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Pneumonia lipoídica associada à forma digestiva da doença de Chagas

Resumos

Mulher de 50 anos com megaesôfago e megacólon chagásico apresentou quadro clínico de tosse seca, dor torácica e dispnéia leves. O raio X de tórax mostrou opacidade do tipo alveolar bilateral sugestivo de pneumonia. Após biópsia a céu aberto chegou-se ao diagnóstico de pneumonia lipoídica. A doença foi causada pelo uso crônico de laxantes à base de óleo mineral, utilizados nos últimos três anos. Os autores discutem a associação da forma digestiva da doença de Chagas com pneumonia lipoídica, e apresentam recomendações sobre o uso de produtos que contenham óleo mineral.

Pneumonia lipóidica; Pneumonia aspirativa; Acalásia esofágica; Doença de Chagas


A 50-year-old woman with chagasic esophageal achalasia and megacolon presented with nonproductive cough, chest pain and dyspnea. A chest X-ray showed bilateral opacity suggestive of lobar pneumonia. Open lung biopsy revealed lipoid pneumonia resulting from aspiration of mineral oil from a mineral oil-based laxative that the patient had been taking regularly for the last three years. The authors discuss concomitance of chagasic megacolon and esophageal achalasia with lipoid pneumonia and make recommendations regarding the use of mineral oil-based products by these patients.

Pneumonia, aspirtion; Pneumonia, lipid; Esophageal achalasia; Chagas disease


RELATO DE CASO

Pneumonia lipoídica associada à forma digestiva da doença de Chagas* * Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP.

Marcelo Fernando Ranzani; Nilson Sebastião Miranda; Ulisses Frederigue Junior; Sérgio Marrone Ribeiro; Jussara Marcondes Machado

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Departamento de Doenças Tropicais e Diagnóstico por Imagem. Hospital das Clínicas Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP Distrito de Rubião Junior S/Nº CEP 18618-970

RESUMO

Mulher de 50 anos com megaesôfago e megacólon chagásico apresentou quadro clínico de tosse seca, dor torácica e dispnéia leves. O raio X de tórax mostrou opacidade do tipo alveolar bilateral sugestivo de pneumonia. Após biópsia a céu aberto chegou-se ao diagnóstico de pneumonia lipoídica. A doença foi causada pelo uso crônico de laxantes à base de óleo mineral, utilizados nos últimos três anos. Os autores discutem a associação da forma digestiva da doença de Chagas com pneumonia lipoídica, e apresentam recomendações sobre o uso de produtos que contenham óleo mineral.

Descritores: Pneumonia lipóidica/etiologia. Pneumonia aspirativa/etiologia. Acalásia esofágica/patologia. Doença de Chagas/complicações.

INTRODUÇÃO

Os poucos relatos de pneumonia lipoídica da literatura descrevem que essa é uma doença oligossintomática ou totalmente assintomática, sendo descoberta por acaso, em exames radiológicos de rotina.(1-3)

Em nosso meio, pode estar associada ao megacólon chagásico. Nessa doença, observa-se constipação intestinal progressiva, e os pacientes costumam permanecer dias ou até semanas sem evacuar. Por isso quase sempre fazem uso de laxantes ou clisteres, para reduzir o intervalo entre as evacuações, sendo o óleo mineral bastante utilizado para este fim, por ser distribuído gratuitamente pela rede pública de saúde.(4)

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de pneumonia lipoídica, em um paciente com a forma digestiva da doença de Chagas, associada ao uso crônico de óleo mineral.

RELATO DO CASO

Mulher de 50 anos nasceu e morou até os 10 anos em zona rural, em casa de pau-a-pique (casa com paredes de barro). Conheceu o vetor da infecção para a doença de Chagas, o "barbeiro" (triatomíneo: inseto da família Reduviidae, com vários gêneros e dezenas de espécies conhecidas) e não se recorda de ter sido picada pelo mesmo. Sua mãe e uma tia faleceram por doença de Chagas, forma cardíaca.

Há 30 anos, apresentou quadro de suboclusão intestinal, sendo diagnosticado megacólon após laparotomia. Nesta ocasião, a hemaglutinação indireta para Chagas resultou positiva. Permaneceu bem até há 15 anos, quando passou a ficar constipada por períodos progressivamente maiores, de até 10 dias. Desde então, acostumou-se a utilizar laxantes diariamente e enemas, semanalmente.

Há três anos, após período de constipação mais prolongado, quando precisou ser internada para lavagem intestinal, recebeu, por via oral, óleo mineral, prática que manteve após a alta. Com o uso de 40 a 50ml diários dessa substância, a paciente conseguia evacuar a cada 3 ou 4 dias sem necessitar dos enemas. Há quatro meses, passou a apresentar dispnéia aos grandes esforços, dor torácica ventilatório-dependente, leve e esporádica, além de tosse seca, principalmente pela manhã. Foi internada para investigação de doença cardíaca e em radiografia do tórax foi observada opacidade tipo alveolar, de limites mal definidos no segmento posterior do lobo superior direito, lobo inferior direito e opacidade discreta na base esquerda (Figura 1). Nessa ocasião, a paciente não apresentava sinais e sintomas de infecção ou de síndrome consumptivo, comuns em tuberculose e micoses pulmonares. Com isso, foi submetida a uma tomografia computadorizada do tórax que evidenciou imagem em vidro fosco, de limites mal definidos, envolvendo ambos os lobos inferiores, principalmente à direita. Notava-se, também, megaesôfago, com nível hidroaéreo (Figura 2). A predominância de lesões à direita, com a associação do megaesôfago, sugeria aspiração. Já a imagem em vidro fosco revelava processo inflamatório pouco intenso, não compatível com pneumonia supurativa.



A biópsia de congelação de pulmão a céu aberto foi então indicada, demonstrando no histopatológico tabiques alveolares com ectasia linfática e hiperplasia de pneumócitos.

À luz alveolar, foi observada grande quantidade de histiócitos com microvacuolização citoplasmática. Havia, também, infiltrado inflamatório linfocitário nas áreas próximas à superfície pleural. Este quadro histológico indica pneumonia lipoídica (Figura 3). A paciente evoluiu com melhora da dispnéia, após ter deixado de usar óleo mineral. A correção da constipação intestinal tem sido feita por meio de dieta adequada e, quando necessário, enemas.


DISCUSSÃO

A doença de Chagas é causada por um protozoário, o Trypanosoma cruzi. A infecção aguda pode passar despercebida, ou pode determinar doença de intensidade leve ou grave, esta última diagnosticada principalmente em zona endêmica. Sendo a infecção inaparente mais freqüente, esses indivíduos podem evoluir lenta e gradativamente para as formas crônicas da doença, em que se manifestam alterações cardíacas ou digestivas. A forma digestiva manifesta-se como disfagia, quando há megaesôfago e como constipação intestinal grave, na presença de megacólon.(4-6)

O fenômeno patogênico básico que determina a doença digestiva é a desenervação intramural dos plexos do sistema nervoso autonômo mioentérico, especialmente dos parassimpáticos.(7)

A colopatia crônica chagásica é uma alteração freqüente no Brasil, especialmente nos mais idosos, e leva à constipação intestinal progressiva, que se intercala com períodos de diarréia. Mais tardiamente, quando o megacólon está instalado, os pacientes permanecem longos períodos sem evacuar, precisando do auxílio de laxantes ou clisteres.(4)

A esofagopatia chagásica, outra alteração da forma digestiva, é também freqüente, principalmente após a segunda década de vida, manifestando-se fundamentalmente como disfagia, especialmente para alimentos mais secos, duros e frios. Esses pacientes costumam ingerir grandes quantidades de líquido às refeições, para facilitar a deglutição e melhorar os sintomas.(4)

À medida que a disfunção esofágica progride, há acúmulo de material ingerido na sua porção superior, podendo ocorrer aspiração desse conteúdo. Este quadro é mais comum nos indivíduos com perda ou supressão do reflexo da tosse, em conseqüência aos distúrbios neuromusculares, ou ao uso de drogas e sedativos. Nessas ocasiões, instala-se a pneumonia aspirativa.(8-10)

O óleo mineral freqüentemente inibe as respostas protetoras das vias aéreas, como o fechamento da glote e a tosse, e, ainda, é capaz de resistir ao transporte mucociliar. Com isso, sua aspiração pode ser imperceptível, levando ao quadro radiológico que se pode confundir com pneumonia. Essa substância é relativamente inerte e não pode ser metabolizada por enzimas teciduais. Ela consiste de uma mistura de hidrocarbonetos de cadeias longas e saturadas, obtidas do petróleo. Quando aspirado, o óleo mineral torna-se emulsificado e aparece como lipídio livre em gotas ou vacúolos no citoplasma de macrófagos. Desenvolve-se, então, uma área de acúmulo alveolar e intersticial de macrófagos repletos de lipídios com infiltrado linfoplasmocitário ao seu redor. Com o tempo, organiza-se em fibrose, e células gigantes cheias de óleo rodeiam o local, formando uma lesão que é chamada de "parafinoma". Este tipo de lesão, em exames de imagem, pode levar ao diagnóstico de neoplasia de pulmão. Entretanto, a aspiração do óleo mineral pode acarretar achados radiológicos e tomográficos variados. Os achados radiológicos mais comumente observados na pneumonia lipoídica são: opacidades em vidro-fosco, anormalidades intersticiais e a consolidação pulmonar, que podem ser encontrados de forma isolada, ou associados num mesmo paciente.(2,3,11,12)

Pela possibilidade dessas complicações, recomenda-se que pessoas com risco de broncoaspiração evitem utilizar-se do óleo mineral. Outra recomendação importante é a de que o óleo mineral seja apenas prescrito por períodos curtos, menores que uma semana, pois, com o uso crônico, o risco de aspiração torna-se maior. Os autores sugerem que, no Brasil, se evite prescrever óleo mineral para indivíduos com megacólon chagásico, pelo risco de o uso, nesses doentes, tornar-se crônico. Esse alerta se torna mais importante para os casos em que, ao quadro intestinal, se associa o megaesôfago chagásico.(13,14

Recebido para publicação, em 17/8/03. Aprovado, após revisão, em 20/11/03.

  • 1. Bandla HPR, Davis SH, Hopkins NE. Lipoid pneumonia: a silent complication of mineral oil aspiration. Pediatrics. 1999;103:19.
  • 2. Cox JE, Choplin RH, Chiles C. Case report. Chemical-shift MRI of exogenous lipoid pneumonia. J Comput Assit Tomogr. 1996;20:465-7.
  • 3. Spickard A III, Hirschmann JV. Exogenous lipoid pneumonia. Arch Intern Med. 1994;154:686-92.
  • 4. Ferreira MS, Lopes ER, Chapadeiro E, Dias JCP, Ostermayer AL. Doença de Chagas. In: Veronesi R, Foccacia R, editores. Tratado de infectologia. São Paulo: Atheneu; 1996. p.1175-213.
  • 5. Chagas C. Nova entidade mórbida no homem. Resumo geral de estudos etiológicos e clínicos. Mem Inst Oswaldo Cruz. 1911;3:219-75.
  • 6. Rezende JM, Moreira H. Forma digestiva da doença de Chagas. In: Brener Z, Andrade ZA, Barral-Netto M. Trypanosoma cruzi e doença de Chagas. 2a ed. Rio de Janeiro: Guanabara-koogan; 2000. p.297-343
  • 7. Lopes ER, Chapadeiro E. Anatomia patológica da doença de Chagas humana. In: Dias JCP, Coura JR. Clínica e terapêutica da doença de Chagas, uma abordagem prática para o clínico geral. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p.67-84.
  • 8. Gimenez A, Franquet T, Erasmus JJ, Martinez S, Estrada P. Thoracic complications of esophageal disorders. Radiographics. 2002;22:247-58.
  • 9. Kobzik L. O pulmão. In: Cotran RS, Kumar V, Collins T. Robins, patologia estrutural e funcional. 6a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2000. p.626-79.
  • 10. Berg BW, Saenger JS. Exogenous lipoid pneumonia. N Engl J Med. 1998;338:512.
  • 11. Lee JS, Im JG, Song KS, Seo JB, Lim TH. Exogenous lipoid pneumonia: high-resolution CT findings. Eur Radiol. 1999;9: 287-91.
  • 12. Giménez A, Franquet T, Prats R, Estrada P, Villalba F, Bagué S. Unsual primary lung tumors: a radiologic pathologic overview. Radiographics. 2002;22:601-19
  • 13. Langdon DE, Bowen DL. A risk of mineral oil. N Engl J Med. 1998;339:1947-8.
  • 14. Bowen DL. A spokesperson for the food and drug administration comments. N Engl J Med. 1998;339:1947-8.
  • Endereço para correspondência
    Departamento de Doenças Tropicais e Diagnóstico por Imagem. Hospital das Clínicas
    Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP
    Distrito de Rubião Junior S/Nº
    CEP 18618-970
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    Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Aceito
      20 Nov 2003
    • Recebido
      17 Ago 2003
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