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Telangiectasia hemorrágica hereditária: uma causa rara de anemia grave

Resumos

Telangiectasia hemorrágica hereditária é uma doença autossômica dominante na qual comunicações arteriovenosas afetam comumente pele, superfícies mucosas, pulmões, cérebro e trato gastrointestinal. As manifestações comuns desta doença são epistaxe, sangramento gastrointestinal, e malformações arteriovenosas cerebrais e pulmonares. Apesar de a epistaxe e o sangramento gastrointestinal poderem causar anemia, a telangiectasia hemorrágica hereditária raramente é diagnosticada com anemia grave. Neste artigo é relatado o caso de um homem de 49 anos de idade com telangiectasia hemorrágica hereditária não diagnosticada e anemia grave.

Telangiectasia hemorrágica hereditária; Anemia ferropriva; Relatos de casos


Hereditary hemorrhagic telangiectasia is an autosomal dominant disease in which arteriovenous communications are typically seen in the skin, mucosal surfaces, lungs, brain and gastrointestinal tract. This disease typically presents as epistaxis, gastrointestinal bleeding and arteriovenous malformations (in the brain and lungs). Although the epistaxis and gastrointestinal bleeding can result in anemia, patients diagnosed with hereditary hemorrhagic telangiectasia rarely present severe anemia. Herein, we report the case of a 49-year-old man with severe anemia and undiagnosed hereditary hemorrhagic telangiectasia.

Hereditary hemorrhagic telangiectasia; Iron deficiency anemia; Case reports


RELATO DE CASO

Telangiectasia hemorrágica hereditária: uma causa rara de anemia grave* * Trabalho realizado na Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil. ,** ** A versão integral deste artigo em português é disponível na Internet no endereço www.jornaldepneumologia.com.br

José Wellington Alves dos SantosI; Tiago Chagas DalcinII; Kelly Ribeiro NevesII; Keli Cristina MannIII; Gustavo Luis Nunes PrettoIV; Alessandra Naimaier BertolaziV

IPós-doutor em Pneumologia pela Universidad de Barcelona, U. B., Espanha. Chefe do Departamento de Pneumologia do Hospital Universitário de Santa Maria da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil

IIEstudante de Medicina na Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil

IIIResidente em Pneumologia junto à Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil

IVResidente em Medicina Interna junto à Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil

VMestranda em Pneumologia junto à Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: José Wellington Alves dos Santos. Rua Venâncio Aires, 2020/403 CEP 97010-004, Santa Maria, RS, Brasil.

RESUMO

Telangiectasia hemorrágica hereditária é uma doença autossômica dominante na qual comunicações arteriovenosas afetam comumente pele, superfícies mucosas, pulmões, cérebro e trato gastrointestinal. As manifestações comuns desta doença são epistaxe, sangramento gastrointestinal, e malformações arteriovenosas cerebrais e pulmonares. Apesar de a epistaxe e o sangramento gastrointestinal poderem causar anemia, a telangiectasia hemorrágica hereditária raramente é diagnosticada com anemia grave. Neste artigo é relatado o caso de um homem de 49 anos de idade com telangiectasia hemorrágica hereditária não diagnosticada e anemia grave.

Descritores: Telangiectasia hemorrágica hereditária; Anemia ferropriva; Relatos de casos [tipo de publicação].

Introdução

Identificada há quase um século, a telangiectasia hemorrágica hereditária (THH) é uma doença autossômica dominante na qual as comunicações arteriovenosas anormais, as assim chamadas telangiectasias, afetam a pele, o nariz, superfícies mucosas, pulmões, cérebro e trato gastrointestinal.(1–4) A incidência mundial da THH tem sido calculada entre 1/5000 e 1/10.000 pessoas.(5) Atualmente, a THH pode ser observada, em proporções variáveis, em pacientes portadores dos males mencionados a seguir: em 90% de pacientes com epistaxe; em 80% de pacientes com telangiectasia de pele, lábio ou boca; em 30% de pacientes com fístulas arteriovenosas (FAV) pulmonares; em < 30% de pacientes com FAV hepática; em 15% de pacientes com sangramento gastrointestinal; em 10% de pacientes com FAV cerebral e em 1% de pacientes com FAV espinhal.(6–7) O diagnóstico clínico é baseado na presença de pelo menos três das características que se seguem: epistaxe recorrente; telangiectasias mucocutâneas; evidência de herança autossômica dominante; e FAV visceral.(3–4,8) Em casos raros, a THH pode causar anemia, embora esta anemia associada à THH geralmente seja de leve a moderada.(6) Neste relato, apresentamos um caso de anemia grave concomitante com a THH.

Relato de caso

Um homem de 49 anos procurou atendimento médico, apresentando um histórico de 30 anos de epistaxe recorrente que havia se tornado menos freqüente nos últimos anos. Ele também relatou fadiga progressiva e palidez durante a ultima década, juntamente com dispnéia progressiva, fadiga exacerbada, palidez e perda de peso de 6 kg ao longo dos últimos seis meses, bem como um histórico familiar de telangiectasias.

O paciente não tinha vícios e não apresentava hemoptise ou dor toráxica. Ao exame físico, foram observados mucosa descorada, palidez, pressão arterial de 110/70 mmHg e um sopro sistólico de 2/6, juntamente com telangiectasias na mucosa oral, lábios (Figura 1) e palato. A ausculta do tórax apresentou-se normal e não havia hipocratismo digital. O hemograma feito por ocasião da admissão apresentou os seguintes resultados: anemia ferropriva com hemoglobina de 3,8 g/dL; volume corpuscular médio: 58,5 fL; amplitude da distribuição de glóbulos vermelhos: 32,6%; e ferritina: 3,5 ng/mL. Os resultados dos testes de glóbulos vermelhos, ácido fólico e vitamina B12, bem como os de coagulação, estavam normais. O teste para sangue oculto em fezes foi positivo. A radiografia do tórax revelou um nódulo bem circunscrito de 1,5 cm de diâmetro no lobo inferior do pulmão direito e um nódulo de 1 cm no lobo médio do pulmão esquerdo. Estes achados foram consistentes com as FAVs pulmonares, as quais foram confirmadas através de tomografia contrastada computadorizada do tórax (Figura 2). Durante a avaliação complementar, a endoscopia digestiva alta indicou angiodisplasias gástricas múltiplas (Figura 3). A ecocardiografia em meio de contraste salino foi usada para detectar shunts intracardíacos ou intratorácicos. O ecocardiograma revelou microbolhas no átrio esquerdo durante a ocorrência de três ciclos cardíacos no átrio direito, indicando shunting intrapulmonar. A angiotomografia craniana, a ultra-sonografia abdominal e os resultados da colonoscopia estavam normais. O diagnóstico de THH estava comprovado. Duas semanas de tratamento com transfusões de sangue e suplementação de ferro resultaram na melhora da anemia de modo significativo, aumentando a hemoglobina para 10 g/dL. Após três meses de avaliação ambulatorial, o paciente continuava assintomático.




Discussão

Alguns estudos demonstraram uma associação entre THH e anemia grave. No entanto, de um total de 1641 artigos,(5) encontramos apenas 9 nos quais tal associação havia sido relatada.(9–17) Esses 9 estudos contaram com um total de 20 pacientes com anemia grave e THH; apenas 15% foram diagnosticados durante um episódio de anemia grave.

O quadro clínico de THH, uma doença rara de apresentação clássica, inclui anemia grave muito raramente. Os pacientes com THH apresentam hemostasia e função plaquetária normais, e o sangramento recorrente está, portanto, relacionado às telangiectasias.(18) A anemia pode ser causada por um, ou ambos, dos dois fatores seguintes: epistaxe recorrente e sangramento gastrointestinal.(6,19–20) Nos 9 estudos previamente mencionados, ficou comprovado que a causa mais comum de anemia grave em pacientes com THH era o sangramento gastrointestinal crônico (em 70%), seguido de epistaxe (em 25%).(9–17)

A hemorragia recorrente do trato gastrointestinal ocorre em até um terço dos indivíduos com THH. O risco dessa hemorragia aumenta com o avançar da idade, ocorrendo tipicamente na quinta ou sexta década de vida.(6) As telangiectasias gastrointestinais podem ser múltiplas e são encontradas ao longo do trato gastrointestinal, mais comumente no estômago e duodeno.(5–6,10) A gravidade da anemia está relacionada com o número de telangiectasias,(10) que são diagnosticados através da endoscopia digestiva.(19)

A manifestação mais comum de THH é a epistaxe causada por sangramento espontâneo de telangiectasias na mucosa nasal, o que pode ser visto em indivíduos com apenas 10 anos de idade, e ocorre na maior parte dos indivíduos acometidos pela doença.(3–4,18) A telangiectasia pode ser tão grave a ponto de requerer múltiplas transfusões e suplementação oral de ferro, ou tão suave que a suspeita de THH jamais é levantada. (18) Embora a epistaxe recorrente se torne mais grave com a idade avançada, em aproximadamente dois terços de todos os indivíduos com THH,(4) este distúrbio também pode passar despercebido durante muitos anos e pode ser menos comum em adultos.(16)

Atualmente, não há tratamento satisfatório para a THH. O manejo apropriado depende das manifestações clínicas e do sítio da doença.(7) O tratamento para o sangramento é sintomático e pode requerer tratamento com suplementação de ferro, e transfusões sangüíneas. A aspirina e outros medicamentos que prejudicam a hemóstase são contra-indicados em tais casos.(16) O tratamento do sangramento gastrointestinal do nosso paciente requereu a combinação de transfusões de sangue e suplementação de ferro.

A ocorrência de THH concomitantemente com anemia grave é extremamente incomum. Portanto, o diagnóstico diferencial em casos de anemia grave raramente inclui a THH. Como o presente caso apresentou manifestações tanto típicas como atípicas, seu diagnóstico e manejo foram feitos prontamente.

Em suma, embora a THH seja uma doença rara, pode ser facilmente reconhecida graças a sua apresentação clássica na maioria dos pacientes.(2) Enfatizamos o papel desta doença como causa da anemia ferropriva e a importância da investigação clínica, juntamente com o diagnóstico feito em tempo hábil.

Recebido para publicação: 12/5/05. Aprovado, após revisão: 17/3/06.

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  • Endereço para correspondência:
    José Wellington Alves dos Santos.
    Rua Venâncio Aires, 2020/403
    CEP 97010-004, Santa Maria, RS, Brasil.
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    Trabalho realizado na Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria (RS) Brasil.
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    A versão integral deste artigo em português é disponível na Internet no endereço
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Aceito
      17 Mar 2006
    • Recebido
      12 Maio 2005
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