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Avaliando a gravidade e o prognóstico da doença pulmonar obstrutiva crônica: a medida do VEF1 ainda é suficiente?

EDITORIAL

Avaliando a gravidade e o prognóstico da doença pulmonar obstrutiva crônica: a medida do VEF1 ainda é suficiente?

Irma de Godoy

Professora Livre Docente da Disciplina de Pneumologia. Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista - UNESP - Botucatu (SP) Brasil

Desde que Fletcher & Peto descreveram a história natural do declínio do volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) em trabalhadores do correio e do transporte em Londres, a obstrução progressiva e irreversível das vias aéreas é a característica que define a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC).(1) O VEF1 é a base da atual classificação de gravidade da doença e a melhora dos seus valores e a diminuição da sua taxa de declínio são os desfechos mais utilizados em pesquisa clínica para avaliar a resposta ao tratamento e a prevenção da progressão da DPOC.(2) Entretanto, para o paciente portador de DPOC, cuja queixa não diz respeito às alterações destas variáveis funcionais, os desfechos mais importantes são os sintomas, principalmente a intensidade da dispnéia e a tolerância ao exercício. O VEF1 geralmente não fornece informações que permitam avaliar o desempenho do paciente durante as atividades da vida diária, tem fraca correlação com a intensidade da dispnéia e a capacidade de exercício e tem aplicação limitada na avaliação da reposta ao broncodilatador.(3) Todos estes achados, bem como o conceito atual de que a DPOC apresenta alterações extra-pulmonares significativas, sugerem a necessidade de novos marcadores de gravidade, progressão e prognóstico da doença que permitam avaliar não só as repercussões funcionais mas também as influências destas sobre os sintomas e limitações dos pacientes. Muitos estudos têm sido realizados com estes objetivos e novos conhecimentos foram produzidos. Exemplos incluem a informação de que a cessação do tabagismo reduz a evolução da doença e que a diminuição do número de exacerbações e a prevenção das mesmas podem alterar a taxa de declínio de VEF1 e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.(2) A intensidade da dispnéia causada pelo exercício, um dos sintomas básicos em pacientes com DPOC, o qual aparece na fase inicial da doença e afeta as atividades da vida diária, apresenta maior associação com a sobrevida em cinco anos do que a classificação da gravidade da doença de acordo com os valores de VEF1.(4) As manifestações sistêmicas da DPOC, as quais incluem as alterações da qualidade de vida e da composição do corpo e as repercussões sobre a tolerância ao exercício, também estão associadas à freqüência de exacerbações, às taxas de hospitalização e à sobrevida destes pacientes.(4) Estudos indicam que reduções no peso do corpo e valores baixos de índice de massa corporal (IMC) e da massa magra do corpo são fatores prognósticos negativos, independentemente da gravidade da doença, e estão relacionados com a capacidade de exercício de pacientes com DPOC.(2) A distância percorrida em seis minutos (DP6), a qual reflete a capacidade funcional dos pacientes com DPOC, também foi melhor fator de predição da mortalidade que outros marcadores tradicionais de gravidade da doença em pacientes com doença grave.(4) Entretanto, a identificação de numerosos marcadores associados ao prognóstico e ao caráter sistêmico da doença indicam a necessidade de estudos que avaliem a influência da combinação de vários parâmetros no estabelecimento da gravidade e do prognóstico da doença. Neste sentido foi desenvolvido o índice Body mass index, airway Obstruction, Dyspnea, and Exercise capacity (BODE), o qual avalia as manifestações respiratórias e sistêmicas da DPOC e poderia caracterizar e predizer melhor os desfechos nestes pacientes. O índice BODE é uma escala de dez pontos que combina as medidas do IMC, da intensidade de obstrução das vias aéreas, da dispnéia e da capacidade de exercício.(4)

Uma característica importante da obstrução generalizada das vias aéreas é a hiperinsuflação pulmonar, definida como o aumento do volume inspiratório final.(3) Este aumento ocorre em repouso e se acentua durante o exercício (hiperinsuflação dinâmica) devido ao aumento da ventilação e às limitações impostas ao fluxo aéreo. Um método simples para avaliar a hiperinsuflação pulmonar durante o repouso e o exercício é a medida da capacidade inspiratória (CI), a qual é definida como a máxima quantidade de ar que pode ser inspirada a partir da posição de repouso expiratório que normalmente corresponde à capacidade residual funcional (CRF). Esta medida foi negligenciada durante muitos anos; entretanto, recentemente, tem sido reconhecida como uma reserva que permite o aumento do volume corrente durante os períodos de maior demanda ventilatória e reflete as variações do volume inspiratório final e da CRF, desde que a capacidade pulmonar total (CPT) permaneça constante. Portanto, a CI tem sido avaliada e tem mostrado ser útil como fator de predição da capacidade de exercício em pacientes com DPOC. Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, Santos et al.(5) analisam a associação da CI, expressa em porcentagem dos valores previstos para a população brasileira,(5) não só com outros parâmetros de função pulmonar, mas também com a sensação de dispnéia, o uso de medicamentos e outros marcadores prognósticos como a DP6, o índice BODE e a classificação da DPOC de acordo com os critérios da Global Initiative for Chronic Obstructive Lung DIsease (GOLD, Iniciativa Global para a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica). Os autores observaram que 59% da variação da DP6 poderia ser explicada pela CI pós-broncodilatador (% do previsto), pelo uso de oxigenoterapia domiciliar prolongada e pelo número de medicamentos utilizados no tratamento da doença. Valores de CI < 70% do previsto foram mais comuns em pacientes com índice BODE classe 3 e 4 e gravidade 3 e 4 da doença de acordo com os critérios da GOLD. Esses dados reforçam a hipótese da presença de hiperinsuflação pulmonar em pacientes com doença mais grave e sua influência na capacidade de exercício, hipótese esta testada em estudos prévios. Outros pesquisadores verificaram que a hiperinsuflação pulmonar, expressa por meio da relação CI/CPT, é um fator de predição independente de mortalidade em pacientes com DPOC.(6) Os autores avaliaram o poder de predição da relação CI/CPT e verificaram que o ponto de corte de 25% resultou em sensibilidade de 0,71, especificidade de 0,69, valor preditivo positivo de 0,46 e valor preditivo negativo de 0,87. Neste ponto de corte, houve diferenças importantes em mortalidade: 71% nos pacientes com CI/CPT < 25% vs. 29% naqueles com IC/CPT > 25%. Um estudo realizado no Brasil também mostrou a influência da relação CI/CPT pós-broncodilatador na capacidade de exercício em pacientes com DPOC.(7) Os autores observaram que valores de CI/CPT < 28% estavam relacionados com tolerância ao exercício muito diminuída e valores maiores foram encontrados nos pacientes com menor comprometimento da capacidade funcional. Assim, estes dois estudos indicam que valores de CI/CPT podem ser utilizados como indicadores de prognóstico (<0,25) ou de menor capacidade física (<0,28). De acordo com Santos et al.,(5) a medida de CPT só pode ser realizada em um número reduzido de centros brasileiros e propõem como ponte de corte valores de CI pós BD < 70% do previsto para a população brasileira.

Em resumo, o estado atual do conhecimento indica a necessidade de estudos longitudinais para determinar como os diversos possíveis marcadores de gravidade e prognóstico da DPOC, bem como os pontos de corte propostos, refletem a evolução da doença para um paciente em particular. Enquanto isso, levando em consideração a infra-estrutura disponível nos diferentes serviços, devemos utilizar os marcadores que têm mostrado valor na determinação de desfechos que são importantes do ponto de vista fisiológico, complementados por aqueles centrados nas limitações dos pacientes. O VEF1 e sua alteração ao longo do tempo continuam importantes marcadores da DPOC; entretanto, avaliações adicionais são necessárias para estimar de forma mais completa todas as repercussões da doença.

Referências

1. Wise RA. The value of forced expiratory volume in 1 second decline in the assessment of chronic obstructive pulmonary disease progression. Am J Med. 2006; 119(10 Suppl 1):S4-S11.

2. Rabe KF, Hurd S, Anzueto A, Barnes PJ, Buist SA, Calverley P, et al. Global strategy for the diagnosis, management, and prevention of chronic obstructive pulmonary disease - 2006 update. Am J Respir Crit Care Med. 2007; [Epub ahead of print]

3. Cooper CB. The connection between chronic obstructive pulmonary disease symptoms and hyperinflation and its impact on exercise and function. Am J Med. 2006;119(10 Suppl 1):S21-S31.

4. Tashkin DP. The role of patient-centered outcomes in defining the clinical course of chronic obstructive pulmonary disease. Introduction. Am J Med. 2006;119(10 Suppl 1):S1-S3.

5. Santos C, Pereira C, Viegas C. Capacidade inspiratória, limitação de exercício e preditores de gravidade e prognóstico em doença pulmonar obstrutiva crônica. J Bras Pneumol. 2007;33(4):389-96.

6. Casanova C, Cote C, de Torres JP, Aguirre-Jaime A, Marin JM, Pinto-Plata V, et al. Inspiratory-to-total lung capacity ratio predicts mortality in patients with chronic obstructive pulmonary disease. Am J Respir Crit Care Med. 2005; 171(6):591-7.

7. Albuquerque AL, Nery LE, Villaça DS, Machado TY, Oliveira CC, Paes AT, et al. Inspiratory fraction and exercise impairment in COPD patients GOLD stages II-III. Eur Respir J. 2006;28(5):939-44.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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