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Lesão por inalação de fumaça

Resumos

A lesão inalatória é hoje a principal causa de morte nos pacientes queimados, motivo pelo qual se justifica o grande número de estudos publicados sobre o assunto. Os mecanismos envolvidos na gênese da lesão inalatória envolvem tanto os fatores de ação local quanto os de ação sistêmica, o que acaba por aumentar muito as repercussões da lesão. Atualmente, buscam-se ferramentas que permitam o diagnóstico cada vez mais precoce da lesão inalatória e ainda estratégias de tratamento que minimizem as conseqüências da lesão já instalada. Esta revisão aborda os mecanismos fisiopatológicos, os métodos diagnósticos e as estratégias de tratamento dos pacientes vítimas de lesão inalatória. Ressalta ainda as perspectivas terapêuticas em desenvolvimento.

Lesão por inalação de fumaça; Lesão por inalação de fumaça; Lesão por inalação de fumaça; Queimaduras por inalação; Literatura de revisão; Intoxicação por monóxido de carbono


Inhalation injury is the main cause of death in burn patients and has therefore, understandably, been the subject of numerous published studies. The pathogenesis of inhalation injury involves both local and systemic mechanisms, thereby increasing the repercussions of the injury. The search for tools that would allow earlier diagnosis of inhalation injury and for treatment strategies to lessen its deleterious effects is ongoing. In this review, we describe the physiopathological mechanisms of inhalation injury, as well as the current diagnostic tools and treatment strategies used in patients suffering from inhalation injury. We also attempt to put experimental therapeutic approaches into perspective.

Smoke inhalation injury; Smoke inhalation injury; Smoke inhalation injury; Burns, inhalation; Review literature; Carbon monoxide; Poisoning


ARTIGO DE REVISÃO

Lesão por inalação de fumaça* Endereço para correspondência Rogério Souza R. Afonso de Freitas 556 CEP 04006-052 - São Paulo, SP Tel: 55-11-3889 7426 Email: rgrsz@uol.com.br

Rogério Souza(TE SBPT); Carlos Jardim; João Marcos Salge(TE SBPT); Carlos Roberto Ribeiro Carvalho(TE SBPT)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rogério Souza R. Afonso de Freitas 556 CEP 04006-052 - São Paulo, SP Tel: 55-11-3889 7426 Email: rgrsz@uol.com.br

RESUMO

A lesão inalatória é hoje a principal causa de morte nos pacientes queimados, motivo pelo qual se justifica o grande número de estudos publicados sobre o assunto. Os mecanismos envolvidos na gênese da lesão inalatória envolvem tanto os fatores de ação local quanto os de ação sistêmica, o que acaba por aumentar muito as repercussões da lesão. Atualmente, buscam-se ferramentas que permitam o diagnóstico cada vez mais precoce da lesão inalatória e ainda estratégias de tratamento que minimizem as conseqüências da lesão já instalada. Esta revisão aborda os mecanismos fisiopatológicos, os métodos diagnósticos e as estratégias de tratamento dos pacientes vítimas de lesão inalatória. Ressalta ainda as perspectivas terapêuticas em desenvolvimento.

Descritores: Lesão por inalação de fumaça/diagnóstico. Lesão por inalação de fumaça/fisiopatologia. Lesão por inalação de fumaça/complicações. Queimaduras por inalação/terapia. Literatura de revisão. Intoxicação por monóxido de carbono/complicações.

INTRODUÇÃO

A lesão inalatória é o resultado do processo inflamatório das vias aéreas após a inalação de produtos incompletos da combustão e é a principal responsável pela mortalidade (até 77%) dos pacientes vítimas de queimaduras(1, 2). Cerca de 33% dos pacientes com queimaduras extensas apresentam lesão inalatória e o risco aumenta progressivamente com o aumento da superfície corpórea queimada. A presença de lesão inalatória, por si, aumenta em 20% a mortalidade associada à extensão da queimadura(3). Nos últimos anos houve um crescente entendimento dos mecanismos fisiopatológicos relacionados à lesão inalatória, o que vem permitindo abordagens cada vez mais particularizadas.

PRODUÇÃO E CONSTITUIÇÃO DA FUMAÇA

A fumaça é a mistura de gases e partículas em suspensão resultantes da queima de qualquer combustível. A produção de fumaça depende de dois processos: pirólise e oxidação. A pirólise é o fenômeno de liberação de elementos do combustível causada exclusivamente pela ação do calor, através do derretimento ou fervura. A oxidação é o processo em que o oxigênio reage quimicamente com moléculas do combustível quebrando-as em compostos menores que resultam na produção de luz e calor. Como produtos resultantes da oxidação podemos citar o monóxido de carbono (CO), dióxido de nitrogênio (NO2) e dióxido de enxofre (SO2), além do carbono elementar. A predominância de um ou outro processo, além da temperatura, ventilação, e do tipo de material queimado no ambiente levam à produção de uma grande quantidade de elementos constituintes da fumaça, cada qual com sua toxicidade e mecanismo de lesão peculiar(4, 5).

Os constituintes da fumaça podem ser divididos em dois grupos: material particulado e gases. Tanto um como o outro produzem lesões nas vias aéreas, mas por mecanismos e em territórios diferentes.

O material particulado pode levar à obstrução das vias aéreas por efeito direto de deposição e pela indução de broncoespasmo. De acordo com o tamanho da partícula, a região de depósito é diferente: partículas maiores que cinco micrômetros tendem a se depositar nas vias aéreas superiores, enquanto que partículas com menos de um micrômetro podem atingir os sacos alveolares. O aumento do fluxo aéreo determinado pela taquipnéia também pode levar ao aumento da taxa de deposição de partículas nas vias aéreas mais distais(6).

Os gases são divididos em duas categorias, de acordo com o mecanismo de lesão: irritantes e asfixiantes. Os gases irritantes causam lesão na mucosa através de reações de desnaturação ou oxidação. Podem causar broncoespasmo, traqueobronquite química e até mesmo edema pulmonar. O local de ação dos gases irritantes depende em grande parte de sua solubilidade em água. Os gases mais solúveis como a amônia e o dióxido de enxofre geralmente provocam reações nas vias aéreas superiores, provocando sensação dolorosa na boca, nariz, faringe ou mesmo nos olhos. De modo contrário, os gases pouco solúveis são responsáveis pelas lesões mais distais nas vias aéreas e, por serem pouco irritantes para as vias aéreas superiores, podem permitir exposição oligossintomática, aumentando a chance e a extensão da lesão parenquimatosa. Os gases asfixiantes são definidos como aqueles que retiram oxigênio do ambiente. A retirada de oxigênio ocorre tanto pela diminuição da fração de oxigênio do ar inspirado, como por qualquer outro mecanismo que impeça a captação e distribuição de oxigênio pelo sistema cardiovascular. Assim, são considerados asfixiantes tanto o dióxido de carbono, que diminui a fração de oxigênio do ambiente, quanto o monóxido de carbono, cuja ligação com a hemoglobina diminui a oferta de oxigênio aos tecidos(6, 7).

MECANISMOS DE LESÃO

Para facilitar a compreensão, tanto do quadro clínico, quanto do tratamento, após o esclarecimento dos componentes da fumaça, são apresentados os quatro mecanismos responsáveis pela lesão inalatória:

LESÃO TÉRMICA DIRETA

A ação decorrente da temperatura da fumaça inalada raramente provoca lesões nos territórios abaixo da laringe. Apesar de ter alta temperatura, a fumaça tende a ser seca, o que diminui muito o potencial de troca de calor. Além disso, as regiões supralaríngeas têm grande capacidade de troca de calor, já que as mucosas encerram grande quantidade relativa de água. As lesões em vias aéreas superiores são caracterizadas pela presença de eritema, edema e ulcerações de mucosa, podendo haver sangramento local ou mesmo obstrução da área acometida(8-10).

INALAÇÃO DO GÁS HIPÓXICO

Durante a combustão, a concentração de oxigênio cai progressivamente até o momento em que o fogo se extingue, pelo próprio consumo gerado pela combustão. Dependendo do tipo de combustível, o momento de extinção do fogo varia. A maior parte do fogo decorrente da combustão de derivados de petróleo se extingue em frações de oxigênio entre 13% e 15%, enquanto componentes que contenham oxigênio podem permitir a combustão até frações inspiradas menores que 10%. Essa diminuição da fração inspirada de oxigênio faz com que as vítimas passem a referir dispnéia e tontura, que podem evoluir para confusão mental, torpor, coma e até mesmo óbito, em frações ao redor de 5%, consideradas incompatíveis com a vida(11).

TOXINAS LOCAIS

Dentre os vários componentes da fumaça, podem causar lesão direta nas vias aéreas a acroleína, formaldeídos, dióxido de enxofre e dióxido de nitrogênio. A ação lesiva decorre de um processo inflamatório agudo, mediado por polimorfonucleares, principalmente neutrófilos. Esse processo pode gerar sintomas, apenas 24 horas após a exposição, provocando alterações de permeabilidade capilar, de fluxo linfático e de clareamento muco-ciliar, e pode ainda determinar o aparecimento da síndrome de desconforto respiratório agudo e de infecções secundárias(12, 13).

TOXINAS SISTÊMICAS

Dois gases têm particular importância, dentre as substâncias de efeito sistêmico, pela alta morbi-mortalidade a que estão associados: o monóxido de carbono e o cianeto.

A intoxicação por monóxido de carbono é uma das causas mais freqüentes de óbito nos pacientes submetidos a lesões inalatórias. Ele possui grande afinidade pela hemoglobina, podendo ser de 200 a 250 vezes maior que a do oxigênio. A produção de carboxihemoglobina, complexo extremamente estável, além de causar um decréscimo na saturação de oxihemoglobina, causa um desvio da curva de dissociação para a esquerda, diminuindo a liberação de oxigênio aos tecidos. Além disso, a inibição competitiva com os sistemas da citocromo oxidase, principalmente a do P-450, impede o uso do oxigênio para geração de energia. O monóxido de carbono liga-se também à mioglobina, prejudicando o armazenamento de oxigênio nos músculos(14-16).

A toxicidade do cianeto é causada pela inibição da oxigenação celular, o que causa anóxia tecidual pela inibição reversível das enzimas citocromo oxidase (Fe3+). A inibição da via glicolítica aeróbia desvia o metabolismo para a via anaeróbia alternativa, produzindo então o acúmulo de sub-produtos ácidos(17, 18).

O tipo de exposição, o tempo, ou ainda a predominância de um ou mais desses mecanismos determinam diferentes evoluções da lesão inalatória. Na Figura 1 podemos observar a evolução dos fenômenos relacionados à lesão inalatória nos diferentes territórios do sistema respiratório frente a diferentes exposições.


DIAGNÓSTICO DA LESÃO INALATÓRIA

Apresentação clínica

Além da história de exposição à fumaça em ambiente fechado, vários sinais e sintomas devem levar à suspeita clínica de lesão inalatória(19). Os mais importantes são listados na Tabela 1.

Alguns achados devem levar à suspeita de intoxicação por alguma substância em particular. O monóxido de carbono, por exemplo, tem predileção por atingir o sistema nervoso central e o coração. Portanto, a exposição a este agente pode levar a sintomas de cefaléia, alterações visuais e confusão mental, e pode evoluir para taquicardia, angina e arritmias, ou ainda convulsão ou coma.

A busca ativa por intoxicações relacionadas à lesão inalatória tem particular importância quando existe o acometimento do sistema nervoso central. Sempre que possível, devem ser pesquisados marcadores sangüíneos ou urinários. No caso do monóxido de carbono, por exemplo, em que os níveis séricos de carboxihemoglobina podem ser dosados, caracterizando a intoxicação, o diagnóstico é feito facilmente, desde que a suspeita tenha sido elaborada em vista do quadro clínico. Nas situações em que o diagnóstico não possa ser adequadamente realizado através de marcadores, seja pela inexistência de padronização ou pela sua baixa disponibilidade, como no caso da intoxicação por cianeto, institui-se tratamento presuntivo baseando-se na suspeita clínica(15).

Exames de imagem

Inicialmente, a maioria dos pacientes apresenta radiograma simples de tórax normal, o que faz com que esse exame tenha baixo valor preditivo no diagnóstico da lesão inalatória aguda. Já o achado de infiltrado radiológico recente, porém, é sinal de lesão inalatória mais acentuada, sendo marcador de pior prognóstico. O principal papel do radiograma de tórax está na identificação de novos infiltrados durante a evolução da lesão inalatória para as fases sub-aguda e crônica, ou ainda na identificação de quadros mais difusos, como a síndrome da angústia respiratória aguda, por exemplo. Devemos lembrar que a fase crônica da lesão inalatória é caracterizada pelo aparecimento de infecções respiratórias secundárias, daí a importância do seguimento radiológico dos pacientes para o correto e mais precoce possível diagnóstico.

Se levarmos em consideração que a fase de ressuscitação volêmica e a estabilização da patência de vias aéreas são os principais pontos do tratamento inicial do grande queimado, podemos compreender a ausência de estudos significativos sobre o papel da tomografia de tórax na identificação precoce da lesão inalatória, em virtude da impossibilidade de se proceder ao exame em pacientes ainda instáveis(20).

Broncoscopia

O exame das vias aéreas superiores e da traquéia é que permite o diagnóstico de lesão inalatória. Os sinais mais sugestivos de lesão inalatória são a presença de edema ou eritema, com ulcerações nas vias aéreas inferiores ou ainda presença de fuligem em ramificações mais distais. A ausência destes sinais, porém, deve sempre ser analisada tendo-se em vista o estado hemodinâmico do paciente, uma vez que pacientes ainda não ressuscitados volemicamente podem não apresentar áreas de eritema ou edema visíveis ao exame broncoscópico inicial. Com essa ressalva, o exame broncoscópico tem aproximadamente 100% de acurácia no diagnóstico de lesão inalatória instalada(21, 22).

A avaliação cuidadosa das vias aéreas superiores, principalmente nos pacientes sem evidência de lesões mais distais, é de significativa importância durante o exame broncoscópico, pois a presença de edema acentuado na região supraglótica, ou mesmo de grande quantidade de secreção alta, pode identificar pacientes com maior risco de obstrução aguda de vias aéreas, sendo um dos indicadores de intubação precoce nos pacientes com suspeita de lesão de vias aéreas. Deve-se ressaltar porém, que o exame das vias aéreas superiores não exclui a necessidade de avaliar as inferiores, uma vez que o acometimento destas pode ocorrer independentemente do acometimento daquelas.

É importante salientar que as alterações anatômicas evidenciadas pelo exame broncoscópico precedem as alterações na troca gasosa e, mais ainda, as alterações radiológicas. Por isso é importante a avaliação broncoscópica precoce em todos os pacientes com suspeita clínica de lesão inalatória(20).

Análise dos gases arteriais

Conforme mencionado anteriormente, a alteração dos gases arteriais pode ocorrer tardiamente à lesão inalatória, o que torna importante caracterizar o risco de lesão inalatória pela história clínica, pelos achados de exame físico e pela endoscopia respiratória. Porém, ressaltamos aqui a necessidade de se dosar os níveis de carboxihemoglobina na suspeita de intoxicação por monóxido de carbono(15). Níveis elevados são diagnósticos de intoxicação. Deve-se lembrar, porém, que esses níveis vão decaindo ao longo do tempo e com o tratamento, e podem estar normais quando dosados em ambiente hospitalar, tardiamente à exposição, falseando o diagnóstico. Outra característica da presença de carboxihemoglobina é a superestimação da oxigenação através da oximetria de pulso. Os oxímetros convencionais não têm capacidade de diferir os comprimentos de ondas gerados pela oxihemoglobina daqueles gerados pela carboxihemoglobina, fornecendo, portanto, valores falsamente elevados de saturação de hemoglobina pelo oxigênio(15).

Radioisótopos

O exame de ventilação/perfusão com Xe133 permite a pesquisa de obstrução em pequenas vias aéreas, não visualizadas pelo exame broncoscópico. Análises seriadas são realizadas após a administração do radioisótopo, a fim de determinar o tempo total de retenção do radiofármaco no pulmão. Retenções maiores que 90 segundos, ou ainda uma heterogeneidade significativa na distribuição do xenônio, são consideradas como diagnósticos de lesão inalatória(23). A taxa de exames falso-positivos e falso-negativos é de 8% e 5% respectivamente, em geral decorrentes de hiperventilação (falso-negativos) ou da presença de atelectasias ou doença pulmonar obstrutiva crônica (falso-positivos)(24).

A cintilografia de inalação-perfusão com Xe133 é reservada a pacientes com alta suspeita clínica de lesão inalatória, mas que apresentem radiograma de tórax e exame broncoscópico normais.

Testes de Função Pulmonar

Os testes de função pulmonar, embora ilustrativos quanto à representação fisiopatológica da lesão, têm papel adjuvante no diagnóstico da lesão inalatória, principalmente pela dificuldade em sua aplicação. Uma série de fatores acaba por determinar a dificuldade na aplicação dos testes, entre eles a presença de dor, baixa colaboração do paciente, fraqueza muscular e uso de drogas, como sedativos e opióides. Esses fatores diminuem acentuadamente a acurácia dos testes de função pulmonar(22).

De forma geral, os achados que caracteristicamente podem ser evidenciados pelos testes de função pulmonar são os seguintes: complacências estática e dinâmica do sistema respiratório normal nas fases iniciais da lesão, evoluindo com queda progressiva ao longo do seu desenvolvimento, ou ainda, nas fases crônicas, em que o processo de reparação pode levar a quadros restritivos, caracterizados pela queda na complacência do sistema respiratório; resistência das vias aéreas aumentada, com diminuição do volume expiratório forçado no primeiro segundo e de sua relação com a capacidade vital forçada, assim como do pico de fluxo expiratório, caracterizando a obstrução das vias aéreas, e a evidenciação, na curva fluxo-volume, da concavidade característica do padrão obstrutivo, presente tanto pelo acúmulo de fuligem e secreção, quanto pelo edema de mucosa das vias aéreas.

O aspecto evolutivo da monitoração da função pulmonar permite não apenas a identificação da progressão da lesão, mas também a avaliação da resposta às medidas terapêuticas instituídas (estratégia ventilatória, terapia farmacológica ou ainda cuidado fisioterápico).

TRATAMENTO DA LESÃO INALATÓRIA

Manutenção das vias aéreas

A identificação de pacientes com alto risco para obstrução de vias aéreas superiores, somada à intervenção precoce nos quadros com lesão já instalada, é um dos pontos principais no tratamento dos pacientes com lesão inalatória, e reduz significativamente a mortalidade dos mesmos(11, 20). Sinais clínicos compatíveis com obstrução secundária à lesão de vias aéreas superiores, ou ainda evidências broncoscópicas desse processo, indicam a intervenção precoce.

O uso de cânulas traqueais de grande calibre facilita a higiene brônquica necessária para controlar o grande aumento na quantidade de secreções respiratórias(25). A traqueostomia oferece vantagens tanto ao conforto do paciente quanto à facilidade na higiene brônquica, porém, segundo estudos recentes, não diminui o tempo de ventilação mecânica, a incidência de pneumonia ou mesmo a mortalidade dos pacientes com lesão inalatória, não estando, portanto, indicada como medida terapêutica geral(26).

Oxigênio

A reversão dos quadros de intoxicação por monóxido de carbono constitui o segundo ponto significativo no tratamento do paciente com lesão inalatória. Em todos os casos de suspeita de intoxicação, está indicado o uso de altas frações de oxigênio, mesmo em pacientes oligossintomáticos. O papel do oxigênio nesses casos está tanto no aumento da reserva de troca gasosa do paciente, revertendo o efeito da inalação do gás hipóxico, quanto na tentativa de dissociar o monóxido de carbono de seus sítios de ligação.

Um dispositivo bastante útil, infelizmente ainda sub-utilizado em nosso meio, é a máscara facial com reservatório de oxigênio. Esse dispositivo pode oferecer altas frações inspiradas de oxigênio que podem se aproximar dos 100%. O uso da máscara facial é uma medida simples e bastante eficiente em ofertar altas frações inspiradas de oxigênio sem a necessidade de assistência ventilatória.

Pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica associada à retenção de dióxido de carbono e pacientes comatosos compõem um grupo em que a intubação imediata é a alternativa mais indicada para aumentar a fração inspirada de oxigênio o mais rapidamente possível, sem os potenciais efeitos deletérios de uma retenção maior de dióxido de carbono.

Suporte ventilatório

Esse talvez seja um dos campos com maior número de estudos clínicos realizados nos últimos anos com relação a pacientes queimados.

Com o advento da ventilação não-invasiva, a perspectiva de se evitar a intubação tornou-se extremamente atrativa, principalmente numa população onde a intubação é um marcador tão importante de morbi-mortalidade. A presença de lesões de face, somada ao risco de diminuição da perfusão tecidual nos pontos de apoio dos diferentes tipos de máscara utilizadas durante a ventilação não-invasiva, limitou o uso prolongado da técnica, mas não evitou o desenvolvimento de estudos com o seu uso intermitente como forma de se manter o recrutamento alveolar e com isso diminuir a necessidade de intubação traqueal. Essa evidência, por si, já estimula o uso da técnica, pelo menos como ferramenta de suporte fisioterápico, na manutenção da abertura das pequenas vias aéreas e do tecido alveolar. O desenvolvimento de novas interfaces para a aplicação da ventilação não-invasiva, com menor comprometimento das áreas de apoio, vem trazendo ainda mais perspectivas para o uso prolongado da ventilação não-invasiva como forma inicial de suporte ventilatório para pacientes com lesão inalatória(27).

Caso a intubação traqueal se faça necessária, o suporte ventilatório invasivo deve se basear em estratégias que mantenham o pulmão aberto, propiciando assim melhor clareamento local das secreções, assim como otimização das trocas gasosas.

A adequação da estratégia ventilatória é muito relacionada à fase em que o paciente apresenta insuficiência respiratória. Isto porque, nas fases iniciais, em que a lesão direta das vias aéreas, com edema e sangramento, associada ao aumento das secreções e fuligem, constitui o principal mecanismo fisiopatológico envolvido, raramente são necessárias estratégias ventilatórias muito agressivas, como, por exemplo, o uso de altos níveis de pressão expiratória final positiva.

Já nos quadros iniciais graves ou nas fases mais tardias, onde claramente o paciente apresenta o quadro de síndrome de angústia respiratória aguda, faz-se necessário o uso de estratégias de recrutamento alveolar, o uso de baixos volumes correntes(28) e ainda a associação de níveis maiores de pressão expiratória final positiva. O papel de cada uma dessas estratégias especificamente na lesão inalatória ainda não foi estabelecido, porém seu uso em outras causas de síndrome da angústia respiratória aguda já evidenciou benefícios em estudos clínicos(29, 30).

A ventilação de alta freqüência e o uso de óxido nítrico constituem as perspectivas atuais no suporte ventilatório invasivo de pacientes com lesão inalatória. Estudos experimentais evidenciaram diminuição da progressão da lesão inalatória com o uso do óxido nítrico, enquanto que estudos clínicos mostraram apenas melhora da oxigenação com o uso da técnica(31, 32). Da mesma forma, a ventilação de alta freqüência foi eficaz em melhorar a oxigenação dos pacientes com lesão inalatória já nas primeiras horas após a aplicação da técnica, embora não tenha sido suficiente para evidenciar melhora na sobrevida, ou mesmo na taxa de infecção associada à ventilação mecânica nessa população de pacientes(33, 34).

Embora ainda iniciais, estudos clínicos na tentativa de prevenir a intubação, diminuir a progressão da lesão inalatória ou ainda acelerar a resposta à lesão já instalada são, no momento, a maior fonte de expectativa para um melhor tratamento de grandes queimados.

Antibioticoterapia

O uso precoce de antibióticos, sem evidência clara de infecção, não aumentou a sobrevida dos pacientes e nem foi capaz de diminuir a incidência de pneumonia, considerada a mais freqüente complicação infecciosa associada à lesão inalatória. Seu uso, portanto, não é indicado(20, 35).

A incidência maior de infecções respiratórias dá-se por volta do terceiro dia pós-queimadura. A antibioticoterapia deve ser iniciada com base nos achados radiológicos, exame de escarro e na leucocitose. Quanto mais tardio o início do quadro, maior a chance de infecção por agentes Gram-negativos. Nos casos mais agudos, o predomínio é de agentes Gram-positivos. O papel da broncoscopia com lavado e escovado na identificação dos agentes etiológicos, seja precocemente, seja para a adequação do esquema antibiótico introduzido empiricamente, ainda está por ser determinado.

Medidas específicas de acordo com a fisiopatologia predominante

Para a lesão térmica, a manutenção das vias aéreas é o principal tratamento. É conveniente manter a intubação até a reversão documentada do edema de vias aéreas.

Com relação à inalação do gás hipóxico, a retirada do paciente do local do acidente associada ao uso de altas frações inspiradas de oxigênio interrompe a cascata de eventos secundários à hipoxemia(11, 13, 20).

Quanto à intoxicação por monóxido de carbono, a meia vida da carboxihemoglobina é de 250 minutos em ar ambiente (fração inspirada de oxigênio de 0,21) e de 40 a 60 minutos em pacientes submetidos a fração inspirada de oxigênio igual a 1. Portanto, todos os pacientes devem receber oxigênio a 100% já a caminho do hospital. O uso de terapia hiperbárica é ainda motivo de controvérsia; a existência de estudos que não evidenciaram benefício(36) contrapõe-se a evidências de que seu uso possa levar à diminuição de seqüelas neurológicas(37). Outra forma de aumentar a eliminação de monóxido de carbono é através da hiperpnéia isocápnica, que consiste em hiperventilar os pacientes intubados, oferecendo uma fonte suplementar de dióxido de carbono com o objetivo de não promover alcalose respiratória por hipocapnia. A hiperventilação reduz a meia vida da carboxihemoglobina, diminuindo os efeitos deletérios da intoxicação(38, 39).

Alguns antídotos podem ser utilizados na tentativa de limitar os danos da intoxicação por cianeto: nitratos, que promovem a oxidação da hemoglobina transformando-a em metahemoglobina que, por sua vez, compete com a citocromo oxidase pelo cianeto; tiossulfato de sódio, que na presença da enzima mitocondrial rodanase transfere o enxofre para o íon cianeto formando o tiocianato (que é excretado pela urina); e hidroxicobalamina, um agente quelante que reage com o cianeto formando a cianocobalamina(40, 41).

Perspectivas terapêuticas

O avanço no tratamento da lesão inalatória talvez venha a ter um impacto tão significativo na evolução do paciente queimado quanto foi a instituição da ressuscitação volêmica, principalmente com o desenvolvimento de métodos que permitam a modulação da resposta inflamatória do sistema respiratório.

Várias substâncias evidenciaram potencial benefício no manuseio de pacientes com lesão inalatória, entre elas as moléculas anti-adesão (bloqueando a aderência de neutrófilos na microvasculatura pulmonar), inibidores de leucotrieno, heparina inalatória e antioxidantes(42-44), embora estudos clínicos controlados ainda sejam necessários para a adoção dessas novas formas de tratamento na prática clínica.

O ponto central na terapêutica dos pacientes vítimas de grandes queimaduras é a compreensão da grande resposta inflamatória existente, com suas repercussões pulmonares e sistêmicas como um fenômeno global e não como complicações isoladas.

Recebido para publicação, em 28/4/03.

Aprovado, após revisão, em 20/2/04.

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  • Endereço para correspondência
    Rogério Souza
    R. Afonso de Freitas 556
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    Tel: 55-11-3889 7426
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    Trabalho realizado na Disciplina de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, FMUSP, São Paulo, SP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Abr 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      20 Fev 2004
    • Recebido
      28 Abr 2003
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