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Análise das Hipóteses de Risco e Mispricing dos Accruals: Evidências do Brasil

Resumo

Objetivo

Analisar como a precificação dos accruals se configura no mercado brasileiro, isto é, se representa um mispricing de mercado ou fator de risco precificável.

Metodologia:

Utilizou-se de uma amostra de empresas não financeiras listadas na B3. Para o alcance do objetivo, fez-se uso da metodologia de carteiras, modelos de precificação de ativos e, para testar as hipóteses de fator de risco e mispricing, utilizou-se uma metodologia de regressão em duas etapas (two-stage cross-sectional regression - 2SCSR).

Resultados:

Os resultados obtidos demonstraram evidências da anomalia dos accruals para as empresas classificadas como pequenas e que as evidências são mais fortes quando se avalia o componente discricionário. A análise de regressões em duas etapas não permitiu constatar que os accruals representam um fator de risco precificável, sugerindo que as evidências de anomalia obtidas para os accruals discricionários são provocadas por erro de precificação do mercado (mispricing).

Contribuições:

A não rejeição da hipótese do mispricing dos accruals leva a concluir que os preços das ações de empresas pequenas são influenciados pelos resultados contábeis divulgados e que os gestores, ao possuírem incentivos atrelados ao mercado de capitais e incentivos ligados aos lucros podem se utilizar das escolhas contábeis oportunistas com a motivação de maximizar a sua utilidade esperada, ou seja, influenciar o preço das ações por meio das distorções nos lucros.

Palavras chaves:
Accruals; Mispricing; Fator de risco

Abstract

Purpose:

Analyze how the accruals pricing is configured in the brazilian stock market, that is, if it represents a market mispricing or a risk factor.

Design/methodology/approach:

We used a sample of non-financial companies listed in B3. To reach the objective, the portfolio methodology, asset pricing models were used, and two-stage cross-sectional regression (2SCSR) was used to test risk and mispricing hypotheses.

Findings:

The results obtained showed evidence of the accruals anomaly for the companies classified as small and that the evidence is stronger when evaluating the discretionary component. The two-stage cross-sectional regression analysis did not show that accruals represent a risk factor, suggesting that the evidence of anomaly obtained for discretionary accruals is caused by mispricing.

Originality/value:

Non-rejection of the accruals' mispricing assumption leads to the conclusion that stock prices of small firms are influenced by the accounting results disclosed and that managers, by having capital market and profit incentives related, can use accounting choices opportunists with the motivation to maximize their expected utility, that is, to influence the price of shares through the distortions in profits.

Keywords:
Accruals; Mispricing; Risk Factor

1 Introdução

Este estudo examina como a precificação dos accruals se configura no mercado brasileiro, isto é, se representa um mispricing de mercado ou fator de risco precificável. Seguindo Hirshleifer, Hou e Teoh (2012Hirshleifer, D., Hou, K., & Teoh, S. H. (2012). The accrual anomaly: risk or mispricing? Management Science, 58(2), 320-335.), duas abordagens gerais podem ser dadas na explicação da precificação dos accruals documentada inicialmente por Sloan (1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.), no mercado norte-americano.

A primeira está relacionada à baixa sofisticação do mercado ou à capacidade limitada de interpretar e precificar corretamente as informações contábeis, mais especificamente do lucro, conforme demonstrado inicialmente por Sloan (1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.). Sob essa hipótese, é possível que companhias que apresentam elevados níveis de accruals proporcionem uma má precificação dessas informações (mispricing). Essa abordagem é sustentada pela Hipótese da Fixação Funcional (HFF), segundo a qual o mercado reage às informações contábeis não importando se elas afetam ou não os fluxos de caixa futuros da empresa (Tiniç, 1990Tiniç, S. M. (1990). A perspective on the stock market's fixation on accounting numbers. The Accounting Review, 65(4), 781-796.). Isso significa que, sob essa teoria, os investidores e demais usuários das informações contábeis acreditam no lucro divulgado sem se preocupar com os procedimentos utilizados para sua mensuração, não avaliando individualmente os componentes dos lucros (Tiniç, 1990).

Alternativamente, a segunda abordagem leva em consideração as teorias de precificação (racionais) de ativos (Francis, Lafond, Olsson & Schipper, 2005LaFond, R. (2005). Is the accrual anomaly a global anomaly? SSRN working paper.). Sob essa abordagem, dada a natureza transitória dos accruals e das possibilidades de não realização desses em fluxos de caixa futuros, sobretudo os accruals discricionários, o lucro reportado pelas empresas acaba incorporando e fornecendo um maior nível de insegurança para o mercado, que, por conseguinte, exige um prêmio maior pelo risco percebido derivado da incerteza de geração de fluxos de caixa futuros (Francis et al., 2005; Gray, Koh & Tong, 2009Gray, P., Koh, P. S., & Tong, Y. H. (2009). Accruals quality, information risk and cost of capital: Evidence from Australia. Journal of Business Finance & Accounting, 36(1‐2), 51-72.; Kim & Qi, 2010Kim, D., & Qi, Y. (2010). Accruals quality, stock returns, and macroeconomic conditions. The Accounting Review, 85(3), 937-978.).

Nessa abordagem da precificação racional de ativos, retornos médios mais elevados para carteiras de empresas definidas a partir do volume de accruals deve refletir uma compensação em termos de risco. Sob essa hipótese, a relação dos accruals com os retornos das ações pode ser explicada se o volume de accruals de uma empresa for associado com sua respectiva carga de risco (Hirshleifer et al., 2012Hirshleifer, D., Hou, K., & Teoh, S. H. (2012). The accrual anomaly: risk or mispricing? Management Science, 58(2), 320-335.). Essa abordagem corrobora a Hipótese dos Mercados Eficientes (HME), que sustenta que os preços das ações negociadas traduzem continuamente, de forma completa e instantânea, toda informação relevante e disponível a respeito das referidas ações (Fama, 1970Fama, E. F. (1970). Efficient capital markets: A review of theory and empirical work. The journal of Finance, 25(2), 383-417., 1991). Logo, sob essa abordagem, as informações dos lucros, mesmo a parcela manipulada, são percebidas e corretamente precificadas.

Frente a essas duas abordagens, é possível perceber que a correta precificação dos accruals depende das características do mercado. Portanto, apesar da existência de evidências internacionais de mispricing e fator de risco dos accruals, as mesmas não podem ser generalizadas para os mercados emergentes ou pouco desenvolvidos. Os mercados emergentes ou pouco desenvolvidos, teoricamente, são menos eficientes, no que se refere à precificação de informações públicas (Lopes & Walker, 2008Lopes, A. B.; Walker, M. (2008) Firm-level incentives and the informativeness of accounting reports: an experiment in Brazil. SSRN working paper.). Além disso, esses mercados se destacam pelas fragilidades de políticas de proteção aos acionistas minoritários e pela fraca estrutura de governança corporativa que acabam favorecendo as práticas de gerenciamento de resultados (Porta, Lopez-de-Silanes, Shleifer & Vishny, 2002).

Para Haw, Ho e Li (2011Haw, I. M., Ho, S. S., & Li, A. Y. (2011). Corporate governance and earnings management by classification shifting. Contemporary Accounting Research, 28(2), 517-553.), nos mercados emergentes, os investidores domésticos são menos sofisticados e mais propensos a se concentrar no lucro como medida de desempenho, sem levar em consideração o conteúdo informacional de seus componentes (accruals e fluxo de caixa). Em tal ambiente, os gestores podem ter mais incentivos para se envolver com práticas oportunistas de gerenciamento de resultados que contribuem para a má precificação dos accruals. Logo, parece oportuno estender essas evidências para tais mercados, como é o caso do Brasil, que conforme o MSCI Emerging Markets Index é um dos países com características de emergente.

Os resultados dos poucos estudos elaborados com empresas atuantes no mercado brasileiro (Cupertino, Martinez & Costa, 2012Cupertino, C. M., Martinez, A. L., & Costa Jr, N. C. A. D. (2012). Accrual anomaly in the Brazilian capital market. BAR-Brazilian Administration Review, 9(4), 421-440.; Silva & Machado, 2013; Takamatsu & Fávero, 2013Takamatsu, R. T., & Fávero, L. P. L. (2013). Accruals, Persistence of Profits and Stock Returns in Brazilian Public Companies.) convergem para fracas evidências da anomalia dos accruals. A presente pesquisa, entretanto, se diferencia dos estudos anteriores, primeiro por analisar, além da hipótese de mispricing, a hipótese concorrente de que os accruals podem representar um fator de risco; logo, não seria possível obter retornos elevados sem incorrer em riscos adicionais (Francis et al., 2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.). Além disso, este estudo se diferencia por considerar o período de adoção integral das Financial Accounting Reporting Standards (IFRS). Conforme Kaserer e Klingler (2008Kaserer, C., & Klingler, C. (2008). The accrual anomaly under different accounting standards-lessons learned from the German experiment. Journal of Business Finance & Accounting, 35(7‐8), 837-859.), a análise da anomalia dos accruals com base em informações contábeis elaboradas utilizando o modelo contábil IFRS retrata de forma mais fidedigna tal fenômeno. Para os autores, essa anomalia parece ser motivada principalmente por empresas que apresentam suas demonstrações financeiras em IFRS ou Generally Accepted Accounting Principles in the United States (US-GAAP), em detrimento das empresas que adotam normas domésticas. Kaserer e Klingler (2008) argumentam que a introdução de uma contabilidade fundamentada na true and fair view, como o modelo IFRS, que se baseia em informações de difícil verificabilidade, pode não ser adequada para um contexto com sistema de governança corporativa fraco. As evidências empíricas obtidas pelos autores para o mercado alemão confirmaram esses argumentos.

Para alcançar o objetivo proposto desta pesquisa, inicialmente, fez-se uso da metodologia de formação de carteiras e modelos multifatoriais de precificação de ativos, em que permitiu analisar evidências de anomalia dos accruals totais e discricionários. Adicionalmente, analisou-se a relação dos accruals com os retornos por meio de ativos individuais (cross-section), para isso foi utilizada a metodologia de dados em painel. Por fim, para testar as hipóteses de fator de risco e mispricing, utilizou-se a técnica de regressão em duas etapas (two-stage cross-sectional regression - 2SCSR).

Os resultados demonstraram, tanto por meio da análise das carteiras quanto por meio da metodologia de ativos individuais, evidências da anomalia dos accruals para as empresas com baixo valor de mercado (pequenas) e que as evidências são mais fortes quando se avalia o componente discricionário, sugerindo que tal fenômeno é intensificado pelas escolhas discricionárias dos gestores. A análise por meio da metodologia de regressões em duas etapas não permitiu concluir que os accruals totais e os discricionários representam um fator de risco precificável, indicando que as evidências de anomalia são provocadas por erro de precificação do mercado (mispricing).

A não rejeição da hipótese do mispricing dos accruals no mercado brasileiro corrobora a HFF, sugerindo que os investidores, na média, são poucos sofisticados, dado esse conjunto de informações, o que implica que a relação entre o lucro contábil e o preço das ações é puramente mecânica e que os investidores são sistematicamente ludibriados por métodos e escolhas contábeis realizadas pelas empresas (Tiniç, 1990Tiniç, S. M. (1990). A perspective on the stock market's fixation on accounting numbers. The Accounting Review, 65(4), 781-796.). Essas evidências são relevantes, haja vista indicar a possibilidade de os gestores das empresas influenciarem o mercado ao utilizarem escolhas contábeis de forma oportunista, principalmente quando possuem incentivos atrelados ao mercado de capitais.

Além desta introdução, a presente pesquisa possui outras quatro seções. A segunda seção discorre sobre as hipóteses de risco e mispricing dos accruals; a terceira seção apresenta os métodos utilizados para o alcance do objetivo; a quarta seção evidencia e discute as evidências empíricas obtidas; finalmente, a última seção apresenta as conclusões, assim como as limitações do estudo e sugestões para futuras pesquisas.

2 Fator de risco e mispricing dos accruals

Após o estudo pioneiro de Sloan (1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.), outras pesquisas buscaram investigar desdobramentos e possíveis explicações para a anomalia dos accruals detectada. Duas explicações são observadas na literatura para a relação dos accruals com o retorno das ações. A primeira explicação sustenta que os accruals representam um fator de risco precificável e que esse risco não pode ser diversificado (Chen, Dhaliwal & Trombley, 2008Chen, L. H., Dhaliwal, D. S., & Trombley, M. A. (2008). The effect of fundamental risk on the market pricing of accruals quality. Journal of Accounting, Auditing & Finance, 23(4), 471-492.; Francis et al., 2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.; Gray et al., 2009Gray, P., Koh, P. S., & Tong, Y. H. (2009). Accruals quality, information risk and cost of capital: Evidence from Australia. Journal of Business Finance & Accounting, 36(1‐2), 51-72.; Khan, 2008Khan, M. (2008). Are accruals mispriced? Evidence from tests of an intertemporal capital asset pricing model. Journal of Accounting and Economics, 45(1), 55-77.; Kim & Qi, 2010Kim, D., & Qi, Y. (2010). Accruals quality, stock returns, and macroeconomic conditions. The Accounting Review, 85(3), 937-978.; Mashruwala & Mashruwala, 2011Mashruwala, C. A., & Mashruwala, S. D. (2011). The pricing of accruals quality: January versus the rest of the year. The Accounting Review, 86(4), 1349-1381.). A segunda explicação sugere que a relação dos accruals com o retorno acionário ocorre por mispricing de mercado (Sloan, 1996; Lafond, 2005LaFond, R. (2005). Is the accrual anomaly a global anomaly? SSRN working paper.; Hirshleifer et al., 2012Hirshleifer, D., Hou, K., & Teoh, S. H. (2012). The accrual anomaly: risk or mispricing? Management Science, 58(2), 320-335.).

O risco informacional deriva da imprecisão de estimativas da estrutura de pay-off para os investidores com base em informações disponíveis (Easley & O’Hara, 2004Easley, D., & O'hara, M. (2004). Information and the cost of capital. The journal of finance, 59(4), 1553-1583.) ou de assimetria informacional entre gestores e investidores, no que diz respeito às decisões de investimento de capital (Lambert, Leuz & Verrecchia, 2007Lambert, R., Leuz, C., & Verrecchia, R. E. (2007). Accounting information, disclosure, and the cost of capital. Journal of accounting research, 45(2), 385-420.). Ambas as perspectivas apontam para os fluxos de caixa (ou fluxos de caixa livres) como fundamentais para avaliação de tal risco (Francis et al., 2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.). Isto é, os fluxos de caixa determinam os retornos dos investidores, seja na forma de dividendos ou de ganho de capital, de modo que a incerteza sobre os fluxos de caixa é uma fonte de risco informacional, conforme caracterizado por Easley e O’Hara (2004).

Com base nessas caracterizações, pode-se inferir que um resultado desfavorável para cada atributo dos lucros, considerados isoladamente ou em conjunto, acaba gerando um certo nível de incerteza quanto à geração de fluxos de caixa futuros e que essa incerteza deriva, principalmente, do componente accruals. Em um ambiente com multiativos e multiperíodos, e com investidores informados e desinformados, o risco da informação enfrentado pelos investidores desinformados é não diversificável e, portanto, acaba sendo precificado (Easley & O’Hara, 2004Easley, D., & O'hara, M. (2004). Information and the cost of capital. The journal of finance, 59(4), 1553-1583.). Isso sugere que os retornos exigidos são afetados pelo risco informacional, capturado tanto pela extensão da informação privada quanto pela precisão das informações, pública e/ou privada. Isto é, com mais informação privada e menos precisão na informação, leva-se a exigências de maiores retornos em razão do risco incremental percebido.

Testes empíricos da relação prevista entre o risco informacional e o retorno das ações foram realizados por meio de diferentes caracterizações de risco informacional. Por exemplo, Botosan (1997Botosan, C. A. (1997). Disclosure level and the cost of equity capital. Accounting review, 323-349.) centrou-se nos escores de divulgação com base na quantidade do reporte anual de informações; Easley, Hvidkjaer e O’Hara (2002Easley, D., Hvidkjaer, S., & O’Hara, M. (2002). Is information risk a determinant of asset returns? The journal of finance, 57(5), 2185-2221.) focaram na assimetria de informação entre traders informados e desinformados, em que utilizaram os escores da probabilidade de negociação com informação privilegiada (probability of informed trading - PIN); ao passo que Francis et al. (2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.) focaram na qualidade dos accruals. Cada um desses estudos previu e encontrou uma relação entre o(s) fator(es) de risco informacional e o retorno das ações.

Com base em modelos teóricos (Easley & O’Hara, 2004Easley, D., & O'hara, M. (2004). Information and the cost of capital. The journal of finance, 59(4), 1553-1583.; Lambert et al., 2007Lambert, R., Leuz, C., & Verrecchia, R. E. (2007). Accounting information, disclosure, and the cost of capital. Journal of accounting research, 45(2), 385-420.), Francis et al. (2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.) buscaram mostrar, empiricamente, que os accruals representam uma medida de risco informacional. Os autores avaliaram se o risco da incerteza provocado pela magnitude dos accruals afeta o custo de capital de empresas norte-americanas e observaram que a qualidade dos accruals é um fator de risco precificável e que desempenham um papel estatística e economicamente significativo na determinação do custo de capital próprio das empresas.

Core, Guay e Verdi (2008Core, J. E., Guay, W. R., & Verdi, R. (2008). Is accruals quality a priced risk factor? Journal of Accounting and Economics, 46(1), 2-22.) questionaram os resultados de Francis et al. (2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.), sugerindo que a metodologia utilizada por Francis et al. (2005) não permitia inferir que a qualidade dos accruals representa um fator de risco precificável. Utilizando um modelo de regressão transversal de duas etapas, Core et al. (2008) não encontraram evidências de que os accruals representam um fator de risco.

Estudos mais recentes buscaram aprimorar as evidências de que os accruals representam um fator de risco. Gray et al. (2009Gray, P., Koh, P. S., & Tong, Y. H. (2009). Accruals quality, information risk and cost of capital: Evidence from Australia. Journal of Business Finance & Accounting, 36(1‐2), 51-72.) examinaram, no mercado australiano, a relação da qualidade dos accruals com o custo de capital próprio. Utilizando os mesmos testes de Francis et al. (2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.) e Core et al. (2008Core, J. E., Guay, W. R., & Verdi, R. (2008). Is accruals quality a priced risk factor? Journal of Accounting and Economics, 46(1), 2-22.), os autores forneceram evidências consistentes de que os accruals representam um fator de risco não diversificável e que, portanto, afetam o custo de capital próprio de empresas no mercado australiano.

Kim e Qi (2010Kim, D., & Qi, Y. (2010). Accruals quality, stock returns, and macroeconomic conditions. The Accounting Review, 85(3), 937-978.), utilizando uma amostra de empresas norte-americanas, analisaram se a qualidade dos lucros, medida por meio da qualidade dos accruals, afeta o custo do capital próprio. Os autores utilizaram a mesma abordagem metodológica de Core et al. (2008Core, J. E., Guay, W. R., & Verdi, R. (2008). Is accruals quality a priced risk factor? Journal of Accounting and Economics, 46(1), 2-22.), com a inclusão de variáveis macroeconômicas, e concluíram que a qualidade dos accruals representava um fator de risco precificável. Os autores concluíram, contudo, que os accruals representavam um fator de risco e que as evidências de Core et al. (2008) eram significativamente sensíveis aos retornos das ações, relativamente baixos.

Como visto, ao considerar os accruals um fator de risco, retornos anormais devem estar associados a níveis de risco correspondente, de modo que não seja possível obter vantagens do mercado sem incorrer em maiores níveis de risco. Por outro lado, sob a segunda explicação para a anomalia dos accruals, os investidores fixam no lucro sem levar em consideração as propriedades dos componentes accruals e fluxo de caixa, razões que levam a erro de precificação das ações (mispricing), tornando possível, portanto, obter retornos anormais sem incorrer em níveis de risco proporcionais (Sloan, 1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.).

O estudo de Xie (2001Xie, H. (2001). The mispricing of abnormal accruals. The accounting review, 76(3), 357-373.) desagregou os accruals totais em accruals discricionários e não discricionários, analisando a existência de mispricing desses componentes. Os resultados demonstraram que os accruals discricionários são a principal causa da anomalia dos accruals. Os resultados de Xie (2001) são importantes, no sentido de sugerir que as escolhas contábeis discricionárias dos gestores podem, de fato, refletir no retorno das ações. Assim, se a gestão das empresas possui alguma motivação para influenciar os preços das ações, uma das possibilidades é por meio dos accruals discricionários, em razão do mispricing detectado.

LaFond (2005LaFond, R. (2005). Is the accrual anomaly a global anomaly? SSRN working paper.) realizou um estudo com amostras de 17 países acerca da anomalia dos accruals, analisando as implicações dos retornos subsequentes de uma estratégia de negociação baseada em accruals, com o intuito de avaliar se as características institucionais (regime legal e proteção dos acionistas) eram variáveis que influenciavam a ocorrência de tal anomalia nos países analisados. O autor demonstrou fortes evidências de que a anomalia dos accruals é um fenômeno global e que nenhum fator comum entre os países analisados explicava a anomalia dos accruals.

Ohlson e Bilinski (2015) analisaram as hipóteses de risco e mispricing dos accruals, por meio de uma nova abordagem metodológica. A intuição dos autores é a de que as ações de alto risco devem experimentar, com maior frequência, altos e baixos retornos, quando comparadas às ações de baixo risco. Os autores identificaram que os baixos accruals aumentam a probabilidade de grandes retornos positivos, mas reduzem a probabilidade de grandes retornos negativos. Para Ohlson e Bilinski (2015), esse achado é inconsistente com a perspectiva de que os accruals refletem risco e, portanto, apoia a hipótese de que a anomalia dos accruals é realmente explicada pela hipótese do mispricing.

Alguns estudos recentes foram realizados em mercados com características do mercado brasileiro, isto é, emergentes ou em desenvolvimento. Kim, Kim, Kwon e Lee (2015Kim, Y. J., Kim, J. H., Kwon, S., & Lee, S. J. (2015). Percent accruals and the accrual anomaly: Korean evidence. Pacific-Basin Finance Journal, 35, 340-366.) encontraram evidências da anomalia dos accruals no mercado acionário da Coreia do Sul. Ozkan e Kayali (2015Ozkan, N., & Kayali, M. M. (2015). The accrual anomaly: Evidence from Borsa Istanbul. Borsa Istanbul Review, 15(2), 115-125.) verificaram a presença da anomalia dos accruals no mercado de capitais da Turquia após ajustar a amostra para as empresas que apresentaram perdas. Além disso, usando uma estratégia de negociação com base em accruals totais, os autores detectaram a possibilidade de obtenção de retornos anormais de 18,6%.

No contexto brasileiro, as evidências da anomalia de accruals, comparando com as evidências internacionais, ainda são incipientes. Depois de mais de vinte anos da publicação do estudo de Sloan (1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.), são poucas as evidências sobre o assunto, dentre as quais se destacam Cupertino, Martinez e Costa (2012Cupertino, C. M., Martinez, A. L., & Costa Jr, N. C. A. D. (2012). Accrual anomaly in the Brazilian capital market. BAR-Brazilian Administration Review, 9(4), 421-440.), Takamatsu e Fávero (2013Takamatsu, R. T., & Fávero, L. P. L. (2013). Accruals, Persistence of Profits and Stock Returns in Brazilian Public Companies.), Silva e Machado (2013).

O estudo de Cupertino et al. (2012Cupertino, C. M., Martinez, A. L., & Costa Jr, N. C. A. D. (2012). Accrual anomaly in the Brazilian capital market. BAR-Brazilian Administration Review, 9(4), 421-440.) foi conduzido conforme a pesquisa de Sloan (1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.), com dados de empresas listadas no mercado acionário brasileiro de 1990 a 2008. Os resultados indicaram que a persistência dos accruals era menor do que a persistência do fluxo de caixa; entretanto, não foram constatadas evidências consistentes da anomalia dos accruals. De forma semelhante, os achados de Takamatsu e Fávero (2013Takamatsu, R. T., & Fávero, L. P. L. (2013). Accruals, Persistence of Profits and Stock Returns in Brazilian Public Companies.) e Silva e Machado (2013) ratificam as fracas evidências da anomalia de accruals no mercado brasileiro. Cabe ressaltar que esses estudos examinaram apenas a existência da anomalia dos accruals, não avaliando a hipótese concorrente de que os accruals refletem risco.

3 Amostra, mensuração das variáveis e modelos

3.1 Metodologia de formação de carteiras

A metodologia de carteiras tem como objetivo formular estratégias de investimentos com base nos accruals totais e discricionários, para assim avaliar evidências da anomalia dos accruals nos diversos grupos de empresas. Para a análise de carteiras, foi utilizada a metodologia de Fama e French (2008Fama, E. F., & French, K. R. (2008). Dissecting anomalies. The Journal of Finance, 63(4), 1653-1678.). Especificamente, ao final de junho de cada ano, as ações foram ordenadas de forma crescente em função do volume de accruals (totais e discricionários) e distribuídas em quintis. Após a ordenação, as ações foram divididas, por meio da mediana, em dois grupos Small e Big, de acordo com o valor de mercado de junho. Por fim, em junho de cada ano, após as ordenações anteriores, foram construídas dez carteiras (5 x 2) resultantes da interseção dos grupos classificados pelos accruals e tamanho, que permitiu avaliar evidências de anomalia para os diversos tamanhos de empresas. O retorno de cada ação e o retorno de cada carteira foram calculados, mensalmente, de julho do ano t a junho do ano t+1, ponderado pelo valor de mercado.

Adicionalmente, foi analisado se os retornos obtidos com a metodologia de formação de carteiras persistem ao ajustar os retornos ao modelo de cinco fatores (Liu, 2006Liu, W. (2006). A liquidity-augmented capital asset pricing model. Journal of financial Economics, 82(3), 631-671.; Machado & Medeiros, 2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.). A análise foi realizada por meio do alfa de Jensen que, geralmente, é utilizado para avaliar o retorno anormal de um título ou de uma carteira de títulos. A avaliação consiste em observar se os alfas dos modelos estimados são estatisticamente diferentes de zero. A não significância estatística dos alfas dos modelos significa que os retornos das carteiras constituídas com base nos accruals são explicados pelos fatores de risco do modelo de cinco fatores.

Para obter os fatores de risco do modelo de cinco fatores (variáveis independentes), foram adotados os procedimentos utilizados por Machado e Medeiros (2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.). Especificamente, foram construídas, em junho de cada ano, 16 carteiras resultantes da interseção de duas carteiras formadas com base no valor de mercado (small e big), duas carteiras (low e high) com base no índice Book-to-Market (BM), duas carteiras com base no momento (winner e loser) e duas carteiras com base na liquidez (low e high). Assim, mensalmente, calculou-se o fator tamanho pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras small e a média dos retornos mensais das carteiras big; o fator BM pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras high e a média dos retornos mensais das carteiras low; o fator momento pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras winner e a média dos retornos mensais das carteiras loser; o fator liquidez pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras low e a média dos retornos mensais das carteiras high. O fator mercado foi obtido pela diferença entre a média, ponderada pelo valor de cada ação, dos retornos mensais de todas as ações da amostra e a taxa livre de risco, adotando-se como proxy a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic).

É importante destacar que o uso da taxa Selic como proxy para a taxa livre de risco seguiu os estudos anteriores (Rogers & Securato, 2009Rogers, P., & Securato, J. R. (2009). Estudo Comparativo no Mercado Brasileiro do Capital Asset Pricing Model (CAPM), Modelo 3-Fatores de Fama e French e Reward Beta Approach. RAC-Eletrônica, 3(1).; Machado & Medeiros, 2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.; Noda, Martelanc & Kayo, 2016Noda, R. F., Martelanc, R., & Kayo, E. K. (2016). O fator de risco lucro/preço em modelos de precificação de ativos financeiros. Revista Contabilidade & Finanças, 27(70), 67-79.; Machado, Faff & Silva, 2017; Machado & Faff, 2018). Cabe considerar, entretanto, que a taxa Selic pode não atender às características de uma taxa livre de risco (volatilidade zero, zero risco de default e zero risco de reinvestimento) e por ser, historicamente, uma taxa alta, os resultados referentes aos retornos em excesso e os alfas de Jensen podem estar subestimados, sendo esta uma limitação desta pesquisa.

As carteiras foram rebalanceadas em junho de cada ano, com o objetivo de garantir que as informações contábeis referentes ao exercício social anterior já estivessem sido divulgadas e precificadas, de modo a evitar-se o viés conhecido como look-ahead bias (Machado & Medeiros, 2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.). É importante enfatizar que, no Brasil, as empresas podem divulgar suas Demonstrações Financeiras Padronizadas (DFP) até o final do primeiro trimestre do exercício seguinte (final de março); entretanto, em razão das incertezas quanto à eficiência do mercado brasileiro, optou-se por realizar o balanceamento em junho de cada ano, seguindo a literatura (Argolo, Leal & Almeida, 2012Argolo, E. F. B., Leal, R. P. C., & Almeida, V. D. S. (2012). O modelo de Fama e French é aplicável no Brasil. Relatórios Coppead, 0-27.; Caldeira, Moura & Santos, 2013Caldeira, J. F., Moura, G. V., & Santos, A. A. (2013). Seleção de carteiras utilizando o modelo Fama-French-Carhart. Revista Brasileira de Economia, 67(1), 45-65.; Machado & Medeiros, 2014; Machado, Faff & Silva, 2017). Cabe considerar, todavia, que essa escolha é uma limitação da pesquisa, haja vista que, entre o início de abril e o início de junho, muitos eventos podem acontecer com potencialidade de afetar os preços dos títulos no mercado.

Os retornos das carteiras (variável dependente) foram obtidos conforme metodologia de Fama e French (2008Fama, E. F., & French, K. R. (2008). Dissecting anomalies. The Journal of Finance, 63(4), 1653-1678.), conforme descrita no início desta seção. Para análise das carteiras, foi utilizado o modelo de precificação de ativos de cinco fatores seguindo o percurso metodológico de Machado e Medeiros (2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.), descrito pela Equação 1.

E ( R c , t ) R f , t = α + β [ E ( R m , t ) R f , t ] + γ ( S M B ) t + δ ( H M L ) t + ω ( M O M ) t + υ ( L I Q ) t + ε t (1)

Em que: α = alfa de Jensen da carteira; 𝑅𝑐,𝑡 = retorno da carteira no período t; 𝑅𝑓,𝑡 = taxa livre de risco no período t; 𝑅𝑐,𝑡−𝑅𝑓,𝑡 = retorno da carteira em excesso no período t; 𝑅𝑚,𝑡 = retorno de mercado no período t; 𝑅𝑚,𝑡−𝑅𝑓,𝑡 = prêmio pelo risco de mercado no período t; SMB t = prêmio do fator de risco tamanho no período t; HML t = prêmio do fator de risco book-to-market no período t; MOM t = prêmio do fator de risco momento no período t; LIQ t = prêmio do fator de risco liquidez no período t; 𝜀𝑡 = termo de erro da regressão.

A estimação da Equação 1 permitiu analisar a capacidade dos fatores de risco do modelo de cinco fatores em capturar a anomalia dos accruals. Na hipótese de os alfas estimados apresentarem significância estatística, pode-se inferir que existe retorno anormal, sugerindo que os retornos das carteiras não são explicados pelos fatores de risco dos modelos. Se os alfas, porém, não apresentarem significância estatística, pode-se inferir que estratégias de negociação com base nos accruals não originaram retornos anormais.

3.2 Metodologia para os testes com os ativos individuais

Para a análise da relação dos accruals com os retornos por meio de ativos individuais (cross-section), foi utilizada a metodologia de dados em painel. Por meio da metodologia de dados em painel, estimaram-se os coeficientes dos accruals totais e discricionários, com o controle de outros determinantes dos retornos, com o objetivo de avaliar a relação dos accruals, individualmente, com os retornos. Assim sendo, foram estimadas as Equações 2 e 3.

R i , t = α + β 1, T A M i , t + β 2 B M i , t 1 + β 3 M O M i , t + β 4 L I Q i , t + β 5 A C C i , t + ε i , t (2)

R i , t = α + β 1 T A M i , t + β 2 B M i , t 1 + β 3 M O M t + β 4 L I Q i , t + β 5 A D i , t + ε i , t (3)

Em que: 𝑅 t = retorno anual da ação da empresa i, calculado de julho do ano t a junho do ano t+1; ACC = accruals totais da empresa i, do período t; AD = accruals discricionários da empresa i, do período t; TAM = representa o tamanho, mensurado como o logaritmo natural do valor de mercado da empresa i, em junho do ano t; BM = logaritmo natural do índice book-to-market da empresa i, em dezembro de t-1; MOM = representa o efeito momento simbolizado pelo retorno acumulado da ação da empresa i, de julho do ano t-1 a junho do ano t; LIQ = liquidez de mercado, mensurada pelo volume médio de negociação da ação da empresa i, no período t; ɛ t = termo de erro da regressão da empresa i, período t.

A estimação da Equação 2 permitiu obter evidências da magnitude e do sinal da relação entre os accruals totais e os retornos das ações. Da mesma forma, a Equação 3 permitiu identificar a magnitude e a direção da relação entre os accruals discricionários e os retornos das ações. Caso os sinais dessas variáveis sejam negativos e significativos, conclui-se pela existência de evidências de anomalia dos accruals.

As Equações 2 e 3 foram estimadas por meio de dados em painel por Pooled Ordinary Least Square (POLS), haja vista que a hipótese de que a variância dos resíduos que refletem diferenças individuais é igual a zero (efeito aleatório) e a hipótese de que os interceptos são iguais para todas as cross-sections (efeito fixo) foram rejeitadas para ambas as amostras, sugerindo, portanto, que o modelo mais adequado para o conjunto de dados utilizados nas equações é o POLS.

3.3 Metodologia de regressão em duas etapas

Conforme Core et al. (2008Core, J. E., Guay, W. R., & Verdi, R. (2008). Is accruals quality a priced risk factor? Journal of Accounting and Economics, 46(1), 2-22.), o método apropriado para testar se um determinado fator de risco é precificado é a técnica de regressão em duas etapas (two-stage cross-sectional regression - 2SCSR). Esse método oferece um teste da hipótese de que um determinado fator de risco proposto explica a variação transversal dos retornos esperados. Para a aplicação da técnica de regressão de duas etapas, também foram constituídas carteiras, conforme metodologia de Fama e French (2015Fama, E. F.; French, K. R. (2015) A five-factor asset pricing model. Journal of Financial Economics, 116(1), 1-22.), com a inclusão do fator accruals em substituição ao fator crescimento dos ativos, já que essas duas variáveis são correlacionadas, conforme documentado por Cooper, Gulen e Schill (2008Cooper, M. J., Gulen, H., & Schill, M. J. (2008). Asset growth and the cross‐section of stock returns. The Journal of Finance, 63(4), 1609-1651.).

Para a obtenção dos fatores accruals (totais e discricionários), foram construídas, em junho de cada ano, 16 carteiras resultantes da interseção de: a) duas carteiras formadas com base nos accruals (low e high); b) duas carteiras formadas com base no valor de mercado (small e big); c) duas carteiras com base no índice Book-to-Market (low e high); d) duas carteiras com base na Rentabilidade (low e high); e e) duas carteiras com base na liquidez (low e high). Os demais fatores foram calculados como segue: i) mensalmente, calculou-se o fator tamanho pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras small e a média dos retornos mensais das carteiras high; ii) o fator Book-to-Market pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras high e a média dos retornos mensais das carteiras low; iii) o fator Rentabilidade pela diferença entre a média dos retornos mensais das carteiras low e a média dos retornos mensais das carteiras high; e iv) o fator mercado foi obtido pela diferença entre a média, ponderada pelo valor de cada ação, dos retornos mensais de todas as ações da amostra e a taxa livre de risco, adotando-se como proxy a taxa Selic. As carteiras foram rebalanceadas em junho de cada ano, com o objetivo de garantir que as informações contábeis referentes ao exercício social anterior já estivessem sido divulgadas, de modo a evitar-se o viés conhecido como look-ahead bias (Machado & Medeiros, 2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.).

Quanto à abordagem econométrica, seguiu-se o estudo de Core et al. (2008Core, J. E., Guay, W. R., & Verdi, R. (2008). Is accruals quality a priced risk factor? Journal of Accounting and Economics, 46(1), 2-22.). No primeiro estágio, foram estimados os betas das carteiras por meio de regressão em série temporal, utilizando o modelo de Fama e French (2015Fama, E. F.; French, K. R. (2015) A five-factor asset pricing model. Journal of Financial Economics, 116(1), 1-22.), com a inclusão do fator accruals (totais e discricionários), conforme apresentado pela Equação 4.

R p , t R f , t = α + β p , m e r c ( R m , t R f , t ) + β p , p t S M B t + β p , p b m H M L t + β p , r e n t R E N T t + β P , a c A C f a t o r t + ε t (4)

Em que: 𝑅p,t = retorno do carteira p no mês t (foram consideradas 20 carteiras (2 x 2 x 5) a partir da interação dos accruals (5 carteiras), tamanho (2 carteiras) e book-to-market (2 carteiras)); 𝑅f,t = taxa livre de risco no mês t; 𝑅m,t = retorno de mercado no mês t; SMB t = prêmio do fator de risco tamanho no período t; HML t = prêmio do fator de risco book-to-market no período t; RENT t = prêmio do fator rentabilidade no período t; AC = prêmio baseado no fator accruals; 𝜀t = termo de erro da regressão.

No segundo estágio, foram estimados os prêmios pelo risco dos fatores. Para isso, foram utilizados os betas estimados na Equação 4 e regredidos em cross-sectional com os retornos médios em excesso, conforme Equação 5:

R p , t R f , t = λ 0 + λ 1 β ^ p , m e r c + λ 2 β ^ p , p t + λ 3 β ^ p , p b m + λ 4 β ^ p , p r e n t + λ 5 β ^ p , a c + v c (5)

Em que: Rp,tRf,t= retorno médio em excesso do período analisado; β^p,merc,β^p,pt, β^p,pbm, β^p,prente β^p,ac= parâmetros estimados no estágio 1 (Equação 4); λ1, λ2, λ3, λ4 e λ5 = representam os prêmios de risco dos fatores, sendo λ5 o coeficiente de interesse do estudo; vc = termo de erro da regressão.

Como as variáveis independentes da Equação 5 são regressores estimados por meio da Equação 4, o erro padrão pode estar subestimado. Portanto, corrigiu-se o erro padrão através do fator (1+λ^'Σ^f-1λ^)-1, em que Σ^f é a matriz de covariância dos fatores tamanho, book-to-market, rentabilidade e accruals e λ^ é a matriz dos parâmetros estimados. Dessa forma, se o coeficiente λ5 apresentar significância estatística e sinal positivo, pode-se inferir que os accruals representam um fator de risco precificável que afeta o custo de capital próprio das empresas.

3.4 Variáveis da pesquisa

Para estimação dos accruals totais, foi utilizada a abordagem do fluxo de caixa. A Equação 6 apresenta o cálculo dos accruals totais:

A T i , t = Lucro i , t FCO i , t A i , t 1 (6)

Em que: AT i,t = accruals totais da empresa i, no período t; Lucro ,t = resultados antes de itens extraordinários e operações descontinuadas da empresa i, entre os anos t-1 e t; FCO i,t = fluxo de caixa operacional da empresa i entre os períodos t; A i,t-1 = ativos totais da empresa i, no período t-1.

Para a estimação dos accruals discricionários, optou-se pelo modelo proposto por Pae (2005Pae, J. (2005). Expected accrual models: the impact of operating cash flows and reversals of accruals. Review of Quantitative Finance and Accounting, 24(1), 5-22.). O modelo de Pae (2005) fornece uma versão atualizada do modelo de Jones (1991Jones, J. J. (1991). Earnings management during import relief investigations. Journal of accounting research, 193-228.) que, por sua vez, foi o modelo utilizado pelos estudos pioneiros que abordaram a anomalia dos accruals (Sloan, 1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.; Xie, 2001Xie, H. (2001). The mispricing of abnormal accruals. The accounting review, 76(3), 357-373.), além de ser um dos modelos mais difundidos na literatura empírica sobre gerenciamento (Dechow, Hutton, Kim & Sloan, 2012Dechow, P. M., Hutton, A. P., Kim, J. H., & Sloan, R. G. (2012). Detecting earnings management: A new approach. Journal of Accounting Research, 50(2), 275-334.). O modelo de Pae (2005) avança em relação ao Jones (1991) ao incluir uma variável que representa o fluxo de caixa e uma variável que captura a reversão natural dos accruals passados no período corrente. O modelo de Pae (2005) é apresentado pela Equação 7.

A T t = α ( 1 A t 1 ) + α 1 ( Δ R t ) + α 2 ( P P E t ) + α 3 ( F C O t ) + α 4 ( F C O t 1 ) + α 5 ( A T t 1 ) + ε t (7)

Em que: ATt = accruals totais no período t, ponderados por seu ativo total no final do período t-1; At-1 = ativo total no final do período t-1; ∆Rt = variação das receitas líquidas entre os períodos t-1 e t, ponderados por seu ativo total no final do período t-1; PPEt = saldo das contas do ativo imobilizado, ativos intangíveis e ativo diferido no período t, ponderados por seu ativo total no final do período t-1; FCOt = fluxo de caixa operacional no final do período t, ponderados por seu ativo total no final do período t-1; FCOt-1 = fluxo de caixa operacional no final do período t-1, ponderados por seu ativo total no final do período t-2; ATt-1 = accruals totais no período t-1, ponderados por seu ativo total no final do período t-2; ɛt = termo de erro da regressão.

Os accruals totais, variável dependente do modelo de Pae (2005Pae, J. (2005). Expected accrual models: the impact of operating cash flows and reversals of accruals. Review of Quantitative Finance and Accounting, 24(1), 5-22.), podem ser divididos em discricionários e não discricionários. Os accruals não discricionários são explicados pelas variáveis independentes do modelo, portanto os accruals discricionários são obtidos pelo erro da regressão (resíduo). Assim, quanto mais próximo de 0 (zero) for o erro, menores serão os accruals discricionários (proxy para manipulação de resultados). De forma análoga, quanto mais distante de 0 (zero) for o erro, independente da direção, maiores são as evidências de manipulação de resultados.

Para a estimação dos accruals discricionários, optou-se por fazer as estimativas em cross-sectional, mas segregando a amostra por setor econômico, para cada ano, dado que empresas pertencentes a um mesmo setor econômico tendem a apresentar comportamentos semelhantes de accruals (Pae, 2005Pae, J. (2005). Expected accrual models: the impact of operating cash flows and reversals of accruals. Review of Quantitative Finance and Accounting, 24(1), 5-22.).

O retorno das ações foi calculado pela capitalização contínua, em sua forma logarítmica, e o retorno das carteiras pelo retorno ponderado pelo valor. O índice book-to-market foi calculado por meio da divisão do valor contábil pelo valor de mercado do Patrimônio Líquido. A liquidez de mercado foi obtida por meio do Volume Negociado, conforme recomenda Machado e Medeiros (2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.). Por fim, a medida de rentabilidade utilizada foi o return on assets (ROA), conforme Fama e French (2015Fama, E. F.; French, K. R. (2015) A five-factor asset pricing model. Journal of Financial Economics, 116(1), 1-22.), obtido por meio da divisão do EBIT (Earning Before Interest and Taxes) do período t, pelos ativos operacionais de t-1.

3.5 Dados e amostra

A população desta pesquisa consistiu de todas as ações de empresas não financeiras listadas na Bolsa, Brasil, Balcão (B3) no período de 2010 a 2014. O ano inicial de 2010 tem como justificativa a adoção integral das normas internacionais de contabilidade e a disponibilidade de algumas variáveis utilizadas na pesquisa. A utilização de períodos anteriores a 2010, apesar de ampliar a amostra, poderia trazer prejuízos relevantes e de difícil controle, como as mudanças nos números contábeis ocorridas não por eventos econômicos, mas por mudanças normativas poderiam impactar significativamente nas estimativas dos accruals totais e discricionários.

As empresas financeiras não foram consideradas, por pertencerem a um setor muito específico, com características particulares, como o alto índice de alavancagem e estrutura patrimonial diferenciada que podem distorcer os resultados contábeis, sobretudo a estimação dos accruals.

A amostra utilizada foi não probabilística e, portanto, foram excluídas as empresas conforme os seguintes critérios: não apresentaram informações para o cálculo das variáveis consideradas no estudo; apresentaram patrimônio líquido negativo, já que afetaria o cálculo de algumas variáveis, como o índice book-to-market; não apresentaram cotações mensais consecutivas por 12 meses posteriores à data de formação das carteiras, pois foram necessárias para o cálculo do retorno das ações. Por fim, os dados utilizados na pesquisa foram extraídos da Thomson Reuters Eikon ® e do sítio eletrônico da BM&FBovespa.

4 Apresentação e discussão dos resultados

A amostra utilizada para a metodologia das carteiras representou em média 52% da população de empresas listadas na BM&FBovespa, nos períodos de 2010 a 2014. É importante considerar que a análise se iniciou em 2011, tendo em vista que 2010 foi utilizado para o calcular o fator momento e o Book-to-Market.

Para a metodologia de carteiras, foram analisadas 830 observações, ao passo que para a análise dos ativos individuais muitas empresas não tinham todas as informações disponíveis para tal metodologia, fazendo com a amostra ficasse menor, isto é, 706 observações. Vale ressaltar que essa limitação é característica das pesquisas realizadas no mercado brasileiro, dada a pequena quantidade de empresas listadas em Bolsa e os problemas com dados faltantes (missing values). Logo, pode-se considerar que a amostra estudada é uma das limitações desta pesquisa.

A Tabela 1 evidencia os resultados obtidos com o uso da metodologia das carteiras. É possível observar que, considerando todas as empresas, a estratégia formulada revelou spread positivo tanto para os accruals totais (0,018) quanto para os accruals discricionários (0,019), mostrando que o retorno médio da carteira constituída com base nos papeis que apresentaram menor volume de accruals (low) apresentam-se superiores aos retornos das carteiras com maior volume de accruals (high), porém essa diferença não se apresenta estatisticamente diferente de zero. Vale destacar que, considerando todas as empresas, o spread obtido para a estratégia formulada com base nos accruals discricionários é superior ao spread obtido para a estratégia formulada com base nos accruals totais, sugerindo que o efeito da discrição gerencial tratada em separado é mais forte do que em conjunto com os accruals não discricionários.

Com o objetivo de avaliar se o efeito accruals é distinto para empresas de tamanhos diferentes, realizou-se o controle por tamanho, segregando as carteiras em big e small, com base no valor de mercado. Observa-se, no Painel A da Tabela 1, que a anomalia dos accruals aparenta existir para as empresas com menor valor de mercado, pois o retorno médio mensal das carteiras low apresentou-se positivo e superior ao retorno das carteiras high; além disso, apresentaram-se significativos ao nível de 5% e 10%, para os accruals totais e accruals discricionários, respectivamente. Essas evidências suportam as conclusões de Mashruwala, Rajagopal e Shevlin (2006Mashruwala, C., Rajgopal, S., & Shevlin, T. (2006). Why is the accrual anomaly not arbitraged away? The role of idiosyncratic risk and transaction costs. Journal of Accounting and Economics, 42(1-2), 3-33.), que observaram que a anomalia de accruals está concentrada em ações de menor valor.

Analisando o spread dos retornos médios mensais das carteiras formadas com base nos accruals discricionários para as carteiras small, é possível observar, no Painel A, que o mesmo é superior ao spread obtido das carteiras construídas com base nos accruals totais em 1,7% (0,082 - 0,065). Esses resultados corroboram as evidências obtidas, considerando todas as empresas, e confirmam os achados de Xie (2001Xie, H. (2001). The mispricing of abnormal accruals. The accounting review, 76(3), 357-373.), que concluiu que a anomalia dos accruals é provocada em sua maior parte pelo componente discricionário.

No Painel B, são apresentadas as evidências do efeito accruals após o controle dos fatores de risco, conforme utilizado por Machado e Medeiros (2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.). A análise consistiu em avaliar se as evidências obtidas na análise das carteiras (Painel A) persistem após o controle de fatores de risco. Para isso, estimaram-se os alfas de Jensen do referido modelo de precificação para as carteiras constituídas com base nos accruals totais e accruals discricionários. Se os alfas dos modelos não forem estatisticamente iguais a zero, isso significa que os fatores de risco falham na explicação dos retornos, sugerindo, assim, que há um retorno marginal ou uma anomalia.

A Tabela 1, Painel B, demonstra que, para as carteiras construídas com base nos accruals discricionários e considerando todas as empresas, apenas o alfa da segunda carteira (C2) apresentou-se estatisticamente significativo (-0,011). Isso indica que o modelo de cinco fatores não falha na explicação do efeito accruals, considerando as carteiras com todas as empresas, sugerindo que os retornos obtidos para as carteiras constituídas com base nos accruals discricionários (Painel A) não são retornos anormais. Ao realizar o controle por tamanho, observa-se, entretanto, que as empresas pequenas (small), com baixo volume de accruals totais e discricionários (low), apresentam o alfa estatisticamente diferente de zero (ao nível de 10%), levando a spreads positivos e significativos.

Tabela 1
Retorno das carteiras construídas com base nos accruals totais e discricionários com e sem o controle por tamanho e fatores de risc o

Com o objetivo de avaliar se os accruals totais e os accruals discricionários influenciam, separadamente, os retornos das ações, após controlar com outros determinantes, realizou-se a análise com os ativos individuais, por meio da estimação das Equações 2 e 3. A Tabela 2 evidencia os resultados das estimações dos modelos para a amostra composta por todas as empresas. Nesta, é possível verificar que as variáveis Book-to-Market, Momento e Accruals Discricionários apresentaram significância estatística na explicação dos retornos das ações. Isso significa que a variável accruals discricionários influencia separadamente os retornos das ações, mesmo após o controle de outros determinantes dos retornos das ações. Seu coeficiente negativo (-0,029) confirma as evidências, obtidas por meio da metodologia das carteiras, de que a anomalia dos accruals é provocada, principalmente, pelo componente discricionário dos accruals.

Essas conclusões foram similares aos resultados obtidos por Xie (2001Xie, H. (2001). The mispricing of abnormal accruals. The accounting review, 76(3), 357-373.) e Chan, Chan, Jegadeesh e Lakonishok (2001Chan, K., Chan, L., Jegadeesh, N., & Lakonishok, J. (2001). Earnings quality and stock returns: The evidence from accruals, University of Illinois at Urbana-Champaign. Working paper.). Vão de encontro, entretanto, aos alcançados por Cupertino et al. (2012Cupertino, C. M., Martinez, A. L., & Costa Jr, N. C. A. D. (2012). Accrual anomaly in the Brazilian capital market. BAR-Brazilian Administration Review, 9(4), 421-440.), que constataram que os accruals discricionários não influenciavam na anomalia dos accruals. Vale considerar que as evidências do estudo de Cupertino et al. (2012) foram obtidas por meio de outras metodologias, tendo sido realizado em um período anterior ao contemplado por esta pesquisa. Assim, essas diferenças em termos de resultados podem ser explicadas pelo período de análise, pelas empresas que compõem a amostra e pela adoção integral do padrão internacional de contabilidade. Conforme Kaserer e Klingler (2008Kaserer, C., & Klingler, C. (2008). The accrual anomaly under different accounting standards-lessons learned from the German experiment. Journal of Business Finance & Accounting, 35(7‐8), 837-859.), o modelo contábil baseado na true and fair view pode ampliar a discrição gerencial e reduzir a verificabilidade das informações contábeis; por consequência, contribuir para o aparecimento da má precificação dos accruals.

Tabela 2
Resultados dos modelos de dados em painel (POLS) para análise dos ativos individuais, considerando todas as empresas - 2010 a 201 4

Uma vez constatados alguns indícios da anomalia dos accruals, sobretudo dos accruals discricionários, cabe agora investigar as potenciais explicações para tais evidências. Na literatura, existem duas abordagens que podem ser dadas para a anomalia dos accruals documentada: 1) a informação provoca um mispricing, na suposição de que o mercado não é sofisticado a ponto de interpretar e precificar corretamente as implicações dos accruals correntes nos resultados futuros, sobretudo do componente discricionários; 2) os accruals representam um fator de risco, dada sua natureza transitória e as possibilidades de não realização em fluxos de caixa futuros, principalmente os accruals discricionários, em que o lucro reportado pelas empresas acaba incorporando e fornecendo um maior nível de insegurança para o mercado (quando sofisticado), que, por conseguinte, exige um prêmio maior pelo risco percebido derivado da incerteza de geração de fluxos de caixa futuros.

Para testar as abordagens supracitadas, fez-se o uso da metodologia de regressão em duas etapas, conforme estudo de Core et al. (2008Core, J. E., Guay, W. R., & Verdi, R. (2008). Is accruals quality a priced risk factor? Journal of Accounting and Economics, 46(1), 2-22.). A primeira etapa consistiu em estimar os betas dos fatores de risco em série temporal, ao passo que a segunda etapa consistiu em estimar os prêmios dos fatores de risco por meio de regressão cross-sectional. A Tabela 3 evidencia os resultados das regressões referentes à segunda etapa da metodologia que objetivou avaliar se os accruals totais e discricionários representam fatores de risco precificáveis. Recapitulando, para as regressões da segunda etapa, utilizou-se como variável dependente o retorno médio em excesso do período analisado (Rp,tRf,t) e como variáveis independentes os betas estimados na primeira etapa.

Observa-se, na Tabela 3, que o prêmio pelo risco do fator accruals totais e accruals discricionários, representado na Tabela 3 pelo λ5, apresentaram-se negativos. Isso significa que não há evidências de que os accruals totais e discricionários representem um fator de risco, dado que os betas dos fatores accruals obtidos na primeira etapa se relacionam negativamente com os retornos médios em excesso, logo as carteiras constituídas por empresas com baixo volume de accruals tendem a obter retornos maiores que os retornos de carteiras formadas por empresas com alto volume de accruals. Portanto, essas evidências ratificam os resultados obtidos e sugere que a anomalia dos accruals é, possivelmente, provocada por mispricing, convergindo com as evidências obtidas por Ohlson e Bilinski (2015), em que obtiveram resultados inconsistentes com a perspectiva de que os accruals refletem o risco e apoiam a hipótese de que a anomalia dos accruals é realmente um mispricing.

Tabela 3
Resultados do segundo estágio das regressões para avaliar evidências de fator de risco dos accruals - 2010 a 201 4

Diante dessas evidências, é oportuno observar que, se os gestores realizam escolhas contábeis oportunistas, com o intuito de influenciar os preços das ações, os mesmos não serão punidos com maiores custos de captação, uma vez que os resultados apontam que o mercado, em média, não é sofisticado, dado esse conjunto de informações relacionadas aos accruals. Pelo contrário, os resultados apresentaram evidências de que o mercado não precifica corretamente as informações relacionadas aos accruals discricionários, sugerindo que, se os gestores possuírem incentivos atrelados ao mercado de capitais, podem obter êxito ao tentar manipular o preço das ações por meio das suas discrições gerenciais, no que se refere à mensuração dos lucros.

5 Considerações finais

Apoiada pelas teorias da Fixação Funcional Estendida e dos Mercados Eficientes, esta pesquisa prestou-se a avaliar a forma pela qual a precificação dos accruals se configura no mercado brasileiro, isto é, se representa um mispricing de mercado ou fator de risco precificável.

As evidências obtidas por meio da metodologia de carteiras demonstraram evidências da anomalia dos accruals para as empresas classificadas como pequenas e que as evidências são mais fortes quando se avalia o componente discricionário. Além disso, o modelo de cinco fatores proposto por Machado e Medeiros (2011Machado, M. A. V.; Medeiros, O. R. (2011). Modelos de Precificação de Ativos e o Efeito Liquidez: Evidências Empíricas no Mercado Acionário Brasileiro. Revista Brasileira de Finanças, 9(3), 383-412.) falhou na explicação dos retornos das carteiras de empresas pequenas, sugerindo que, mesmo ajustados ao risco, foi possível obter retornos positivos e diferentes de zero. Os resultados foram mais consistentes para as carteiras constituídas com base no componente accruals discricionários.

A análise de regressões em duas etapas não permitiu constatar que os accruals totais e os accruals discricionários representam um fator de risco precificável, sugerindo que as evidências de anomalia obtidas para os accruals discricionários são provocadas por erro de precificação do mercado (mispricing). Em síntese, foi possível concluir que as evidências de precificação dos accruals identificadas denotam um mispricing de mercado e essas evidências estão diretamente relacionadas com o componente discricionário dos lucros, sendo mais consistentes para o grupo de empresas com baixo valor de mercado.

Esses resultados sugerem, portanto, que os gestores podem obter êxito ao tentar influenciar o mercado por meio dos accruals discricionários, uma vez que essa informação pode conduzir os investidores a erros em sua precificação (mispricing). Logo, esses resultados sugerem que o mercado local, na média, não é sofisticado, a ponto de identificar que a parcela discricionária do lucro tem alta probabilidade de não se transformar em fluxos de caixa futuros, levando à má precificação do lucro.

A não rejeição da hipótese do mispricing dos accruals leva a concluir que os preços das ações de empresas pequenas são influenciados pelos resultados contábeis divulgados (Sloan, 1996Sloan, R. (1996). Do stock prices fully reflect information in accruals and cash flows about future earnings? Accounting review, 71(3), 289-315.; Francis et al., 2005Francis, J., LaFond, R., Olsson, P., & Schipper, K. (2005). The market pricing of accruals quality. Journal of accounting and economics, 39(2), 295-327.) e que os gestores, ao possuírem incentivos atrelados ao mercado de capitais (Martinez, 2001Martinez, A. L. (2001). Gerenciamento dos resultados contábeis: estudo empírico das companhias abertas brasileiras. Doctoral Thesis in Accounting, University of São Paulo, São Paulo, SP, Brazil.) e incentivos ligados aos lucros (Fields et al., 2001Fields, T. D., Lys, T. Z., & Vincent, L. (2001). Empirical research on accounting choice. Journal of accounting and economics, 31(1), 255-307.), podem utilizar as escolhas contábeis oportunistas com a motivação de maximizar sua utilidade esperada, influenciando o preço das ações por meio das distorções nos lucros.

Esta pesquisa possui algumas limitações em sua implementação metodológica, dentre as quais se faz oportuno destacar: i) a escolha do período de rebalanceamento da carteira (junho); e ii) a proxy utilizada para taxa livre de risco (Selic). A primeira limitação decorre do fato de, no Brasil, as empresas possuírem a obrigatoriedade de divulgar seus números contábeis até o final do primeiro trimestre (final de março). Dessa forma, há pelo menos mais dois meses de informações que podem afetar os resultados, período em que outros eventos podem acontecer; portanto, dependendo da eficiência do mercado brasileiro, os resultados da metodologia de formação de carteiras podem ser influenciados. Assim, outros trabalhos no futuro podem se concentrar em um período de reequilíbrio diferente (terminando no final de março ou abril), a fim de aumentar o debate e o alcance deste estudo. Quanto à segunda limitação, ressalta-se que a taxa Selic pode não atender aos requisitos de uma taxa livre de risco. Não obstante, a taxa Selic, por ser uma taxa relativamente alta, alguns resultados, como os retornos em excesso e os alfas de Jensen, podem estar subestimados.

Cabe aqui, contudo, destacar que os resultados obtidos não devem ser generalizados para todo o mercado brasileiro, limitando-se às empresas estudadas, uma vez que o processo de amostragem utilizado foi não probabilístico. Sendo assim, a ampliação da amostra do estudo e a inclusão de dados de outros países subdesenvolvidos podem fornecer uma contribuição relevante, dado que tal constatação pode evidenciar se os resultados desta pesquisa são específicos do mercado brasileiro ou se podem ser generalizados para outros mercados com características semelhantes.

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  • Editor responsável:

    Prof. Dr. Javier Montoya del Corte
  • Avaliado pelo sistema:

    Double Blind Review

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2018
  • Aceito
    22 Ago 2018
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