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Efeitos da COVID-19 no controle da tuberculose: passado, presente e futuro

Ao comemorarmos o Dia Mundial da Tuberculose em 24 de março, o maior desafio enfrentado no controle da tuberculose é a pandemia de COVID-19.11 TB/COVID-19 Global Study Group. Tuberculosis and COVID-19 co-infection: description of the global cohort. Eur Respir J. 2022;59(3):2102538. https://doi.org/10.1183/13993003.02538-2021
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De acordo com o último relatório da OMS, o número de novos casos de tuberculose caiu de 7,1 milhões em 2019 para 5,8 milhões em 2020; o número de casos de tuberculose drogarresistente (TBDR) também diminuiu de 177.100 para 150.359, e o número de pacientes em tratamento preventivo da tuberculose diminuiu de 3,6 milhões para 2,8 milhões.22 World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: WHO; c2022 [cited 2022 Mar 10]. Global Tuberculosis Report 2021. 57p. Available from: https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1379788/retrieve
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De fato, a Global Tuberculosis Network coordenou um estudo multicêntrico33 Migliori GB, Thong PM, Alffenaar JW, Denholm J, Tadolini M, Alyaquobi F, et al. Gauging the impact of the COVID-19 pandemic on tuberculosis services: a global study. Eur Respir J. 2021;58(5):2101786. https://doi.org/10.1183/13993003.01786-2021
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e demonstrou que a pandemia de COVID-19 afetou substancialmente os serviços de tuberculose em muitos países ao redor do mundo. Em 2020, em comparação com 2019, houve uma diminuição geral do número total de casos diagnosticados e tratados de tuberculose ativa, foram tratados menos casos de TBDR e de tuberculose latente, e houve um aumento das consultas via telessaúde/internet.33 Migliori GB, Thong PM, Alffenaar JW, Denholm J, Tadolini M, Alyaquobi F, et al. Gauging the impact of the COVID-19 pandemic on tuberculosis services: a global study. Eur Respir J. 2021;58(5):2101786. https://doi.org/10.1183/13993003.01786-2021
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Neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, outro estudo da Global Tuberculosis Network( 4) avaliou medidas de lockdown específicas de cada país durante o primeiro ano da pandemia de COVID-19. Embora no período pré-vacinação contra a COVID-19 (isto é, durante as três primeiras ondas da pandemia) as medidas de lockdown tenham sido importantes na redução da transmissão, limitando a pressão sobre os serviços hospitalares e as UTIs, as medidas de saúde pública adotadas para conter a propagação da COVID-19 claramente tiveram impacto no controle da tuberculose.22 World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: WHO; c2022 [cited 2022 Mar 10]. Global Tuberculosis Report 2021. 57p. Available from: https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1379788/retrieve
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,55 Migliori GB, Thong PM, Akkerman O, Alffenaar JW, Álvarez-Navascués F, Assao-Neino MM, et al. Worldwide Effects of Coronavirus Disease Pandemic on Tuberculosis Services, January-April 2020. Emerg Infect Dis. 2020;26(11):2709-2712. https://doi.org/10.3201/eid2611.203163
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De fato, em uma carta ao editor,66 Maia CMF, Martelli DRB, Silveira DMML, Oliveira EA, Martelli Jr H. Tuberculosis in Brazil: the impact of the COVID-19 pandemic. J Bras Pneumol.2022;48(2):e20220082. os autores mostraram uma redução dos casos confirmados de tuberculose notificados no Brasil em 2020, em comparação com o período de 2017 a 2019. A redução do diagnóstico compromete as metas da OMS para a eliminação da tuberculose. No momento atual e nos próximos anos, o aumento da conscientização sobre a tuberculose será fundamental para o diagnóstico do maior número possível de casos de tuberculose. Nesse sentido, novas ferramentas diagnósticas podem facilitar o rápido diagnóstico da tuberculose. Santos et al.77 Santos AP, Ribeiro-Alves M, Corrêa R, Lopes I, Silva MA, Mafort TT, et al. Hyporexia and cellular/biochemical characteristics of pleural fluid as predictive variables on a model for pleural tuberculosis diagnosis. J Bras Pneumol. 2021;48(2):e20210245. descreveram um modelo de classificação de árvore de decisão para o diagnóstico da tuberculose pleural, incluindo características clínicas e exame celular/bioquímico do líquido pleural. Considerando-se que a tuberculose pleural é a forma extrapulmonar mais frequente de tuberculose e que seu diagnóstico geralmente é difícil em virtude de sua natureza paucibacilar, um modelo preditivo com apenas três variáveis e alta sensibilidade e especificidade que pode ser facilmente utilizado em unidades básicas de saúde é muito vantajoso.

O diagnóstico da infecção latente por tuberculose (ILTB) também foi impactado negativamente pela pandemia de COVID-19.22 World Health Organization [homepage on the Internet]. Geneva: WHO; c2022 [cited 2022 Mar 10]. Global Tuberculosis Report 2021. 57p. Available from: https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1379788/retrieve
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Para atingir a meta da End TB Strategy de reduzir a incidência de tuberculose em 90% por meio do tratamento preventivo da tuberculose,11 TB/COVID-19 Global Study Group. Tuberculosis and COVID-19 co-infection: description of the global cohort. Eur Respir J. 2022;59(3):2102538. https://doi.org/10.1183/13993003.02538-2021
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será fundamental intensificar os esforços para diagnosticar e tratar os casos de ILTB. Por esse motivo, alguns indivíduos devem ser altamente priorizados para a realização de teste e tratamento para ILTB. Neste número do Jornal, um estudo prospectivo88 Dias VL, Storrer KM. Prevalence of latent tuberculosis infection among patients with interstitial lung disease requiring immunosuppression. J Bras Pneumol.2022;48(2):e20210382. avaliou a prevalência de ILTB em pacientes com doenças pulmonares intersticiais com necessidade de imunossupressão. Os autores observaram uma prevalência de ILTB de 9,1%, destacando a importância da triagem para ILTB nesse grupo de pacientes.

O diagnóstico e tratamento tardio da tuberculose em virtude da pandemia de COVID-19 podem contribuir para o aumento da carga de tuberculose, inclusive a de tuberculose multirresistente (TBMR), nos próximos anos. A taxa de sucesso do tratamento da TBMR é baixa (aproximadamente 50%), e, portanto, o desenvolvimento de novos medicamentos e esquemas mais curtos poderia melhorar significativamente os desfechos do tratamento da tuberculose.99 Silva DR, Mello FCQ, Migliori GB. Shortened tuberculosis treatment regimens: what is new?. J Bras Pneumol. 2020;46(2):e20200009. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200009
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A bedaquilina é um novo medicamento que vem sendo utilizado nos esquemas recomendados pela OMS para o tratamento da TBMR. Hatami et al.1010 Hatami H, Sotgiu G, Bostanghadiri N, Abadi SSD, Mesgarpour B, Goudarzi H, et al. Bedaquiline-containing regimens and multidrug-resistant tuberculosis: a systematic review and meta-analysis. J Bras Pneumol. 2022; 48(2):e20210384. realizaram uma revisão sistemática e meta-análise sobre o uso da bedaquilina no tratamento da TBMR. Eles constataram que as taxas de conversão da cultura e de sucesso do tratamento foram altas em esquemas contendo bedaquilina, mesmo em casos de tuberculose extensivamente resistente.

Como estamos vendo um grande número de casos não diagnosticados e não tratados de tuberculose em virtude da pandemia de COVID-19, é possível que esses pacientes, com mais frequência, apresentem sequelas pulmonares causadas pelo diagnóstico e tratamento tardio e/ou pelo desenvolvimento de TBR. Assim, podemos esperar um aumento do número de pacientes com doença pulmonar pós-tuberculose (DPPTB) no futuro. De acordo com os padrões clínicos para avaliação, manejo e reabilitação da DPPTB,1111 Migliori GB, Marx FM, Ambrosino N, Zampogna E, Schaaf HS, van der Zalm MM, et al. Clinical standards for the assessment, management and rehabilitation of post-TB lung disease. Int J Tuberc Lung Dis. 2021;25(10):797-813. https://doi.org/10.5588/ijtld.21.0425
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esses pacientes devem ser avaliados o mais rápido possível ao final do tratamento da tuberculose. Além disso, é importante conhecer a prevalência e gravidade da DPPTB em diferentes populações. Uma comparação de três coortes, uma do Brasil, uma da Itália e uma do México, foi publicada no Jornal este mês.1212 Silva DR, Freitas AA, Guimarães AR, D'Ambrosio L, Centis R, Muñoz-Torrico M, et al. Post-tuberculosis lung disease: a comparison of Brazilian, Italian, and Mexican cohorts. J Bras Pneumol. 2022; 48(2):e20210515. Demonstrou-se que as três coortes apresentaram resultados variáveis de testes de função pulmonar e que os pacientes com TBR apresentaram doença mais grave. Além do mais, na coorte brasileira, os resultados dos testes de função pulmonar diminuíram ao longo do tempo, reforçando a importância da reabilitação pulmonar nesses pacientes.

Em resumo, nos últimos dois anos temos convivido com a pandemia de COVID-19, testemunhando ondas sucessivas e seus efeitos na saúde global. Atualmente, ainda estamos enfrentando o surgimento de novas variantes e lidando com a síndrome pós-COVID-19. Ao mesmo tempo, podemos ver a COVID-19 atrapalhando o controle da tuberculose, reduzindo o número de diagnósticos de tuberculose e de pacientes em tratamento preventivo da tuberculose. No momento e nos próximos anos, teremos que estar preparados para diagnosticar mais casos de tuberculose e de ILTB e atentos ao possível aumento dos casos de TBMR e de DPPTB.

AGRADECIMENTOS

Este estudo foi realizado no âmbito dos projetos colaborativos da European Respiratory Society (ERS)/Asociación Latinoamericana de Tórax (ALAT) e ERS/Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e do plano de pesquisa operacional do WHO Collaborating Centre for Tuberculosis and Lung Diseases (Tradate, ITA-80, 2017-2020-GBM/RC/LDA), bem como no da Global Tuberculosis Network, organizada pela World Association for Infectious Diseases and Immunological Disorders.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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