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Fatores de risco

4. Fatores de risco

A fisiopatologia da trombose intravascular, descrita desde o século XIX por Rudolph Virchow, envolve três principais mecanismos: estase venosa, dano local da parede vascular (endotelial) e hipercoagulabilidade (ou trombofilia).(1) A estase permitiria que fatores ativados da coagulação constantemente gerados na circulação sanguínea permanecessem concentrados e em contato continuado com o endotélio vascular. Já o dano endotelial presumivelmente liberaria fatores pró-coagulantes do subendotélio que, ao interagir com vias fibrinolíticas anormais (adquiridas ou herdadas), resultariam no trombo vascular. Condições adquiridas ou herdadas podem, de forma independente ou combinada, interagir e causar um distúrbio no delicado balanço da homeostase coagulatória, facilitando a trombose ao invés da manutenção da fluidez sanguínea. Nas ultimas décadas, uma ampla variedade de fatores de risco foram identificados, todos derivados de alguma forma dos mecanismos básicos descritos por Virchow. A chamada TEV seria, portanto, o resultado de uma interação multifacetada de algumas características presentes numa determinada oportunidade num individuo. As características clínicas individuais que resultam nos estados trombofílicos, sejam do âmbito genético (herdados) ou adquiridos (resultantes de traumas com a liberação de substâncias protrombóticas na circulação sanguínea), interagem temporalmente com situações de imobilizações.(2) A importância do devido reconhecimento dos fatores de risco dessa doença está na possibilidade de prevenção (tromboprofilaxia), que é sabidamente mais fácil e menos dispendiosa do que diagnosticála ou tratá-la. Estima-se que cerca de 80% dos pacientes que desenvolvem TEV têm algum fator de risco identificável que poderia ter sido abordado precocemente.(3) Consensos recentes sugerem que a forma e a intensidade da tromboprofilaxia sejam moduladas pela avaliação cumulativa de fatores de risco protrombóticos (Quadro 4).(4)


Fatores de risco intrínsecos do individuo e não modificáveis são a idade (o risco aumenta exponencialmente) e talvez o gênero (maior em pessoas do sexo feminino durante os anos reprodutivos, enquanto a incidência na terceira idade parece ser superior no sexo masculino, talvez por um maior acúmulo relativo de comorbidades).(5-8)

Existem diversas entidades de trombofilias herdadas e faltam estudos epidemiológicos nacionais que mostrem a representatividade desses em nosso país. Números obtidos na literatura internacional sugerem que até 30% dos casos de TEV poderiam estar ligados às predisposições genéticas, principalmente em associação a fatores de risco adquiridos.(9,10)

A mutação do fator V Leiden causa resistência para os efeitos anticoagulantes da proteína C ativada. O estado heterozigoto parece aumentar a chance de TEV durante a vida em 2-8 vezes, enquanto o risco entre homozigotos é estimado em 30-80 vezes, se comparado com o da população em geral.(11) A protrombina variante G20210A determina a superprodução desse fator de coagulação, e, portanto, ocorre uma maior geração de trombina e um risco para TEV de 2-5 vezes (heterozigoto) e de 10-20 vezes (homozigoto). A deficiência de antitrombina, proteína C e proteína S também é responsável por uma parcela menor de casos de TEV (Quadro 5).(12)


Trombofilias adquiridas são condições predisponentes para a trombose de forma não herdada e são muito variadas. O risco em portadores de malignidade é de 2-20 vezes maior se comparado ao da população geral de semelhante idade e sexo, devido à produção de substâncias com atividade pró-coagulantes, especialmente em tumores do tipo adenocarcinoma (produtores de mucina).(13) Esse risco pode ser potencializado pela associação com outras características relacionadas, como a invasão ou a compressão venosa, a imobilização prolongada (por doença neoplásica ou intercorrências terapêuticas clinicas ou cirúrgicas) e a utilização de determinados regimes quimioterápicos ou medicamentosos (tamoxifeno, asparaginase, etc.). A maioria dos casos de malignidade relacionada com eventos tromboembólicos é clinicamente aparente; entretanto, a TEV pode preceder o diagnóstico da malignidade (oculta) em até alguns meses.(14) Doenças mieloproliferativas (especialmente policitemia vera e trombocitopenia essencial) podem apresentar hiperviscosidade, amplificando esse risco.(15) Anticorpos antifosfolípides, incluindo o anticorpo anticardiolipina e o anticoagulante lúpico, são um grupo heterogêneo de imunoglobulinas direcionadas contra complexos proteína-fosfolipídeo, capazes, nessa interação, de inibir as vias anticoagulantes naturais ou ativar o endotélio.(16) A hiper-homocisteinemia (variadas causas) também foi descrita como um fator independente de TEV, sendo estimada, em uma meta-análise, de aumentar o risco em até 3 vezes.(15) O risco trombótico é claramente aumentado em qualquer forma de trauma importante, inclusive cirúrgico, ainda mais se envolver o território de uma veia de grande calibre e resultar em um extenso dano tissular, liberando tromboplastinas circulantes. Cirurgias em geral resultam em um aumento do risco relativo, estratificável em relação à idade, tipo de procedimento, presença de malignidade e coexistência de trombofilias hereditárias.(5,13,17) Devido ao seu uso disseminado, contraceptivos orais são a mais importante causa de trombose em mulheres jovens (relacionada sobretudo ao conteúdo estrogênico e aos novos progestágenos), sendo o risco crescente dentro dos primeiros 4 meses do inicio da terapia e não se alterando pela duração de uso, e reduzindo ao nível basal dentro de 4 meses após a interrupção do uso. Estudos observacionais estabeleceram que o uso corrente de terapia de reposição hormonal, mesmo com uma menor concentração estrogênica do que contraceptivos orais, também incorre em um aumento do risco tromboembólico.(18)Da mesma forma, o estado gestacional e o puerpério aumentam o risco relativo de TEV de maneira multifatorial.(2) A imobilização relativa ou absoluta é uma característica intrínseca de hospitalização, e qualquer paciente clínico criticamente enfermo admitido e acamado tem um maior risco de TEV. (19-21) Viagens prolongadas ("síndrome da classe econômica") têm como a duração média da imobilização um importante fator contribuinte.(20) Doenças neurológicas, incluindo paresia ou plegias, também causam imobilização. A insuficiência cardíaca congestiva comporta-se como um "estado de hipercoagulabilidade" que pode resultar em trombo intracardíaco e TEV, sendo que o maior risco de TEV seria maior naqueles pacientes com falência ventricular direita (com edema periférico).(21) Episódios prévios de TEV são um importante fator de risco para TEV, podendo conferir um risco relativo de até 8 vezes para a sua recorrência.(22,23) Episódios de trombose prévios que ocorreram na ausência de fatores de risco identificáveis (trombose idiopática) ou em associação com fatores de risco permanentes (câncer, etc.), têm uma chance de recorrência maior do que aqueles relacionados com riscos efêmeros (imobilização, uso de contraceptivos orais, etc.). A obesidade parece interagir com fatores de risco definidos (gestação, uso de contraceptivos orais, idade, fator V Leiden, etc.), amplificando seus efeitos no risco de TEV.(10,23) Não há consenso na literatura com relação ao papel dos fatores cardiovasculares de risco para doença arterial (tabagismo, hipertensão, diabete melito, dislipidemia) em relação à TEV.(24)

Fatores de risco para TEV são importantes, pois ajudam na avaliação diagnóstica, inferindo um peso na probabilidade clinica de TEP, e auxiliam no desenho da profilaxia mais adequada para cada situação clinica, podendo até definir um tratamento de forma e duração distintas para cada problema.(25) Não há consenso na literatura em relação à indicação de exames na suspeita de trombofilia herdada ou adquirida inaparente (hiper-homocisteinemia, anticoagulante lúpico, etc.), mas se sugere avaliar as seguintes situações (D):

• TEV antes da sexta década (< 50 anos)

• História de TEV sem causa aparente ou recorrente

• Evento trombótico em sitio incomum (membro superior, etc.)

• História familiar de TEV, principalmente em jovens

Testar indivíduos para a trombofilia com exames laboratoriais sofisticados é muito dispendioso, sendo que mesmo no selecionado grupo assinalado acima, alguns autores(8) propõem que se avaliem exclusivamente o fator V Leiden e a variante protrombínica - pela importância de sua prevalência nos estudos disponíveis - hiper-homocisteinemia - pela possibilidade de tratamento vitamínico - e anticorpos antifosfolípides - pela importância na manutenção da intensidade e da duração do tratamento preventivo.(D)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2010
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