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Risco de infecção pelo Mycobacterium tuberculosis entre alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumos

INTRODUÇÃO: Até o momento raros estudos prospectivos na América Latina demonstraram que estudantes de Medicina estão sob mais alto risco de apresentar conversão tuberculínica do que a população em geral (1,3%). OBJETIVO: Descrever a incidência acumulada de conversão tuberculínica e o risco relativo para tuberculose infecção entre estudante de Medicina. MÉTODO: Em 1.998, uma coorte prospectiva foi iniciada entre estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, negativos ao teste tuberculínico (<10 mm) realizado em dois tempos no ano anterior. Esses estudantes foram re-testados no ano seguinte ao primeiro teste. Os estudantes têm dois níveis de treinamento: períodos básicos (sem contato com pacientes) e períodos profissionais (com contato com pacientes). Foi usado um questionário padronizado para avaliação das características sócio-demográficas, vacinação pelo BCG (remota e recente) e exposição potencial ao Mycobacterium tuberculosis. Completaram o estudo 72% dos estudantes (414/575). RESULTADOS: Dos 414 participantes do estudo, 16 (3,9%, IC 95% 1,06% a 12,1%) apresentaram conversão tuberculínica, ou seja, a incidência acumulada de conversão foi de 3,9%. Osalunos dos períodos profissionais apresentaram um risco quatro vezes maior de infecção pelo Mycobacterium tuberculosis quando comparados com os dos períodos básicos. CONCLUSÃO: É alta a taxa de conversão tuberculínica entre alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

PPD; Tuberculose-infecção; Conversão tuberculínica; Estudantes de medicina


INTRODUCTION: There have been few Latin American studies investigating the fact that the rate of tuberculosis (TB) infection among medical students is higher than the 1.3% rate seen in the population at large. OBJECTIVE: To describe the cumulative incidence and the relative risk for TB infection among medical students. METHOD: In 1998, a prospective cohort study was conducted involving medical students at the Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Medicina who tested negative (induration <10 mm) on the tuberculin skin test (TST). Students were tested using the two-step TST method and were retested one year later. The students tested were at two different stages in their training: pre-clinical (no contact with patients) and final year (contact with patients). Information about demographic characteristics, BCG vaccination history, and instances of potential exposure to Mycobacterium tuberculosis were obtained using a standardized questionnaire. Of the 575 students initially enrolled, 72% (414) completed the study. RESULTS: The TSTs of 16 (3.9%) of the 414 students converted, representing a cumulative incidence of 3.9% (95% confidence interval = 1.06 to 12.1). Senior medical students were at an almost fourfold higher risk for M. tuberculosis infection than were those in pre-clinical training. CONCLUSION: The risk for TST conversion is very high in this population.

PPD; Tuberculosis-infection; Tuberculin conversion; Medical students


ARTIGO ORIGINAL

Risco de infecção pelo Mycobacterium tuberculosis entre alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro* * Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.

Vania Maria Carneiro da Silva; Antônio José Ledo Alves da Cunha; Afrânio Lineu Kritski

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Vania M. C. Silva Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. 11° andar – Departamento de Clínica Médica Av. Brig. Trompowsky s/n° Rio de Janeiro, Brasil. CEP: 21941-590 Tel: 55-21-2293 3703 E-mail: vmcsilva@hotmail.com

RESUMO

INTRODUÇÃO: Até o momento raros estudos prospectivos na América Latina demonstraram que estudantes de Medicina estão sob mais alto risco de apresentar conversão tuberculínica do que a população em geral (1,3%).

OBJETIVO: Descrever a incidência acumulada de conversão tuberculínica e o risco relativo para tuberculose infecção entre estudante de Medicina.

MÉTODO: Em 1.998, uma coorte prospectiva foi iniciada entre estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, negativos ao teste tuberculínico (<10 mm) realizado em dois tempos no ano anterior. Esses estudantes foram re-testados no ano seguinte ao primeiro teste. Os estudantes têm dois níveis de treinamento: períodos básicos (sem contato com pacientes) e períodos profissionais (com contato com pacientes). Foi usado um questionário padronizado para avaliação das características sócio-demográficas, vacinação pelo BCG (remota e recente) e exposição potencial ao Mycobacterium tuberculosis. Completaram o estudo 72% dos estudantes (414/575).

RESULTADOS: Dos 414 participantes do estudo, 16 (3,9%, IC 95% 1,06% a 12,1%) apresentaram conversão tuberculínica, ou seja, a incidência acumulada de conversão foi de 3,9%. Osalunos dos períodos profissionais apresentaram um risco quatro vezes maior de infecção pelo Mycobacterium tuberculosis quando comparados com os dos períodos básicos.

CONCLUSÃO: É alta a taxa de conversão tuberculínica entre alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Descritores: PPD. Tuberculose-infecção. Conversão tuberculínica. Estudantes de medicina

Siglas e abreviaturas utilizadas neste trabalho:

AIDS - Síndrome da imunodeficiência adquirida

ATS - American Thoracic Society

FMUFRJ - Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro

EM - Estudantes de Medicina

TB - Tuberculose

HUCFF - Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

TT - Teste tuberculínico

CDC - Centers for Disease Control and Prevention

INTRODUÇÃO

Na era pré-quimioterapia, Myers et al.(1) demonstraram que ao final do curso médico 60% dos alunos da Escola de Medicina de Mineápolis, EUA, inicialmente não reatores ao teste tuberculínico (TT), tornaram-se reatores ao se graduarem. Esse quadro mudou drasticamente em 1.966, quando apenas dois alunos, entre 138, apresentaram conversão tuberculínica. (2)

Na década de 1.990 do século passado, com o recrudescimento da tuberculose (TB) nos países desenvolvidos, Fagan e Poland(3), através do uso de um questionário dirigido às escolas médicas, nos EUA, descreveram uma taxa de conversão anual de 2,0% entre estudantes de Medicina (EM). Entretanto, algumas escolas médicas reportaram até 10% de conversão. No mesmo ano, Nolan(4) considerou a taxa de 5% inaceitável para esta população especial.

O Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos hospitais gerais de referência para tuberculose e para a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) na cidade do Rio de Janeiro (RJ). É nesse hospital que os EM da Faculdade Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FMUFRJ) realizam seus treinamentos clínicos do terceiro ao décimo segundo período do curso médico.

Em 1.997 foi realizado um estudo transversal entre EM da FMUFRJ no qual os autores verificaram uma prevalência de infecção por Mycobacterium tuberculosis de 3%, 7% e 16% entre alunos de períodos básicos, intermediários e do internato, respectivamente(5). Além de gerar a hipótese de poder estar ocorrendo conversão tuberculínica no decorrer dos períodos, os autores verificaram que 92% dos EM eram não reatores ou fraco reatores ao TT. Com a finalidade de confirmar a hipótese de conversão tuberculínica, foi desenhado este estudo seguindo os alunos não reatores ou fraco reatores, por um ano, e realizando um novo TT.

MÉTODO

Uma coorte prospectiva foi iniciada em janeiro de 1.998 e concluída em dezembro de 1.999, composta de EM que se apresentaram não reatores ou fraco reatores ao TT, quando testados em dois tempos, no ano anterior. O grupo de expostos foi formado pelos alunos dos períodos profissionais do HUCFF (exposição com base no número de horas semanais de exposição de acordo com o currículo). O grupo de não expostos foi composto pelos alunos dos períodos básicos do Centro de Ciências da Saúde, onde os alunos não têm contato com pacientes, no ano anterior ao segundo TT.

O HUCFF oferece assistência a uma média de 300 pacientes tuberculosos por ano. Entre 1.994 e 1.997, 32 (8,7%) profissionais de saúde dos 368 seguidos longitudinalmente, apresentaram conversão tuberculínica.(6) Os EM dos períodos profissionais exercem suas atividades práticas nas enfermarias, no serviço de emergência e nos ambulatórios do HUCFF em sistema de rodízio.

Anualmente, 200 alunos são admitidos no curso médico da FMUFRJ e o curso tem duração de seis anos. Os EM foram classificados no estudo como pertencentes a períodos básicos (três semestres de estudo) e a períodos profissionais (quatro a doze semestres de estudo com 20 a 40 horas de contato com pacientes por semana). O estudo foi aprovado pelo comitê de ética do HUCFF e FMUFRJ. Os EM assinaram termo de consentimento livre e esclarecido e completaram um questionário padronizado que avaliava características sócio-demográficas. Na entrevista era verificada a presença de cicatriz de vacinação pelo BCG.

De janeiro de 1.998 a dezembro de 1.999 os EM que apresentaram TT não reator ou fraco reator foram contactados para realização de novo TT. Um profissional treinado pelo Ministério da Saúde aplicou o TT utilizando a técnica de Mantoux. O TT foi realizado de acordo com as normas do Ministério da Saúde, que forneceu o PPD. A conversão (ou viragem) tuberculínica foi definida como um aumento >10 mm de enduração comparada com a leitura do teste realizada em dois tempos no ano anterior.(7)

Todas os radiogramas dos alunos que apresentaram conversão ao TT foram normais. A vacinação pelo BCG foi avaliada pela presença de cicatriz vacinal no braço direito e uma renda familiar anual de dez mil reais (isenção de imposto de renda) foi considerada como baixa para esta população.

No estudo transversal realizado no ano anterior, a diferença de proporção de infectados entre os alunos dos períodos profissionais e básicos foi de 8% (IC 95% 2,5% a 11,2%). O número amostral foi calculado para que fosse encontrada a referida diferença entre as incidências acumuladas dos dois grupos.

Foi organizada uma base de dados através do programa Epi-Info versão 6.0. O programa SAS (SAS Institute Cary, NC) foi usado para todas as análises estatísticas. Para a análise das variáveis categóricas foi utilizado o teste do qui-quadrado e o teste exato de Fisher. Para análise de tendência linear foi usado o teste do qui-quadrado e o nível de significância estatítica foi de 0,05% em todo o estudo.(8) As medidas de freqüência foram a incidência acumulada e a taxa de incidência.9 Para se viabilizar o uso da taxa de incidência foi usado o número de horas de exposição segundo o currículo da FMUFRJ. Foram computados os riscos relativos e foram construídos intervalos de confiança de 95%.(9)

RESULTADOS

No total, 618 alunos participaram do estudo transversal e 575 foram elegíveis para a realização de um novo teste. Foram excluídos 7% de forte reatores ao TT, e houve perda de seguimento de 28% devida ao fato de os alunos se graduarem ou não comparecerem à leitura do TT, ou ainda por não responderem às duas ligações telefônicas de último rastreio para leitura do TT dos faltantes (Tabela 1). Três quartos dos alunos perdidos para seguimento tinham idade de 21 anos ou mais e renda mais alta. Estas proprorções são significantemente diferentes da população final (Tabela 2).

Como demonstrado na Tabela 3, a população final do estudo foi de 414 alunos (que eram mais jovens), equilibrada quanto à proporção entre homens e mulheres, sendo que a maioria pertencia aos períodos profissionais da FMUFRJ. Três quartos da população estudada eram portadores de cicatriz vacinal pelo BCG e apenas 9% foram vacinados pelo BCG no ano do estudo. Nenhum aluno que tenha sido vacinado no ano precedente ao estudo apresentou conversão tuberculínica para os critérios adotados. Um terço da população final do estudo referiu renda anual inferior ou igual a dez mil reais. Dos 414 alunos testados, 190 (45%) encontravam-se nos períodos básicos e 224 (54%) nos períodos profissionais. Dentre os últimos, os alunos receberam os dois testes no ano anterior e o TT do presente estudo como se segue: 55 (13,3%) alunos no início do sexto período; 61 (14,7%) no início do nono período; 33 (8,0%) no início do décimo; 23 (5,6%) no início do décimo primeiro e 52 (12,5%) no início do décimo segundo período. Os alunos do período básico receberam os dois testes no início do primeiro ano e o TT no início do terceiro período.

A incidência acumulada de conversão tuberculínica em toda a população do estudo foi de 3,9%. Já a incidência acumulada entre alunos de períodos profissionais foi de 5,8%, e de 1,6% entre os alunos de períodos básicos (Tabela 4). Houve, portanto, uma diferença significativa de 4% entre os dois grupos (p = 0,0260). A proporção de alunos conversores demonstrou uma tendência que foi proporcional ao período em que o aluno se encontrava, de acordo com o teste do qui-quadrado para tendência linear (Tabela 4). Entretanto, a conversão entre alunos do início dos períodos profissionais não apresentou uma diferença significativa quando comparados com alunos do último período (p = 0,7373).

A taxa de conversão tuberculínica por 1.000 alunos-ano foi quatro vezes superior entre alunos dos períodos profissionais, comparados aos alunos dos períodos básicos (Tabela 4). O risco relativo de conversão tuberculínica entre os alunos do último período foi seis vezes superior ao risco entre os do período básico. A taxa de conversão por 100.000 alunos-hora, em cada período, também pode ser analisada na Tabela 4. Da mesma forma, não houve diferença significativa entre o sexto e o último períodos profissionais.

DISCUSSÃO

Este estudo não rejeitou a hipótese de conversão tuberculínica gerada pelo estudo transversal(5), ou seja, um ano mais tarde, os alunos não-infectados pelo bacilo da TB foram re-testados e ocorreu conversão tuberculínica. A incidência acumulada entre os alunos dos períodos profissionais foi de 5,8% e entre os alunos de períodos básicos de apenas 1,6%, gerando uma diferença de 4,2%, dentro do limite esperado de conversão.

Entre os pontos favoráveis deste estudo, pode-se citar o grande número de participantes e o fato de os alunos terem sido realmente testados. Não se trata, portanto, de base de dados, o que evita o viés de memória. O estudo, contrariamente a outros citados na literatura,(10,11) foi composto de apropriado grupo-controle com similar exposição não ocupacional e foi realizado sob a condição de os alunos terem sido submetidos a dois TT previamente. Além disso, este estudo foi planejado para se confirmar viragem tuberculínica entre alunos, porque se trata de um grupo de pessoas mais vulneráveis ao adoecimento por TB, dada a faixa etária em que se encontram.(12) Os testes foram todos aplicados por um profissional de saúde e a leitura realizada por um outro. Dessa forma, não ocorreu o viés da variabilidade entre os observadores, o que aumenta a confiabilidade dos resultados. Através da observação do currículo da FMUFRJ, pode-se estimar a taxa de conversão por alunos-hora de exposição, uma medida esperada, em se tratando de estudo de incidência.

Entretanto, este estudo também apresentou limitações. Houve perda de seguimentode 28% dos alunos elegíveis. Os alunos mais velhos foram perdidos para seguimento, em sua maioria, porque terminaram o curso de graduação. Com isso, os resultados aqui apresentados podem estar subestimados para os alunos dos períodos profissionais.

A análise da taxa de conversão foi prejudicada porque nem todos os períodos foram representados no estudo. Dentre os representados, o número de estudantes por estrato foi reduzido, o que prejudicou comparações entre os períodos que pudessem ser significativas sob o ponto de vista estatístico. Como se tratou de uma coorte na qual os alunos foram convidados a tomar parte no estudo, certamente o viés de auto-seleção concorreu para subestimar os resultados aqui apresentados. Os alunos com receio de terem sofrido conversão tuberculínica podem ter preferido permanecer anônimos e não se apresentar um ano depois, dado o desconforto da indicação do tratamento preventivo e sua conseqüente recusa.

Finalmente, os resultados ainda podem estar enviesados em direção à hipótese nula, devido ao fato de o estudo estar em andamento desde 1.997 (estudo transversal) e, assim, ter contribuído para uma maior conscientização da população envolvida. Os alunos conscientes do risco podem ter feito uso de máscaras especiais (respiradores), ou ter evitado salas de exames respiratórios, assim como os isolamentos. Isto configura um viés de participação, que, por sua vez, é mais freqüentemente observado em estudos de intervenção.(13)

Como os alunos realizaram TT em dois tempos no ano anterior, os resultados aqui apresentados não se referem ao fenômeno booster. (14,15)

Conforme demonstrado no estudo único e pioneiro realizado por Ruffino Netto et al.(16), 64,8% dos alunos vacinados pelo BCG permaneceram não reatores dois anos após a vacinação. Os alunos do presente estudo que foram vacinados pelo BCG no ano do estudo não apresentaram alergia tuberculínica. Entretanto, estudos envolvendo diferentes tipos de vacina, populações e grupos etários têm demonstrado que 90% dos vacinados pelo BCG vão apresentar reações tuberculínicas >10 mm em diâmetro, dentro de oito a doze semanas após a vacinação.(17) Também corroborando os resultados do presente estudo, assim como os de Ruffino Netto(16), em um trabalho realizado entre escolares dinamarqueses, os autores mostraram que crianças vacinadas por uma entre as dez cepas de BCG não apresentaram reações tuberculínicas significativas oito semanas após a vacinação.(18) Ainda assim, deve-se ponderar, neste grupo de alunos, a possibilidade de erro de leitura do TT. O presente estudo reforça o uso do TT nesta população majoritariamente vacinada na infância.

A taxa de conversão tuberculínica foi elevada entre os alunos da FMUFRJ. Os resultados aqui apresentados foram superiores aos resultados da maioria dos estudos de conversão tuberculínica entre profissionais de saúde realizados nos EUA. Há 20 anos, esses estudos foram realizados em locais de baixa prevalência de TB, com taxa de conversão ao TT de 0,11%(19), ou, em regiões de elevada prevalência de TB com taxa de conversão de 1,9% ou 2,3%.(20) As diferenças de resultados do presente estudo, quando comparados com as taxas de locais com elevada prevalência nos EUA, devem-se tanto às diferenças de incidência de TB entre os dois países, quanto, provavelmente, ao fato de que o HUCFF não seguia, naquela época, as medidas de biossegurança, nem de abordagem à infecção latente, sugeridas pelos CDC (Centers for Disease Control and Prevention )(21) e ATS (American Thoracic Society).(22)

Na revisão da literatura, foram encontrados poucos estudos prospectivos realizados na América Latina que demonstraram taxas de conversão tuberculínica entre alunos ou profissionais de saúde. No presente estudo, os alunos do internato (12° período) apresentaram taxas de conversão muito semelhantes ao encontrado no estudo prospectivo de Muzy de Souza,(6) realizado entre profissionais de saúde (8,7%), e por Costa24 entre os alunos do internato da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (8,0%). Entretanto, este último não teve um grupo controle. No Hospital Universitário Gaffreé Guinle, Ferreira(24),apesar de ter acompanhado prospectivamente alunos de períodos básicos e profissionais, observou 4,2% de conversão tuberculínica. Infelizmente, neste último estudo houve uma perda de seguimento de 70% dos alunos, o que comprometeu a validade dos resultados.

Como observado por Barret-Connor(25) e Randa e Rabinovich(11), alunos em períodos profissionais (teoricamente com maior número de horas de exposição aoM. tuberculosis) apresentaram maior risco de conversão tuberculínica. Neste estudo, os alunos do sexto período apresentaram maior taxa de conversão do que os alunos de períodos com número teórico superior de horas de exposição. Isto pode ter sido um achado aleatório, ou ainda, ser devido ao fato de que as teóricas vinte horas em que os alunos exercem atividades práticas no hospital, durante o quinto período, podem representar, em realidade, um número superior de horas de exposição. Trata-se de um período com treinamento intenso em enfermarias e demais áreas assistenciais onde os alunos praticam semiologia, anamnese e exercício diagnóstico. Estes alunos são incentivados a freqüentar as áreas de assistência em horário extra-curricular. Conseqüentemente, o uso do currículo pode ter gerado classificação errônea, pois o aluno pode estar mais exposto do que o teoricamente assumido naquele período.

Neste estudo foi usado um critério para conversão tuberculínica: a obtenção de uma enduração >10 mm. Esse critério é superior ao usualmente recomendado quando se avalia indivíduos sob risco de infecção pelo M. tuberculosis.23 Embora tenha determinado perda em sensibilidade para avaliação de conversão tuberculínica, ele representou uma estimativa mais específica de infecção. Este critério foi particularmente importante, considerando-se o fato de que o Brasil tem alta cobertura vacinal pelo BCG, e que a re-vacinação tem sido recomendada pelo Ministério da Saúde para os indivíduos sob risco de infecção desde que não reatores ao TT.(26) Há também a possibilidade de haver um percentual desconhecido de alunos infectados por micobactérias atípicas. Sugere-se que reações inespecíficas sejam mais prevalentes em climas tropicais e sub-tropicais.(27) No estudo de Madeira e Gontijo(28), entre 226 escolares do Rio de Janeiro, 12% apresentaram reações cutâneas ao PPD-G210, que variaram entre 5 e 9 mm. No mesmo estudo, apenas 3% dos alunos apresentaram reações >10 mm. Dessa forma, parece que o ponto de corte escolhido diminuiu o risco de se indicar profilaxia antiTB para alunos que podem ter sido infectados por micobactéria atípica e apresentar reação cruzada ao TT. Em recente estudo realizado nos EUA, foi sugerida uma revisão quanto a esse ponto de corte em áreas de alta prevalência de infecção por micobactérias atípicas.(28) Os autores sugeriram o uso de 15 mm porque no referido estudo reações entre 5 e 14 mm foram atribuídas à infecção por micobactérias atípicas. Como os estudos de Madeira e Gontijo(28) foram realizados na década de 1.970, e entre escolares, um novo estudo nessa população especial de EM auxiliaria na elucidação quanto às questões referentes ao melhor ponto de corte.

A taxa de conversão anual de 3,9% encontrada neste estudo situa-se dentro da faixa mencionada por Fagan e Poland.(3) Apesar das diferenças epidemiológicas entre Brasil e EUA, os achados deste estudo assemelham-se aos de alguns hospitais norte-americanos antes da adoção de medidas de biossegurança.

Na última década, a literatura norte-americana tem demonstrado diminuição na taxa de conversão tuberculínica com a adoção de medidas de controle de transmissão nosocomial de TB.(30) Essas medidas foram normatizadas, em 1.994, pelos CDC(21), em três níveis: administrativas, de engenharia e de proteção respiratória pessoal (uso de respiradores tipo NIOSH95). Os resultados obtidos nos EUA, com a adoção, pelo menos, das medidas administrativas, têm se mostrado eficazes, com redução nas taxas de conversão tuberculínica(30).

Entre as medidas administrativas, o inquérito tuberculínico já vem sendo re-instituído nos EUA, visando não só aos profissionais de saúde, como também aos EM, desde o início da década de 1.990.32 Teoricamente, os alunos do HUCFF, por estarem menos expostos a outros hospitais gerais, podem representar um marcador de infecção hospitalar por TB ainda mais eficaz, na análise do impacto das medidas administrativas adotadas para controlar a infecção pelo Mycobacterium tuberculosis, do que os próprios profissionais de saúde, bastando para isso o seguimento anual dos mesmos.

Este estudo demonstrou a necessidade de controle de transmissão nosocomial por TB. Não surpreendentemente, e acima de tudo, o estudo reflete a realidade de um país onde a tuberculose é endêmica, com uma taxa de incidênciaanual estimada de 54,7 por 100.000 pessoas.(32)

Resta-nos acreditar que, com os principais avanços tecnológicos e o maior interesse na investigação científica em tuberculose, soluções para o controle da TB infecção, que passam pelo controle da TB doença, possam estar bem mais próximas do que há uma década.

Recebido para publicação, em 9/1/04. Aprovado, após revisão, em 13/4/04.

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  • Endereço para correspondência
    Vania M. C. Silva
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    Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Aceito
      13 Abr 2004
    • Recebido
      09 Jan 2004
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