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O ressurgimento da tuberculose e o impacto do estudo da imunopatogenia pulmonar

Resumos

O ressurgimento da tuberculose como uma das doenças contagiosas que mais assola a humanidade deu-se após uma falsa impressão de que se caminhava para o seu controle antes do final do Século XX. Nos últimos dez anos, em associação com centros de pesquisas norte-americanos e europeus, nosso grupo na Universidade Federal do Rio de Janeiro tem estudado diversos aspectos relacionados com a patogenia da forma pulmonar, a mais importante por conta de sua freqüência e importância que tem no ciclo de transmissão. Nossa hipótese é que o estabelecimento da infecção latente e o desenvolvimento da forma ativa dependem de um desequilíbrio entre citocinas ativadoras e desativadoras da função microbicida dos macrófagos. A despeito da presença de mecanismos habitualmente protetores, como de moléculas nos macrófagos que denotam ativação celular e de moléculas comprometidas com a proteção contra a tuberculose, como o óxido nítrico e o interferon-g, a tuberculose progride. Um dos motivos é a presença no sítio de infecção de moléculas como a interleucina-10 e o TGF-b, que tem capacidade de desativar macrófagos previamente ativados. Existem evidências que a micobactéria secreta proteínas capazes de induzir a expressão de interleucina-10, agindo assim para burlar os mecanismos de defesa. Indivíduos suscetíveis teriam mais capacidade de responder a estas moléculas da micobactéria, devido a mutações genéticas que facilitam a produção de interleucina-10. A compreensão destes mecanismos poderá representar avanços na prevenção e descoberta de novos alvos terapêuticos para o controle da tuberculose.

Tuberculose; Tuberculose pulmonar


The resurgence of tuberculosis as one of the most important infectious diseases to affect mankind came after the illusion that the disease was under control and would be eradicated before the end of the 20th Century. Over the last 10 years, in association with American and European research centers, our group at the Universidade Federal do Rio de Janeiro has been dedicated to investigating the pathogenic mechanisms involved in pulmonary tuberculosis. Due to its frequency and role in transmission, pulmonary tuberculosis is the most serious form of the disease. Our hypothesis is that the establishment of latent infection and its progression to active disease depend on an imbalance between activating and deactivating cytokines at the disease site. Despite the presence of protective mechanisms such as the macrophage expression of phenotypes (denoting cellular and molecular activation of agents involved in protection, such as nitric oxide and interferon-g), tuberculosis progresses. A possible explanation for this is the concomitant presence at the site of infection of molecules such as interleukin-10 and TGF-b, which are able to deactivate previously activated macrophages. Recent data suggest that mycobacteria secrete proteins capable of inducing interleukin-10, thus contributing to overcoming host protective mechanisms. Susceptible individuals would be more able to produce larger amounts of these molecules due to genetic polymorphisms that facilitate interleukin-10 production at infection onset. The understanding of these mechanisms could advance the prevention and discovery of new therapeutic targets for the control of tuberculosis.

Tuberculosis; Tuberculosis pulmonary


ARTIGO DE REVISÃO

O ressurgimento da tuberculose e o impacto do estudo da imunopatogenia pulmonar * * Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Weill Cornell Medical College, Université de Paris VI.

José Roberto Lapa e SilvaI; Neio BoéchatII

ITrabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro

IIWeill Cornell Medical College, Université de Paris VI

Endereço para correspondência Endereço para corespondência Unidade de Pesquisa em Tuberculose Av. Brigadeiro Trompovski, s/n. Prédio do HUCFF/UFRJ, sala 01D56, 1º andar Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ CEP 21941-590 Tel: 55 21 2562 2887 E-mail: jrlapa.ntg@terra.com.br

RESUMO

O ressurgimento da tuberculose como uma das doenças contagiosas que mais assola a humanidade deu-se após uma falsa impressão de que se caminhava para o seu controle antes do final do Século XX. Nos últimos dez anos, em associação com centros de pesquisas norte-americanos e europeus, nosso grupo na Universidade Federal do Rio de Janeiro tem estudado diversos aspectos relacionados com a patogenia da forma pulmonar, a mais importante por conta de sua freqüência e importância que tem no ciclo de transmissão. Nossa hipótese é que o estabelecimento da infecção latente e o desenvolvimento da forma ativa dependem de um desequilíbrio entre citocinas ativadoras e desativadoras da função microbicida dos macrófagos. A despeito da presença de mecanismos habitualmente protetores, como de moléculas nos macrófagos que denotam ativação celular e de moléculas comprometidas com a proteção contra a tuberculose, como o óxido nítrico e o interferon-g, a tuberculose progride. Um dos motivos é a presença no sítio de infecção de moléculas como a interleucina-10 e o TGF-b, que tem capacidade de desativar macrófagos previamente ativados. Existem evidências que a micobactéria secreta proteínas capazes de induzir a expressão de interleucina-10, agindo assim para burlar os mecanismos de defesa. Indivíduos suscetíveis teriam mais capacidade de responder a estas moléculas da micobactéria, devido a mutações genéticas que facilitam a produção de interleucina-10. A compreensão destes mecanismos poderá representar avanços na prevenção e descoberta de novos alvos terapêuticos para o controle da tuberculose.

Descritores: Tuberculose/etiologia. Tuberculose pulmonar/patologia.

Siglas e abreviaturas utilizadas neste trabalho:

AIDS - Síndrome da imunodeficiência adquirida

BCG - Bacilo de Calmette e Guérin

CD - Cluster of differentiation (grupo de diferenciação)

HIV - Vírus da imunodeficiência humana

HLA-DR - Antígeno leucocitário humano- região D

IL - Interleucina

Mtb - Mycobacterium tuberculosis

NOS2 - Sintase induzida do óxido nítrico

PPD - Derivado proteico purificado

TGF - Fator de crescimento tumoral

Th - T helper (T auxiliar)

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Introdução

A frase "O ressurgimento da tuberculose", que aparece no título, é muito importante, mas como uma peça de marketing, porque na verdade, se olharmos a história da tuberculose em nosso país, esse não é um título verdadeiro, pois a tuberculose nunca deixou de ser um problema entre nós, como nunca deixou de ser um problema do Terceiro Mundo em geral. O que mudou, isso sim, foi a prevalência da tuberculose nos países desenvolvidos. A tuberculose era considerada praticamente uma doença em via de extinção nos países do chamado Primeiro Mundo. Importantes autores consideravam a tuberculose erradicada como se o estivesse do mundo inteiro, da mesma maneira que se erradicou a varíola, mas na verdade estavam se referindo à erradicação da tuberculose nos países do Primeiro Mundo. Na verdade, na década de 1.970 havia na Holanda índices de prevalência da tuberculose baixíssimos e cada vez baixando mais. O mesmo era fato nos EUA e no restante da Europa. Em outras palavras, o Primeiro Mundo realmente estava caminhando para erradicar a tuberculose. O que mudou? O que fez com que a tuberculose já não fosse mais uma doença erradicável, pelo menos nesse início de século? O ano de 1.985 representa o momento em que no mundo inteiro os índices de tuberculose voltaram a crescer. Cresceram devido a vários fatores, dentre eles os fluxos migratórios. Existem reservatórios de tuberculose na África, na América do Sul e na América Central. A Ásia é um dos grandes reservatórios de tuberculose no mundo, com a Índia liderando as estatísticas. Se ocorre um fluxo migratório cada vez maior no mundo, principalmente desses reservatórios para os países desenvolvidos, é óbvio que, por mais que se tenha um controle de tuberculose em países desenvolvidos receptivos de migrações, os reservatórios vão se deslocar para o Primeiro Mundo.

Mas existe um fato histórico que hoje podemos claramente apontar como o responsável pelas mudanças de direção das curvas de prevalência da tuberculose: a pandemia da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). A AIDS introduziu um fato totalmente novo porque permitiu que pessoas que eram infectadas por tuberculose e que adquiriram a infecção pelo vírus da AIDS rapidamente passassem a adoecer por tuberculose. E a tuberculose é uma doença que não precisa de vetor para se espalhar, ela passa de pessoa a pessoa. Uma pessoa com positividade para o vírus da imunodeficiência humana (HIV+) tem um risco muito maior de desenvolver tuberculose e, ao desenvolver a sua forma ativa, ela começa a transmitir o bacilo para pessoas que não são HIV+, como, por exemplo, profissionais de saúde e companheiros de prisão ou de abrigos. Com isso aumenta-se exponencialmente a prevalência da tuberculose, em uma situação que não é direta ou necessariamente relacionada ao vírus da AIDS. Isto é que fez com que a tuberculose ganhasse as manchetes, e passasse a ser considerada uma doença novamente em franca ascensão, e que levou a Organização Mundial da Saúde, em 1995, a declarar a tuberculose como uma emergência sanitária mundial.

No entanto, nós estamos falando de uma doença que acompanha o homem há milênios. Sabemos que essa doença já foi encontrada, através de identificação por meio de métodos de biologia molecular que empregam seqüências conhecidas do genoma da micobactéria, em material retirado de múmias egípcias de 4.000 anos. Existem também evidências de tuberculose óssea no homem do neolítico. Durante a Idade Média foi chamada de peste branca. Há um interesse renovado da mídia pela tuberculose e é interessante que isso ocorra, porque com isso começa a haver dinheiro novamente para pesquisa. Aliás, a falta de financiamento para pesquisa foi o grande fator de atraso do conhecimento que temos hoje da tuberculose, o que faz com que nós ainda hoje vejamos a tuberculose com os olhos do século retrasado. Ainda usamos na prática clínica elementos de até 100 anos atrás: meios de diagnóstico que foram desenvolvidos há 100 anos como o PPD, meios terapêuticos que foram desenvolvidos há mais de 50 anos, como a isoniazida e a estreptomicina, e vacinas que foram desenvolvidas na década de 1.910, como o BCG. Não se investiu dinheiro em pesquisas sobre tuberculose como se investiu em tantas outras doenças, como se investiu maciçamente na própria AIDS.

No Brasil, a tuberculose sempre foi um problema, contudo nunca tivemos dinheiro suficiente para pesquisa em tuberculose e isso é que faz a diferença. Nos países do Primeiro Mundo, que tradicionalmente investem maciçamente em pesquisa nas mais diversas áreas da biologia e da biomedicina, a tuberculose foi deixada praticamente para trás. Essa é uma doença que vai matar nos próximos dez anos 30 milhões de pessoas no mundo. Pouquíssimas outras condições se assemelham a isso. Quando se olha o nível de financiamento que se tem para pesquisa em tuberculose, e para programas de controle da tuberculose no mundo inteiro, nota-se que o montante investido é absolutamente insuficiente. A tuberculose é uma doença que é uma prioridade, mas infelizmente assim considerada por muito poucos.

Mesmo antes da introdução da quimioterapia, a doença vinha caindo em seus índices epidemiológicos, principalmente no Primeiro Mundo. No início do século passado, a tuberculose era uma doença que tinha nível elevado de prevalência nos EUA, e antes mesmo da introdução da quimioterapia específica, simplesmente com a melhoria das condições de vida da população, houve uma redução acentuada de todos os seus indicadores epidemiológicos. Com a introdução da primeira droga eficaz contra a tuberculose, que foi a estreptomicina, houve queda acentuada nos índices, o que se repetiu com a introdução, anos depois, da isoniazida. Data desta mesma época a compreensão dos postulados da quimioterapia, que indica que as drogas devem ser usadas de forma associada para se evitar o surgimento de cepas resistentes. Do início da década de 1.950 até o início da década de 1.980, houve uma queda acentuadíssima na incidência de tuberculose nos EUA, na Europa, e em todo o mundo desenvolvido, mas mesmo em países pobres como o Brasil e a Índia houve uma queda importante. Isso deveu-se à melhoria geral da situação sanitária no mundo, mesmo nos países mais pobres. Com o desenvolvimento geral, e principalmente tecnológico, científico, e sanitário ao longo do século, houve maior controle de várias doenças. O fenômeno não é exclusivo da tuberculose, mas o seu controle também se beneficiou da melhoria geral das condições de vida. No entanto, em meados da década de 1.980 houve uma inflexão da curva de sua prevalência, com tendência ascendente, que permanece até hoje.

Patogenia da tuberculose

A imunopatogenia da tuberculose, ou seja, a maneira como o sistema imune do hospedeiro atua para impedir que a doença progrida, é assunto que sofreu muito com a falta de investimentos em pesquisa sobre a doença. Dos fatos relacionados à tuberculose citados acima, um ressalta a importância das pesquisas nessa área: 1/3 da população mundial é infectada por tuberculose, porém o número de casos de tuberculose ativa por ano é de cerca de 10 milhões. Os outros indivíduos infectados não adoecem, porque eles têm mecanismos de defesa que mantêm a micobactéria em xeque, silente, impedindo que ela atue. É lógico que se compreendermos bem qual é esse mecanismo de defesa poderemos entender também o lado contrário: o que é que leva aqueles 5% das pessoas contaminadas a desenvolverem a doença.

A infecção pelo Mycobacterium tuberculosis (Mtb) pode ter três desfechos: controle na porta de entrada (graças à imunidade inata), doença ativa ou tuberculose latente. Na tuberculose latente o organismo controla mas não elimina a infecção. O Mtb fica dormente, replicando intermitentemente e com metabolismo alterado. A infecção está sob controle mas não eliminada. Isso gera um reservatório enorme de tuberculose. Várias questões são relevantes a esse problema: que eventos iniciais levam ao controle da infecção? Que fatores contribuem para o estabelecimento da infecção latente? Se identificarmos os mecanismos envolvidos, poderemos propor vacinações, quimioterapias, e imunoterapias adjuvantes que poderão impedir que o paciente tenha a forma ativa da tuberculose.

A imunologia começou praticamente com as descobertas de Robert Koch, na década de 1.890. No entanto, ela pode ser considerada uma ciência muito recente, pois até o inicio da década de 1.970 não sabíamos o que era o linfócito T, ou o linfócito B. Nós não conhecíamos nada sobre citocina, uma revolução no conhecimento biológico.

O organismo defende-se contra a micobactéria basicamente com o apoio de dois tipos celulares, que são o linfócito T e o macrófago. Quando a micobactéria penetra no pulmão de um indivíduo, após ser expectorada em minúsculas partículas por um paciente tuberculoso, é inicialmente fagocitada por um macrófago alveolar na intimidade do pulmão. Esse macrófago, dependendo da virulência do bacilo e da quantidade aspirada, pode resolver o problema ali na porta de entrada, mas o macrófago sozinho é em geral incapaz de matar a micobactéria. Ele precisa de apoio de outras células, principalmente da produção de citocinas por essas células, que vão aumentar a capacidade do macrófago de matar a micobactéria dentro do seu citoplasma. O linfócito T, além de produzir citocinas importantes, é também uma arma efetora importante contra a micobactéria, por poder matar o macrófago que está sendo inútil no combate a ela. Se ele reconhece que o macrófago não está sendo capaz de vencer a micobactéria, ele mata esse macrófago, e libera para o ambiente o bacilo, esperando que macrófagos mais eficientes o fagocitem e consigam controlá-lo dessa vez. Trata-se do próprio linfócito T fazendo uma ação efetora contra a micobactéria, ainda que de forma indireta.

Nós passamos a reconhecer certas sub-populações celulares, como os linfócitos T gd, que têm um papel muito importante no combate à tuberculose, porque eles têm uma capacidade tóxica muito grande contra o próprio macrófago infectado, e eles também produzem as citocinas que vão estimular os macrófagos a matarem a micobactéria. O próprio macrófago não é mais considerado como uma célula simplesmente efetora, mas também como uma célula indutora das mais importantes, por produzir citocinas. Com isso mudamos o conceito de que a indução da resposta imune seria sempre realizada pelo linfócito T e a ação efetora seria sempre providenciada pelo macrófago. Hoje nós sabemos que existem ações indutoras ou efetoras tanto pelo linfócito T quanto pelo macrófago.

Há uma outra razão para se reavaliar o conceito que nós fazíamos da tuberculose até então, que é o advento do HIV. A pandemia da AIDS impôs à humanidade uma revolução no conhecimento da imunologia. Nunca se avançou tão rapidamente neste terreno como nos últimos vinte anos. Um paciente infectado pelo HIV apresenta uma forma de tuberculose muito diferente da vista no indivíduo imunocompetente: é muito mais grave, mata muito mais, e prejudica muito mais a sobrevida dos pacientes. As pessoas morrem mais rapidamente quando têm tuberculose associada ao HIV. Mesmo que se cure a tuberculose, elas vão morrer mais rapidamente da AIDS(1).

Papel das citocinas no desenvolvimento da tuberculose

É importante entender os mecanismos micobactericidas dos macrófagos e como o sistema imune participa disso, particularmente o sistema imune pulmonar, tendo em vista que praticamente todas as contaminações por tuberculose se dão pela via respiratória e que 80% das formas clínicas da doença se localizam no pulmão. Além do mais, a forma pulmonar é a única com importância epidemiológica, pois vai propiciar a transmissão aos contatos e a manutenção do ciclo de transmissão da doença. A citocina é um hormônio, um produto de diversos tipos de células do organismo e que tem várias funções. No caso da tuberculose, especificamente, ela tem um papel muito importante que começamos cada vez mais a entender.

Nós entendemos que, para a pessoa se proteger da tuberculose, ela tem que ter certo tipo de citocina que aumenta a capacidade do macrófago de matar a micobactéria. Mas começamos a compreender também que existem certas citocinas que, ao invés de ajudar o macrófago a matar a micobactéria, atrapalham, ao desativar esse macrófago. Existem citocinas de perfil Th1 e Th2. Em resumo, o perfil Th1 é composto por aquelas citocinas, como interferon-g e interleucina-2 (IL-2), que ativam os mecanismos microbicidas do macrófago, e as de perfil Th2 são as citocinas tipo interleucina-4, 5 e 10, que desativam o macrófago. Dependendo de para onde predominar a balança entre esses tipos de citocinas, haverá a manifestação da tuberculose ou vai-se impedir a infecção de progredir. A nossa hipótese é de que na tuberculose doença existe uma predominância dessas citocinas desativadoras, mesmo na presença de citocinas ativadoras. Se por uma constituição genética o indivíduo infectado tiver maior tendência a produzir maior quantidade de interleucina-10, por exemplo, ele vai ter mais chance de desenvolver tuberculose. Assim, os polimorfismos genéticos de certas populações que facilitariam a maior produção de IL-10 em face de uma agressão infecciosa poderão ser usados no futuro como marcadores genéticos para se estudar grupos com maior ou menor risco de desenvolver tuberculose ativa. Existem maneiras de se identificar grupos populacionais que são grandes produtores ou baixos produtores de IL-10: se se identifica uma pessoa que é contaminada por micobactéria e que é um grande produtor de IL-10, essa pessoa tem que ser tratada com mais cuidado. Tem que tomar, por exemplo, um inibidor de IL-10.

Trabalhos recentes de nosso grupo, ainda não publicados, liderados pelo Dr. Adalberto Rezende, demonstraram que certos haplótipos favorecedores da produção de IL-10 estão estatisticamente associados com maior adoecimento por TB. Trabalhos experimentais em camundongos que foram geneticamente alterados para expressar exageradamente IL-10 mostram que, se os animais receberem uma dose sub-letal de micobactéria, eles morrem, enquanto os do tipo selvagem, que produzem quantidade menor de IL-10, sobrevivem, o que mostra que produção exagerada de IL-10 diminui a chance de sobreviver à micobactéria(2).

Estudos de nosso grupo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em colaboração com a Universidade de Cornell, de Nova York, que visam a avaliar células retiradas das áreas pulmonares afetadas por tuberculose, foram desenvolvidos nos últimos dez anos e publicados. O objetivo é verificar se existe uma expressão aumentada ou diminuída de IL-10 ou de outras citocinas com ação semelhante, que poderiam gerar essa disfunção imunológica. Nossos trabalhos abrangem pacientes com tuberculose pulmonar que são submetidos a lavado broncoalveolar para se fazer diagnóstico da tuberculose, porque eles não têm escarro, ou têm escarro negativo para micobactéria. Tira-se esse líquido, centrifuga-se, guarda-se o sobrenadante e trabalha-se com as células. Pode-se estudar células inteiras através de citocentrifugados ou pode-se lisar a célula e extrair o material genético, para tentar entender se há expressão exagerada de certas citocinas. Em um dos primeiros estudos(3), verificamos o fenótipo dos linfócitos T e macrófagos, e achamos que pacientes com tuberculose e HIV apresentam também uma disfunção na população de macrófagos. Em geral, pensamos que na infecção pelo HIV existem basicamente defeitos do linfócito T CD4+, mas no paciente com tuberculose e HIV, o próprio macrófago torna-se incapaz de gerar defesa contra a micobactéria. Células epitelióides identificadas por anticorpo monoclonal específico estão muito aumentadas no lavado broncoalveolar de pacientes imunocompetentes, porém muito diminuídas em pacientes com HIV. Estudamos também a expressão de certas moléculas no macrófago, como o antígeno leucocitário humano - região D (HLA-DR): é a molécula que apresenta antígeno para o linfócito-T. Quando essa molécula se encontra aumentada, significa que se tem maior capacidade de apresentar antígenos. Na tuberculose ela está muito aumentada em relação aos controles e na tuberculose com HIV ela está muito diminuída, mostrando um defeito do próprio macrófago. Estudamos também uma outra molécula que é muito importante na defesa contra a micobactéria, que é o óxido nítrico e a enzima indutora do óxido nítrico, chamada sintase indutora do óxido nítrico, ou NOS2. Mostramos que na população de pacientes com tuberculose existe um aumento da expressão da enzima(4). Então nós já mostramos que na tuberculose existe um aumento de HLA-DR e um aumento dessa enzima NOS2 que teoricamente deveria defender o indivíduo e no entanto ele está doente. Acreditamos que isso se dá porque, mesmo aumentando a expressão dessas armas de defesa, há alguma coisa que está impedindo a proteção. Na nossa hipótese são as tais citocinas desativadoras. Em seguida, estudamos a quantidade de citocinas presente no líquido do lavado broncoalveolar(5). Verificamos que a citocina ativadora da função microbicida do macrófago, o interferon-g , aquela que queremos que esteja aumentada, está de fato aumentada, mas o paciente encontra-se com tuberculose, e se não for tratado, vai morrer, o que demonstra que ela sozinha não está fazendo efeito. Provavelmente a explicação é que no mesmo material existe uma co-expressão de citocinas desativadoras, que tem uma importante ação fisiológica na contenção das reações imunes quando cessa o motivo para tal reação. São as citocinas anti-inflamatórias, importantes para interromper o processo inflamatório. O problema é que aparentemente elas estão aumentadas no momento em que elas não deveriam estar. Estudos recentes do nosso grupo demonstraram esta co-expressão de citocinas ativadoras e desativadoras. Além disso, há ainda o aumento de uma outra citocina desativadora, chamada TGF-b . Demonstramos que não apenas a citocina está muito aumentada em pacientes com tuberculose, como também estão aumentados os receptores celulares necessários para a ação do TGF-b (6).

Esse desequilíbrio ajuda a infecção a se estabelecer e a progredir. Já falamos acima das alterações genéticas que facilitariam a produção exagerada de certas citocinas, como a IL-10, em um momento em que sua presença no foco de infecção pode desequilibrar totalmente a resposta imune protetora. Existem evidências crescentes de que o próprio Mtb secreta algumas proteínas em sua fase de crescimento, capazes de interferir fortemente na resposta imune, manipulando-a, por assim dizer, a seu favor. Estudos de nosso grupo com os colaboradores da Universidade de Cornell, recentemente publicados, demonstram que uma destas proteínas, chamada CFP32, é expressa somente por membros do complexo Mtb, não sendo expressa por outras espécies de micobactérias. Estudos in vitro e ex vivo mostraram que essa proteína é capaz de induzir fortemente a produção de IL-10, que, como visto acima, facilita a progressão da infecção(7). A presença desse gene na micobactéria tem servido para o estabelecimento de novos métodos diagnósticos e para a sub-especiação do gênero, com implicações para estudos principalmente de epidemiologia molecular(8).

Papel das células dendríticas

Outro tipo celular que vem merecendo cada vez mais estudos é a célula dendrítica, pela sua capacidade de induzir a resposta imune protetora contra a tuberculose, que pode durar muito tempo. A presença de células deste tipo, juntamente com outros tipos de células de linhagem monocítico-macrofágica, em número suficiente, é essencial para o estabelecimento do granuloma, que configura ao mesmo tempo uma proteção do hospedeiro contra a disseminação da infecção e uma proteção do microorganismo contra a sua eliminação(9). A densidade da população celular e a presença de certas citocinas, como os interferons do tipo I, são essenciais para a formação do granuloma e a diminuição da população bacteriana(10). Estudos recentes do nosso grupo, em associação com pesquisadores do Institut Pasteur de Paris, demonstraram a importância desses mecanismos no estabelecimento de uma resposta protetora contra a tuberculose(11;12).

Em conclusão, o estudo dos mecanismos pelos quais o hospedeiro se defende contra a infecção pelo Mtb, e dos mecanismos potenciais pelos quais a micobactéria manipula o sistema imune do hospedeiro a seu favor poderão trazer nova luz para a patogenia da tuberculose, que resulte em melhores vacinas, novos alvos terapêuticos e meios de diagnóstico mais precisos para o combate a esta terrível moléstia.

6. Bonecini Almeida MG, HoJL, Boéchat N, Huard RC, Chitale S, Doo H, et al. Down-Modulation of Lung Immune Responses by Interleukin-10 and Transforming Growth Factor-b (TGF-b ) and Analysis of TGF-b Receptors I and II in Active Tuberculosis. Infect Immun 2004; 72:2628-34.

Recebido para publicação,em 10/5/04.

Aprovado, após revisão, em 28/5/04.

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  • Endereço para corespondência
    Unidade de Pesquisa em Tuberculose
    Av. Brigadeiro Trompovski, s/n. Prédio do HUCFF/UFRJ, sala 01D56, 1º andar
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    Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Weill Cornell Medical College, Université de Paris VI.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Aceito
      28 Maio 2004
    • Recebido
      10 Maio 2004
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