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Recidiva da tuberculose

EDITORIAL

Recidiva da tuberculose

Antonio Ruffino-Netto

Professor Titular de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo – FMRP/USP Coordenador da Rede Brasileira de Pesquisas em Tuberculose – REDE TB

A realização de ações na área de saúde pública depende muito da combinação de vários fatores, começando pela decisão política de sua implementação. Mas, sem dúvida alguma, a fase de planejamento dessas ações implica na existência ou descoberta de indicadores adequados que traduzam a magnitude do problema em pauta. Fazer planejamento sem diagnóstico epidemiológico da situação atual do problema poderá significar uma grande perda de tempo e um desperdício de recursos financeiros.

No campo da tuberculose (TB), vários indicadores que traduzem a magnitude de cada estágio da doença e a velocidade com que as pessoas se deslocam de um estado para outro são utilizados para análise de situação epidemiológica. Há também indicadores operacionais que retratam como as atividades estão sendo efetuadas (qual a sua efetividade, custo, benefício, etc.).

Historicamente, é válido lembrar que a simples ocorrência da meningite tuberculosa era, há algum tempo, um indicador importante (para os epidemiologistas) da existência recente de fontes de infecção (pacientes bacilíferos) na comunidade. Da mesma forma, a ocorrência da recidiva da TB é um indicador importante: quais são as informações que esse indicador poderá nos dar? Um artigo muito importante (e bem elaborado sobre o tema) está sendo apresentado neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia. Trata-se do trabalho de Picon et al.(1) sobre "Fatores de risco para a recidiva da tuberculose".

Apenas para a reflexão didática do problema, vou recorrer a uma fórmula histórica proposta por Rich para a patogenicidade da TB,(2) (a qual não tem um significado matemático, mas é, sim, uma maneira de expressar o problema)

onde: P = patogenicidade do processo; N = número de bacilos que penetram no organismo; V = virulência do bacilo; H = alergia ou hipersensibilidade do organismo; Rn = resistência natural; e Ra = resistência adquirida. Evidentemente, os conhecimentos atuais de imunologia podem ter incorporado/modificado a fórmula acima. Contudo, ela é um elemento histórico apenas para raciocinarmos. O numerador desta fórmula mostra vários aspectos: o número de bacilos que penetram no organismo depende do número de fontes bacilíferas, das condições de transmissibilidade, da existência de um programa de controle da TB (PCT), da eficácia deste PCT, da eficácia medicamentosa, dos aspectos culturais envolvidos na demanda por serviços de saúde (SS) pelo paciente (fonte de infecção), das políticas de saúde que implantam (ou não) os SS nos locais adequados e da formação dos profissionais de saúde que trabalham nos SS. Ou seja, o numerador da expressão está associado às condições sociais e econômicas (as quais determinam as condições de vida, habitação, transporte, trabalho, etc.) e às políticas de saúde e de formação de recursos humanos. Todos estes elementos, direta ou indiretamente, serão catalisadores da evolução da TB primária e da TB de reinfecção (também chamada TB exógena).

Já o denominador, adstrito ao aspecto da resistência do organismo (natural ou adquirida), está associado a todos os possíveis elementos que interferem na imunidade, tais como estado vacinal, co-infecção (por exemplo TB/HIV), co-morbidades (diabetes melito ou outras), idade, ingestão de medicamentos imuno-supressores, nível nutricional, etc. Tais fatores, interferindo na resistência (ou seja, na sua diminuição), farão, por si só, com que a patogenicidade aumente independentemente de novas reinfecções. Isto propicia a ocorrência tanto da evolução da TB primária quanto da TB de reativação endógena.

Fica claro, portanto, que a reincidência (ou recidiva) da TB poderá estar associada a um grande número de variáveis, sendo um indicador importante que merece ser estudado. Evidentemente, este é um indicador específico num momento histórico de cada comunidade, sem permitir generalizações externas.

O trabalho supracitado teve como objetivo identificar fatores de risco para a recidiva da TB. Um levantamento retrospectivo foi efetuado utilizando um banco de dados de pacientes inscritos para tratamento de TB num ambulatório de Porto Alegre, pertencente ao PCT do Rio Grande do Sul, no período 1989-1994. Foram incluídos 610 pacientes. Levantaram-se as variáveis passíveis de serem fatores de exposição (idade, sexo, cor da pele, duração de sintomas, extensão da doença, cavitação à radiografia de tórax, uso irregular dos fármacos, negativação tardia do escarro, presença de diabetes, alcoolismo, doses dos fármacos e sorologia anti-HIV), e levantou-se a detecção de reincidência da TB nesses pacientes no período de 7,7 anos após a cura. No período estudado, encontrou-se um percentual de 4,5% de recidivas (ou 0,55 casos por 100 pessoas-ano de observação). Das variáveis levantadas (numa análise multivariada), apenas a infecção pelo HIV e o uso irregular da medicação mostraram-se independentemente associados às recidivas. Ou seja, apenas estas duas variáveis apresentaram um valor preditivo para a recidiva naquelas circunstâncias.

Alguns pontos do trabalho supracitado merecem destaque. Primeiramente, o referido trabalho apresenta um percentual de recidivas de TB (4,5%) de casos tratados. Poucos são os trabalhos nacionais preocupados com esta estimativa propriamente dita. O Ministério da Saúde, na programação das atividades do PCT, prevê uma estimativa de 10% de reingressantes no sistema (por recidiva ou abandono).(3) Procurando-se um exemplo no estado do Rio de Janeiro, onde a situação epidemiológica da TB é bastante séria, encontramos dados(4) que revelam que o percentual de recidivas na cidade de São Gonçalo é de 8%. Como já mencionado anteriormente, nenhum dos resultados dos trabalhos citados, sejam os de Picon et al.(1) ou os de Guedes et al.,(4) pode ser generalizado: os percentuais foram obtidos para as populações estudadas naquele momento. Para a cidade do Rio de Janeiro (Comunicação pessoal de Afranio Lineu Kritski, Professor Adjunto da UFRJ e Vice Coordenador da Rede Brasileira de Pesquisas em Tuberculose), estima-se que o percentual de recidivas seja de 5 a 6% (num período de seguimento de 5 anos após a cura); para o estado de São Paulo (Comunicação pessoal de Vera Galesi, Coordenadora do PCT do Estado de São Paulo), este percentual gira em torno de 5%. Outro destaque do trabalho de Picon et al.(1) é que as 26 recidivas detectadas ocorreram num período que vai de 2 a 96 meses. Em 6 pacientes (6/26 = 19,2%), as recidivas ocorreram nos primeiros 6 meses. Destes 6, 4 apresentaram uso irregular de medicação, e 2 tiveram negativação tardia do escarro. Estes 6 pacientes apresentaram sorologia negativa para HIV.

Em geral, as recidivas precoces estão associadas à reativação endógena do processo. Testes diagnósticos atuais com a reação em cadeia da polimerase poderiam elucidar a natureza do processo (reinfecção ou reativação), mas vale lembrar que os dados levantados referem-se à população de um local onde o referido teste não estava disponível na ocasião. As recidivas mais tardias estariam mais associadas à reinfecção exógena. É importante lembrar que Porto Alegre tem alta prevalência de TB e de infecção pelo HIV. Os autores concluem que, para prevenir a irregularidade do tratamento na cidade estudada, seria importante o tratamento supervisionado da doença. Esta observação é extremamente interessante pois a mobilização no sentido da implantação do tratamento diretamente observado de curta duração – conhecido como directly observed therapy, short-course em inglês – na cidade de Porto Alegre estava, até há pouco tempo, muito morosa.(5)

O trabalho em pauta permite uma reflexão importante sobre a recidiva bem como sobre a epidemiologia da TB no Brasil e no mundo. Mirta Roses, em visita recente ao Brasil, afirmou que as desigualdades sociais e a pobreza geram desafios para se cumprir as Metas de Desenvolvimento do Milênio e defendeu a necessidade de respostas mais ágeis e eficientes a problemas como saúde materna, sobrevivência infantil, desnutrição, tuberculose e malária (2007; Mirta Roses, diretora da OPAS - http://www.opas.org.br/mostrant.cfm?codigodest=230). Roses assinala que "na América Latina e no Caribe, 230 milhões de habitantes (46%) não contam com seguro saúde, 125 milhões (27%) carecem de acesso permanente aos serviços básicos de saúde, 152 milhões não tem acesso à água potável nem a saneamento básico, e 17% dos nascimentos não recebem assistência pessoal qualificada. O índice de imunização é de 90%, mas os 10% que não tomam vacina representam 82 milhões de crianças."

O trabalho sobre recidiva é uma contribuição a mais para enriquecer nossos conhecimentos sobre a dinâmica da TB, a qual é um dos problemas acima assinalados por Roses.

Referências

1. Picon PD, Bassanesi SL, Caramori MLA, Ferreira RLT, Jarczewski CA, Vieira PRB. Fatores de risco para a recidiva da tuberculose. J Bras Pneumol. 2007;33(5):572-8

2. Bier O. Microbiologia e Imunológia. 24th ed. São Paulo: Melhoramentos; 1985.

3. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Centro de Referência Professor Hélio Fraga. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Controle da tuberculose: uma proposta de integração ensino-serviço/FUNASA; CRPHF; SBPT. 5º ed. Rio de Janeiro :FUNASA/CRPHF/SBPT, 2002.

4. Guedes, AP; Matos VC; Novais GC & Ferreira MAS- Levantamento epidemiológico da tuberculose na cidade de São Gonçalo, RJ, no período de janeiro a dezembro de 2003. Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, Belo Horizonte 12 a 15 de setembro de 2004, páginas 1 a 14.

5. Ruffino-Netto A e Villa, TCS- Tuberculose-implantação do DOTS em algumas regiões do Brasil-histórico e peculiaridades regionais Instituto Milênio REDE TB.2006 Ribeirão Preto: Rettec Artes Gráficas; 2006. 210 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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