Ao Editor:
Li com interesse o artigo de Assis e Isoldi intitulado "Panorama dos
processos bioquímicos e genéticos presentes no mesotelioma maligno". (
11. Assis LV, Isoldi MC. Overview of the biochemical and genetic
processes in malignant mesothelioma. J Bras Pneumol. 2014;40(4):429-42.
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132014000400012
https://doi.org/10.1590/S1806-3713201400...
) O texto traz uma revisão dos mecanismos na tumorigênese do mesotelioma
maligno (MM), embasado numa ampla revisão bibliográfica, que inclui trabalhos
originais dos próprios autores. O tema é relevante uma vez que há indicações de um
aumento paulatino da incidência do MM no Brasil, particularmente na região
Sudeste,(
22. Pedra F, Tambellini AT, Pereira Bde B, da Costa AC, de Castro HA.
Mesothelioma mortality in Brazil, 1980-2003. Int J Occup Environ Health.
2008;14(3):170-5. http://dx.doi.org/10.1179/oeh.2008.14.3.170
https://doi.org/10.1179/oeh.2008.14.3.17...
) mesmo com os fortes indícios de subnotificação e subregistro. É um
câncer de péssimo prognóstico, evitável, uma vez que, na esmagadora maioria dos
casos, tem uma causa ocupacional ou ambiental.
Embora o objeto do texto esteja definido no título da revisão, os autores fazem uma introdução de duas páginas envolvendo questões gerais sobre o MM, motivo dos comentários da presente carta.
O primeiro comentário refere-se ao vírus símio 40 (SV40). No resumo da referida publicação,(1) os autores afirmam que "o desenvolvimento do MM é fortemente correlacionado com a exposição ao amianto e erionita, assim como ao vírus símio 40". Ao final do sexto parágrafo da introdução, o comentário é repetido com outra redação acompanhada de quatro referências bibliográficas.
Nos anos 60 do último século, alguns lotes de vacinas antipólio foram contaminados
pelo SV40. Desde então, houve interesse no estudo das repercussões da inoculação
acidental do SV40 em populações que receberam os lotes contaminados. Há mais de 20
anos levantou-se a hipótese de participação do SV40 na gênese do MM pelo seu
potencial de causar mesoteliomas em animais de laboratório.(
33. Cicala C, Pompetti F, Carbone M. SV40 induces mesotheliomas in
hamsters. Am J Pathol. 1993;142(5):1524-33.
) Posteriormente, seguiram-se estudos que demonstraram a participação do
SV40 em uma proporção importante de casos de MM.(
44. Jasani B, Jones CJ, Radu C, Wynford-Thomas D, Navabi H, Mason M, et
al. Simian virus 40 detection in human mesothelioma: reliability and significance of
the available molecular evidence. Front Biosci. 2001;6:E12-22.
http://dx.doi.org/10.2741/Jasani
https://doi.org/10.2741/Jasani...
,
55. Gazdar AF, Carbone M. Molecular pathogenesis of malignant
mesothelioma and its relationship to simian virus 40. Clin Lung Cancer.
2003;5(3):177-81. http://dx.doi.org/10.3816/CLC.2003.n.031
https://doi.org/10.3816/CLC.2003.n.031...
) Entretanto, estudos epidemiológicos em populações expostas a vacinas
contaminadas não demonstraram um aumento na incidência de câncer, incluindo-se o
MM.(
66. Rollison DE, Page WF, Crawford H, Gridley G, Wacholder S, Martin J,
et al. Case-control study of cancer among US Army veterans exposed to simian virus
40-contaminated adenovirus vaccine. Am J Epidemiol. 2004;160(4):317-24.
http://dx.doi.org/10.1093/aje/kwh212
https://doi.org/10.1093/aje/kwh212...
) Dois estudos, envolvendo múltiplas técnicas de detecção viral de SV40 em
tecidos de MM e de rins normais, evitando-se reações cruzadas com outros
poliomavírus, não demonstraram a presença do SV40 nas amostras
analisadas.(
77. Manfredi JJ, Dong J, Liu WJ, Resnick-Silverman L, Qiao R, Chahinian
P, et al. Evidence against a role for SV40 in human mesothelioma. Cancer Res.
2005;65(7):2602-9. http://dx.doi.org/10.1158/0008-5472.CAN-04-2461
https://doi.org/10.1158/0008-5472.CAN-04...
,
88. López-Rios F, Illei PB, Rusch V, Ladanyi M. Evidence against a role
for SV40 infection in human mesotheliomas and high risk of false-positive PCR results
owing to presence of SV40 sequences in common laboratory plasmids. Lancet.
2004;364(9440):1157-66. Erratum in: Lancet. 2005;366(9503):2086.
http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(04)17102-X
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(04)17...
) Em contrapartida, utilizando-se um método de ELISA indireto,
demonstrou-se uma maior prevalência de anticorpos séricos contra o SV40 em pacientes
portadores de MM.(
99. Mazzoni E, Corallini A, Cristaudo A, Taronna A, Tassi G, Manfrini M,
et al. High prevalence of serum antibodies reacting with simian virus 40 capsid
protein mimotopes in patients affected by malignant pleural mesothelioma. Proc Natl
Acad Sci U S A. 2012;109(44):18066-71.
http://dx.doi.org/10.1073/pnas.1213238109
https://doi.org/10.1073/pnas.1213238109...
)
Recentemente, a International Agency for Research on Cancer (IARC) publicou uma ampla revisão sobre a carcinogenicidade dos poliomavírus, concluindo que as evidências do SV40 em humanos são inadequadas, sendo classificado como carcinógeno do Grupo 3,( 1010. IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Malaria and some polyomaviruses (SV40, BK, JC, and Merkel Cell Viruses) In: IARC Monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans. International Agency for Research on Cancer. World Health Organization. Vol. 104. Lyon, France: World Health Organization. 2013. p. 133-204. ) o que significa que o SV40 não é classificável como cancerígeno para humanos. Naquele texto,( 1010. IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Malaria and some polyomaviruses (SV40, BK, JC, and Merkel Cell Viruses) In: IARC Monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans. International Agency for Research on Cancer. World Health Organization. Vol. 104. Lyon, France: World Health Organization. 2013. p. 133-204. ) discutem-se as razões de resultados discordantes em estudos publicados. Frente às evidências disponíveis, afirmar-se que o MM é fortemente correlacionado com o SV40 é incorreto e, o que é ainda pior, da forma como está no texto, induz o leitor a equiparar o SV40 ao potencial indutor do asbesto.
O segundo comentário refere-se à menção dos autores sobre "um grande debate mundial"
na participação do amianto do tipo crisotila na gênese do MM. Os autores prosseguem,
afirmando que "há relatos de que o amianto crisotila não é capaz de causar MM em
humanos", sem fornecerem qualquer referência que sustente tal assertiva. O consenso
não é esse! A crisotila é considerada como cancerígena do Grupo 1 para o mesotélio
pelo IARC.(
1111. IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to
Humans. Arsenic, metals, fibres, and dusts. In: IARC Monographs on the evaluation of
carcinogenic risks to humans. International Agency for Research on Cancer. World
Health Organization. Vol. 100C. Lyon, France: World Health Organization. 2012. p.
11-465.
) O que se admite é que o potencial cancerígeno da crisotila para o
mesotélio é inferior aos do tipo anfibólio em uma ordem de grandeza.(
1212. Hodgson JT, Darnton A. The quantitative risks of mesothelioma and
lung cancer in relation to asbestos exposure. Ann Occup Hyg. 2000;44(8):565-601.
http://dx.doi.org/10.1093/annhyg/44.8.565
https://doi.org/10.1093/annhyg/44.8.565...
)
Os autores são especialistas no ponto focal do artigo. Prova disso são as referências de trabalhos produzidos pelo grupo. O texto sobre genes e vias bioquímicas é uma excelente revisão do tema; porém, a introdução tropeça ao utilizar afirmativas mal sustentadas ou incorretas sobre as relativas relações de força dos agentes indutores do MM e sobre as relações de causalidade da doença, fartamente discutidas e disponíveis na literatura científica, o que compromete a publicação ao introduzir conceitos recorrentemente errôneos ao leitor.
References
-
1Assis LV, Isoldi MC. Overview of the biochemical and genetic processes in malignant mesothelioma. J Bras Pneumol. 2014;40(4):429-42. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132014000400012
» https://doi.org/10.1590/S1806-37132014000400012 -
2Pedra F, Tambellini AT, Pereira Bde B, da Costa AC, de Castro HA. Mesothelioma mortality in Brazil, 1980-2003. Int J Occup Environ Health. 2008;14(3):170-5. http://dx.doi.org/10.1179/oeh.2008.14.3.170
» https://doi.org/10.1179/oeh.2008.14.3.170 -
3Cicala C, Pompetti F, Carbone M. SV40 induces mesotheliomas in hamsters. Am J Pathol. 1993;142(5):1524-33.
-
4Jasani B, Jones CJ, Radu C, Wynford-Thomas D, Navabi H, Mason M, et al. Simian virus 40 detection in human mesothelioma: reliability and significance of the available molecular evidence. Front Biosci. 2001;6:E12-22. http://dx.doi.org/10.2741/Jasani
» https://doi.org/10.2741/Jasani -
5Gazdar AF, Carbone M. Molecular pathogenesis of malignant mesothelioma and its relationship to simian virus 40. Clin Lung Cancer. 2003;5(3):177-81. http://dx.doi.org/10.3816/CLC.2003.n.031
» https://doi.org/10.3816/CLC.2003.n.031 -
6Rollison DE, Page WF, Crawford H, Gridley G, Wacholder S, Martin J, et al. Case-control study of cancer among US Army veterans exposed to simian virus 40-contaminated adenovirus vaccine. Am J Epidemiol. 2004;160(4):317-24. http://dx.doi.org/10.1093/aje/kwh212
» https://doi.org/10.1093/aje/kwh212 -
7Manfredi JJ, Dong J, Liu WJ, Resnick-Silverman L, Qiao R, Chahinian P, et al. Evidence against a role for SV40 in human mesothelioma. Cancer Res. 2005;65(7):2602-9. http://dx.doi.org/10.1158/0008-5472.CAN-04-2461
» https://doi.org/10.1158/0008-5472.CAN-04-2461 -
8López-Rios F, Illei PB, Rusch V, Ladanyi M. Evidence against a role for SV40 infection in human mesotheliomas and high risk of false-positive PCR results owing to presence of SV40 sequences in common laboratory plasmids. Lancet. 2004;364(9440):1157-66. Erratum in: Lancet. 2005;366(9503):2086. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(04)17102-X
» https://doi.org/10.1016/S0140-6736(04)17102-X -
9Mazzoni E, Corallini A, Cristaudo A, Taronna A, Tassi G, Manfrini M, et al. High prevalence of serum antibodies reacting with simian virus 40 capsid protein mimotopes in patients affected by malignant pleural mesothelioma. Proc Natl Acad Sci U S A. 2012;109(44):18066-71. http://dx.doi.org/10.1073/pnas.1213238109
» https://doi.org/10.1073/pnas.1213238109 -
10IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Malaria and some polyomaviruses (SV40, BK, JC, and Merkel Cell Viruses) In: IARC Monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans. International Agency for Research on Cancer. World Health Organization. Vol. 104. Lyon, France: World Health Organization. 2013. p. 133-204.
-
11IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Arsenic, metals, fibres, and dusts. In: IARC Monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans. International Agency for Research on Cancer. World Health Organization. Vol. 100C. Lyon, France: World Health Organization. 2012. p. 11-465.
-
12Hodgson JT, Darnton A. The quantitative risks of mesothelioma and lung cancer in relation to asbestos exposure. Ann Occup Hyg. 2000;44(8):565-601. http://dx.doi.org/10.1093/annhyg/44.8.565
» https://doi.org/10.1093/annhyg/44.8.565
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sep-Oct 2014