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Síndrome do pulmão encolhido no lúpus eritematoso sistêmico

Resumos

O lúpus eritematoso sistêmico pode envolver o aparelho respiratório de diversas maneiras como com pleurite, pneumonite, doença intersticial ou hipertensão pulmonar. Raramente, o paciente com lúpus eritematoso sistêmico pode apresentar uma síndrome caracterizada por dispnéia, dor torácica, alteração nas provas funcionais pulmonares e ausência de alterações parenquimatosas significativas na avaliação tomográfica de tórax, a qual tem sido denominada síndrome do pulmão encolhido. Descrevemos um caso que preenche os critérios diagnósticos dessa síndrome, e enfatizamos a patogênese que tem sido proposta, assim como as opções terapêuticas disponíveis.

Lúpus eritematoso sistêmico; Síndrome do pulmão encolhido


Systemic lupus erythematosus (SLE) may involve the respiratory tract in several ways, such as through pleuritis, pneumonitis, interstitial disease or pulmonary hypertension. In rare cases, SLE patients present a syndrome characterized by dyspnea, chest pain and abnormalities in pulmonary function testing, although there may be no evidence of major parenchymal lung disease on computerized tomography scans. This condition has come to be known as shrinking lung syndrome. We report a case that meets these diagnostic criteria, emphasizing the pathogenesis proposed, as well as the therapeutic options available.

Lupus Erythematosus; Respiratory System; Shrinking Lung Syndrome


RELATO DE CASO

Síndrome do pulmão encolhido no lúpus eritematoso sistêmico* * Trabalho realizado no Núcleo de Reumatologia do Hospital Santa Izabel (HSI)/Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP)

Cíntia Andrade Costa; Dálvaro Oliveira de Castro Jr.; Sérgio Jezler(TE SBPT); Mittermayer Santiago

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Mittermayer Santiago Núcleo de Reumatologia do Hospital Santa Izabel Praça Almeida Couto 500, Nazaré, Salvador, Bahia, CEP 40000-000 E-mail: mitter@svn.com.br

RESUMO

O lúpus eritematoso sistêmico pode envolver o aparelho respiratório de diversas maneiras como com pleurite, pneumonite, doença intersticial ou hipertensão pulmonar. Raramente, o paciente com lúpus eritematoso sistêmico pode apresentar uma síndrome caracterizada por dispnéia, dor torácica, alteração nas provas funcionais pulmonares e ausência de alterações parenquimatosas significativas na avaliação tomográfica de tórax, a qual tem sido denominada síndrome do pulmão encolhido. Descrevemos um caso que preenche os critérios diagnósticos dessa síndrome, e enfatizamos a patogênese que tem sido proposta, assim como as opções terapêuticas disponíveis.

Descritores: Lúpus eritematoso sistêmico, Síndrome do pulmão encolhido

Siglas e abreviaturas utilizadas neste trabalho:

LES - Lúpus eritematoso sistêmico

SPE - Síndrome do pulmão encolhido

Introdução

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença difusa do tecido conjuntivo que apresenta inúmeras manifestações clínicas. O envolvimento do aparelho respiratório pode ocorrer em mais de 50% dos pacientes em algum estágio da doença, e podem estar acometidas as vias aéreas superiores, pleura, parênquima e vasos pulmonares. Uma manifestação rara dessa doença é a chamada síndrome do pulmão encolhido (SPE), que se caracteriza por disfunção dos músculos respiratórios, particularmente do diafragma, por mecanismos ainda não bem definidos, e que leva a dispnéia. 1

Relatamos um caso de LES que apresentou manifestações respiratórias, cuja investigação culminou com o diagnóstico da síndrome do pulmão encolhido. São discutidos os aspectos patogênicos, diagnósticos e terapêuticos dessa síndrome, além de uma revisão de literatura sobre o tema.

Relato do caso

Uma mulher de 36 anos referia artralgia em tornozelos, joelhos, punhos e mãos, associada a dispnéia aos médios esforços havia cerca de seis anos. Após a realização de exames, foi evidenciado um pequeno derrame pleural à esquerda. Com a hipótese diagnóstica de LES, iniciou o uso de prednisona (20 mg/dia) e difosfato de cloroquina (250 mg/dia). Posteriormente, com a redução da dose do corticosteróide, passou a apresentar dor torácica ventilatório dependente, piora da dispnéia, além de febre e alopecia, e foi encaminhada ao nosso serviço. Ao exame clínico apresentava-se afebril, anictérica, acianótica, eupnéica, e sem adenomegalias. O exame do tórax revelou expansibilidade e frêmito tóraco-vocal normais, murmúrio vesicular diminuído em base de hemitórax direito e ausência de ruídos adventícios. O aparelho cardiovascular e o abdome não apresentavam alterações. Ao exame do sistema osteoarticular, foi observado apenas edema discreto nos tornozelos. A paciente foi submetida a ampla investigação que demonstrou hemograma completo sem alteração, uréia 37 mg%, creatinina 0,9 mg%, exame de urina sem anormalidades, fator anti-núcleo por imunofluorescência indireta (HEp-2) reagente 1/2560 com padrão homogêneo, pesquisa de células LE positiva, anti-DNA nativo e fator reumatóide negativos, e C3 e C4 normais. As pesquisas de anticorpos anti-cardiolipina por ELISA e de anticorpos anti-SSA (Ro) por contra-imunoeletroforese foram negativas. A avaliação radiológica do tórax evidenciou elevação das cúpulas diafragmáticas, diminuição dos campos pulmonares e atelectasias laminares (Figura 1). Essas atelectasias foram confirmadas por tomografia computadorizada de alta resolução, a qual não mostrou também qualquer comprometimento intersticial (Figura 2). A hemogasometria arterial foi normal e a espirometria demonstrou distúrbio ventilatório restritivo moderado com capacidade vital forçada de 58%, e medidas de pressão inspiratória máxima de _40 cm de H2O e pressão expiratória máxima de +60 cm de H2O. O ecocardiograma demonstrou derrame pericárdico de grau leve, escape mitral e hipertensão pulmonar leve (38 mmHg). Ela foi tratada com 20 mg de prednisona associada a pulsoterapia com ciclofosfamida (1 g mensal) por 6 meses. Houve melhora parcial da dispnéia, porém com manutenção do padrão radiológico e da espirometria (Tabela 1).



Discussão

A SPE é uma situação clínica rara, descrita classicamente em portadores de LES2, e raramente em portadores de outras doenças3. Caracteriza-se pelo aparecimento de dispnéia, dor torácica ventilatório dependente, e uma desproporção entre as alterações vistas nas provas de função pulmonar, que mostram distúrbio ventilatório restritivo, às vezes grave, e os achados radiológicos onde se evidencia apenas elevação de cúpula diafragmática uni ou bilateralmente e ausência de envolvimento parenquimatoso. A nossa paciente preencheu os critérios acima e dessa forma foi diagnosticada como portadora da SPE.

Em uma revisão de literatura sobre o tema, Warrington et al. 2, utilizando dados do MEDLINE no período de 1965 a 1977, observaram 49 casos bem documentados de SPE em LES. A média de idade dos pacientes foi de 40 anos e a proporção entre mulheres e homens foi de 5,5:1. Curiosamente, 20% dos casos relatados tinham alguma evidência de miopatia. Daquela data até o presente momento, utilizando a mesma fonte de dados, identificamos mais onze casos publicados de SPE em LES. 1, 4, 5, 6, 7. Adicionando-se mais um caso publicado no Brasil em revista não indexada8 e o presente caso, totalizam-se 62 casos descritos.

A patogênese da SPE é controversa. Existe a sugestão de que há primariamente uma disfunção dos músculos diafragmáticos9, hipótese essa nem sempre aceita por outros autores10, paralisia diafragmática secundária a lesão do nervo frênico6, fibrose difusa do diafragma11, ou ainda restrição da expansibilidade da parede torácica10. Tem sido proposta, de maneira pouco convincente, a participação de auto-anticorpos como anti-fosfolípides12 e anticorpos anti-SSA7 na patogênese dessa situação clínica. No presente caso, a pesquisa desses anticorpos foi negativa.

O tratamento da SPE também não está definido. Nos casos descritos na literatura foram utilizados corticosteróides13,14, imunossupressores1, beta-agonista inalatório15 devido ao efeito inotrópico positivo dessa substância sobre os receptores beta do músculo diafragmático, xantinas16 e até digitálico8, este baseado no argumento de que o diafragma responderia a essa droga de modo semelhante ao músculo cardíaco.

No presente caso, com o aumento da dose de prednisona de 5 mg para 20 mg, associada à pulsoterapia com ciclofosfamida, houve melhora clínica, embora sem melhora dos parâmetros espirométricos de restrição pulmonar ou mesmo do padrão radiológico. A indicação do uso de ciclofosfamida foi uma tentativa de se reverter o quadro de hipertensão pulmonar, como sugerido em estudo recentemente publicado. 17 Com efeito, um novo ecocardiograma foi realizado e não foram notados sinais de hipertensão pulmonar após o sexto mês de pulsoterapia. Dessa forma, a melhora clínica apresentada pela paciente pode ser atribuída à melhora da hipertensão pulmonar e não à reversão da SPE.

Em conclusão, a SPE, embora rara, deve ser lembrada como possibilidade diagnóstica para explicar a dispnéia em portadores de LES sem evidência de insuficiência cardíaca, anemia ou doença parenquimatosa pulmonar. Embora sem tratamento específico, o uso empírico de xantina, beta-agonistas, corticosteróide ou mesmo de imunossupressores pode ser de utilidade.

Recebido para publicação, em 12/5/2003.

Aprovado após revisão, em 3/9/2003.

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  • Endereço para correspondência
    Mittermayer Santiago
    Núcleo de Reumatologia do Hospital Santa Izabel
    Praça Almeida Couto 500, Nazaré,
    Salvador, Bahia, CEP 40000-000
    E-mail:
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    Trabalho realizado no Núcleo de Reumatologia do Hospital Santa Izabel (HSI)/Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Set 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Aceito
      03 Set 2003
    • Recebido
      12 Maio 2003
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