Acessibilidade / Reportar erro

A microestrutura do mercado brasileiro de títulos privados

Resumo

Objetivo:

O governo brasileiro aprovou regulamentos para promover o mercado de títulos privados. Em 2009, a Instrução 476 da Comissão de Valores Mobiliários relaxou as exigências para a emissão de títulos. Em 2011, a Lei 12.431 criou os títulos de infraestrutura, que permitem a isenção de impostos para pessoas físicas. Desde então, os proventos totais mais que triplicaram. Descrevemos a evolução do mercado de títulos brasileiro, as características das emissões e os emitentes, e avaliamos essa evolução de maneira crítica.

Metodologia:

Análise descritiva. Dados sobre o total de emissões; características dos títulos (proventos, vencimentos, rendimentos, subscrição); características dos emitentes; mercado secundário (negociação); desempenho (taxas de inadimplência e renegociação); e problemas de colocação.

Resultados:

As emissões de títulos são pequenas e apresentam vencimento no curto prazo. As agências internacionais são as principais fornecedoras de classificação de risco, utilizando uma escala de classificação ajustada ao Brasil. Os títulos de renda fixa são raros. A grande maioria dos títulos regulares está atrelada à taxa de juros interbancária (DI ou CDI). Apenas dois bancos universais locais dominam a atividade de subscrição. Esses bancos e suas partes relacionadas recebem mais da metade da alocação total. Menos da metade das emissões recebeu a classificação de grau de investimento e mais da metade sequer possui classificação. A incidência de eventos de crédito ex-post, mais frequentemente na forma de renegociação dos prazos dos títulos. A inadimplência estrita também é alta. A liquidez dos títulos no mercado secundário é baixa.

Contribuições:

Até onde sabemos, este é o primeiro artigo que descreve a microestrutura do mercado de títulos brasileiro.

Palavras-chave:
Brasil; títulos; mercado de títulos; mercado de capitais

Abstract

Purpose:

The Brazilian government approved regulations to foster the corporate bond market. In 2009, Instruction 476 of the Comissão de Valores Mobiliários (the Brazilian capital market regulator) relaxed the requirements for issuing bonds. In 2011, Law 12,431 created infrastructure bonds, which give individuals tax exemptions. Since then, aggregate proceeds have more than tripled. We describe the Brazilian bond market and the characteristics of issues and issuers; and critically evaluate this evolution.

Design/methodology/approach:

Descriptive analysis. Data on aggregate issuances; bond characteristics (proceeds, maturity, yields, underwriting); issuer characteristics; secondary market (trading); performance (default and renegotiation rates); and allocation of issues.

Findings:

Bond issues are small and bonds present a short maturity. International agencies are the main ratings providers, using a Brazilian-adjusted rating scale. Fixed-yield bonds are rare. The vast majority of regular bonds are linked to the interbank offered interest rate (DI or CDI). Only two local universal banks dominate the underwriting activity. These banks and their related parties receive more than half of the aggregate allocation. Less than half of issues have an investment grade, and more than half are not rated at all. The incidence of ex-post credit events is most frequently in the form of renegotiations of bond terms. Strict defaults are also high. Liquidity for bonds in the secondary market is low.

Originality/value:

To our knowledge, this is the first article to describe the microstructure of the Brazilian bond market.

Keywords:
Brazil; bonds; bond market; capital markets

1 Introdução

A microestrutura dos mercados de títulos é objeto de pesquisa em uma ampla gama de mercados. Nos Estados Unidos, Fleming e Krishnan (2012Fleming, M., & Krishnan, N. (2012, March). The microstructure of the TIPS market. FRBNY Economic Policy Review, 27-45.), para títulos públicos; e Biais e Green (2019Biais, B., & Green, R. (2019). The microstructure of the bond market in the 20th century. Review of Economic Dynamics, 33, 250-271.), para títulos privados e títulos públicos municipais. Na Ásia e África, Gyntelberg, Ma e Remolona (2006Gyntelberg, J., Ma, G., & Remolona, E. (2006). Developing corporate bond markets in Asia. BIS Papers n. 26, 13-21. Retrieved from https://www.bis.org/publ/bppdf/bispap26a.pdf
https://www.bis.org/publ/bppdf/bispap26a...
); e Mo, Phelps e Stotsky (2013). Alguns autores encontraram os principais fatores para o desenvolvimento de um mercado de títulos privados. Ong (2005Ong, L. L. (2005, July). An anatomy of corporate bond markets: Growing pains and knowledge gains. International Monetary Fund working paper 05/152. Retrieved from https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2016/12/31/An-Anatomy-of-Corporate-Bond-Markets-Growing-Pains-and-Knowledge-Gains-18348
https://www.imf.org/en/Publications/WP/I...
) indica que a boa governança corporativa promove o desenvolvimento dos mercados de títulos locais, enquanto a alta emissão de títulos de dívida do governo funciona na direção oposta. Hawkins (2002Hawkins, J. (2002). Bond markets and banks in emerging economies. BIS papers n.11, 42-48.) destaca que os bancos têm um papel crucial nos mercados de títulos das economias emergentes. Primeiramente, os bancos são concorrentes, porque os mercados de títulos podem substituir os empréstimos bancários e reduzir o volume de depósitos nos bancos. Em segundo lugar, os bancos desempenham um papel importante na alocação e emissão dos títulos privados. Isso cria conflitos de interesse entre as atividades de empréstimo, subscrição e gestão de ativos. Há, no entanto, uma escassez de estudos sobre o mercado de títulos brasileiro e seu papel no financiamento de empresas não financeiras. Este artigo começa a preencher essa lacuna, fornecendo uma descrição da microestrutura do mercado de títulos brasileiro.

O crédito a empresas não financeiras (CENF) no Brasil tem sido baixo (Carvalho, 2005Carvalho, A. G. de, (2005). Lei de Falência, acesso ao crédito empresarial e taxas de juros no Brasil. Revista de Economia Política, 25(1), 112-132.; Torres & Macahyba, 2014Torres, E. Fº, & Macahyba, L. (2014). Os mercados brasileiro e britânico de títulos corporativos. Brasília: Confederação Nacional da Indústria.). A Tabela 1 ilustra esse ponto. Ela mostra o CENF como uma porcentagem do PIB de 2005 a 2017. O CENF no Brasil varia de 35% a 40% do PIB. Isso está abaixo das médias dos mercados emergentes, do G20 e de outros países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Durante décadas, o baixo CENF tem sido uma preocupação para o governo brasileiro. Várias medidas foram adotadas para melhorá-lo, principalmente a revisão da Lei de Falências em 2005 (Lei nº 11.101, 2005), que aumentou os direitos dos credores.

Tabela 1
Crédito para empresas não financeiras, como uma porcentagem do PIB

Tabela 2
Emissão de títulos ao longo do tempo

O mercado brasileiro de títulos privados, como parte do CENF, também teve pouca relevância (Carvalho, 2000Carvalho, A. G. (2000). Ascensão e declínio do mercado de capitais no Brasil, a experiência dos anos 90. Revista de Economia Aplicada, 4(3), 595-632.; Torres & Macahyba, 2014Torres, E. Fº, & Macahyba, L. (2014). Os mercados brasileiro e britânico de títulos corporativos. Brasília: Confederação Nacional da Indústria.). A Tabela 2 mostra a emissão total anual de títulos de 2005 a 2017. No período de 2005 a 2008, a emissão de títulos foi bastante modesta. A média dos proventos era de R$ 14,5 bilhões por ano (aproximadamente 44 emissões por ano), representando, em média, apenas 0,6% do PIB e 5,3% do CENF.

Até 2009, o único mecanismo para a emissão de títulos era a CVM-400 (Instrução CVM nº 400, 2003) da Comissão de Valores Mobiliários. De acordo com essa instrução, as emissões precisavam ser registradas na CVM e os prospectos precisavam ser bem detalhados. Em 2009, com o objetivo de promover o mercado de títulos privados, a CVM emitiu a CVM-476 (Instrução CVM nº 476, 2008). Este novo regulamento criou um procedimento alternativo e simplificado para a emissão de títulos. A CVM-476 não exige o registro prévio da emissão na CVM. Com esse mesmo objetivo, a Lei 12.431 de 2011 criou os Títulos de infraestrutura (os Infra-bonds) com isenção de impostos para investidores pessoas físicas e estrangeiros.

Juntos, a CVM 476 e os Títulos de infraestrutura causaram uma mudança significativa no tamanho do mercado de títulos. Como mostra a Tabela 2, no período de 2009 a 2017, os recursos anuais aumentaram para R$ 71,4 bilhões por ano (quase 270 emissões por ano). Esses números, quando comparados aos do período de 2005 a 2008, representam um salto de 0,8% em termos de PIB (de 0,6% para 1,4%) e de 5% em termos de CENF (de 5% para 10%).

Juntos, a CVM 476 e os Títulos de infraestrutura causaram uma mudança significativa na estrutura do mercado de títulos. No período de 2009 a 2017, os títulos emitidos conforme a CVM-476 tornaram-se predominantes, representando 87% dos recursos e 82% do número de emissões. A emissão de Títulos de infraestrutura começou em 2012. No período de 2012 a 2017, representaram 7% dos proventos e do número de emissões. Após 2014, a CVM-400 perdeu relevância para a emissão de Títulos regulares (como referência aos títulos que não são de infraestrutura). Conforme mostra a Tabela 1, no período de 2015 a 2017, ela representa menos de 10% da emissão. No entanto, a CVM-400 ainda é relevante para a emissão de Títulos de infraestrutura. Representou 44% dos proventos (35% do número de emissões) dos Títulos de infraestrutura emitidos entre 2012 e 2017.

A rápida mudança no tamanho e na estrutura do mercado de títulos brasileiro é o motivo deste artigo. Nosso objetivo é fornecer uma perspectiva ampla desse mercado. O Capítulo 2 descreve resumidamente as disposições legais para a emissão de títulos. O Capítulo 3 apresenta nossas fontes de dados. O Capítulo 4 explora as características das emissões de títulos e seu desempenho. Finalmente, o Capítulo 5 avalia de forma crítica as mudanças recentes que ocorreram no mercado de títulos.

2 Disposições e regulamentos brasileiros para a emissão de títulos

A regulamentação brasileira possui duas disposições para a emissão de títulos, ambas estabelecidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Essas disposições são a Instrução CVM nº 400, 2003 e a Instrução nº 476, 2008.

A CVM-400, emitida em 2003, regula a forma tradicional de emissão de títulos. Para começar, as emissões devem ter registro prévio na CVM. Os emitentes devem ser empresas abertas1 1 In Brazil, public corporations are subject to the rules established in Law 6404/1976. Principal requirements for public corporations: bylaws in accordance with Law 6404/1976; creation of an investor relations department; appointment of an officer for investor relations; and financial statements audited by an independent auditor and made available in the public domain. e preencher um prospecto detalhado. O prospecto contém (i) informações completas sobre os negócios dos emitentes, principais vantagens e estratégias competitivas; (ii) uma descrição dos cinco principais fatores de risco do emitente, em ordem de relevância; (iii) detalhamento do uso dos proventos; e (iv) demonstrações financeiras dos três anos anteriores. Os títulos emitidos conforme a CVM-400 podem ser distribuídos a qualquer investidor e não apresentam restrições à negociação. A única exceção se aplica aos títulos de emitentes pré-operacionais que não podem variar nos primeiros oito meses após a emissão. Esses títulos pré-operacionais podem ser colocados apenas para investidores qualificados (IQ, aqueles com mais de R$ 1 milhão investidos em valores mobiliários).

Em 2009, a CVM emitiu a Instrução nº 476, que oferece uma forma mais abrangente, rápida e barata para a emissão de títulos do que a CVM-400. De acordo com a CVM-476, os emitentes não precisam ser empresas abertas, e não é necessário ter um prospecto detalhado nem registro na CVM. No entanto, algumas restrições se aplicam: a colocação é restrita a investidores profissionais (IP, aqueles com investimento em valores mobiliários acima de R$ 10 milhões); o prospecto pode ser distribuído para no máximo 75 investidores profissionais; a emissão pode ser colocada para no máximo 50 IP;2 2 At first, these limits were 50 and 25 QIs, respectively. The current limits date from 2014. e os títulos não podem variar nos primeiros 90 dias após a emissão. No entanto, após esse período de bloqueio, o IQ também pode negociar o título.

Em 2011, a Lei 12.431 criou Títulos de infraestrutura (os Infra-bonds). Os proventos desses títulos devem ser usados para financiar projetos de infraestrutura. Antes de emitir Títulos de infraestrutura, as empresas devem ter seus projetos aprovados pelo governo. O vencimento desses títulos não pode ser inferior a 4 anos. O intervalo entre os pagamentos de cupons não pode ser inferior a 180 dias. Os Títulos de infraestrutura podem estar atrelados à inflação (taxa de juros efetiva atrelada ao índice de preços ao consumidor, IPCA), mas não à taxa de juros. Somente Sociedades de Propósito Específico (SPE) podem emitir Títulos de infraestrutura com taxa variável. Nesse caso, a taxa está atrelada ao CDI (certificado de depósito interbancário). Durante os primeiros dois anos após a emissão, os emitentes não podem negociar seus próprios Títulos de infraestrutura. Disposições sobre opção de compra não são permitidas. Os Títulos de infraestrutura podem ser emitidos de acordo com a CVM-400 e a CVM-476. Pessoas físicas e investidores estrangeiros estão isentos de impostos e os investidores pessoas jurídicas pagam 15% em vez da taxa normal de 25%.

3 Dados

Os prospectos e dados sobre a emissão total e sobre as características das emissões, o mercado secundário, a inadimplência e a renegociação são da Associação Brasileira das Entidades de Mercados Financeiros e de Capitais (ANBIMA).3 3 Available at www.debentures.com.br. Os dados sobre a colocação das emissões são dos anúncios de encerramento de oferta.4 4 Available at www.cvm.gov.br.

4 O mercado de títulos

4.1 Características dos títulos

Neste capítulo, caracterizamos os títulos emitidos no Brasil entre 2009 e 2017.

Vencimento: A Tabela 3 mostra os vencimentos por tipo de título. A última coluna mostra os valores totais. A maioria dos títulos (53% dos proventos e 46% do número de emissões) tem vencimento entre 5 e 10 anos. Também são comuns vencimentos entre 3 e 5 anos (22% dos proventos e 20% do número de emissões) ou abaixo de 3 anos (22% do número de emissões, mas apenas 14% dos proventos). Como esperado, os Títulos de infraestrutura têm um prazo de vencimento mais longo que os Títulos regulares. Apenas raramente é inferior a 5 anos (o prazo não pode ser inferior a 4 anos).

Tabela 3
Vencimento dos títulos

Retorno pré- e pós-fixado: em geral, os títulos brasileiros têm retorno pós-fixado. A Tabela 4 mostra os tipos de retorno. Os títulos pós-fixados representam apenas 2,3% dos proventos totais (0,8% do número de emissões). A grande maioria dos títulos, quase 78% dos proventos e do número de emissões, está atrelada ao Certificado de Depósito Interbancário (CDI ou DI). Os títulos atrelados à inflação correspondem a 11% dos proventos e 17% das emissões. O atrelamento à inflação prevalece entre os Títulos de infraestrutura (69% dos proventos e 91% do número de emissões). O atrelamento à inflação também é frequente entre os Títulos regulares CVM-400 (28,5% dos proventos e 36,7% do número de emissões). Os títulos atrelados ao dólar são raros, representando apenas 6,4% dos proventos e 0,3% do número de emissões. Portanto, as emissões atreladas ao dólar são de grande volume.

Tabela 4
Tipos de retornos

Proventos: os proventos são relativamente baixos. Apenas 13,5% das emissões têm proventos acima de R$ 500 milhões. No entanto, a soma dos proventos desses títulos corresponde a 54,2% do total (Tabela 5, última coluna). Por outro lado, as pequenas emissões (proventos abaixo de R$ 100 milhões) representam apenas 6,5% do total de proventos, mas isso corresponde a 38% do número de emissões. A CVM-476 parece ser usada com mais frequência em pequenas emissões: 40,1% das emissões têm proventos inferiores R$ 100 milhões, mas isso corresponde a apenas 6,9% dos proventos. Essa característica é relativamente uniforme para todos os tipos de títulos.

Tabela 5
Tamanho das emissões

Subscrição: ao contrário de outros mercados de títulos, em que a subscrição de títulos é geralmente competitiva e dominada por bancos de investimento internacionais (Carbo-Valverde, Rodriguez-Fernandez & Saunders, 2016Carbo-Valverde, S., Rodriguez-Fernandez, F., & Saunders, A. (2016, December). Underwriting as certification of bank bonds. Working Paper. Retrieved from https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2665917
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
; Manconi, Neretina & Renneboog, 2018Manconi, A., Neretina, E., & Renneboog, L. (2018). Underwriter competition and bargaining power in the corporate bond. European Corporate Governance Institute (ECGI) - Finance Working Paper No. 548/2018. Retrieved from https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3098005
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
), a subscrição no mercado de títulos brasileiro é dominada por apenas dois bancos universais locais. A Tabela 6 mostra a subscrição no mercado de títulos brasileiro. O Bradesco possui a maior participação: 53,3% dos proventos e 49,6% das emissões. O Itaú-Unibanco possui 43,5% dos proventos e 45,5% das emissões. O Banco do Brasil vem em seguida com apenas 0,8% dos proventos e 0,4% das emissões. Esse padrão é consistente para os Títulos regulares e de infraestrutura, e nas emissões de acordo com a CVM-400 e CVM-476.

Tabela 6
Principais subscritores

4.2 Desempenho dos emitentes ex-ante

Classificação: a classificação dos títulos brasileiros vem predominantemente de agências de classificação internacionais (Standard & Poor’s (S&P), Moody’s e Fitch). No entanto, as classificações também vêm de agências locais de classificação (principalmente LF Rating e Austin Rating). As agências internacionais de classificação usam uma escala de classificação local: correspondente à sua escala global com sufixo ou prefixo BR para indicar uma classificação local. A melhor classificação da S&P para títulos brasileiros, por exemplo, é brAAA, que possuem o mesmo risco dos títulos soberanos brasileiros (portanto, brAAA não é equivalente ao AAA global). A referência para o grau de investimento local é a mesma do global. A classificação mais baixa de grau de investimento local da S&P é brBBB-, por exemplo.

A Tabela 7 mostra as classificações. É notável que mais da metade das emissões: 55,9% dos proventos (61,3% do número de emissões) não tenham classificação. As emissões sem classificação predominam quase que exclusivamente entre os Títulos regulares emitidos conforme a CVM-476: 66% dos proventos e 70,5% das emissões. Os Títulos de infraestrutura normalmente têm grau de investimento: menos de 10% desses títulos não têm grau de investimento.

Tabela 7
Emissão de títulos por classificação

Evento de crédito ex-ante (ECEA: inadimplência ou renegociação): como indicador da qualidade dos títulos, o ECEA complementa a classificação. A Tabela 8 mostra o ECEA para dois períodos distintos: 2009 a 2013 e 2014 a 2017. A CVM-400 foi predominante no primeiro período e a CVM-476, no segundo (excluímos as emissões anteriores a 2009, quando não havia a CVM-476). Surpreendentemente, a frequência do ECEA é alta, independentemente do período. No geral, o ECEA foi reportado em quase 25% dos proventos, representando 23% a 30% do número de emissões. O ECEA é significativamente mais frequente para os títulos CVM-476 do que para os CVM-400, e para os Títulos regulares do que para os Títulos de infraestrutura. Focando nos Títulos regulares no segundo período, a taxa ECEA foi maior para os títulos CVM-476 do que para os CVM-400: 26,8% contra 17,6% dos proventos. O ECEA reportado ainda era frequente entre os Títulos de infraestrutura (6,3% para a CVM-400 e 11,7% para a CVM-476).

Tabela 8
Evento de crédito ex-ante (ECEA)

Para investigar mais a fundo os eventos de crédito ex-ante, a Tabela 9 os divide em inadimplência estrita e renegociação. O período da amostra é 2014 a 2017. Ao considerar um período amostral mais recente, aumentamos o histórico do ECEA dos emitentes. O Painel A mostra que a renegociação foi bastante frequente, atingindo 23,4% dos proventos e 29,0% das emissões. Isso é surpreendente, dados os esforços e a coordenação envolvidos na negociação dos prazos dos títulos. Como esperado, a taxa geral de inadimplência estrita é baixa (Painel B): 2,7% do total dos proventos e 2,4% das emissões. A inadimplência estrita ocorre somente entre os Títulos regulares CVM-467 (2,9% do total dos proventos e 2,6% das emissões) e os Títulos de infraestrutura CVM-400 (4,0% do total dos proventos e 2,3% das emissões).

Tabela 9
Evento de crédito ex-ante (ECEA): Renegociação x Inadimplência estrita

Seria de se esperar uma correlação negativa entre o ECEA e o grau de investimento. Em particular, não se espera que os emitentes que recebem grau de investimento tenham divulgado o ECEA. Nós investigamos isso. A Tabela 10 mostra a tabulação cruzada entre grau de investimento e ECEA no período de 2014 a 2017. Como esperado, a taxa ECEA é mais baixa entre títulos com grau de investimento do que entre títulos sem grau de investimento ou sem classificação: 20,0% versus 55,5% e 34,1% das emissões em cada categoria, respectivamente. Surpreendentemente, 20% (63 das 315 emissões) é uma taxa muito alta de ECEA para títulos com grau de investimento. No entanto, apenas três dessas 63 emissões (0,9%) eram de emitentes com inadimplência estrita divulgada. Portanto, surpreendentemente, a classificação parece não refletir a renegociação como um evento de crédito.

Tabela 10
Classificação de títulos x Evento de crédito ex-ante (ECEA)

4.3 Desempenho dos títulos ex-post

Eventos de crédito ex-post (ECEP: inadimplência ou renegociação). O principal indicador de desempenho dos títulos é a ocorrência do ECEP. A Tabela 11 mostra o ECEP para dois períodos distintos: 2009 a 2013 e 2014 a 2017. Seria de se esperar que a frequência do ECEP fosse menor no período mais recente, porque a amostra inclui títulos emitidos recentemente. No entanto, o ECEP geral é muito semelhante nos dois períodos: quase 20% dos proventos e do número de emissões. A inesperada frequência alta do ECEP no segundo período decorre principalmente de Títulos regulares CVM-476, que representam 89% dos proventos do período (307,6/344,4). Assim, os Títulos regulares CVM-476 começam a apresentar eventos de crédito desde o início da sua emissão. Para os outros tipos de títulos, o resultado é o esperado: uma taxa muito baixa de ECEP no período recente. É surpreendente também que a taxa de ECEP entre os Títulos de infraestrutura no primeiro período seja muito alta: 34,8% dos proventos entre os títulos CVM-400 e 45,9% entre os títulos CVM-476. Esses valores altos são motivados por dois fatores: o porte pequeno do mercado de Títulos de infraestrutura e o ECEP de alguns emitentes (2 emissões da OAS e da OGX, que entraram com recuperação judicial, e quatro outras emissões da Termelétrica Pernambuco).

Tabela 11
Evento de crédito ex-post (ECEP)

Para investigar mais a fundo os eventos de crédito ex-post, a Tabela 12 os divide em inadimplência estrita e renegociação. O período da amostra é 2009 a 2013. O Painel A mostra que a renegociação foi bastante frequente, atingindo 16,4% dos proventos e 17,20% das emissões. Como esperado, a taxa geral de inadimplência estrita é menor, mas ainda considerável (Painel B): 6,2% do total de proventos e 8,7% das emissões. Como o ECEP entre os Títulos de infraestrutura é tendencioso em alguns casos, focamos somente nos Títulos regulares. A inadimplência estrita ocorre principalmente entre os Títulos regulares CVM-467 (5,7% dos proventos e 8,8% das emissões).

Tabela 12
Evento de crédito ex-post (ECEP): Renegociação x Inadimplência

A Tabela 13 mostra a tabulação cruzada entre grau de investimento e ECEP no período de 2009 a 2013. Como esperado, a taxa de ECEP é mais baixa entre os títulos com grau de investimento do que entre os que não têm grau de investimento (títulos sem grau investimento ou sem classificação): 11,2% versus 77,2% e 28,8% das emissões em cada categoria, respectivamente. Essa proporção, 11,2% (66 de 586 emissões), é uma taxa muito alta de ECEP para títulos com grau de investimento. Apenas 3,9% (23 de 586 emissões), no entanto, resultaram de inadimplência estrita (a maior parte dos ECEP representa renegociação). Entretanto, essa parece ser uma taxa de inadimplência muito alta. Para fins de comparação, considere a taxa de inadimplência da S&P para títulos privados internacionais com grau de investimento para o período de 1981 a 2016 (Standard & Poor’s, 2017). A taxa média de ECEP (taxa de inadimplência) entre os títulos BBB- (o grau de investimento mais baixo) é de apenas 0,26%; entre os títulos B-, 9,6%; e entre os títulos de alto risco com classificação abaixo de CCC, 23,9% (lembre-se de que, no Brasil, a taxa de inadimplência entre títulos sem grau de investimento é de 77,2%).

Tabela 13
Classificação de títulos x Evento de crédito ex-post (ECEP)

Liquidez: A nossa medida de liquidez é a porcentagem de dias em que houve alguma negociação com o título. A Tabela 14 mostra a liquidez dos títulos emitidos antes de 2013. 51,7% das emissões (38,2% dos proventos) nunca são negociadas. Outras 38,6% são negociadas em, no máximo, 5% dos dias. Apenas 1,5% das emissões são negociadas em mais de 20% dos dias. A liquidez varia de acordo com o tipo de título. Há pouquíssima negociação com Títulos regulares CVM-476: 58,8% dessas emissões nunca são negociadas. Isso é esperado, considerando que essas emissões são alocadas para, no máximo, 50 investidores.

Tabela 14
Liquidez dos títulos

Clientes: a CVM exige que os subscritores publiquem informações detalhadas sobre a alocação das emissões a grupos de investidores (chamados de clientes). Essa informação está disponível nos anúncios de encerramento de oferta (AEO). Obtivemos o AEO apenas para o período de 2015 a 2017. Dividimos os clientes em dois grupos principais: relacionados e não relacionados à associação de subscritores. Os investidores relacionados incluem todas as instituições financeiras, corretoras e fundos de investimento geridos pelo subscritor. A Tabela 15 mostra a alocação entre clientes. Surpreendentemente, em média, quase metade dos proventos é alocada a organizações/investidores relacionados ao subscritor. Há uma forte variação transversal entre os diferentes títulos. Os títulos CVM-476 tendem a ser mais alocados a investidores relacionados do que os CVM-400. Entre os Títulos regulares CVM-400, por exemplo, 70,5% dos proventos destinam-se a investidores não relacionados, ao passo que entre os Títulos regulares CVM-476 essa proporção é de 45,2%. Para os Títulos de infraestrutura, essa diferença é de 82,8% para os CVM-400 e 58,1% para os CVM-476. Os principais clientes dos títulos brasileiros são fundos de investimento não relacionados ao subscritor (39,4% da alocação) e instituições financeiras relacionadas ao subscritor (33,7% da alocação). Clubes de investimento, seguradoras, fundos de pensão e investidores estrangeiros recebem menos de 1% cada. Curiosamente, os fundos de investimento administrados pelo subscritor recebem apenas 2,49% dos proventos.

Tabela 15
Alocação de títulos por tipo de emissão

5 Considerações finais

Este artigo descreve a microestrutura do mercado de títulos privados no Brasil. Nosso foco é o período de 2009 a 2017, após duas grandes mudanças no mercado de títulos: a instituição da Instrução CVM-476 e os títulos de infraestrutura. Esses novos regulamentos fomentaram o mercado de títulos privados no Brasil. Examinamos algumas das principais características do mercado de títulos. Primeiramente, os proventos dos títulos tendem a ser baixos (70% das emissões são inferiores a R$250 milhões). Além disso, os títulos têm vencimento no curto prazo. Para quase 90% das emissões, é inferior a 10 anos. As agências internacionais são as principais fornecedoras de classificação de risco. No entanto, elas usam uma escala de classificação adaptada ao Brasil. Títulos de renda fixa são raros. A grande maioria dos títulos regulares (títulos que não são de infraestrutura) está atrelada à taxa de juros interbancária brasileira (DI ou CDI). Os títulos de infraestrutura costumam estar atrelados à inflação.

Os aspectos mais marcantes do mercado de títulos brasileiro dizem respeito à subscrição, alocação e desempenho dos títulos. Apenas dois bancos universais locais dominam a atividade de subscrição. Esses bancos e suas partes relacionadas recebem mais da metade da alocação. Esse padrão é mais frequente entre os títulos emitidos conforme a CVM-476. Por outro lado, a maioria dos títulos emitidos conforme a CVM-400 é alocada a partes não relacionadas.

Menos da metade das emissões recebeu a classificação de grau de investimento e mais da metade sequer possui classificação. A exceção são os Títulos de infraestrutura que quase sempre têm grau de investimento. O mais curioso é que a classificação de grau de investimento parece não levar em consideração os eventos de crédito recentes no mercado de títulos: 20% das emissões com grau de investimento são de emitentes com um evento de crédito divulgado recentemente (mais comumente na forma de renegociação dos prazos dos títulos).

A incidência de eventos de crédito ex-post (ECEP) é alta: quase 20% dos títulos. O ECEP ocorre principalmente na forma de renegociação dos prazos dos títulos. No entanto, a inadimplência estrita também é alta, atingindo 6% dos títulos. Mesmo entre os títulos com grau de investimento, o ECEP e a inadimplência estrita são altos, atingindo 11% e 3,9% das emissões. Por fim, a liquidez dos títulos no mercado secundário é baixa, com exceção dos títulos de Infraestrutura emitidos conforme a CVM-400.

A combinação da alta frequência de renegociação dos prazos dos títulos, o atrelamento frequente à taxa DI (que é a referência para os empréstimos bancários), a baixa liquidez e o uso da CVM-476 (que dispensa, entre outras coisas, o registro e a necessidade de um prospecto detalhado) possivelmente refletem a substituição dos empréstimos bancários por títulos privados. Isso foi descrito em Torres e Macahyba (2014Torres, E. Fº, & Macahyba, L. (2014). Os mercados brasileiro e britânico de títulos corporativos. Brasília: Confederação Nacional da Indústria.). Dessa forma, os bancos recomendam que seus grandes clientes corporativos emitam títulos privados sempre que suas linhas de crédito de curto prazo forem totalmente utilizadas. Nesse processo, os bancos oferecem garantia de colocação (adquirindo parte da emissão, se necessário). Os títulos são colocados em várias carteiras administradas pelo subscritor, da tesouraria do banco aos fundos de investimento sob sua administração. Isso explica a frequência anormalmente alta de renegociação dos prazos dos títulos. Esta operação resulta em uma arbitragem regulatória. Ao fazer isso, os bancos pagam menos impostos e não precisam constituir provisões para risco de crédito. Esse esquema levanta a questão sobre a existência de um mercado de títulos efetivo no Brasil. Nossos resultados estão alinhados aos de Hawkins (2002Hawkins, J. (2002). Bond markets and banks in emerging economies. BIS papers n.11, 42-48.), que aponta para um conflito de interesses dos bancos como participantes do mercado de títulos.

References

  • Biais, B., & Green, R. (2019). The microstructure of the bond market in the 20th century. Review of Economic Dynamics, 33, 250-271.
  • Carbo-Valverde, S., Rodriguez-Fernandez, F., & Saunders, A. (2016, December). Underwriting as certification of bank bonds. Working Paper. Retrieved from https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2665917
    » https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2665917
  • Carvalho, A. G. (2000). Ascensão e declínio do mercado de capitais no Brasil, a experiência dos anos 90. Revista de Economia Aplicada, 4(3), 595-632.
  • Carvalho, A. G. de, (2005). Lei de Falência, acesso ao crédito empresarial e taxas de juros no Brasil. Revista de Economia Política, 25(1), 112-132.
  • Fleming, M., & Krishnan, N. (2012, March). The microstructure of the TIPS market. FRBNY Economic Policy Review, 27-45.
  • Gyntelberg, J., Ma, G., & Remolona, E. (2006). Developing corporate bond markets in Asia. BIS Papers n. 26, 13-21. Retrieved from https://www.bis.org/publ/bppdf/bispap26a.pdf
    » https://www.bis.org/publ/bppdf/bispap26a.pdf
  • Hawkins, J. (2002). Bond markets and banks in emerging economies. BIS papers n.11, 42-48.
  • Instrução CVM n. 400, de 29 de dezembro de 2003. Dispõe sobre as ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários, nos mercados primário ou secundário, e revoga a Instrução 13/80 e a Instrução 88/88. Retrieved from http://www.cvm.gov.br/legislacao/instrucoes/inst400.html
    » http://www.cvm.gov.br/legislacao/instrucoes/inst400.html
  • Instrução CVM n. 476, de 16 de janeiro de 2009. Dispõe sobre as ofertas públicas de valores mobiliários distribuídas com esforços restritos e a negociação desses valores mobiliários nos mercados regulamentados. Retrieved from http://www.cvm.gov.br/legislacao/instrucoes/inst476.html
    » http://www.cvm.gov.br/legislacao/instrucoes/inst476.html
  • Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Retrieved from http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm
  • Lei n. 12.431, de 24 de junho de 2011. Dispõe sobre a incidência do imposto sobre a renda nas operações que especifica; altera as Leis nºs 11.478, de 29 de maio de 2007, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 9.430, de 27 de dezembro de 1996, 12.350, de 20 de dezembro de 2010, 11.196, de 21 de novembro de 2005, 8.248, de 23 de outubro de 1991, 9.648, de 27 de maio de 1998, 11.943 . . . Retrieved from http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12431.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12431.htm
  • Manconi, A., Neretina, E., & Renneboog, L. (2018). Underwriter competition and bargaining power in the corporate bond. European Corporate Governance Institute (ECGI) - Finance Working Paper No. 548/2018. Retrieved from https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3098005
    » https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3098005
  • Mu, Y., Phelps, P., & Stotsky, J. (2013). Bond markets in Africa. Review of Development Finance, 3(3), 121-135.
  • Ong, L. L. (2005, July). An anatomy of corporate bond markets: Growing pains and knowledge gains. International Monetary Fund working paper 05/152. Retrieved from https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2016/12/31/An-Anatomy-of-Corporate-Bond-Markets-Growing-Pains-and-Knowledge-Gains-18348
    » https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2016/12/31/An-Anatomy-of-Corporate-Bond-Markets-Growing-Pains-and-Knowledge-Gains-18348
  • Standard and Poors, 2017, 2016 Annual Global Corporate Default Study and Rating Transitions. Available at https://www.spratings.com/documents/20184/774196/2016+Annual+Global+ Corporate+Default+Study+And+Rating+Transitions.pdf/
    » https://www.spratings.com/documents/20184/774196/2016+Annual+Global+ Corporate+Default+Study+And+Rating+Transitions.pdf
  • Torres, E. Fº, & Macahyba, L. (2014). Os mercados brasileiro e britânico de títulos corporativos. Brasília: Confederação Nacional da Indústria.
  • Avaliado pelo sistema:

    Double Blind Review

Editado por

Editor responsável:

Prof. Dr. Joelson Oliveira Sampaio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2018
  • Aceito
    28 Jun 2019
Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, Av. da Liberdade, 532, 01.502-001 , São Paulo, SP, Brasil , (+55 11) 3272-2340 , (+55 11) 3272-2302, (+55 11) 3272-2302 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbgn@fecap.br