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Relato de dois casos de pacientes com SARA tratados com membrana extracorpórea de troca gasosa sem bomba

CARTA AO EDITOR

Relato de dois casos de pacientes com SARA tratados com membrana extracorpórea de troca gasosa sem bomba

Alexandre Peixoto CosciaI; Haroldo Falcão Ramos da CunhaII; Alessandra Gouvea LongoIII; Enio Gustavo Schoeder MartinsIV; Felipe SaddyV; Andre Miguel JapiassuVI

IMédico, Centro de Tratamento Intensivo, Hospital Quinta D'Or, Rio de Janeiro (RJ) Brasil

IIMédico, Centro de Tratamento Intensivo, Hospital Quinta D'Or, Rio de Janeiro (RJ) Brasil

IIIMédica, Centro de Tratamento Intensivo, Hospital Quinta D'Or, Rio de Janeiro (RJ) Brasil

IVMédico, Centro de Tratamento Intensivo, Hospital Quinta D'Or, Rio de Janeiro (RJ) Brasil

VMédico, Unidade de Pacientes Ventilados, Hospital Copa D'Or, Rio de Janeiro (RJ) Brasil

VIMédico, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz e Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, Rio de Janeiro (RJ) Brasil

A SARA ocorre em pacientes com insuficiência respiratória de diversas etiologias e acarreta alta morbidade e mortalidade. Mesmo quando se aplica estratégia ventilatória protetora, (1) métodos alternativos de manutenção da troca gasosa são necessários. A hipercapnia pode ser tratada com um dispositivo de extracorporeal membrane oxygenation (ECMO, oxigenação extracorpórea por membrana), que requer aparato próprio complexo e se associa a paraefeitos, ficando seu uso limitado a centros de referência. Em contraste à ECMO, o sistema interventional lung assist (iLA), que promove a troca gasosa para a remoção de CO2 sem a utilização de bomba, é aplicado através de shunt artificial, implantado através de dissecção arterial e venosa. Seu uso está indicado no controle de acidose respiratória e hipoxemia causados pelos altos níveis de CO2 (> 80 mmHg) durante estratégia ventilatória protetora. O fluxo sanguíneo ocorre através de diferença arteriovenosa, sem a necessidade de circulação extracorpórea. A instalação de iLA implica em shunt de aproximadamente 30% do débito cardíaco. A estabilidade hemodinâmica sem a utilização de aminas ou com aminas em doses baixas e função cardíaca adequada são pré-requisitos. A adequação do fluxo através do shunt e da membrana é medida continuamente através de Doppler acoplado ao sistema. Seu uso ainda é tema de relatos ou série de casos, já que é uma metodologia recente.(2,3) Relatamos dois casos em que a estratégia com iLA (Novalung GmbH, Talheim, Alemanha) foi empregada.

No primeiro caso, uma paciente gestante na 24ª semana, 31 anos de idade, com diagnóstico recente de leucemia mieloide aguda (subtipo M3) foi admitida na UTI com insuficiência respiratória hipoxêmica e evolução para SARA. Ela foi tratada com quimioterapia e necessitou politransfusão. As hipóteses de causas da SARA foram síndrome all trans-retinoic acid, secundária a politransfusão, e pneumonia. Não houve sangramento oriundo do trato respiratório. Sem melhora, houve necessidade de intubação traqueal no 4º dia. Iniciou terapia de substituição renal no mesmo dia por falência renal. A ventilação foi ajustada com limite de pressão de platô < 30 cmH2O, com volume corrente (VC) de 6 mL/kg de peso e positive end-expiratory pressure (PEEP, pressão expiratória final positiva) de 15 cmH2O. A pressão intra-abdominal (PIA) era 20 mmHg, e tentamos equilibrá-la com a PEEP final ajustada. Após 24 h, a relação PaO2/FiO2 caiu para abaixo de 90. Procedemos um novo ajuste da pressão inspiratória até atingir pressão de abertura pulmonar de 30 cmH2O e VC de 5 mL/kg. Observou-se hipercapnia e acidose respiratória (PaCO2 = 115 mmHg e pH = 7,15). Manobras de recrutamento pulmonar, com delta de pressão de 15 cmH2O com PEEP de 35 cmH2O por 2 min, não lograram êxito. Por ser gestante, a posição prona não pôde ser implementada. Optou-se pela colocação de iLA sem anticoagulação sistêmica, porque a paciente já apresentava tempo de tromboplastina parcial em 2,3 vezes o normal e plaquetopenia (57.000 células/mm3). Após 20 min da instalação, com suplementação de 9 L/min de O2, os parâmetros ventilatórios foram os seguintes: PEEP de 20 cmH2O, VC de 4 mL/kg, pressão de abertura pulmonar de 20 cmH2O e relação inspiratória:expiratória 1:1. Isso resultou em um aumento na relação PaO2/FiO2 de 100% e na diminuição de CO2 em 50%. A paciente permaneceu independente de aminas vasoativas, e o fluxo no circuito de iLA situava-se em torno de 1,4 L/min. Após 14 h de uso de iLA, foi iniciado suporte ventilatório em modo Bivent em ventilação com suporte pressórico mantendo a pressão de abertura pulmonar em 15 cmH2O. Passadas 48 h do início de uso de iLA, houve parto espontâneo, com consequente redução da PIA para 7 mmHg. A complacência estática e a relação PaO2/FiO2 melhoraram 56% e 64%, respectivamente. No 8º dia de iLA, foi iniciada pressão positiva contínua nas vias aéreas em ventilação com suporte pressórico e PaCO2 sustentada em menos de 40 mmHg, sendo dispensado o dispositivo iLA (Figura 1). Houve necessidade de traqueostomia, e o desmame ventilatório ocorreu no 36º dia de UTI. A paciente faleceu 53 dias após a internação em consequência de complicações da doença hematológica.


No segundo caso, um paciente do sexo masculino, 74 anos, apresentou tosse seca e dispneia progressiva aos esforços 6 dias antes da internação. Foi tratado ambulatorialmente com fluoroquinolona por 3 dias, sem melhora. Hipertensão arterial e doença arterial coronariana eram doenças associadas. Foi admitido na UTI com insuficiência respiratória aguda hipoxêmica por SARA (PaO2 = 51 mmHg; SaO2 = 89%) e necessidade de intubação orotraqueal. O esquema antibiótico foi ampliado para piperacilina/tazobactam, azitromicina e sulfametoxazol/trimetoprima, devido à suspeita de infecção por germes resistentes e oportunistas. Houve piora progressiva, com relação PaO2/FiO2 de 95 e PaCO2 de 85 mmHg, sob pressão de platô de 35 cmH2O e pressão de abertura pulmonar de 20 cmH2O. Foi iniciada hemodiálise para o controle de fluidos e de acidose grave (pH = 7,06). A PIA manteve-se menor que 12 mmHg, e não houve necessidade de uso de vasopressores. Foram realizadas manobras de recrutamento alveolar sem sucesso (delta de pressão de 15 cmH2O com PEEP de 35 cmH2O por 2 min). No 3º dia, o paciente foi submetido à biópsia pulmonar, seguida da implantação de iLA e anticoagulação sistêmica. Após 24 h, observou-se uma redução da PaCO2 para 50 mmHg, com VC de 5 mL/kg, pressão platô de 30 cmH2O e pressão de abertura pulmonar de 15 cmH2O. No 5º dia, o sistema iLA foi removido, pois houve melhora (PaCO2 de 47 mmHg e PaO2/FiO2 de 225). O diagnóstico de pneumonia criptogênica em organização foi estabelecido no 6º dia pós-biópsia. O paciente foi tratado com metilprednisolona por 3 dias. O paciente melhorou e recebeu alta hospitalar após 134 dias, e encontrava-se funcionalmente independente em seu domicílio até o momento de redação desta carta.

Descrevemos dois casos em que pacientes apresentavam SARA, hipercapnia grave e impossibilidade de implementação de estratégia protetora ventilatória. Em ambos os casos, pelo fato de iLA ser uma terapia inovadora, a decisão para a instalação do dispositivo foi tomada em conjunto com a direção médica do CTI e do hospital, a equipe assistente e o responsável direto pelo paciente. Houve condição hemodinâmica suficiente para garantir um gradiente de pressão entre o território vascular arterial e venoso.(2) Além da melhora na troca gasosa e da remoção de CO2, a evolução radiológica foi satisfatória. O principal benefício na troca gasosa é a remoção de CO2, com pouco efeito sobre a oxigenação.(3) O uso de iLA já foi descrito em certos cenários, como trauma torácico, (4) trauma craniano, (5) infecção por influenza H1N1, (6) doenças pulmonares obstrutivas, (7) transplante pulmonar(8) e grandes cirurgias torácicas.(9) Seu uso está frequentemente associado ao uso de terapias de substituição da função renal, na tentativa de tratar o quadro de acidose.(10) As contraindicações absolutas são trombocitopenia induzida por heparina, choque séptico e/ou cardiogênico graves e peso inferior a 20 kg. Até onde sabemos, este é o primeiro relato do uso de iLA em uma paciente grávida e os dois primeiros casos no Brasil. Seu uso deve ser lembrado como ferramenta no tratamento de pacientes com hipercapnia grave refratária (Tabela 1).

Recebido para publicação em 10/10/2011.

Aprovado, após revisão, em 26/12/2011.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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