantes para fora do Brasil para trabalhar com grandes nomes da física daquele período. Além disso, ele buscava fazer com que os estudantes que ainda estivessem aqui trabalhassem nas pesquisas desenvolvidas em São Paulo e que colocassem em prática as novidades que chegavam através das cartas recebidas daqueles que circulavam pelo exterior.

Podemos assim considerar que a vinda de Wataghin e o início de seus trabalhos na USP foi o início do processo de circulação de pessoas, ideias e técnicas que veio a se estabelecer na física nuclear e, posterirormente viria a se espalhar para outras áreas da ciência nacional.

Na próxima seção, com vistas a discutir como essa circulação foi importante para o processo de estabelecimento e institucionalização da física nuclear no Brasil, será dada atenção ao Simpósio de Raios Cósmicos que ocorreu no Rio de Janeiro em 1941. Objetiva-se destacar como esse evento foi importante para que essa circulação, de pessoas, ideias e técnicas, se estabelecesse na física nucelar brasileira nos anos 1940.

3. A construção da Física Nuclear brasileira e a circulação de Físicos

O Simpósio Sobre Raios Cósmicos foi realizado na cidade do Rio de Janeiro no mês de agosto de 1941 [39[39] NATURE, Studies on Immunisation, disponível em: https://www.nature.com/articles/155316b0#citeas, acessado em: 20/08/2021.
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]. Dele participou o vencedor do Prêmio Nobel de 1927, Arthur Compton. Gleb Wataghin, sabendo o interesse de Compton em raios cósmicos e conhecendo a relevância dos trabalhos do americano, apresentou a Compton os resultados das pesquisas com chuveiros penetrantes, antes de publicar os resultados na Physical Review, em 1940. Isso resultou numa intensa troca de cartas entre os dois pesquisadores entre 1940 e 1946 [40[40] O. Freire Jr e I.L. Silva, Revista Brasileira de História 34, 181 (2014).].

Em 1940, Wataghin escreveu para Compton para apresentar e indicar Paulus Pompeia para a posição de cientista convidado no laboratório que o americano chefiava. Na carta, Wataghin destacou que Pompeia, apesar de atuar como professor de física no Brasil, não tinha título de doutor. Ele chamou ainda atenção para o fato de que no Brasil à época não havia cursos de pós-graduação, mas que o jovem físico brasileiro tinha formação equivalente a doutorado [41[41] G. Wataghin para P. Pompeia (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1940), correspondência.].

No mesmo ano, já com Pompeia em Chicago, numa viagem de férias aos Estados Unidos, Wataghin visitou Compton a convite do americano. Nesse encontro, eles conversaram sobre as pesquisas em raios cósmicos e Compton declarou que desejava realizar uma expedição à América do Sul para estudar os chuveiros penetrantes. Ele queria lançar aparelhos com contadores Geiger, colocar alguns aparelhos nas montanhas da Bolívia e do Peru e fazer experimentos no Brasil. A partir desse encontro, Wataghin procurou cientistas e autoridades da Bolívia [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
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], para estabelecer uma parceria que facilitasse a expedição pretendida por Compton.

Após o encontro em Chicago e a chegada de Pompeia ao laboratório de Compton, os laços entre o grupo de físicos da USP e o grupo liderado por Compton se fortaleceram. E, em janeiro de 1941, Compton escreveu para Wataghin, agradecendo os manuscritos recebidos sobre os resultados dos experimentos dos chuveiros penetrantes e afirmou ter obtido resultados que corroboravam com os do grupo da USP, mas desejava ouvir as opiniões do físico ítalo-ucraniano a respeito do assunto. Nessa carta, Compton declarou estar muito feliz com a participação de Pompeia nas atividades do laboratório americano, descrevendo as experiências planejadas para a expedição pela América do Sul. Ele termina a carta dizendo que espera contar com a presença de Wataghin, não só no Brasil, mas ao longo da expedição aos outros países da América do Sul e que o manteria informado do andamento da organização da expedição [42[42] A. Compton para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Em abril de 1941, em resposta à carta em que Wataghin mencionara os planos de realizar um simpósio sobre os raios cósmicos no Rio de Janeiro, Compton reforçou seu interesse em vir à América Latina, além de novamente fazer novos elogios a Pompeia e demonstrar interesse em tê-lo mais um ano no seu laboratório:

“Caro professor Wataghin, escrevo-lhe novamente a respeito dos nossos planos de viagem à América do Sul, no próximo verão. [] Sinto-me, entretanto satisfeito do senhor ter estado ao par do desenvolvimento geral dos nossos planos, por intermédio de Pompeia [] O Dr. Pompeia nos falou de seus projetos de organizar um “symposium” no Rio de Janeiro. Seria mais conveniente para nós se pudesse ter lugar entre 4 e 6 de agosto. Isto nos permitiria completar o trabalho no Peru com o tempo de estarmos no Rio para a conferência. Imediatamente depois, muitos de nós voltarão para os E.U. Discutiu-se a questão da volta do Dr. Pompeia ao nosso laboratório no próximo ano. O consideramos um homem de grande valor e sua presença aqui por mais um ano seria acolhida com a maior satisfação. [] O Dr. Pompeia mostra uma boa compreensão do trabalho que se está fazendo e domina muito bem a técnica. Esperamos ser possível prolongar o seu comissionamento por mais um ano. O Dr. Pompeia pode nos ajudar, bem o sei, nos estudos com balões em São Paulo. Nossa principal preocupação está em encontrar novamente os balões depois do voo. Se fosse possível, como o senhor sugeriu uma vez, o seu governo por a nossa disposição um aeroplano para acompanhar o voo do balão, isto tornaria muito mais fácil a tarefa de sua procura. Outra questão diz respeito à possibilidade de encontrar hidrogênio []. Com muitos agradecimentos pelo seu auxílio e preciosas sugestões, e na esperança de encontrá-lo dentro de alguns meses no Brasil” [43[43] A. Compton para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Com a reação positiva de Compton à participação do Simpósio no Rio de Janeiro, Wataghin articulou com outros acadêmicos brasileiros para realizar o simpósio com apoio da ABC. Em carta a Arthur Moses, então presidente da ABC, Wataghin descreveu seu propósito de trazer grandes nomes da física para o Simpósio no Rio de Janeiro e Moses indicou a possibilidade de convidar o professor Vallarta, do MIT, uma vez que o cientista estaria passando pela Argentina em data próxima a realização do Simpósio do Rio. Para isso, Moses pediu que a USP também fizesse um convite formal para a participação dele no evento [44[44] A. Moses para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Wataghin, em resposta a Moses, destacou outros nomes que gostaria de convidar para o simpósio, além do professor Vallarta “[] estou de pleno acordo com a sua sugestão de um convite ao professor Vallarta. Ficar-lhe-ia muito grato se pudesse comunicar a sua opinião sobre a oportunidade de informar do colóquio os seguintes físicos norte-americanos: Enrico Fermi, da Columbia University, Hans Bethe, da Cornell University, Bruno Rossi, da mesma Universidade e W. Pauli da Princeton University” [45[45] A. Moses para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Enquanto articulava com Moses a organização do simpósio no Rio, Wataghin manteve correspondências com Compton. Em 19 de maio de 1941, Compton escreveu a Wataghin, agradecendo ao esforço nos preparativos para o simpósio e para a execução dos experimentos com chuveiros penetrantes. Wataghin informara que conseguira um avião da FAB e um estoque de hidrogênio para a expedição americana realizar experimentos no Brasil. Nessa carta, Compton ainda informou sobre quais experimentos pretendia realizar no Brasil, Peru e Bolívia [46[46] A. Compton para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Wataghin e Moses trocaram várias cartas a respeito da organização do simpósio. Em junho de 1941, por exemplo, Wataghin escreveu a Moses destacando que convidara Pauli e Fermi para participarem do Simpósio no Rio e que, seguindo as orientações do presidente da ABC, destacou não poder financiar a vinda deles ao Brasil. Nesta mesma carta, Wataghin ressaltou, também, que por falta de verba não acompanharia Compton à expedição no Peru, como o americano desejava [47[47] G. Wataghin para A. Moses (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

A falta de financiamento brasileiro não impediu a vinda de Compton e Wataghin, mesmo sem poder acompanhá-lo nas expedições, manteve contato com o americano, compartilhando algumas das pesquisas realizadas no Brasil. Em carta de julho de 1941:

“Caro professor Compton, estou muito feliz em lhe dizer que alguns dos balões que Pompeia trouxe foram achados. Nós estamos agora esperando por um tempo bom para experimentos em novos voos. Eu espero e faço meus melhores desejos que tenha uma boa viagem e uma expedição bem-sucedida. Eu gostaria de dizer a você mais uma vez que sinto muito porque não pude ir para a Bolívia e encontrá-lo lá. Eu estou escrevendo para lhe dizer novamente o quanto estou feliz em ter o senhor e sua expedição como nossos convidados. Se possível, poderia saber o dia e o porto em que chegarão, alguns dias antes de começar. Com meus comprimentos à Senhora Compton. Com os melhores comprimentos” [48[48] G. Wataghin para A. Compton (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Além das motivações científicas, autores como Olival Freire Jr, Indianara Silva [40[40] O. Freire Jr e I.L. Silva, Revista Brasileira de História 34, 181 (2014).] e Heráclio Tavares [36[36] H. Tavares, Estilo de pensamento em física nuclear e de partículas no Brasil (1934-1975): César Lattes entre raios cósmicos e aceleradores. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2017).] destacam que a expedição de Compton ao Brasil teve também um caráter político-diplomático. Isto porque com a Segunda Guerra Mundial em andamento, os EUA buscavam aliados na América Latina, com vistas a enfraquecer possíveis laços entre os países daqui com Alemanha e Itália [49[49] E. Hobsbawn, Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991 (Companhia das Letras, São Paulo, 1995).]. Assim, o governo norte-americano, através de seu secretário de estado Cordell Hull, iniciou uma reorganização do Departamento de Estado, criando a divisão de assuntos latino-americanos e mexicanos [50[50] F.S. Rodrigues, Cadernos da Fael 1, 1 (2008).]. Essa divisão seria uma agência do governo americano destinada a estabelecer proximidade entre o governo dos Estados Unidos e os governos dos demais países da América Latina.

Olival Freire e Indianara Silva [40[40] O. Freire Jr e I.L. Silva, Revista Brasileira de História 34, 181 (2014).] destacam as articulações dentro do governo norte-americano para que a expedição à Bolívia tivesse esse caráter diplomático, além dos objetivos científicos estipulados. O governo americano buscou financiamento junto ao departamento de relações culturais com a América Latina da Fundação Rockefeller3 3 Fundação criada em agosto de 1940, por iniciativa de Nelson Rockfeller, uma agência para lidar com assuntos econômicos e culturais interamericanos de interesse do governo dos Estados Unidos. , estimulando que as esposas dos físicos os acompanhassem na expedição. A falta de financiamento brasileiro foi, de certa forma, compensada pelo interesse americano em ampliar relações com o Brasil e outros países da América Latina. E, assim, o simpósio do Rio de Janeiro cumpriu os objetivos traçados por Wataghin, contando com a presença de Compton, William P. Jesse, N. Hilberry, A. H. Hilberry e D. Hughes financiados pelo governo americano [39[39] NATURE, Studies on Immunisation, disponível em: https://www.nature.com/articles/155316b0#citeas, acessado em: 20/08/2021.
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]. O encontro de Compton com Wataghin no Rio de Janeiro estreitou a relação entre os dois cientistas. A carta enviada por Compton a Wataghin após seu retorno para os Estados Unidos destaca o entusiasmo de Compton com a viagem ao Brasil e, em especial, a recepção que o cientista americano teve ao longo de sua estadia no Rio de Janeiro.

“Caro professor Wataghin. De volta a casa, lembramos de forma tão agradável o tempo, todo curto, que passamos com você no Brasil, e as muitas gentilezas que você nos dispensou durante nossa visita. Ninguém poderia ter sido mais hospitaleiro e ter feito nos sentir mais bem-vindos. De fato, o senhor nos fez sentir que a nossa visita era valiosa para si, bem como para o nosso próprio interesse científico e pessoal, o que foi o maior elogio possível. Só posso agradecer a forma competente com que V. Exa. e os seus colegas cuidaram de todos os tantos detalhes, para que tudo corresse bem, pelo contributo muito substancial para os custos da visita que significou o vosso divertimento de nós, e pelo simpático interesse que todos vocês consideraram nosso bem-estar pessoal e científico. Uma carta recém-recebida do Dr. Jesse fala sobre o sucesso dos três voos finais dos balões. Mesmo sem esse resultado de nossa pesquisa, as discussões privadas e simpósios em São Paulo, Baurú e Rio teriam feito a viagem e o tempo valerem a pena. Esperamos que você e seus colegas tenham recebido um estímulo tão grande para o empreendimento científico quanto os membros de nosso grupo. Em especial, queremos agradecer a você e à Sra. Wataghin pela sua parte em fazer tudo funcionar tão bem. Você mal pode saber o quanto sua liderança significa para a cultura da América do Sul, e principalmente para o Brasil. Mais poder para você à medida que continua seu excelente trabalho. De vez em quando enviaremos a vocês relatórios sobre os resultados de nossos estudos na América do Sul, mas não quis atrasar esta nota até que esses relatórios estejam prontos. Com as mais gentis saudações à Sra. Wataghin e a você, de nós dois. Com os melhores cumprimentos. Betty e Arthur Compton” [51[51] A. Compton para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

A troca de cartas entre Compton e Wataghin continuou após o simpósio no Rio e o físico da USP buscou ampliar os financiamentos para sua pesquisa, como destacou na carta que enviou em setembro de 1942: “Nós estamos começando a fazer algum trabalho e todos aqui estão felizes com isso. É claro que nossas pesquisas têm sido lentas. Nós esperamos ter algum suporte da Fundação Rockefeller. A fundação e o Governo de São Paulo concordaram em uma concessão comum para nossos laboratórios” [52[52] G. Wataghin para A. Moses (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1942), correspondência.]. Wataghin trabalhou para que suas pesquisas circulassem fora do Brasil, para que tanto seu trabalho fosse reconhecido, como para que o grupo de físicos de São Paulo conseguisse mais apoio para suas pesquisas.

Os laços criados entre Compton e Wataghin favoreceram o desenvolvimento do trabalho desenvolvido pelo grupo da USP. Em 1945, Compton escreveu carta a Wataghin relatando uma conversa que teve com Harry Miller, responsável pelo departamento científico da Fundação Rockefeller sobre o desenvolvimento de pesquisas em raios cósmicos no Brasil, e que Paulo Bittencourt, colaborador de Wataghin na USP, seria bem-vindo para uma temporada em Chicago. Percebemos assim, que Wataghin conseguiu não só manter contato com Compton como estabelecer no laboratório de Chicago um espaço para que seus colaboradores pudessem circular pelos laboratórios em que a física nuclear era construída [36[36] H. Tavares, Estilo de pensamento em física nuclear e de partículas no Brasil (1934-1975): César Lattes entre raios cósmicos e aceleradores. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2017).].

Entre 1946 e 1949, o Departamento de Física da USP recebeu 75 mil dólares da Fundação Rockefeller. Para ficar mais clara a dimensão desse valor, podemos compará-lo com o orçamento anual, do ano de 1942, do Departamento de Física da USP que foi de 1200 dólares. No total, a fundação americana investiu nas pesquisas do departamento de Física cerca de 82500 dólares, entre os anos de 1942 e 1949 [53[53] O. Freire Jr e I.L. Silva, How Knowledge Moves – Writing the Transnational History of Science and Technology, editado por J. Krige (Chicago University Press, Chicago/London, 2019).].

Outro fator importante decorrente do simpósio do Rio de Janeiro, refere-se ao engajamento de Wataghin na publicação dos anais do simpósio do Rio. Conforme aponta a carta enviada por ele a Moses em março de 1943, os anais foram entendidos como uma oportunidade de ter uma publicação com artigos de cientistas brasileiros e norte americanos e “[] de fazer aparecer os nossos agradecimentos as autoridades de uma forma pública” [54[54] G. Wataghin para A. Moses (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.]. Podemos inferir que o líder do grupo da USP ao planejar um agradecimento público às autoridades buscava construir caminhos para conseguir apoio para as pesquisas futuras. Tanto no âmbito internacional, quanto no cenário nacional, Wataghin agia buscando conseguir mais apoio para suas pesquisas, sempre sendo diplomático com as autoridades científicas epolíticas.

Concluímos então que o episódio da realização do simpósio de raios cósmicos no Rio de Janeiro é utilizado por Wataghin para se aproximar de nomes em grandes centros de ciência. Já na articulação inicial do evento ele busca convidar diversos físicos dos EUA e da Europa, intensificando assim o processo de circulação de pessoas, ideias e técnicas. A circulação é, também, favorecida pelo cenário político da guerra que fez o governo americano financiar a vinda de mais pessoas, possibilitando a Wataghin conseguir financiamento da Fundação Rockefeller, o que foi um grande passo para que a circulação dos cientistas brasileiros para os grandes centros de ciência se intensificasse, conforme veremos na próximasessão.

Com isso, defendemos que essa circulação proporcionou uma co-construção dinâmica da ciência brasileira atrelada tanto aos agentes brasileiros quanto aos cientistas estrangeiros que estavam dentro dessa rede de circulação. Em suma, se tomarmos a circulação como um processo de produção de conhecimento [14[14] A. Simões, P.M.P. Raposo, M. Patiniotis e J.R. Bertomeu-Sánchez, Centaurus 56, 167 (2014).], consideramos uma abordagem mais dinâmica, buscando entender como o conhecimento e a ciência brasileira evoluiu por meio de fluxos de pessoas que atravessam espaços heterogêneos, e apreender como a natureza e o status desses espaços sofreram mudanças ao longo desse processo.

3.1. A movimentação de Leite Lopes e Jayme Tiomno

Como destacado, Wataghin utilizou de temas e experimentos de interesse comum entre o grupo que formou no Brasil e grupos internacionais, para aproximar os físicos brasileiros dos cientistas que trabalhavam na fronteira do conhecimento em física nuclear voltada para a pesquisa com raios cósmicos da época. Com isso, ele pretendeu não apenas produzir rápido reconhecimento internacional dos seus trabalhos desenvolvidos por seu grupo de pesquisa, como obter apoio financeiro e aparatos técnicos para continuar a desenvolver suas pesquisas.

Olival Freire Jr e Indianara Silva [40[40] O. Freire Jr e I.L. Silva, Revista Brasileira de História 34, 181 (2014).] destacam que Wataghin buscava também proximidade com pesquisadores americanos que, assim como ele, eram contrários ao fascismo instalado em alguns países europeus. Então, além da proximidade dos temas pesquisados, temos o alinhamento ideológico como sendo um fator que potencializava o intercâmbio com cientistas fora do Brasil, apontando que mesmo sendo europeu e tendo sua rede de contatos na Europa, Wataghin entendeu que os EUA era, naquele contexto, o melhor lugar para encontrar espaço para sua pesquisa.

Vale ressaltar que, nos anos 40, o Brasil tinha destaque nas pesquisas em física dentro do cenário da América do Sul e países latino-americanos buscavam se espelhar no que acontecia no Brasil para impulsionar as pesquisas em física em suas instituições. Esse destaque brasileiro pode ser percebido através dos constantes contatos realizados por Guido Beck, na Argentina, e de Walter S. Hill, do Uruguai. Em uma correspondência a Wataghin, de 1943, Hill ressaltou que gostaria de ir a São Paulo para trabalhar com o grupo da USP, mas que, devido às dificuldades no Departamento de Física no qual era diretor no Uruguai não conseguia financiamento e disponibilidade de tempo para estar no Brasil naquele ano. Ele, então, pediu ajuda para aquisição de equipamentos para suas pesquisas, destacando que planejava de deslocar a São Paulo no ano seguinte [55[55] W.S. Hill para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1941), correspondência.].

Percebemos, assim, que a rede de contatos de Wataghin não se limitava aos grandes centros europeus e dos EUA, ele buscava manter contato com o maior número possível de colaboradores. Apesar de o Uruguai não ser uma potência científica na física naquele período, Walter S. Hill era um cientista que havia sido escolhido algumas vezes para ser nomeador de candidatos ao prêmio Nobel. Em 1949, por exemplo, ele indicou o nome de Cesar Lattes para receber o prêmio [56[56] THE NOBEL PRIZES, Nomination Archive, disponível em: https://www.nobelprize.org/nomination/archive/show_people.php?id=5265, acessado em 09/05/2022.
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].

No Brasil, Wataghin manteve não só contato com os membros da ABC, mas com cientistas que trabalhavam no Rio de Janeiro, como foi o caso de Bernard Gross, formado pela Universidade de Stuttgart e que trabalhava no Rio de Janeiro no Instituto Nacional de Tecnologia [57[57] A.A.P. Videira e M.C. Bustamamte, Quipu 8, 325 (1991).]. Para estreitar relações com Gross, Wataghin o convidou para participar de seminários na USP [58[58] G. Wataghin para B. Gross (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1939), correspondência.].

Essa proximidade com os cientistas do Rio de Janeiro permitiu Wataghin agilizar alguns processos junto ao governo federal, como indica uma carta enviada por ele para Carlos Chagas em 1944: “ficar-lhe-íamos muito gratos se pudesse interpor os seus bons ofícios para apressar o andamento dos papéis, temendo que caia em exercício findo. O ofício da Interventoria Federal de São Paulo, foi enviado no dia 11-10-44 ao Ministério da Justiça com o número 13.856” [59[59] G. Wataghin para C. Chagas (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1944), correspondência.].

Wataghin construiu, assim, uma rede no eixo Rio-São Paulo, entendendo, como destaca Luciana Vieira Silva [23[23] L.V S. Silva, Em Construção 1, 43 (2020).], que seus contatos com Compton não seriam suficientes para garantir sucesso em suas pesquisas. E, dentro desse cenário, dois físicos cariocas se beneficiaram do fato de estarem integrados à rede construída por Wataghin, e migraram para São Paulo após terminar o curso de Física na Faculdade Nacional de Filosofia no Rio de Janeiro, são eles José Leite Lopes e Jayme Tiomno.

Leite Lopes partiu para São Paulo em 1943 e Tiomno em 1946. Os dois já trabalhando na USP receberam bolsas da Fundação Rockefeller, para o doutorado em Princeton. Leite Lopes esteve nos EUA e retornou ao Brasil em 1946, com título de doutor sob orientação de Wolfgang Pauli. Já Tiomno foi para Princeton em 1948, obtendo o título de doutor sob orientação de Eugene Wigner, além de desenvolver trabalhos com John Wheeler [24[24] J.L. Lopes, Depoimento, 1977, (CPDOC, Rio de Janeiro, 2010), disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/jose-leite-lopes, acessado em 10/10/2021.
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/historia-...
].

Quando foi para Princeton, Tiomno precisou da ajuda de Arthur Moses para conseguir uma passagem, pois o financiamento americano que recebera não cobria despesas com as passagens. Ele conseguiu uma passagem em um avião que estava indo realizar a troca do motor e que exigia que os passageiros estivessem “psicologicamente preparados para saltar de paraquedas a qualquer momento” [38[38] J. Tiomno, Depoimento de 1977, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/jayme-tiomno, acessado em 10/10/2021.
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].

Leite Lopes e Tiomno tiveram nos EUA contato com cientistas europeus que haviam fugido em decorrência da guerra e dos regimes nazistas e fascistas, como Albert Einstein. Esse movimento de cientistas para os EUA associado aos problemas econômicos e sociais de países europeus em função da guerra fizeram com que os EUA se consolidassem como uma das principais potências científicas na época. Dessa forma, Leite Lopes e Tiomno vão para uma universidade que concentrava não só grandes nomes, mas também uma das melhores condições materiais e sociais de trabalho daquele período.

Durante sua temporada em Princeton, Leite Lopes e Tiomno tiveram aprendizados que estavam para além dos ensinamentos acadêmicos. De acordo com as palavras de Leite Lopes sobre seu período nos EUA: “Aprendi como se fazia pesquisa, como se fazia física e como isso contribuía para o desenvolvimento do país” [60[60] https://www.youtube.com/watch?v=DB3PzzIrRTc&t=41s, acessado em 09/05/2022.
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]. Esse destaque de Leite Lopes indica como o deslocamento para um centro de pesquisa o permitiu não apenas estudar temas relevantes da física nuclear da época, mas também aprender práticas que colocavam aquele lugar em destaque no cenário da ciência internacional.

Dessa forma, a circulação, nesse momento já consolidada no cenário científico brasileiro, foi fundamental na formação desses físicos. Depois de Marcelo Damy, Mario Schenberg e Paulus Pompeia que foram para centros de ciência e mantiveram forte contato com o grupo de pesquisas da USP, agora era a vez de Leite Lopes e Tiomno realizarem esse mesmo movimento. Enquanto estavam nos EUA, trocavam cartas com os físicos que permaneceram no Brasil e após o período de estágio em Princeton, retornariam ao Brasil buscando seguir suas carreiras de cientistas em solo nacional. E, como já falamos anteriormente, podemos destacar que essa circulação vai além do simples movimento de deslocamento, mas está diretamente ligada às transformações que esses cientistas sofreriam na sua identidade enquanto pesquisadores e também nos trabalhos desenvolvidos por eles.

3.2. Para além dos raios cósmicos

Como destacamos anteriormente, o crescimento do fascismo e nazismo na Europa e o cenário de guerra fez com que muitos cientistas europeus buscassem espaço de trabalho fora do continente. Nesse contexto, Wataghin chegou à USP, antes mesmo da deflagração da guerra, e intercedeu para a vinda de cientistas europeus para trabalharem no Brasil [61[61] L.V.S. Silva e B. Bontempi Jr, Lettera Matematica 6, 203 (2018).], como Giuseppe Occhialini, que teve papel importante na formação e movimentação de um físico brasileiro César Lattes [12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014).].

Giuseppe Occhialini, um exímio físico experimental, veio para o Brasil, em 1937, para trabalhar como assistente de Wataghin na USP. Seis meses depois da sua chegada, Occhialini assumiu uma vaga de professor titular. Logo após sua contratação, a USP comprou uma câmara de Wilson, semelhante à que usava na Inglaterra. Com tal câmera, Occhialini trabalhou em parceria com Patrick Blackett (1897–1974) nos experimentos onde o físico britânico realizou a identificação dos pósitrons, e que deu a Blackett o prêmio Nobel no ano de 1948. A aquisição desse equipamento permitiu ao cientista italiano trabalhar na USP com pesquisas experimentais independentes de Wataghin [27[27] G. Wataghin, Depoimento de 1975, disponível em: https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/historia-oral/entrevista-tematica/gleb-wataghin, acessado em 10/10/2021.
https://www18.fgv.br/CPDOC/acervo/histor...
]. A grande experiência e as habilidades técnica e manual de Occhialini na construção de equipamentos possibilitou que mais instrumentos fossem construídos na USP e que estudantes e professores da instituição se envolvessem na construção desses instrumentos [9[9] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 33, 2603 (2011).].

Em 1942, em decorrência da entrada do Brasil na Guerra no grupo dos aliados, Occhialini acabou por ser afastado da USP devido à sua cidadania italiana, só retornando à instituição após a rendição do governo italiano já no final da guerra [36[36] H. Tavares, Estilo de pensamento em física nuclear e de partículas no Brasil (1934-1975): César Lattes entre raios cósmicos e aceleradores. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2017).]. No período que esteve fora, trabalhou como guia no Parque Nacional de Itatiaia, na cidade do Rio de Janeiro.

Em 1943, ao retornar à USP, ele ministrou um curso sobre o uso de técnicas de raios-X para a detecção de partículas, que teve apenas um estudante matriculado, César Lattes. Heráclio Tavares, Ivã Gurgel e Antônio Videira [4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020).] destacam que esse fato fez surgir afinidades entre Lattes e Occhialini. Assim, quando Occhialini voltou para Europa, em 1944, ele iniciou troca de correspondência com Lattes, que começou a trabalhar, na USP, com pesquisas experimentais com raios cósmicos junto com Ugo Camerini e Andrea Wataghin, filho de Gleb Wataghin. Os três cientistas começaram a trabalhar com a câmara de Wilson e com transmutação artificial de alguns elementos. Em Bristol, Occhialini trabalhou com as emulsões nucleares de chapas fotográficas chamadas de halftone. Logo no início dessa pesquisa, ele percebeu que as chapas apresentavam algumas falhas e sugeriu mudanças na sua composição, junto ao laboratório que as produzia, o laboratório Ilford. Occhialini também considerou que precisava de mais pessoas trabalhando com ele na calibração das novas chapas e convidou alguns dos estudantes da USP para Bristol [4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020).].

Mesmo fora do Brasil, Occhialini mantinha contato com seus alunos da USP e recebeu trabalhos desenvolvidos por Lattes, Camerini e Andrea Wataghin. Ele, também, lhes enviou alguns exemplares das emulsões com que trabalhava em Bristol. Nesse caminho, Lattes e Occhialini discutiram as pesquisas em andamento e, numa carta, Lattes destacou os problemas de financiamento com as pesquisas que desenvolvia e se interessou em aprender a técnica usada em Bristol [4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020).]. O interesse de Lattes levou, como ele mesmo aponta numa entrevista ao jornal paulista, “O Jornal”, em 1948, Occhialini a oferecer, em 1946, uma bolsa para o brasileiro se juntar às pesquisas no laboratório H.H. Wills, da Universidade de Bristol [62[62] Serei hipócrita se disser que não estou contente, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1948, disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=110523_04&pagfis=46739
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].

Entretanto, Occhialini conseguiu apenas um pequeno financiamento para o estabelecimento de Lattes, algo em torno de 15 libras por mês, doado pela mesma empresa inglesa fabricante de cigarros que havia financiado a construção do laboratório da universidade. Para, então, efetivar sua ida a Bristol, Lattes precisou buscar financiamento brasileiro. Ele conseguiu, devido à amizade com Leopoldo Nachbin, matemático influente na Fundação Getúlio Vargas, o pagamento de sua passagem para a Inglaterra pela Fundação [4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020).]. Nachbin era um matemático e engenheiro formado pela Universidade do Brasil que veio a participar posteriormente, junto com Leite Lopes, Tiomno e Lattes, da criação do CBPF.

Quando Lattes chegou a Bristol, Occhialini já era um dos maiores especialistas na técnica de emulsões nucleares, trabalhando com a equipe chefiada pelo cientista britânico Cecil Powell. Essa técnica era diferente da que Occhialini utilizara na USP. Em São Paulo, as pesquisas com raios cósmicos eram feitas com contadores eletrônicos, normalmente Geiger-Müller, enquanto, na Inglaterra, Powell trabalhava com a técnica das emulsões antes mesmo da chegada de Occhialini [11[11] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Fênix 4, 1 (2007).].

A técnica das emulsões nucleares permitia a análise do rastro deixado pelas partículas nas chapas fotográficas e, a partir disso, era possível identificá-las com maior precisão em relação a outras técnicas e sem a necessidade de detectores, como o Geiger-Muller. Os físicos se interessavam pelos rastros de trajetória deixados pelas partículas subatômicas que atingiam as placas. Com a ajuda de microscópios, eles investigavam as pequenas marcas deixadas pela passagem das partículas, normalmente da ordem de um milímetro. Através dessas trajetórias, era possível identificar quais eram as partículas que haviam deixado os rastros.

Nestas circunstâncias experimentais, que incluíam o uso de aceleradores e de emulsões nucleares, Lattes chegou ao laboratório de Powell. Em Bristol, Lattes deu sequência às experiências que fazia na USP, junto a Ugo Camerini e Andrea Wataghin, utilizando agora as novas emulsões nucleares. Como apontou Lattes, na mesma entrevista de 1948 citada acima: “Tive sorte, pois cheguei num momento em que a fábrica britânica Ilford acabava de produzir novas placas fotográficas de grande importância para o estudo da física nuclear” [62[62] Serei hipócrita se disser que não estou contente, O Jornal, Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1948, disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=110523_04&pagfis=46739
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]. No início de seus trabalhos na Inglaterra, Lattes manteve contato constante com os químicos da companhia Ilford Ltd, buscando resolver um problema que dificultava a análise do material: o rápido desaparecimento da imagem na chapa fotográfica, efeito denominado fading [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999).]. Para aumentar o tempo de retenção das imagens, Lattes e Occhialini propuseram carregar as placas com bórax [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999)., 12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014).].

Ainda em Bristol, Lattes trabalhou com a calibração das chapas com bórax na composição, o que o levou a ter os primeiros contatos com aceleradores de partículas Cockcroft-Walton do Cavendish Laboratory. Após se familiarizar com os equipamentos e emulsões, em 1947, publicou seu primeiro trabalho com dados experimentais extraídos do acelerador [63[63] C. Lattes, H. Muirhead, G. Occhialini e C.F. Powell, Nature 159, 694 (1947).].

O período em que trabalhou operando esse acelerador foi importante para ele compreender melhor os processos de produção, captura, observação e identificação de partículas em aceleradores. Lattes uniu o conhecimento adquirido em São Paulo com os raios cósmicos com o que trabalhava na Inglaterra: a calibração de emulsões através do uso dos aceleradores [36[36] H. Tavares, Estilo de pensamento em física nuclear e de partículas no Brasil (1934-1975): César Lattes entre raios cósmicos e aceleradores. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2017).].

Após a repercussão do trabalho de calibração com o acelerador, publicado em 1947, as chapas com bórax estavam prontas para serem utilizadas em pesquisas com raios cósmicos. O teste com as novas chapas foi feito por Occhialini no Pic du Midi, cadeia de montanhas localizada nos pirineus franceses a 2800 m de altitude. Nessa ocasião, Occhialini, aproveitando uma viagem de férias para esquiar nos Pirineus franceses a 2800 m de altitude, levou as placas preparadas por Lattes, já com a aplicação de bórax, para serem expostas. As primeiras chapas reveladas mostraram que a tentativa de Lattes e Occhialini havia funcionado e o efeito antifading estava ocorrendo [4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020)., 5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999)., 12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014).].

Na análise das emulsões, Occhialini percebeu que havia traços de partículas inesperadas. Essa análise indicava que seria possível que os mésons, previstos alguns anos antes por Yukawa, estivessem ali presentes. Mesmo com esses indícios, não foi possível verificar a massa dessas partículas. Era necessária uma nova coleta em um local de maior altitude. Considerando as experiências já realizadas na Bolívia em 1941, o local escolhido para realizar essa experiência foi o Monte Chacaltaya. Dessa forma, em 1947, Lattes veio de Bristol para Bolívia, para levar as chapas com bórax à exposição dos raios cósmicos no monte Chacaltaya.

Percebemos que os resultados obtidos pelo grupo de Bristol é um reflexo dessa circulação existente. Lattes não chegou à Inglaterra e passivamente aprendeu determinadas técnicas, mas foi no encontro da sua bagagem científica com a dos cientistas do laboratório inglês que se desenvolveu esse conhecimento que resultou nos resultados obtidos até então e nos que ainda viriam a ser obtidos.

Antes dessa viagem, Lattes escreveu para Wataghin, pedindo autorização para o deslocamento, pois como assistente do ítalo-ucraniano na USP, ele não podia se ausentar de Bristol sem sua anuência. Na carta, ele descreveu não apenas os planejamentos da viagem, como os resultados obtidos até então pelo grupo de Bristol [64[64] C. Lattes para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1946), correspondência.]. Importante destacar que como Wataghin mantinha contatos com autoridades bolivianas desde a realização da expedição de Compton em 1941, ele foi o elo entre Lattes e as autoridades bolivianas para que essa missão fosse bem-sucedida.

Quanto aos recursos liberados pela Universidade de Bristol para a viagem, Lattes não teve problemas, apesar do cenário europeu após o fim da guerra. Isso porque, mesmo com as dificuldades financeiras do pós-guerra, na Inglaterra a física nuclear era um dos temas científicos mais importante naquele momento, uma vez que a melhor compreensão das forças nucleares poderia ampliar possibilidades de produção de energia e ampliar o poderia militar do país.

Na Bolívia, Lattes coletou as placas, mas a análise completa foi feita em Bristol junto com Occhialini e Powell. A análise os levou à conclusão de que identificaram o méson pi. Após apresentar alguns trabalhos em seminários e conferências pela Europa, o grupo de Bristol publicou o resultado sobre a inédita identificação da partícula na revista Nature [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999)., 63[63] C. Lattes, H. Muirhead, G. Occhialini e C.F. Powell, Nature 159, 694 (1947).].

Apesar do sucesso das pesquisas do grupo de Bristol, o cenário para continuidade das pesquisas era complicado. A Universidade de Bristol não tinha recursos para investir em equipamentos com aceleradores e nem mesmo com livros, como destacou Lattes numa carta a Leite Lopes, em abril de 1946: “livros bons são coisa rara aqui; imagine que não consigo encontrar o Dirac, Heitler, Gamow etc.”. Lattes, nessa carta, reclamou também de problemas estruturais, como o abastecimento de alimentos [65[65] C. Lattes para J.L. Lopes (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1946), correspondência.].

Apesar disso, Lattes retornou à Bolívia, no final do ano de 1947, para novos experimentos e, novamente, recorreu à ajuda de Wataghin, que escreveu ao embaixador da Bolívia no Brasil:

“De acordo com o entendimento verbal havido com essa embaixada e com a diretoria de rotas aéreas, venho pela presente solicitar a V. excia, uma passagem de ida e volta para o Dr. Julio Cesar Lattes, 1 Assistente dessa Faculdade. O doutor Cesar Lattes faz parte de uma expedição organizada pela Universidade de Bristol para pesquisas sobre Raios Cósmicos, de acordo com o governo boliviano. Ele é oficial de reserva do exército brasileiro. O mesmo que esteve na Bolívia no mês de abril último, pretenderia ir para lá novamente, se possível pelo avião que sai de São Paulo no próximo dia 09, devendo regressar após 15 dias. Junto cópia do relatório do Sr. Ismael Escobar, diretor do Serviço Meteorológico da Bolívia, apresentado ao Ministro da Agricultura da Bolívia, descrevendo as experiências em andamento.” [66[66] G. Wataghin para o embaixador da Bolívia no Brasil (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.]

Essa carta é mais um exemplo de que as articulações feitas por Wataghin ultrapassavam os meios científicos e permeavam outras esferas. Ele era o elo entre cientistas brasileiros, cientistas internacionais e outras esferas da sociedade brasileira. As articulações de Wataghin foram fundamentais para que certos projetos científicos nacionais e internacionais tivessem obtido êxito.

Após a divulgação dos trabalhos de detecção do méson pi, o grupo de Bristol ganhou destaque internacional e alunos de cientistas renomados, como os de Niels Bohr foram para Inglaterra para aprender mais sobre os resultados das pesquisas na Bolívia. Isso fez surgir um contato próximo entre Lattes e Bohr e permitiu ao brasileiro fazer um seminário no Instituto de Física de Copenhagen sobre suas pesquisas [12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014).].

Apesar dos trabalhos em Bristol, Lattes manifestava interesse em ir para o Radiation Laboratory, em Berkeley nos EUA, para trabalhar com um dos aceleradores cíclotron mais avançados daquele período. Ele considerava que lá poderia detectar o mésons pi [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999).]. Esse desejo se materializou quando soube que a fundação Rockefeller não conseguiu, por conta de seus vínculos com a USP, renovar sua bolsa para que continuasse na Europa. Em novembro de 1947, Lattes recebeu uma carta de Wataghin, o parabenizando pelos resultados recentes e destacando que alguns diretores da Rockefeller o alertaram que seria difícil renovar a bolsa de Lattes na Europa, de modo que o melhor seria ele ir para a Califórnia. Nessa carta, Wataghin ressaltou que aquele seria o momento ideal para Lattes deixar a Inglaterra e ir para os Estados Unidos, uma vez que tanto Lawrence quanto a comissão de energia nuclear americana já haviam se posicionado favoráveis à sua ida para o laboratório e, caso ele deixasse para ir em outro momento, todo o processo de solicitação deveria ser refeito e não seria possível garantir novamente respostas positivas. Wataghin também o informou sobre a ida de Ugo Camerini para a Bolívia e sobre a possibilidade de Lattes ter correspondentes por lá, o que seria um ponto positivo para pesquisas futuras [67[67] G. Wataghin para C. Lattes (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.].

Wataghin, também, orientou Lattes sobre quais seriam as melhores opções para ele naquele momento:

“[] O Miller se refere a sugestão que ele me fez de conceder a bolsa sob a condição que seja cortado o vencimento brasileiro continuando o senhor a ser comissionado como meu assistente seu vencimento (como a Sonja). Submeto a sua escolha as seguintes possibilidades: 1) aceitar a proposta de Miller. 2) indagar se ele concede ao senhor a sua bolsa para os Estados Unidos a partir de outubro ou novembro de 1947, sem pretender que se corte os seus vencimentos (O seu comissionamento que eu pedi vai terminar em fevereiro de 1948 e não poderá ser prorrogado se o Dreyfus manter as suas condições que cada assistente não pode ser comissionado por mais de dois anos). 3) pedir a bolsa Rockefeller para Inglaterra para 1948. 4) recusar tudo e aceitar a indicação como prof. de física no Rio (O Costa Ribeiro me pediu manter o seu comissionamento até o fim de 1947 para contratar o senhor somente em 1948). Me parece que para seus estudos e pesquisas as soluções mais favoráveis são a 2 e 3. Precisava de uma resposta urgente porque o Miller pede uma resposta por telegrama. Ficar-lhe-ia grato se pudesse dar me também a resposta por telegrama. Hoje envio a Miller o telegrama seguinte, que tem por fim somente ganhar um pouco de tempo para receber a sua resposta. “Rockfound NY Miller, inquire if Fellowship lattes could begin october, 1947, valid for United States”. Um abraço do seu Wataghin. PS: estou entusiasta com seus trabalhos e geral” [68[68] G. Wataghin para C. Lattes (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.].

As trocas de cartas destacadas indicam as articulações que Wataghin desenvolveu para a circulação de físicos brasileiros pelos laboratórios de ciência no mundo, uma vez que podemos perceber ele articulando em favor de Lattes e, ainda, fazendo referência a Sonja Ashauer, que estava em Cambridge nesse período com bolsa conseguida por intermédio de Wataghin.

Importante ainda destacar que a proximidade entre Wataghin e os membros da Fundação Rockefeller favoreceu não apenas a concessão de bolsas para os alunos originários da USP, como as escolhas das melhores opções para cada um daqueles estudantes. Wataghin encaminhou carta a Ernest Lawrence, o chefe do laboratório de Berkeley, recomendando Lattes para trabalhar como assistente no laboratório de Berkeley. Ele enviou junto à carta algumas cópias dos trabalhos de Lattes, destacando sua trajetória desde a graduação [69[69] G. Wataghin para E. Lawrence (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.].

Por sua vez, a resposta recebida por Wataghin, por parte de Lawrence, a respeito da ida de Lattes para a Califórnia foi a demonstração da vontade de tê-lo no Radiation Laboratory. Porém, o processo não dependia somente de Lawrence, e o chefe do laboratório indicou os caminhos a serem seguidos para conseguir por parte das autoridades americanas a autorização para que Lattes se instalasse nos EUA:

“No presente momento, o Radiation Laboratory está operando sobre auspícios da Comissão de Energia Atômica e, com isso, é necessário obter permissão formal da Comissão de Energia Atômica para estrangeiros trabalharem no laboratório. O procedimento necessário é fazer a solicitação através da embaixada de Washington diretamente para a comissão” [70[70] E. Lawrence para G. Wataghin (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.].

Após o fim da Segunda Guerra, o governo dos Estados Unidos não era favorável à presença de estrangeiros trabalhando em seus laboratórios com pesquisas de física nuclear, por conta do receio que os resultados de pesquisa fossem levados a URSS. Além de Wataghin, o militar Álvaro Alberto da Motta e Silva exerceu papel importante para ainda de Lattes para os EUA. O militar intercedeu junto ao embaixador brasileiro em Washington, e a representantes da Comissão de Energia Atômica americana para conseguir financiamento para a ida de Lattes.

Álvaro Alberto costumava ser acionado por Wataghin para obtenção de financiamentos, por ser ele um militar influente no governo brasileiro, químico de formação e sempre interessado em desenvolver as ciências no Brasil [71[71] G. Wataghin para A. Alberto (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.]. E O militar foi quem articulou o compromisso político estabelecido entre governo brasileiro e americano de cooperação científica, que foi consolidado logo após o Brasil votar favor do princípio das compensações específicas, na Comissão de Energia Atômica do Conselho de Segurança da ONU, em 1947 [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999).].

O processo de cooperação levou, também, o Brasil a sediar a Conferência Interamericana Para a Manutenção da Paz e da Segurança no Continente, em 1947, que contou com a presença do presidente americano Harry Truman. Nessa conferência, foi assinado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e o primeiro acordo secreto entre Brasil e EUA para fornecimento de minerais radioativos. Essas articulações foram fundamentais para o processo de aceitação de Lattes como membro do laboratório de Berkeley [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999).].

Apesar do acelerador de Berkeley possuir energia suficiente para produzir os mésons, os cientistas que com ele trabalhavam não haviam conseguido detectar a produção de nenhum méson. E isto era um problema, visto que os financiadores investiram no acelerador na perspectiva de produção dessa partícula. Cerca de dez dias após Lattes chegar ao laboratório foram encontrados rastros de mésons nas emulsões expostas no acelerador, fato que ajudou a afastar o sentimento de desconfiança a respeito do investimento feito no laboratório, consolidando assim sua posição como um dos principais aceleradores de partículas daquele período [5[5] A.M.R. Andrade, Físicos, Mésons e Política: a Dinâmica da Ciência na Sociedade (Hucitec, São Paulo, 1999)., 12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014).].

De acordo com Lattes, o que o permitiu identificar os mésons foi o tempo de observação das placas no microscópio. Essa identificação requeria do investigador ficar em uma posição específica junto ao microscópio, que Gardner não conseguia manter por muito tempo, pois ele sofria de beriliose, uma doença que contraiu após trabalhar na construção da bomba atômica, ao inalar grandes quantidade de berílio [12[12] C.L. Vieira e A.A.P. Videira, Physics in Perspective 16, 3 (2014).].

Importante destacar que a dificuldade para encontrar o méson em Berkeley se justifica porque, diferentemente de Lattes, ninguém havia visto um traço produzido por um méson antes, logo não sabiam os caminhos para identificar o méson pi. A experiência prévia de Lattes foi fundamental para o sucesso da identificação. Como aponta Heráclio Tavares [36[36] H. Tavares, Estilo de pensamento em física nuclear e de partículas no Brasil (1934-1975): César Lattes entre raios cósmicos e aceleradores. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2017).], Lattes era visto no meio científico como um dos principais, se não o principal, a ter habilidade prática para identificar problemas e sugerir soluções relacionadas ao uso de emulsões em física nuclear. Heráclio Tavares, Ivã Gurgel e Augusto Videira [4[4] H. Tavares, I. Gurgel e A.P. Videira, Rev. Bras. Ensino Fís. 42, e20200330 (2020).] reforçam a tese do protagonismo de Lattes naquele contexto, ao analisarem o caderno de anotações do laboratório de Berkeley, que contém o desenho do dispositivo utilizado para as emulsões. No desenho do arranjo experimental que permitiu a captura do méson aparece as iniciais “CMGL”, que corresponderia às de Cesar Mansueto Giulio Lattes.

A produção, captura, observação e o estudo de mésons positivos era um pouco mais difícil do que a do méson negativo, uma vez que quando o positivo é defletido pelos ímãs, os prótons e as partículas alfa sofriam a mesma deflexão, uma vez que suas cargas também são positivas. Isso gerava mais rastros de fundo na emulsão, o que atrapalhava a identificação dos mésons. Lattes elencou então algumas diferentes posições possíveis no arranjo experimental, de maneira que se esperava que os mésons positivos fossem projetados abaixo do feixe, na direção contrária à do feixe e a 270 e a 360 da posição do alvo.

Percebemos aqui novamente que os resultados obtidos pelo laboratório em que Lattes estava trabalhando não foram fruto de uma mera recepção passiva de conhecimento. Novamente podemos destacar que a circulação existente foi um fator que proporcionou que no encontro de Cesar Lattes com os cientistas do Radiation Laboratory causasse alterações na maneira de fazer o equipamento funcionar. E essa confluência de saberes ao se encontrarem gerou o resultado obtido. Mais uma vez a circulação foi importante para que o conhecimento científico caminhasse para novos resultados.

4. Considerações Finais

A partir da pesquisa desenvolvida, discutimos como a chegada de Gleb Wataghin no Brasil, para atuar na USP, e a maneira como ele organizou o curso de Física da FFCL e o grupo de pesquisas em raios cósmicos possibilitaram a estudantes brasileiros desenvolver pesquisas no exterior e obter protagonismo no desenvolvimento da física nuclear.

A autonomia de pesquisa de Wataghin, associada à rede de contatos que ele criou ao seu redor, proporcionou que circulação de pessoas, ideias e técnicas que levaram a física nuclear desenvolvida no Brasil a encontrar espaço no cenário interacional, seja pelo trabalho de brasileiros lá fora, seja pelo fato de no país se estabelecer grupos de pesquisa que, em diálogo, com outros de produção de ciência produziram conhecimento relevante para o campo. E, a partir dessa circulação, pesquisas desenvolvidas no Brasil foram reconhecidas em grandes centros, técnicas aqui desenvolvidas se encontraram com novas possibilidades no cenário internacional e assim os cientistas brasileiros estiveram alinhados com a vanguarda do conhecimento em física nuclear daquele período.

Nesse sentido, a criação da USP com seu modelo de contratação de professores estrangeiros, e a internacionalização da física brasileira, que foi impulsionada pela circulação promovida por Wataghin, foram fatores que permitiram que, naquele momento, a física nuclear brasileira ganhasse algum reconhecimento a nível internacional e, com isso, nomes brasileiros começaram a aparecer em pesquisas desenvolvidas em grandes centros de ciência na Europa e nos Estados Unidos. Esse fato também ajudou a estabelecer a física nuclear brasileira como uma área de pesquisa mais consolidada no cenário nacional.

E, com o conceito de circulação adotado nesse trabalho, esse encontro dos cientistas brasileiros com cientistas de grandes centros mundiais foi fundamental para que a física nuclear brasileira se desenvolvesse, aprimorando técnicas e obtendo resultados expressivos.

Importante destacar que as articulações dos personagens destacados nessa pesquisa ocorreram dentro de um contexto nacional e internacional que impulsionou o deslocamento de pessoas e com isso de ideias e materiais. As articulações políticas e diplomáticas, a intensa troca de correspondências foram condições fundamentais para que a circulação de pessoas, ideias e técnicas se tornasse possível tanto para o estabelecimento e consolidação da física nuclear brasileiro, quanto para o sucesso de alguns nomes no cenário científico internacional.

Dessa forma, podemos destacar que o Brasil, especialmente os físicos liderados por Wataghin, se utilizaram desse cenário para fazer as aproximações com certos cientistas e centros de pesquisas. E, a partir disso, a física brasileira se valeu dessas relações para fortalecer sua institucionalização e conseguir incentivos estrangeiros como os provenientes da Fundação Rockefeller.

Por fim, esse episódio nos ajuda a destacar características que foram fundamentais para a construção da ciência brasileira, como a intensa troca de correspondências e a circulação existente naquele período. E, além disso, nos ajuda a perceber que para que toda a circulação de pessoas, ideias e técnicas se estabelecesse, foi necessário um grande esforço de articulação político diplomático por parte dos cientistas que estavam na USP, especialmente Gleb Wataghin que assumiu um papel de protagonismo nesse processo.

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    G. Wataghin para A. Alberto (Arquivo Leite Lopes, Universidade de São Paulo, 1947), correspondência.
  • 1
    A física de partículas emergiu dessas três áreas.
  • 2
    Essa fundação pertencia à empresa produtora de cerveja Antártica, sediada em São Paulo, e concedia bolsas para pesquisas científicas.
  • 3
    Fundação criada em agosto de 1940, por iniciativa de Nelson Rockfeller, uma agência para lidar com assuntos econômicos e culturais interamericanos de interesse do governo dos Estados Unidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2023
  • Revisado
    21 Jun 2023
  • Aceito
    21 Jun 2023
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