Acessibilidade / Reportar erro

Diferença de Gênero na Percepção de Culpa no Boicote de Consumidores

Diferencia de Género en la Percepción de la Culpa en el Boicot de Consumidores

RESUMO

Estudos no Brasil sobre boicote de consumidores ainda apresentam lacunas, inclusive teóricas. O objetivo deste artigo é apresentar a diferença significativa entre a percepção de culpa das mulheres em relação aos homens em um caso específico de uma empresa multinacional que comercializa produtos no Brasil. Para isso, validou-se a escala de motivações para o boicote (KLEIN, SMITH, JOHN, 2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) a partir de 281 respondentes de duas instituições de ensino superior no estado do Rio de Janeiro e verificou-se, por meio de uma regressão, a diferença entre os sexos a partir de um dos fatores da validação da escala (percepção de culpa). Os resultados demonstram que dos quatro fatores encontrados na análise fatorial, apenas o fator “Percepção de culpa” mostrou-se significativo na diferença das médias entre homens e mulheres (p < 0,002). Isso significa compreender que mulheres se sentem mais culpadas que homens no que diz respeito às motivações para boicote na amostra utilizada neste estudo. Esse resultado demonstra a relevância deste artigo para a área de Marketing. Além disso, alguns desdobramentos históricos, antropológicos e psicológicos são apresentados no final do artigo. Entender a culpa e a relação com a construção social da mulher mostrou-se um desdobramento necessário para dar robustez aos resultados empíricos encontrados nesta investigação.

Palavras-chave:
Boicote de consumidores; Gênero; Motivações para o boicote

RESUMEN

Estudios hechos en Brasil sobre el boicot de consumidores aún presentan lagunas, incluso teóricas. El objetivo de este artículo es presentar la diferencia significativa entre la percepción de culpa de las mujeres en relación a los hombres en un caso específico de una empresa multinacional que comercializa productos en Brasil. Para ello, se ha validado la escala de motivación para el boicot (KLEIN, SMITH, JOHN, 2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) partiendo de 281 encuestados de dos instituciones de educación superior en el estado del Rio de Janeiro y se verificó, por medio de una regresión, la diferencia entre los sexos partiendo de uno de los factores de la validación de la escala (percepción de la culpa). Los resultados demuestran que de los cuatro factores encontrados en el Análisis Factorial, sólo el factor “Percepción de la culpa” se mostró significativo el la diferencia de las medias entre hombres y mujeres (p<0,002). Ello significa c que las mujeres se sienten más culpable que los hombres con respecto a las motivaciones de boicot en la muestra utilizada en este estudio. Este resultado demuestra la relevancia de este artículo para el área de Marketing. Además, algunos desdoblamientos históricos, antropológicos y psicológicos son presentados al final del artículo. La comprensión y la relación con la construcción social de la mujer en la sociedad se mostraron como un desdoblamiento necesario para dar solidez a los resultados empíricos encontrados en esta investigación.

Palabras clave:
Boicot de consumidores; Género; Motivación para el boicot

ABSTRACT

In Brazil, studies on consumer boycott still feature some gaps, including theoretical ones. Our article aims to present the significant difference between male and female perception of guilt in the specific case of a multinational company which sells products in Brazil. To achieve that goal, the boycott motivations scale (KLEIN; SMITH; JOHN, 2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) was validated by means of 218 respondents from two universities located in the state of Rio de Janeiro. Using regression, a difference among genders was found based on one of the validation factors of the scale (perception of guilt). The results show that out of the four factors found by the Factorial Analysis, only the “perception of guilt” factor proved to be significant for the difference of means between men and women (p<0.002). That implies that the women of our study sample felt guiltier than the men regarding boycott motivations. That empiric result makes our article relevant to the Marketing area. In addition, some historical, anthropological and psychological implications are presented in its last section. Understanding guilt and its relation with the social construction of woman in society is a required development to strengthen the empiric findings of our study.

Keywords:
Consumer boycott; Gender; Boycott motivations

1 JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA DO TRABALHO

As diversas mudanças sociais, econômicas e culturais ocorridas têm ajudado os pesquisadores a (re)pensarem tanto o lócus da pesquisa acadêmica quanto os temas de pesquisa na área de comportamento do consumidor no Brasil. Um dos temas ainda pouco discutidos - e, consequentemente, com lacunas de conhecimento - é o boicote de consumidores. O primeiro estudo focado na temática e com embasamento teórico forte no contexto brasileiro foi o de Cruz (2011CRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores em relação à responsabilidade social corporativa. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 35., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpad, 2011.). O autor fez um levantamento teórico aprofundado sobre a temática do boicote dos consumidores relacionada à Responsabilidade Social Corporativa (RSC) e apresentou proposições para futuras pesquisas no Brasil relacionadas ao boicote de consumidores e RSC.

Casos empíricos de boicotes já estão descritos no Brasil (CRUZ, 2013bCRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores: demarcação de conceitos e casos no Brasil. Revista de Administração do Gestor, Piedade, RJ, v. 3, n. 1, p. 61-73, jul. 2013b.) e abordam o tema na perspectiva gerencial e na perspectiva acadêmica na área de Marketing, tratando-os como o ato de deixar de comprar um produto ou serviço como forma de repúdio a uma empresa. É essa definição do boicote como o ato de deixar de comprar um produto ou serviço que norteia este trabalho e está pautada nos trabalhos de Friedman (1999FRIEDMAN, M. Consumer boycotts: effecting change trough the marketplace and the media. New York: Routledge, 1999.), Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.), Soule (2009SOULE, S. A. Contention and corporate social responsibility. Oxford: Cambridge University Press, 2009.) e Cruz (2011CRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores em relação à responsabilidade social corporativa. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 35., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpad, 2011., 2013aCRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a., 2013bCRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores: demarcação de conceitos e casos no Brasil. Revista de Administração do Gestor, Piedade, RJ, v. 3, n. 1, p. 61-73, jul. 2013b.).

Verificadas as diversas possibilidades de pesquisa nesta temática, tanto na perspectiva da pesquisa qualitativa quanto da pesquisa quantitativa, este estudo discute uma relação importante na teoria de boicote de consumidores: a influência do gênero no boicote. Na literatura internacional alguns estudos quantitativos buscam relacionar as motivações do consumidor com o boicote (KLEIN, SMITH, JOHN, 2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.); a relação de variáveis demográficas com a propensão do consumidor em boicotar, como nos estudos de Kalson (2005KALSON, S. Information age breeds boycotts by the score. Pittsburgh Post-Gazette, Pittsburgh, 8 Nov. 2005. Disponível em: <Disponível em: http://news.google.com/newspapers?nid=1129&dat=20051108&id=eolIAAAAIBAJ&sjid=33ADAAAAIBAJ&pg=2458,5590445 >. Acesso em: 13 nov. 2011.
http://news.google.com/newspapers?nid=11...
), Stolle, Hogge e Micheletti (2005STOLLE, D.; HOOGUE, M.; MICHELETTI, M. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review, London, v. 26, n. 3, p. 245-269, July 2005.) e Neilson (2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.) que analisaram, respectivamente, a relação do boicote com o sexo, idade e nível educacional dos consumidores. No contexto brasileiro, o estudo de Cruz (2013aCRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a.) não verificou relação significativa entre gênero e boicote.

O boicote pode depender das condições econômicas do consumidor ou também de suas características psicossociais. As motivações para o boicote variam de acordo com as motivações de cada consumidor. Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) realizaram um dos estudos mais importantes da temática do boicote, sendo citados em diversos artigos. O estudo teve como objetivo encontrar as motivações dos consumidores para boicotar uma empresa multinacional com atuação nos Estados Unidos. Especificamente, por meio dos métodos de análise fatorial e Regressão Linear, foram encontrados quatro fatores que, analisados conjuntamente, determinam as motivações de um boicote: Percepção da Eficácia do Boicote para o Consumidor, Percepção de Autoaperfeiçoamento do Consumidor, Argumentos Contrários ao Boicote e Frequência de Compra.

No estudo dos autores, o primeiro fator que explica as motivações para o boicote foi “Eficácia do bicote”. O nome atribuído pelos autores, entretanto, foi “Make difference. No Handbook de Escalas de Marketing o nome deste fator é “Boycott Efectiveness. Quando se analisam os três itens desse fator, verifica-se que o termo utilizado no Handbook é apropriado, o que justifica a tradução para o português neste estudo como “Percepção da eficácia do boicote para o consumidor”. O segundo fator encontrado por Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) foi Autoaperfeiçoamento e relação com sentimento de culpa do consumidor e a influência de terceiros. Já o terceiro fator se caracteriza por itens que são contrários ao boicote, uma vez que o consumidor analisa argumentos que podem o levar a não deixar de comprar. Por fim, o último fator foi nomeado como Frequência de Compra e analisa o histórico de compra daquele consumidor.

Com base no estudo de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.), o objetivo deste artigo é verificar, a partir da escala validada no contexto brasileiro, se a percepção de culpa em homens e mulheres apresenta diferença significativa. Este objetivo suscitou o problema de pesquisa deste artigo: mulheres se percebem mais culpadas que homens ao realizarem um boicote a uma empresa? Especificamente, têm-se como objetivos: (i) traduzir os itens da escala e construir um questionário com um caso real de boicote; (ii) encontrar os fatores da escala de motivações para o boicote no contexto brasileiro por meio da análise fatorial; (iii) avaliar a confiabilidade (interna e externa) da escala; (iv) avaliar a validade de escala por meio da validade discriminante; e, (v) testar a hipótese de diferença de médias na percepção de culpa entre homens e mulheres.

Além desta dessa sucinta introdução em que foi apresentada a relevância da temática do boicote de consumidores no contexto brasileiro, o trabalho contém ainda mais quatro seções. A próxima seção apresenta o arcabouço teórico sobre o boicote de consumidores. A terceira seção detalha o percurso metodológico adotado para a adaptação da escala de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) para o contexto brasileiro e o Teste de Diferença de Médias. Já a quarta seção apresenta os resultados do processo de validação da escala. Por fim, a quinta seção apresenta as implicações teóricas e gerenciais do estudo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Esta seção do artigo apresenta a abordagem teórica para o boicote dos consumidores, apresentando inicialmente os seis tipos de boicotes encontrados na literatura e como o tema tem sido abordado na literatura na área de Marketing. Em seguida, apresenta-se o background teórico que sustenta as hipóteses do estudo em relação à variável “Gênero” e sua relação com o boicote do consumidor.

2.1 Boicote dos consumidores

O termo boicote foi usado por volta de 1880, para designar uma retaliação organizada por pequenos comerciantes que negociavam com um grande fazendeiro americano, o senhor Charles Boycott. A partir do momento que o grupo de pequenos comerciantes percebeu que poderia fazer uma retaliação ao fazendeiro deixando de comprar seus produtos mediantes suas exigências descabidas, usou-se pela primeira vez o termo boycott (SOULE, 2009SOULE, S. A. Contention and corporate social responsibility. Oxford: Cambridge University Press, 2009.).

O ato de o consumidor deixar de comprar um produto ou serviço de uma determinada empresa (FRIEDMAN, 1999FRIEDMAN, M. Consumer boycotts: effecting change trough the marketplace and the media. New York: Routledge, 1999.; SOULE, 2009SOULE, S. A. Contention and corporate social responsibility. Oxford: Cambridge University Press, 2009.), é o que diferencia esta prática de outras práticas como os movimentos sociais, manifestações ou passeatas ativistas que buscam denegrir a imagem e reputação de uma empresa. Embora o boicote se apresente numa perspectiva menos agressiva quando comparado às passeatas organizadas por ONGs, por exemplo, os prejuízos são tangíveis para as empresas.

É comum no Brasil algumas pessoas, inclusive pesquisadores de Marketing, usarem o termo ‘boicote’ para definir algum ato de repúdio contra uma empresa. Cruz (2011CRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores em relação à responsabilidade social corporativa. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 35., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpad, 2011.) faz uma demarcação conceitual importante e relevante para distinguir atos de repúdio de boicote do consumidor. O autor apresenta o termo backlash como uma forma de repúdio, dentre as quais o boicote está inserido. Entretanto, qualquer ato de repúdio, como uma manifestação, é um backlash. É na demarcação do conceito de boicote que Cruz (2011CRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores em relação à responsabilidade social corporativa. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 35., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpad, 2011.) faz a diferença entre os termos para que boicote seja entendido como deixar de comprar um produto ou serviço de uma empresa.

O boicote, segundo Friedman (1999FRIEDMAN, M. Consumer boycotts: effecting change trough the marketplace and the media. New York: Routledge, 1999.) pode depender das motivações do consumidor e se classificar, de acordo com a tipologia apresentada pelo autor, em cinco tipos: (i) econômico; (ii) religioso; (iii) de minorias; (iv) ecológico; e (v) labor boycott. Cruz (2013aCRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a.) considerou que não somente uma tradução da expressão labor boycott contemplaria o atual contexto em que as organizações estão inseridas em relação às demandas específicas dos stakeholders de uma empresa - epor isso ampliou esse tipo de boicote para boicote social, ao considerar aspectos relacionados à Responsabilidade Social Corporativa, e apresentou também um tipo de boicote não abordado na literatura: o boicote relacional. O Quadro 1 apresenta os tipos de boicote verificados na literatura, suas principais características e casos ocorridos no Brasil.

QUADRO 1:
Tipos de boicotes na literatura

Casos empíricos demonstram a força de um boicote e a importância que as empresas dão ao acontecimento. Por exemplo, por pressão de boicote de universidades americanas e canadenses, a Coca-Cola teve que rever sua atuação na Colômbia no que diz respeito à violação de direitos humanos, uma vez que os contratos e produtos da Coca-Cola foram banidos de 20 universidades naqueles dois países (KREYRE, 2006, apud PALAZZO; BASU, 2007PALAZZO, G.; BASU, K. The ethical backlash of corporate branding. Journal of Business Ethics, Dordrecht, v. 73, n. 4, p. 333-346, July 2007., p. 338-339). Já a Shell perdeu entre 10 e 15 milhões de dólares por dano no ano de 1999 pelo fato dos consumidores terem boicotado a empresa pelo caso Brent Spar (KNIGHT; PRETTY, 2000KNIGHT, R. F.; PRETTY, D. I. Brand risk management in a value context. Oxford: Oxford University, 2000. (Templeton Briefing; v. 5)). O Greenpeace apurou também que a Shell perdeu 7% de participação de mercado depois de não aderir ao Protocolo de Kyoto (AAKER, 2004AAKER, D. J. Leaveraging the corporate brand. California Management Review, Berkeley, v. 46, n.3, p. 6-18, Spring 2004.). Ainda não existem estudos, entretanto, que comparem a eficácia de um boicote na perspectiva do consumidor e retornos tangíveis ou intangíveis.

Um dos principais estudos para entender por quais motivos o consumidor decide participar de um boicote é o de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) e foi publicado no Journal of Marketing. No estudo, os pesquisadores buscam, por meio de uma multinacional europeia com atuação nos Estados Unidos, verificar o que poderia influenciar os consumidores a boicotar aquela empresa. Os autores identificam 13 itens que, após a utilização da técnica estatística análise fatorial, foram agrupados em quatro dimensões. Esses itens agrupados com outros sugeridos por especialistas são apresentados posteriormente.

Outros trabalhos buscaram uma perspectiva de análise quantitativa, como os estudos que exploraram a questão de variáveis demográficas e o boicote dos consumidores. Por exemplo, Neilson (2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.) e Stolle, Hogge e Micheletti (2005STOLLE, D.; HOOGUE, M.; MICHELETTI, M. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review, London, v. 26, n. 3, p. 245-269, July 2005.) apontam maior predisposição das mulheres em relação aos homens em consumir politicamente - sendo o boicote uma forma de consumo político. Para Neilson (2010), a um nível de significância de 5%, as mulheres apresentam um comportamento favorável ao boicote em relação aos homens superior a aproximadamente a 10%. Barda e Sardianou (2010BARDA, C.; SARDIANOU, E. Analysing consumers’‘activism’ in response to rising prices. International Journal of Consumer Studies, Oxford, v. 34, n. 2, p. 133-139, Mar. 2010.) também verificaram que mulheres estão mais predispostas a boicotar que os homens.

A renda é outra variável demográfica que alguns autores buscaram entender no cruzamento com a variável ‘boicote do consumidor’. De acordo com Neilson (2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.), a renda do consumidor apresenta correlação positiva com o boicote, uma vez que, na amostra analisada, verificou-se que essa variável influencia positivamente o ato de boicotar. Ou seja, quanto maior o nível educacional do consumidor, maior a possibilidade de esse consumidor participar de um boicote quando não concorda com as ações de uma empresa. O próximo tópico aprofunda a discussão especificamente sobre a variável demográfica “Gênero”.

2.2 Evidências da diferença de gênero nos estudos de boicote dos consumidores

Alguns autores observaram que o gênero do consumidor pode influenciar no boicote, como Barda e Sardianou (2010BARDA, C.; SARDIANOU, E. Analysing consumers’‘activism’ in response to rising prices. International Journal of Consumer Studies, Oxford, v. 34, n. 2, p. 133-139, Mar. 2010.), que ao analisarem o comportamento dos consumidores grego no momento da crise financeira do país em 2010, intenção deles em boicotar, verificaram que as mulheres, proporcionalmente, boicotavam mais que os homens gregos. Levando em consideração o ramo de atuação da empresa analisada (supermercados), talvez essa maior inclinação da mulher ao boicote fosse explicada pela maior frequência de compra em relação aos homens naquele segmento. Os autores, entretanto, controlaram essa variável para que o efeito frequência de compra não gerasse um viés nos resultados. Mesmo assim, mulheres se mostraram mais propensas ao boicote que os homens.

Essa situação empírica, apresentada por Barda e Sardianou (2010BARDA, C.; SARDIANOU, E. Analysing consumers’‘activism’ in response to rising prices. International Journal of Consumer Studies, Oxford, v. 34, n. 2, p. 133-139, Mar. 2010.), não é característica das mulheres gregas - ou pela circunstância de as mulheres (em sua grande maioria) fazerem as compras de produtos alimentícios para seus lares. Alguns estudos apontam maior predisposição das mulheres em relação aos homens em consumir politicamente (NEILSON, 2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.; STOLLE, HOGGE, MICHELETTI, 2005STOLLE, D.; HOOGUE, M.; MICHELETTI, M. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review, London, v. 26, n. 3, p. 245-269, July 2005.) - sendo o boicote uma forma de consumo político. Para Neilson (2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.), as mulheres apresentaram um comportamento favorável ao boicote superior em relação aos homens a aproximadamente a 10%.

Já na pesquisa de Stolle, Hogge e Micheletti (2005STOLLE, D.; HOOGUE, M.; MICHELETTI, M. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review, London, v. 26, n. 3, p. 245-269, July 2005.), os resultados de surveys realizados na Suécia, Canadá e Bélgica apontam que a mulher está mais propensa em boicotar ou fazer um buycott1 1 Para não perder o sentido do termo e comparação com o termo boycott, não se faz a tradução de buycott, visto que é possível comparar os termos. Para Neilson (2010), buycott pode ser entendido como um prêmio que o consumidor dá à empresa, comprando seus produtos, pelo fato de concordar com o comportamento da instituição. Tanto boicote como buycott servem para classificar uma forma de consumo político. que o homem em 16% (p < 0,001). Para evitar contra-argumentos de que mulheres vão mais aos shoppings ou que realizam mais compras de alimentos que os homens, os autores também controlaram essas variáveis e, mesmo com esse controle, identificaram essa diferença significativa entre os gêneros.

Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) também identificaram essa relação ao considerarem que mulheres estão mais predispostas que os homens neste tipo de ação, uma vez que em uma amostra de 1216 consumidores, as mulheres apresentaram comportamento de propensão ao boicote superior que os homens em 6% (p < 0,01). O fato de a mulher tradicionalmente ter maior preocupação e um comportamento mais cuidadoso com a família faz que ela esteja mais predisposta a boicotar (como forma de consumo político) pelo fato delas analisarem situações ou circunstâncias complexas de maneira mais aprofundada (NEILSON, 2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.) - análise que os homens, comparado às mulheres, não fazem de acordo com o autor.

Uma evidência empírica da organização e predisposição das mulheres ao boicote e que teve repercussão nos Estados Unidos em 2010 e 2011 foi a decisão de boicotar produtos de empresas que impactam a saúde das consumidoras (KALSON, 2005KALSON, S. Information age breeds boycotts by the score. Pittsburgh Post-Gazette, Pittsburgh, 8 Nov. 2005. Disponível em: <Disponível em: http://news.google.com/newspapers?nid=1129&dat=20051108&id=eolIAAAAIBAJ&sjid=33ADAAAAIBAJ&pg=2458,5590445 >. Acesso em: 13 nov. 2011.
http://news.google.com/newspapers?nid=11...
). O grupo Girlcott - o nome é uma junção das palavras girl e boycott - traduz a importância da mulher neste tipo de decisão e engajamento político em uma causa. O Girlcott estimula as mulheres a não comprarem produtos que apoiam a causa do câncer e sim produtos saudáveis que, consequentemente, terão menor impacto na saúde dos consumidores e consumidoras em longo prazo (THE GIRLCOTT, c2009THE GIRLCOTT. History. c2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.thegirlcott.com/history.shtml >. Acesso em: 12 nov. 2011.
http://www.thegirlcott.com/history.shtml...
). Este grupo realizou, na prática, tanto o boicote quanto o backlash.

Um estudo conduzido no Brasil em 2013 com 240 respondentes (CRUZ, 2013aCRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a.) buscou verificar por meio de um experimento fatorial 2x2x2 hipóteses relacionadas ao gênero do consumidor em relação às variáveis “Intenção de boicotar” (IB) e “Percepção de eficácia do boicote” (PEB) na decisão de boicote do consumidor. Para a variável “Gênero”, no entanto, foram rejeitadas as hipóteses de que mulheres teriam maior IB e PEB que homens. Talvez o segmento do produto no estudo (computadores) fosse um pouco mais distante de uma realidade de consumo quando comparado ao segmento de calçados (como o caso da Nike utilizado neste estudo). Além disso, um experimento não tem como objetivo a generalização dos resultados, o que possibilita verificar, neste estudo, a influência da variável “Gênero” no boicote.

3 METODOLOGIA

Este item apresenta o percurso metodológico adotado para a realização da adaptação e validação da escala de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) para ser utilizada no contexto brasileiro. Assim, os itens seguintes apresentam o processo de tradução e tradução reversa, a construção do instrumento de coleta de dados e o seu pré-teste, bem como o processo de validação da escala.

3.1 Tradução e tradução reversa dos itens da escala

O estudo de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) apresenta motivações para que o consumidor participe de um boicote a uma empresa e apresenta quatro fatores relacionados ao boicote de consumidores. Um dos fatores analisados foi eficácia do boicote, ou seja, como o consumidor mensura como eficaz sua participação em um boicote. Os três itens validados por Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) e que se traduzem na percepção do consumidor em relação à eficácia do boicote são apresentados no Quadro 2. É importante ressaltar que essa sistemática de tradução foi adotada para todos os itens das outras dimensões do estudo de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.).

QUADRO 2
Itens da escala eficácia do boicote (Klein, Smith e John, 2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004., p. 101)

Após a decisão de usar tal escala no contexto brasileiro, o primeiro passo foi fazer a tradução do inglês para o português. Com a intervenção de um especialista em construção e adaptação de escalas, foram convidados quatro especialistas com pós-graduação em línguas inglesa e portuguesa (simultaneamente) para que fizessem a tradução e a tradução reversa.

Após realizar o processo de tradução e tradução reversa, a indicação de um dos especialistas na construção de escalas de um capítulo do livro de DeVellis (2003DEVELLIS, R. F. Scale development: theory and applications. 2nd ed. California, USA: Sage Publications, 2003.) fez que uma pequena adaptação fosse realizada nos itens da escala para que ficasse evidente para os respondentes que eles deveriam se posicionar sobre aquele item. De acordo com o autor, um item bem construído tem que forçar o respondente a ter um posicionamento em relação àquele item escala. Assim, no primeiro item da escala foi acrescentado “muito eficiente” para que ficasse clara a posição que o respondente deveria assumir na resposta. A mesma especialista propôs que o segundo item da escala fosse dividido em dois itens - o que fez sentido com a tradução do primeiro especialista que, ao fazer a pontuação final, separou em duas frases distintas. O consenso dos especialistas em línguas, porém, foi não dividir o item.

Conforme pode ser visto nos itens da escala, em vez de utilizar o termo “Boicote” foi considerada a definição do termo, ou seja, “deixar de comprar”. Esse detalhe no contexto brasileiro é extremamente relevante, uma vez que não se pode confundir boicote com backlash. Conforme destacado anteriormente por Cruz (2013bCRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores: demarcação de conceitos e casos no Brasil. Revista de Administração do Gestor, Piedade, RJ, v. 3, n. 1, p. 61-73, jul. 2013b.), o boicote é uma forma de repúdio, assim como outras formas de repúdio, como manifestações contrárias à atuação de uma empresa (uma passeata ou a utilização de mídias sociais, por exemplo). Para que a noção de boicote para a pesquisa seja utilizada de acordo com a demarcação teórica, ou seja, o ato de deixar de comprar, optou-se por retirar o termo “boicote” e utilizar a definição do termo.

3.2 Construção e pré-teste do instrumento de coleta de dados

Após a tradução e adaptação da escala de motivações dos consumidores para o boicote, foi criado o instrumento de coleta para um pré-teste com consumidores de uma multinacional de produtos esportivos com atuação no Brasil. Na primeira versão do questionário foram apresentados os 11 itens da escala de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) e um 12º item criado pelos autores para analisar a situação descrita no caso com a possibilidade daquele consumidor deixar de comprar. O caso apresentado ao leitor era da empresa multinacional Nike, que passou por denúncias de contratação de trabalho infantil em sua cadeia de suprimentos. Foram aplicados, aleatoriamente, 37 questionários no pré-teste e os feedbacks dos respondentes ajudaram a construir o questionário final desta pesquisa.

O objetivo do pré-teste nessa fase da pesquisa foi verificar se, ao realizar a análise fatorial por meio dos itens, esses itens apresentariam um comportamento semelhante ao dos resultados publicados por Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.). Com os 12 itens, o alfa de Cronbach foi 0,453 e não foi considerado dentro do intervalo aceitável - entre 0,60 e 0,70 (HAIR et al., 2005HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman, 2005.), o que demonstrava não ser estatisticamente confiável a escala utilizada no pré-teste. Com esse resultado, optou-se por retirar três itens, sendo o resultado um alfa de Cronbach de 0,68. Com a retirada desses três itens, foram apresentados três fatores que juntos explicavam 72% da variabilidade. Para validar a análise fatorial no pré-teste, foram realizados o Teste KMO e o Teste de Bartlestt. O primeiro, embora não tenha sido aprovado, ficou próximo do valor aceitável de 0,60. Já o Teste de Bartlestt indicou que aquela amostra era suficiente, ou seja, significativa.

Com os resultados do pré-teste (após a retirada de três itens), evidenciou-se que o Fator 1 do pré-teste possivelmente poderia ter mais um item de verificação, uma vez que a característica “culpa” ficou evidente nos dois itens do fator e foi parcialmente diferente do estudo de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.). Era possível que no contexto brasileiro esse fator pudesse ser expresso de maneira diferente do contexto americano, o que justificou a inserção de mais um item após verificação de dois especialistas em comportamento do consumidor e métodos quantitativos. A mesma situação ocorreu com o Fator 3, que indicava a presença de terceiros na motivação para o boicote. O item “Meus amigos/família estão me encorajando a deixar de comprar produtos da empresa X” foi dividido em “influência dos amigos”, “influência dos pais”, “influência dos irmãos” e “influência da mídia”, sendo estes dois últimos itens uma sugestão de uma especialista em comportamento do consumidor e construção de escalas em Marketing.

3.3 Coleta de dados para validação e confiabilidade da escala

Após o pré-teste os itens foram inseridos aleatoriamente no questionário e distribuídos aos respondentes. Os sujeitos da pesquisa foram estudantes de duas universidades no estado do Rio de Janeiro, sendo uma universidade pública e a outra, privada - ambas localizadas na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. Na instituição pública responderam o questionário alunos dos cursos de Administração e Administração Pública. Na universidade privada os respondentes foram somente alunos do curso de Administração. O total de respondentes foi 115 na universidade pública e 166 na universidade privada, totalizando 281 respostas.

Para verificação de possíveis fatores foi utilizado como método de análise de dados a análise fatorial, que calcula a correlação entre as cargas fatoriais com os itens da escala. A carga fatorial é o meio de interpretar o papel de que cada variável tem na definição do fator (HAIR et al., 2005HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman, 2005.). Foi utilizado o método de Rotação Varimax para melhorar a interpretação e reduzir as ambiguidades. Para verificar a validade interna da escala foram utilizados os testes KMO (que deve ser maior que 0,7) e o de Bartlestt.

Já para avaliar a validade externa foi utilizado o Teste de Diferenças de Médias, que verifica a diferença entre o valor médio de cada fator para os dois grupos distintos de consumidores que participaram da amostra. Esse é um caminho para verificar a validade externa dos fatores componentes da escala. Caso exista diferença significativa entre as médias, então existe um efeito universidade que está afetando o fator. Caso a diferença não seja significativa, pode-se inferir que existe um alto grau de validade externa permitindo a generalização dos resultados da escala e da pesquisa.

3.4 Teste de hipótese para igualdade de gênero nos fatores

O Teste de Hipótese tem como objetivo verificar a igualdade em uma afirmação em que se leva em consideração a igualdade entre os parâmetros populacionais. Ou seja, a hipótese nula sempre é aquela em que existe igualdade entre os parâmetros (HAIR et al., 2005HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman, 2005.). Assim, foi considerada, para cada fator resultante da análise fatorial, que em H0 não existe diferença significativa entre os gêneros, ou seja, a igualdade entre homens e mulheres. Para aceitar como significativa a diferença de média na igualdade entre gênero no teste de hipótese, o intervalo de confiança deve ser inferior a 95% e um valor de p ≤ 0,05.

4 RESULTADOS DA VALIDAÇÃO DA ESCALA DE MOTIVAÇÕES PARA O BOICOTE

Os resultados do processo de validação da escala de motivações para o boicote no contexto brasileiro são apresentados nesta seção. É importante destacar que esta seção é dividida em duas partes, sendo a primeira parte uma tentativa inicial de analisar os dados e, a partir deles, tomar decisões relacionadas a possíveis ajustes. A segunda parte apresenta os resultados da decisão tomada: a retirada de um dos fatores da escala.

4.1 Análise de dados com cinco fatores

A Tabela 1 apresenta os cinco fatores agrupados a partir da análise fatorial. Os resultados demonstram que os quatro itens criados a partir de sugestão de especialistas se agruparam com os itens da escala de motivações de boicote de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.). No estudo dos autores, entretanto, os itens da escala se agruparam em quatro fatores e alguns itens em fatores diferentes deste estudo empírico de validação no contexto brasileiro.

TABELA 1:
Relação fator com item (Método Varimax) com cinco fatores

Os fatores foram nomeados de acordo com as características dos seus conjuntos de itens. O primeiro fator recebeu o nome de “Influência de terceiros”, uma vez que os itens demonstraram a influência de terceiros nas motivações para boicote. Embora o item relacionado à influência da mídia tenha sido criado por sugestão dos especialistas para verificar a influência de terceiros, este item não foi agrupado neste fator. Sendo esse o fator mais impactante nas motivações para o boicote, entende-se que, para a amostra analisada, a influência de pessoas ligadas aos consumidores pode influenciar sua decisão de boicotar uma empresa. A Tabela 2 apresenta um resumo com os fatores e suas variâncias individuais e acumuladas.

TABELA 2:
Variâncias individuais e acumuladas dos cinco fatores encontrados

O segundo fator foi nomeado como “Percepção de culpa”, uma vez que quatro itens deste fator estão claramente associados à percepção de culpa de cada respondente. Ao contrário dos resultados do fator “Eficácia do boicote” no trabalho de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.), um dos itens deste fator neste estudo foi agrupado neste segundo fator. O item “Todo mundo deveria deixar de comprar, pois, toda contribuição, seja ela qual for, é muito importante” pode ser analisado no fator “Percepção de culpa” como a projeção da culpa individual do consumidor para terceiros, ou seja, a expectativa de culpa que o consumidor espera que outras pessoas tenham pode ser semelhante à sua percepção individual.

Um sexto item, que aborda uma questão que pode estimular o consumidor a boicotar também foi agrupado neste segundo fator. A suposição de que uma empresa tivesse agido de maneira ilegal ou antiética, nesse caso, o trabalho infantil, poderia fazer que consumidores se sentissem culpados em continuar comprando os produtos da empresa caso fosse confirmada a situação ilegal ou antiética. Possivelmente os consumidores se sentiram culpados por entender que a compra de produtos ou serviços daquela empresa poderia continuar estimulando aquela situação ilegal ou antiética.

O terceiro fator criado foi nomeado como “Percepção de eficácia do boicote” e é composto por três itens. Dois desses itens também se encontram na escala de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.). O item que mais impacta neste fator é o item que aborda a questão de informações da mídia - que, por sugestão de especialistas, tinha sido criado para verificar a influência de terceiros. Ou seja, a presença desse item neste fator, além de ser o item mais impactante, demonstra que a mídia influencia o consumidor desta amostra em sua percepção de eficácia do boicote. Ou seja, para este item, especificamente, o consumidor é encorajado a deixar de comprar quando recebe informações da mídia. Assim, o consumidor considera um boicote eficaz quando recebe informações da mídia ou quando percebe que o boicote pode fazer com que a empresa mude suas ações ou decisões.

O quarto fator foi nomeado como “Contra-argumentos”, assim como na tradução da escala de motivações para boicote do consumidor. Três itens do fator do estudo de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) foram agrupados neste fator, sendo que o fator original possuía quatro itens. O quarto item deste fator (“Como eu não compro muitos produtos da Nike, o meu boicote a esta empresa não seria significativo”) foi o único item do quinto fator, que foi nomeado como frequência de compra. No contexto brasileiro, os consumidores desta pesquisa podem ter entendido este item como a frequência com que eles compram os produtos da Nike e a significância do seu boicote para a empresa analisada.

Um resultado importante foi destacado no Teste de Diferenças de Médias. No que diz respeito à confiabilidade externa da escala (grau de generalização), no primeiro fator (Influência de terceiros) não foi encontrada diferença significativa entre as médias dos consumidores das duas universidades (F = 1,483, gl = 1 e p> 0,224), assim como os fatores (Percepção de Culpa e Eficácia - F = 0,087; gl = 1 e p> 0,768; Eficácia do Boicote - F = 0,009, gl = 1 e p > 0,924); e Frequência de compra (F = 3,157, gl = 1 e p > 0,077). A não existência de diferença nas médias dos dois grupos demonstra que esses fatores têm confiabilidade externa. No fator 4 (Contra-argumentos), entretanto, foi encontrada diferença significativa entre as médias dos dois grupos (F = 4,442, gl = 1 e p < 0,036). Logo, esse fator não apresentou confiabilidade externa. Esse resultado indicou a possibilidade de ser testada a ausência deste fator na escala final, o que é apresentado a seguir.

4.2 Resultados obtidos com quatro fatores

Mediante este resultado, analisaram-se mais uma vez os dados por meio da análise fatorial, retirando-se o quarto fator, uma vez que este não apresentou confiabilidade externa (α = 0,418). Após essa ação, verificou-se que o alfa de Cronbach teve alteração positiva (passou de 0,616 para 0,678). Logo, uma decisão delicada foi tomada pelos autores e especialistas: a remoção do fator “Contra-argumentos” da escala adaptada para o contexto brasileiro. Essa decisão foi tomada a partir do momento em que se percebeu que esse fator não fora confiável externamente na primeira tentativa e o alfa de Cronbach dessa dimensão foi menor do que aceitável. Com a retirada desse fator da escala, o alfa de Cronbach se aproximou muito daquilo que seria o ideal (α ≥ 0,70). Assim, a escala final, após a retirada do quarto fator, é apresentada na Tabela 3.

É importante destacar que com a retirada do quarto fator a ordem de explicação dos fatores mudou. Com os cinco fatores, a dimensão “Culpa” aparecia como segundo fator. Houve uma mudança na ordem: o primeiro fator foi “Culpa” e o segundo fator foi “Influência de terceiros”. O terceiro fator continuou “Eficácia do boicote” e o quarto fator, “Frequência de compra”.

TABELA 3
Fatores da escala de motivações para o boicote no contexto brasileiro

4.3 Confiabilidade e validade da escala

Os resultados aqui apresentados em relação à confiabilidade e validade da escala são oriundos da coleta de dados na segunda fase da pesquisa com os sujeitos de duas instituições de ensino superior diferentes. Ao contrário do pré-teste, tanto o Teste KMO (0,783) quanto o alfa de Cronbach para os 13 itens da escala (α = 0,678) foram significativos e aceitáveis (HAIR et al., 2005HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman, 2005.). O Teste de Bartlestt, assim como no pré-teste e na fase anterior que considerou cinco fatores, também foi significativo (1019,047), o que evidencia que a amostra foi suficiente. Esses 13 itens explicam, em quatro fatores distintos, 63,3% da variabilidade (conforme pode ser visto na Tabela 4). Em outras palavras, a escala emergente da tradução e tradução reversa por especialistas e a inserção das sugestões de itens feitas por especialistas em Escalas de Marketing apresentam confiabilidade interna (α= 0,678) e explicam 63,3% na variabilidade.

TABELA 4:
Variâncias individuais e acumuladas dos quatro fatores encontrados

Para validar a escala, foi necessário realizar a validade de construto por meio da validade discriminante. Para McDaniel e Gates (2006MCDANIEL, C.; GATES, R. Pesquisa de marketing. São Paulo: Thompson Learning, 2006., . 290), a validade discriminante tem como objetivo encontrar “um baixo grau de correlação entre construtos que supostamente são diferentes”. Os fatores foram validados primeiro por serem discriminantes em cada fator e, depois e mais importante, pelo fato de apresentarem alfa de Cronbach superior a 0,6 (HAIR et al., 2005HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman, 2005.) quando analisado individualmente cada fator, o que se mostra aceitável. Ou seja, quando os fatores foram analisados isoladamente, a correlação entre os itens de cada fator entre eles foi aceitável. A Tabela 5 apresenta os alfas de Cronbach para os itens de cada fator - inclusive para o fator “Contra-argumentos” com o objetivo de evidenciar que o mesmo apresentou um resultado não confiável (α ≤ 0,60).

TABELA 5:
Estatística de validade dos fatores

4.4 Teste de hipótese da diferença entre gêneros e o fator percepção de culpa

No processo de tabulação dos dados do trabalho inicial que foi a validação da escala de Motivações para o Boicote de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.), identificou-se analiticamente que a maioria das pessoas que tinham boicotado a empresa Nike após ter informações em relação ao trabalho semiescravo e infantil - ou seja, daquelas pessoas que receberam informações e deixaram de comprar - era composta por mulheres. Logo, para verificar tal comportamento, realizou-se uma simples estatística descritiva para conferir se havia diferença percentual entre homens e mulheres ou se essa relação não existia.

Ao se realizar o levantamento das pessoas que boicotaram a Nike a partir do momento que tiveram acesso a informações acerca da existência de práticas abusivas na cadeia de suprimentos da empresa, verificou-se que 35,21% das mulheres que receberam tais informações tiveram como atitude de repúdio deixar de comprar da empresa; já os homens apresentaram um menor valor, exatamente 20,28% - conforme pode ser visto na Tabela 6.

TABELA 6:
Percentual de homens e mulheres que boicotaram a empresa Nike após ter conhecimento de informações negativas acerca da empresa.

Tais diferenças, entretanto, não poderiam ser apresentadas como dados estatísticos para a amostra e busca de inferências ou apresentação de relações de causalidade com os fatores. Ou seja, seria muito primário dizer que as mulheres estão mais propensas a boicotar que os homens a partir da validação da escala. Para isso, com o objetivo de tornar os resultados mais robustos, realizou-se um teste de hipótese para analisar se seria significante a diferença média entre homens e mulheres para cada um dos fatores, conforme pode ser analisado na Tabela 7.

TABELA 7:
Teste de hipótese para a diferença entre gêneros em cada Fator (Anova)

O que se compreende a partir dos dados apresentados na Tabela 7 é que, após o processo de validação da escala e a análise individual dos fatores, o único fator que apresentou diferença significativa com intervalo de confiança de 95% foi “Percepção de culpa” quando testadas as hipóteses para a diferença entre os gêneros. Ou seja, isso permite inferir que a mulher se sentiu mais culpada em relação ao homem no caso do boicote à empresa Nike na amostra analisada. Esse resultado corrobora os resultados de trabalhos internacionais como os de Neilson (2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.), Stolle, Hogge e Micheletti (2005STOLLE, D.; HOOGUE, M.; MICHELETTI, M. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review, London, v. 26, n. 3, p. 245-269, July 2005.) e Barda e Sardianou (2010BARDA, C.; SARDIANOU, E. Analysing consumers’‘activism’ in response to rising prices. International Journal of Consumer Studies, Oxford, v. 34, n. 2, p. 133-139, Mar. 2010.), em que foram verificadas as diferenças de gênero na intenção ou no ato do boicote dos consumidores.

5 CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO, DESDOBRAMENTOS E SUGESTÕES PARA FUTURAS PESQUISAS

Conforme foi discutido no arcabouço teórico desta investigação, a literatura internacional apresenta poucos resultados empíricos que evidenciavam a diferença de gênero no ato de deixar de comprar um produto, serviço ou marca de uma empresa. No Brasil, um experimento fatorial 2x2x2 conduzido por Cruz (2013aCRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a.) não apresentou diferença entre homens e mulheres tanto na variável Intenção de Boicotar (IB) quanto na variável Percepção de Eficácia do Boicote (PEB). Como o autor evidenciou, porém, uma das características de um experimento não é a generalização dos resultados. Assim, neste estudo, evidencia-se empiricamente que há uma diferença significativa entre homens e mulheres em relação à sua própria culpa quando ambos possuem informações sobre a atuação abusiva de uma empresa ou de empresas parceiras. Ou seja, a mulher teve como motivação a sua própria culpa como fator causal em deixar de comprar um produto da Nike.

Embora os três fatores não tenham apresentado diferenças significativas e positivas entre as médias de homens e mulheres, o principal fator encontrado na análise fatorial (Percepção de Culpa), aquele que explica a maior parte da variância do modelo, mostrou-se empiricamente neste estudo como fator que pode ser influenciado pela variável “Gênero”. Ou seja, mulheres se sentiram mais culpadas que os homens, o que demonstra que essa variável é relevante nas motivações para o boicote do consumidor nesta amostra.

Esse resultado levou a dois desdobramentos importantes neste estudo e que são apresentados a seguir: (i) a contextualização da culpa na mulher contemporânea e (ii) a influência desse contexto na percepção de culpa na mulher. Esses itens são detalhados a seguir em forma de tópicos, pois foi a partir dos resultados empíricos da investigação que os autores verificaram a importância de buscar argumentos epistemológicos nas áreas de Psicologia e Antropologia para entenderem essa diferença significativa nos resultados empíricos do boicote em relação à culpa. Logo, é mais cauteloso apresentar tais argumentos teóricos nesta seção como desdobramentos dos resultados empíricos da dimensão emergente da validação da escala, em vez de apresentá-los no Referencial teórico, pois, nos estudos anteriores outras variáveis foram analisadas como Intenção de boicotar, Percepção da eficácia do boicote (CRUZ, 2013aCRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a.), Propensão ao boicote (KLEIN, SMITH, JOHN, 2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.) e consumo político (NEILSON, 2010NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.) e não o construto “Percepção de culpa” que emerge da validação da escala.

5.1 Contextualização histórica e teórica acerca da autopercepção de culpa na mulher contemporânea

No segmento final do período Neolítico (entre 4400 e 2900 a.C.), os conceitos de poder, filiação e herança foram tornando-se imperativamente masculinizados, e as mulheres, mercadorias preciosas fornecedoras de futura mão de obra, evidenciando que o sexo feminino gradualmente perdia seu poder (EISLER, 1989EISLER, R. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Rio de Janeiro: Imago, 1989.; LINS, 2007LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.). A mulher, então, vira propriedade estritamente masculina e a herança é destinada aos filhos legítimos.

Com a descoberta impactante da paternidade, o princípio fálico (ideologia sobre a supremacia masculina) se torna condicionador do modo de viver da humanidade e, a partir disso, gera-se o patriarcado - uma organização social baseada no poder do pai, com sua descendência e parentesco direcionados à linhagem masculina; as mulheres, consideradas inferiores aos homens, eram subordinadas à sua dominação (LINS, 2007LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.; EISLER, 1989EISLER, R. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Rio de Janeiro: Imago, 1989.). O estabelecimento do patriarcado na civilização ocidental se dá por volta do período compreendido entre 3100 e 600 a.C..

Dentro do patriarcado (num contexto de controle da fecundidade feminina e divisão sexual de tarefas), três pontos de condicionamento são fundamentais para que essa dominância opressora sobre a mulher se dê: (i) o controle da fidelidade - para que o homem proteja e legitime sua herança, colocando a mulher então como suspeita, sujeito condescendente, desinteressante e incompetente na relação; (ii) o controle dos filhos - idealizada herança legítima cujo bom desenvolvimento é reconhecido como mérito apenas do pai e, costumeira e legalmente, tem como sobrenome adotado o desse mesmo pai, reforçando inconscientemente a ideia de tanto a mãe quanto a criança serem propriedades do homem; e, (iii) o controle da sexualidade - em que a mulher era utilizada como objeto social, sendo definida tão somente por meio de sua relação com o marido e lhe sendo vetadas inferências positivas em sua autoestima - sendo forçada a negar seu corpo e sua beleza, pois seriam instrumentos de autovalorização (KREPS, 1992KREPS, B. Paixões eternas, ilusões passageiras. Rio de Janeiro: Saraiva, 1992.; LINS, 2007LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.).

De acordo com Lins (2007LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.), as culturas ocidentais convivem em normalidade com o patriarcado - normalidade essa que sobrevive graças a dois apoios fundamentais: a religião (principalmente na figura da Bíblia) e a ciência. A Bíblia é uma coleção de livros judaico-cristãos escritos por diversos indivíduos no decorrer de mais de mil anos, com seu início por volta de 1450 a.C., sendo sua influência no Ocidente irrefutável, inclusive inconscientemente. Seu poder de coerção acerca de culpa (através da ideia de pecado) é vasto, e isso é extremamente pontuado a funcionar como elemento que corrobora as bases do questionamento gerado a partir da análise dos dados da escala validada neste trabalho, que denota uma autopercepção de culpa maior nas mulheres que nos homens (dentro de um contexto de boicote). Sendo o Brasil um país religioso, a população brasileira é, também, fruto dessa cultura judaico-cristã em que a culpa prevalece no inconsciente social. Assim, esquivar-se da influência angustiante da culpa torna-se, praticamente, uma impossibilidade (mesmo indivíduos não cristãos inserem-se em contextos de “pecado” e “culpa”).

Dentro da Bíblia tem-se constantemente a demarcação do arquétipo da condenação da mulher como origem do pecado e da degradação. Nas figuras bíblicas femininas (que garantiam uma maior ambientação de condescendência a Deus e ao Homem), símbolos da negação do sexo, a mulher é configurada como bode expiatório da humanidade, ocupando uma posição de “inferior” em relação ao homem (KREPS, 1992KREPS, B. Paixões eternas, ilusões passageiras. Rio de Janeiro: Saraiva, 1992.; FEUERSTEIN, 1994FEUERSTEIN, G. A sexualidade sagrada. Rio de Janeiro: Siciliano, 1994.; LINS, 2007LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.). Mesmo na posterior figura bíblica de Maria, uma pequena tentativa de revalorizar a mulher, tem-se uma iniciativa frustrada - visto que o repúdio à sua importância é perceptível na posição que ela figura nas missas, nas orações e no imagético popular de sua força - mascarada por paciência submissa e subserviente ao marido e ao filho.

A mulher representava direta e indiretamente a origem de todos os problemas da humanidade e o condicionamento dos últimos séculos foi de que ela vivesse com vergonha constante pelo simples fato de ser mulher e em profunda penitência para com a humanidade, por ter atraído incontáveis problemas ao mundo (RUSSEL, 1955RUSSEL, B. O casamento e a moral. Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1955.; LINS, 2007LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.). Assim, a Bíblia conclui-se por dominar, escravizar e desvalorizar as mulheres continuamente em seus textos, degradando sua posição.

Dessa maneira, a influência da cultura judaico-cristã, num contexto de sincretismo de costumes hebreus e romanos com os do Oriente Próximo, coloca as mulheres como frágeis, falsas e emocionalmente instáveis - explicitando a transição da figura feminina de “primariamente influente e essencial” para “propriedade do pai, do marido e do filho” e a maternidade seria sua única forma de expressão da sexualidade, intrinsecamente ligada à dor, gerando uma concepção de que se deve sofrer e reprimir-se por ser mulher (FEUERSTEIN, 1994FEUERSTEIN, G. A sexualidade sagrada. Rio de Janeiro: Siciliano, 1994.). É exatamente esse contexto histórico e cultural que permite entender a relação entre percepção de culpa e gênero, uma vez que o contexto criado socialmente e atribuído às mulheres sempre foi inferior ou submissa, construindo historicamente uma figura de sujeito social culpado ou responsável pelos fracassos dos homens. Esta análise é essencial para o entendimento do constructo percepção de culpa em relação ao boicote dos consumidores.

5.2 Conceituação psicanalítica de culpa e relação com as diferenças de gênero

Entende-se por “culpa” a compreensão penosa de haver causado algum tipo de dano a outros indivíduos (objetos) estimados pelo próprio sujeito (SEGAL, 1975SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Ed. Imago , 1975.). Para Melanie Klein (1970KLEIN, M. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1970.), renomada psicanalista infantil, o desenvolvimento da sensação de culpa nos indivíduos se dá a partir dos momentos onde o bebê ataca a figura (a princípio) materna - ambivalentemente amada e odiada, pois é inicialmente seu único referencial ambiental, dessa maneira gerando tanto prazeres quanto desprazeres, num processo de diferenciação do sujeito para com o mundo.

Tais momentos (denominados “posição depressiva”) simbolizados pela criança colocam-na num contexto de grande ansiedade (geradora de sofrimento psíquico decorrente da percepção angustiante do conflito entre amor e ódio acerca da figura parental), pois aponta à possibilidade de perda dessa figura (externa e internamente) - portanto, a criança toma ações de reparação para com o objeto estimado para que não o perca (KLEIN, 1970KLEIN, M. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1970.; 1974KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Ed. Imago , 1974.).

Assim, com o tempo, a criança introjeta - ou seja, internaliza e demarca como pontos de referências comportamentais internos - as figuras parentais e as ambivalências e culpas sentidas em relação a tais figuras. Tal introjeção é o que permite a possibilidade de geração do superego, constructo psicológico de caráter moral (e, portanto, social) repressor de comportamentos e gerador de adequação social no indivíduo (SPILLIUS, 1990SPILLIUS, E. B. Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e técnica. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1990. v. 2.; SEGAL, 1975SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Ed. Imago , 1975.).

Ao relacionar tal construção psicológica nos sujeitos com as bases histórico-culturais apresentadas anteriormente (como o patriarcado, que denota um caráter de forte introjeção da figura do pai na mulher), fica possível traçar uma linha de raciocínio que corrobore uma autopercepção de culpa mais intensa nas mulheres que nos homens frente à imponência da figura paterna e do controle temporalmente estabelecido do homem sobre a mulher.

No presente trabalho, dentro da inter-relação entre o constructo criado de “Percepção de culpa” a partir da análise dos dados e a conceituação de culpa kleiniana anteriormente apresentada, evidencia-se que frente à possibilidade de gerar algum tipo de dano a um ou mais indivíduos componentes desse mesmo grupo no qual a consumidora se insere, a mulher estaria sujeita a uma maior autopercepção de culpa e da experienciação dos elementos ansiogênicos decorrentes de tal percepção. Tem-se, então, a geração de ansiedade forçando uma ação direcionada do sujeito em favor da manutenção de um determinado comportamento - o boicote.

Pela adequação histórica de submissão e falta de papel social da mulher e correlacionando-se sso à diferença observada no constructo “Percepção de culpa” proveniente da validação da escala inserida na pesquisa de campo desta investigação, é encontrado que a elas a sensação ansiosa, de culpa e a angústia gerada por essa problemática (por meio das figuras parentais introjetadas, especialmente a masculina) fazem-nas passar por conflitos de culpa mais intensos que os homens. Tal achado é possível a partir dos itens amparados no presente trabalho que possibilitaram a geração do constructo “Percepção de culpa” na escala validada. Esse constructo não foi encontrado inicialmente no estudo de Klein, Smith e John (2004KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.), o que gera insights para futuras pesquisas relacionadas à temática dos boicotes dos consumidores, ou, especificamente, sobre a diferença de “Percepção de culpa” e “Gênero”.

5.3 Implicações teóricas, práticas e futuras pesquisas

A validação do construto “Percepção de culpa” neste estudo apresenta contribuições teóricas e práticas relacionadas ao boicote do consumidor. Em relação às implicações teóricas tem-se: (i) a problematização da relação gênero do consumidor e o boicote - visto que existem poucos estudos que apresentam uma verificação empírica em relação a tais variáveis; (ii) a análise psicanalítica teórica desenvolvida posteriormente à verificação do construto “Percepção de culpa”, com o intuito de verificar uma base epistemológica que justificasse a relação do construto com a maior predisposição da mulher na culpa que o homem; e, (iii) a possibilidade de outros pesquisadores utilizarem a escala validada neste estudo para replicar o estudo em outros grupos ou associá-la a outras variáveis - como identificar que tipo de boicote (ecológico, social, de minorias, religioso, econômico ou econômico) tem maior escore na “Percepção de culpa” no consumidor.

Já em relação às implicações práticas, podem ser apresentadas duas perspectivas de análise da “Percepção de culpa” e “Gênero”, quais sejam: (i) estratégias de comunicação com consumidores ou ex-consumidores; e (ii) diagnóstico da imagem empresarial entre mulheres ou homens. Em relação às estratégias de comunicação, como mulheres se sentem mais culpadas que os homens no boicote, na construção de ferramentas que busquem uma reaproximação com do consumidor com uma empresa, considerar aspectos mais intrínsecos à orientação psicanalítica da mulher pode ser uma estratégia eficiente em um processo de gerenciamento de crise em uma situação de boicote de consumidores. No que diz respeito ao diagnóstico da imagem empresarial entre mulheres ou homens, mulheres podem avaliar negativamente uma companhia por se sentirem mais culpadas que os homens, influenciando outros consumidores e consumidoras no ato de deixar de comprar, resultando, assim, em perdas tangíveis e intangíveis para uma empresa, tanto em imagem quanto em reputação.

Os resultados da validação da escala neste artigo, bem como a abordagem psicanalítica de culpa apresentada como desdobramento da validação da escala e as implicações teóricas e práticas nesta investigação possibilitam o surgimento de outras questões de pesquisa, conforme podem verificadas no Quadro 3.

QUADRO 3:
Sugestões para futuras pesquisas

Por fim, entende-se que este artigo se torna relevante para a área de comportamento do consumidor no Brasil, pois, além de discutir com rigor científico a validação de uma escala de motivações para o boicote no Brasil e os desdobramentos dos constructos encontrados neste processo em relação ao gênero do consumidor, o estudo busca os desdobramentos históricos, psicológicos e antropológicos que fundamentam a diferença estatística empírica e significativa encontrada a partir dos consumidores que participaram da amostra. Além disso, ao apresentar proposições para futuras pesquisas, os autores evidenciam as lacunas de conhecimento que permeiam a temática do boicote dos consumidores.

REFERÊNCIAS

  • AAKER, D. J. Leaveraging the corporate brand. California Management Review, Berkeley, v. 46, n.3, p. 6-18, Spring 2004.
  • BARDA, C.; SARDIANOU, E. Analysing consumers’‘activism’ in response to rising prices. International Journal of Consumer Studies, Oxford, v. 34, n. 2, p. 133-139, Mar. 2010.
  • CRUZ, B. P. A. O boicote no comportamento do consumidor. 2013. 192 f. Tese (Doutorado em Administração de Empresas)-Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2013a.
  • CRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores: demarcação de conceitos e casos no Brasil. Revista de Administração do Gestor, Piedade, RJ, v. 3, n. 1, p. 61-73, jul. 2013b.
  • CRUZ, B. P. A. Boicote de consumidores em relação à responsabilidade social corporativa. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 35., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpad, 2011.
  • DEVELLIS, R. F. Scale development: theory and applications. 2nd ed. California, USA: Sage Publications, 2003.
  • EISLER, R. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
  • FEUERSTEIN, G. A sexualidade sagrada. Rio de Janeiro: Siciliano, 1994.
  • FRIEDMAN, M. Consumer boycotts: effecting change trough the marketplace and the media. New York: Routledge, 1999.
  • THE GIRLCOTT. History. c2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.thegirlcott.com/history.shtml >. Acesso em: 12 nov. 2011.
    » http://www.thegirlcott.com/history.shtml
  • KALSON, S. Information age breeds boycotts by the score. Pittsburgh Post-Gazette, Pittsburgh, 8 Nov. 2005. Disponível em: <Disponível em: http://news.google.com/newspapers?nid=1129&dat=20051108&id=eolIAAAAIBAJ&sjid=33ADAAAAIBAJ&pg=2458,5590445 >. Acesso em: 13 nov. 2011.
    » http://news.google.com/newspapers?nid=1129&dat=20051108&id=eolIAAAAIBAJ&sjid=33ADAAAAIBAJ&pg=2458,5590445
  • HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto Alegre: Bookman, 2005.
  • KLEIN, J. G.; SMITH, N. C.; JOHN, A. Why we boycott: consumer motivations for boicott participation. Journal of Marketing, Binghamton, v. 68, n. 3, p. 92-109, July 2004.
  • KLEIN, M. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1970.
  • KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Ed. Imago , 1974.
  • KNIGHT, R. F.; PRETTY, D. I. Brand risk management in a value context. Oxford: Oxford University, 2000. (Templeton Briefing; v. 5)
  • KREPS, B. Paixões eternas, ilusões passageiras. Rio de Janeiro: Saraiva, 1992.
  • LINS, R. N. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Ed. BestSeller, 2007.
  • MCDANIEL, C.; GATES, R. Pesquisa de marketing. São Paulo: Thompson Learning, 2006.
  • NEILSON, L. A. Boycott or buycott? Understanding political consumerism. Journal of Consumer Behavior, [S.l.], v. 9, n. 3, p. 214-227, May/June 2010.
  • PALAZZO, G.; BASU, K. The ethical backlash of corporate branding. Journal of Business Ethics, Dordrecht, v. 73, n. 4, p. 333-346, July 2007.
  • RUSSEL, B. O casamento e a moral. Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1955.
  • SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Ed. Imago , 1975.
  • SOULE, S. A. Contention and corporate social responsibility. Oxford: Cambridge University Press, 2009.
  • SPILLIUS, E. B. Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e técnica. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1990. v. 2.
  • STOLLE, D.; HOOGUE, M.; MICHELETTI, M. Politics in the supermarket: political consumerism as a form of political participation. International Political Science Review, London, v. 26, n. 3, p. 245-269, July 2005.

NOTAS

  • 1
    Para não perder o sentido do termo e comparação com o termo boycott, não se faz a tradução de buycott, visto que é possível comparar os termos. Para Neilson (2010), buycott pode ser entendido como um prêmio que o consumidor dá à empresa, comprando seus produtos, pelo fato de concordar com o comportamento da instituição. Tanto boicote como buycott servem para classificar uma forma de consumo político.
  • 3
    Processo de avaliação: Double Blind Review

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2012
  • Aceito
    06 Nov 2013
Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, Av. da Liberdade, 532, 01.502-001 , São Paulo, SP, Brasil , (+55 11) 3272-2340 , (+55 11) 3272-2302, (+55 11) 3272-2302 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbgn@fecap.br