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Osteíte por BCG Moreau em uma menina vacinada ao nascer

CARTA AO EDITOR

Osteíte por BCG Moreau em uma menina vacinada ao nascer

Nelson MorroneI; Cláudio do Amaral AntonioII; Claudio SantilliIII; Beatriz Tavares Costa-CarvalhoIV; Denise RodriguesV

IColaborador, Instituto Clemente Ferreira, Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil

IIMédico, Instituto Clemente Ferreira, Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil

IIIMédico, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo (SP) Brasil

IVProfessora Adjunta, Disciplinas de Alergia e Imunologia e de Reumatologia, Departamento de Pediatria, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil

VMédica, Instituto Clemente Ferreira, Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, São Paulo (SP) Brasil

Ao Editor:

Paciente do sexo feminino com dois anos e quatro meses de idade, proveniente da cidade de São Paulo (SP). Foi vacinada na maternidade com BCG e referia dor na perna direita, com deambulação prejudicada, há 15 dias; foi medicada com anti-inflamatório não hormonal, apresentando melhora, mas com piora duas semanas após a interrupção da medicação. A radiografia do joelho revelou lesão osteolítica na epífise distal do fêmur direito. A ressonância magnética (Figura 1) detectou lesão em epífise distal do fêmur direito, centromedial, com múltiplas áreas de erosão das corticais; havia maior descontinuidade da cortical; ausência de derrame na porção posteroinferior do côndilo femoral medial. Foi medicada por 14 dias com ceftriaxona, sem melhora. A punção biópsia do joelho direito revelou granuloma, sem evidenciação de BAAR. Foi iniciado o tratamento com isoniazida, rifampicina e pirazinamida. A investigação dos pais, irmãos e babás não revelou tuberculose pulmonar ou extrapulmonar. Na admissão ao nosso serviço, alguns dias após o início do tratamento, a paciente apresentava bom estado geral; a única anormalidade no exame físico era edema frio e doloroso à palpação no joelho direito, na porção distal e proximal à tíbia, com incapacidade funcional.


Os seguintes exames foram realizados: teste tuberculínico, com PPD de 14 mm de enduração; radiografia e ressonância magnética do joelho direito; enzyme-linked immunospot (ELISPOT) negativo; biópsia do joelho, apresentando escasso tecido ósseo com dois granulomas epitelioides, com necrose caseosa em um deles, e infiltrado crônico linfoplasmocitário; BAAR ausente; cultura positiva para micobactérias; PCR demonstrando a sequência de inserção 6110, que é característica de micobactéria, e presença de duplicação do espaçador 33 da região DR (amplicon, 172 bp), presente apenas na cepa BCG do Mycobacterium bovis e ausente no M. tuberculosis; PCR negativa para M. tuberculosis; exames de rotina (hemograma, VHS, HIV e avaliação hepática e renal) sem anormalidades; imunidade humoral e celular normal (Tabela 1); e TC de tórax normal.

A evolução clínica foi satisfatória, e a paciente obteve alta após 18 meses de tratamento, apresentando radiografia do fêmur direito normal.

A vacina BCG é usada em muitos países do mundo, e não há regras rígidas em relação a idade de vacinação, grupos a serem vacinados, tipo de vacina, concentração de bacilos, proporção de bacilos vivos e mortos e forma de aplicação. Muitas são as cepas utilizadas; entretanto, há dúvidas quanto ao número total de bacilos viáveis e não viáveis, o que poderia potencializar a imunidade induzida pelos primeiros, assim como quanto à capacidade do PPD em induzir alergias, fatores esses que podem interferir com a potência da vacina ou com suas complicações.(1,2) No Brasil, a vacinação é realizada nos primeiros dias de vida com a cepa BCG Moreau, com a aplicação intradérmica na inserção do deltoide direito, nas concentrações de 300.000 e 1.000.000 bacilos por dose.

Efeitos colaterais graves são pouco frequentes e incluem ulceração persistente no local de aplicação, adenopatia satélite, osteíte e doença disseminada, a qual pode ocorrer se a imunidade do indivíduo estiver muito diminuída, incluindo os casos de aplicação local da vacina em portadores de carcinoma de bexiga. Na República Checa, a incidência de complicações diminuiu com a utilização de doses menores da vacina.(3)

Na Rússia, a incidência de tuberculose óssea foi superior à de tuberculose primária, sendo confirmado como causa o BCG em 46% dos casos de osteíte.(4)

No Japão, a incidência foi de 0,2 casos de osteíte/100.000 vacinações, com variação de acordo com a cepa do BCG(5) e com o uso de vacinas menos reatogênicas.(6) Na Finlândia, também a incidência de osteíte variou com a cepa do BCG.(7)

Não foram encontrados registros de osteíte causada por BCG Moreau, mas é preciso assinalar que essa é uma cepa pouco utilizada no mundo em comparação a outras, principalmente BCG Glaxo e BCG Pasteur-Paris. No Brasil, foi recentemente publicado um caso com altíssima probabilidade de osteíte por BCG em uma criança eutrófica e não imunossuprimida, com lesão no rádio e cúbito, embora a identificação do bacilo não tenha sido realizada.(8)

O diagnóstico de osteíte por BCG na nossa paciente é indiscutível. O teste tuberculínico confirmou que a positividade ao PPD não depende do M. tuberculosis, pois o ELISPOT foi negativo. A biópsia revelou granuloma com caseificação, sem a visualização de bacilos, mas a cultura foi positiva, confirmando micobacteriose; a confirmação de BCG foi feita pela presença da sequência de inserção 6110 por PCR, que caracteriza a vacina. Portanto, aparentemente, esse é o primeiro caso comprovado de osteíte por BCG causada pela cepa Moreau. Os critérios clássicos de Foucard e Hjelmstedt(9) são úteis para levantar a suspeita, pois incluem vacinação prévia no período neonatal, doença com sintomas até quatro anos após a vacinação, ausência de contato com tuberculose, quadro clínico compatível e histopatologia compatível com tuberculose. Esses critérios estavam presentes na nossa paciente, mas a demonstração de M. bovis é o critério ouro atual.

A paciente foi tratada com isoniazida, rifampicina e pirazinamida devido ao diagnóstico presuntivo de tuberculose. A probabilidade de osteíte por BCG foi aventada posteriormente e, por essa razão, a pirazinamida foi suspensa porque essa micobactéria é resistente a tal fármaco. O tratamento foi mantido por 18 meses, com cura total. Entretanto, o tratamento somente com isoniazida e rifampicina por 6 meses também foi relatado com sucesso. A recidiva é rara.

A osteíte por BCG é um pouco mais frequente em meninos. A osteíte no úmero seria por continuidade, o que era impossível em nossa paciente. A osteíte por disseminação hematogênica é mais provável e ocorre principalmente nas epífises de ossos longos dos membros, que são muito vascularizados, e geralmente é única,(5,10) sendo excepcional o comprometimento de outros ossos, tais como o esterno(11) e o sacro.(12) A unilateralidade da doença sugere que, anteriormente ao estabelecimento dos bacilos, pode ter havido alguma razão para o aumento da circulação, como um trauma mínimo. Contudo, é estranho que outros órgãos muito vascularizados sejam mais resistentes.

A disseminação do BCG é facilitada por imunodepressão, que não foi demonstrada em nosso caso, com resultados normais no hemograma, na contagem de linfócitos, CD4, CD8 e linfócitos natural killer, assim como em relação a anticorpos contra rubéola, sarampo e pneumococos e ao teste de oxidação de di-hidrorodamina; infelizmente, não foi possível a determinação dos níveis de IL-12, cuja deficiência/ausência pode estar ligada a doença por micobactérias. No Brasil, essa afecção foi evidenciada em dois irmãos com adenite por BCG e com deficiência de formação de IL-12 após estimulação com INF-γ.(13)

Recebido para publicação em 16/02/2012.

Aprovado, após revisão, em 08/03/2012.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Out 2012
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