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Mais do que bons pulmões!

EDITORIAL

Mais do que bons pulmões!

Ilma Aparecida Paschoal

Professora Associada. Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - Campinas (SP) Brasil

A troca gasosa exige mais do que dois pulmões razoavelmente normais, e as doenças neuromusculares ilustram muito bem o conceito explicitado nessa afirmação.

O conhecimento a respeito da fisiologia respiratória cresceu muito durante períodos de crises no mundo. A pandemia de poliomielite entre 1900 e 1950 é um exemplo desse progresso gerado pela necessidade premente, ao tornar vital a disponibilidade de máquinas capazes de substituir a ventilação; no entanto, o interesse em situações de doença que interferem na renovação do ar alveolar por déficits musculares e/ou neurológicos parece ter definhado sensivelmente nas últimas décadas.

Nossa especialidade, inclusive, não tem dado a devida atenção a esses doentes, muito embora o suporte pressórico não-invasivo esteja cada vez mais disponível no país.

Tem grande experiência no atendimento desses pacientes o médico americano John R. Bach, que é neurologista por formação, mas dedica muita atenção ao comprometimento respiratório nas doenças neuromusculares, pois as complicações respiratórias nesses indivíduos são a maior causa de morbidade e mortalidade. Competente e carismático, o Dr. Bach aplica várias técnicas de suporte respiratório e de prevenção de acúmulo de secreções, cuja eficiência ele tem demonstrado em muitas publicações.(1-3) É dele o aforismo que diz que os pacientes com doenças neuromusculares não morrem porque não respiram, mas morrem porque não tossem de maneira adequada.

Em um editorial publicado em 2003,(4) Bach afirma que teve a oportunidade de acompanhar clinicamente mais de 700 pacientes portadores de diferentes doenças neuromusculares, como síndrome pós-poliomielite, trauma raquimedular ou outras condições de fraqueza ou de paralisia de musculatura respiratória. Esses indivíduos foram tratados com suporte pressórico não-invasivo com pressão positiva, realizado por meio de peças bucais e/ou interfaces nasais, de modo contínuo, e por períodos às vezes muito prolongados, por até 40 anos. No entanto, teria sido absolutamente impossível, para esses pacientes, evitar a progressão para a traqueostomia, se para eles não tivesse sido assegurada a possibilidade de uma limpeza eficaz das vias aéreas em situações de acúmulo de secreção.

O transporte mucociliar em pacientes com doenças neuromusculares não traqueostomizados é normal, mas a tosse não é.

Para que a tosse ocorra, os músculos inspiratórios devem promover uma insuflação pulmonar de até 85-90% da capacidade pulmonar total. Acontece, a seguir, o fechamento firme da glote por aproximadamente 0,2 s. A movimentação das pregas vocais exige a contração dos músculos da laringe inervados por neurônios bulbares. A contração subsequente da musculatura expiratória (músculos intercostais e abdominais) produz pressões intrapleurais de até 140 mmHg. A abertura súbita da glote após a contração dos músculos expiratórios gera picos de fluxo da tosse (PFT) de 360 a 1.200 L/min, fluxos esses facilitados pela gradual abdução das pregas vocais.(5) A tosse depende, portanto, das funções preservadas dos músculos inspiratórios, expiratórios e bulbares.

O volume expirado durante a tosse é de 2,3 ± 0,5 L. Um volume corrente de pelo menos 1,5 L deve ter sido inspirado previamente para que se produza uma tosse minimamente efetiva.(6)

É crucial para a geração de um PFT adequado, em pacientes com CVF baixa, a realização de uma insuflação profunda com o ventilador em uso ou então que se proceda à manobra do empilhamento de ar (do inglês air stacking).

A manobra do empilhamento de ar permite o acúmulo de volume suficiente dentro dos pulmões para gerar um PFT aceitável. Ela começa com a tomada de uma inspiração profunda (espontânea ou auxiliada por ventilador ou por ressuscitador manual). Em seguida, o paciente recebe volumes repetidos do ventilador ou do ressuscitador manual, abrindo a glote para receber o novo volume e fechando-a logo a seguir. Se as bochechas ou os lábios forem muito fracos para permitir o empilhamento, a manobra é realizada com a interface bucal ou nasal.(4) A capacidade de realizar o empilhamento de ar indica o grau de preservação da musculatura bulbar.(7) Grandes volumes de ar podem ser armazenados nos pulmões sob pressões de 40-70 cmH2O e a expulsão súbita desse ar, auxiliada pela compressão torácica e/ ou abdominal, é capaz de substituir razoavelmente a tosse. Estima-se que um PFT de pelo menos 160 L/min seja necessário para limpar as secreções das vias aéreas centrais.

O empilhamento de ar como parte da técnica de tosse assistida é eficiente na geração de PFT suficientes para melhorar a eliminação da secreção de vias aéreas de pacientes com grave comprometimento da musculatura inspiratória e da musculatura expiratória,(1-3) fato também observado por Brito et al. no estudo publicado neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia.(8)

Na maioria dos pacientes com doenças neuromusculares, as manobras que visam aumentar os PFT conseguem produzir valores superiores a 160 L/min, com exceção de crianças muito pequenas, incapazes de cooperar, e pacientes portadores de esclerose lateral amiotrófica com comprometimento de músculos bulbares. A falência total da musculatura laríngea, que impossibilita a movimentação das pregas vocais, pode tornar ineficaz até a máquina da tosse (Cough Assist; Philips Respironics, Murrysville, PA, EUA) pela tendência da traqueia em colabar, tanto na inspiração como na expiração, nessa situação. Nessa fase da evolução da doença, apenas a traqueostomia pode evitar a insuficiência respiratória.(4)

Portanto, é de fundamental importância, nos pacientes com doenças neuromusculares, a avaliação da eficiência da tosse, por meio da medida do PFT. Constatada a deficiência, as manobras de auxílio da tosse são mandatórias, em especial durante episódios de infecções respiratórias, mesmo as mais banais, como resfriados. A técnica do empilhamento de ar é bastante eficiente, e sua aplicação precisa ser popularizada em nosso meio. A experiência dos autores relatada no nosso Jornal vem de encontro a essa necessidade.

  • 1. Bach JR, Alba AS, Saporito LR. Intermittent positive pressure ventilation via the mouth as an alternative to tracheostomy for 257 ventilator users. Chest. 1993;103(1):174-82.
  • 2. Bach JR. Amyotrophic lateral sclerosis: prolongation of life by noninvasive respiratory AIDS. Chest. 2002;122(1):92-8.
  • 3. Gomez-Merino E, Bach JR. Duchenne muscular dystrophy: prolongation of life by noninvasive ventilation and mechanically assisted coughing. Am J Phys Med Rehabil. 2002;81(6):411-5.
  • 4. Bach JR. Mechanical insufflation/exsufflation: has it come of age? A commentary. Eur Respir J. 2003;21(3):385-6. Comment on: Eur Respir J. 2003;21(3):502-8.
  • 5. Leith DE. Cough. In: Brain JD, Proctor D, Reid L, editors. Lung Biology in Health and Disease: Respiratory Defense Mechanisms, Part 2. New York: Marcel Dekker; 1977. p. 545-92.
  • 6. Bach JR. Mechanical insufflation-exsufflation. Comparison of peak expiratory flows with manually assisted and unassisted coughing techniques. Chest. 1993;104(5):1553-62.
  • 7. Kang SW, Bach JR. Maximum insufflation capacity. Chest. 2000;118(1):61-5.
  • 8. Brito MF, Moreira GA, Pradella-Hallinan M, Tufik S. Air stacking and chest compression increase peak cough flow in patients with Duchenne muscular dystrophy. J Bras Pneumol. 2009;35(10):973-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009
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