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Conservadorismo Contábil e o Valor de Mercado do Caixa no Brasil

Resumo

Objetivo

Analisar a relação entre políticas contábeis conservadoras e o valor que os acionistas atribuem para o caixa das empresas de capital aberto no Brasil.

Referencial teórico

O caixa é o ativo mais vulnerável às ações oportunistas do agente. Parte da discussão da literatura sobre o tema diz respeito aos possíveis mecanismos para alinhar os interesses entre agente e principal. Entretanto, pouco se sabe se o conservadorismo contábil, como um mecanismo de governança e um atributo importante dos relatórios financeiros, pode mitigar parte dos problemas de agência relacionados ao uso do caixa.

Metodologia

Para analisar o valor de mercado do caixa, utilizamos o modelo de regressão de Pinkowitz, Stulz e Williamson (2006). Uma medida baseada nos accruals foi utilizada como proxy do conservadorismo contábil.

Resultados

As evidências obtidas indicam uma associação positiva entre políticas contábeis conservadoras e o valor de mercado do caixa. De forma geral, as evidências empíricas sugerem que os acionistas atribuem um maior valor de mercado para o caixa das empresas conservadoras.

Implicações práticas e sociais da pesquisa

Apresentar outro benefício associado ao conservadorismo contábil também auxilia na discussão acerca do conservadorismo nos relatórios financeiros. Tal fato é relevante dado o debate em curso sobre os méritos da neutralidade em oposição ao conservadorismo como uma característica desejável dos números contábeis.

Contribuições

O estudo contribui com a literatura ao demonstrar que políticas contábeis conservadoras têm o potencial de trazer benefícios econômicos reais para as organizações, servindo como um mecanismo de governança que reduz os problemas de agência associados ao uso do caixa.

Palavras-chave:
Governança corporativa; cash holdings; qualidade da auditoria

Abstract

Purpose

To analyze the relationship between conservative accounting policies and the value that shareholders attribute to the cash holdings of publicly-traded companies in Brazil.

Theoretical framework

Cash holdings are the most vulnerable asset to the agent’s opportunistic actions. Part of the discussion in the literature on the topic concerns the possible mechanisms to align the interests between the agent and principal. However, little is known on whether accounting conservatism, as a governance mechanism and important attribute of financial reports, can mitigate part of the agency problems related to the use of cash holdings.

Design/methodology/approach

To analyze the market value of cash holdings we used the Pinkowitz, Stulz, and Williamson (2006) regression model. An accruals-based measure was used as a proxy for accounting conservatism.

Findings

The evidence obtained indicates a positive association between conservative accounting policies and the market value of cash holdings. In general, the empirical evidence suggests that shareholders attribute a higher market value to the cash holdings of conservative companies.

Practical & social implications of research

Presenting another benefit associated with accounting conservatism also helps in the discussion on conservatism in financial reports. This is relevant given the current debate on the merits of neutrality versus conservatism as a desirable characteristic of accounting numbers.

Originality/value

This study contributes to the literature by demonstrating that conservative accounting policies have the potential to provide organizations with real economic benefits, serving as a governance mechanism that reduces the agency problems associated with the use of cash.

Keywords:
Corporate governance; cash holdings; audit quality

1 Introdução

O objetivo desta pesquisa é analisar a relação entre políticas contábeis conservadoras e o valor que os acionistas atribuem para as reservas de caixa das empresas de capital aberto listadas na bolsa de valores oficial do Brasil, denominada Brasil, Bolsa, Balcão (B3). O caixa de uma empresa, como uma parcela significativa do percentual total de seus ativos, é considerado como o ativo mais suscetível de ser consumido, desviado e mal utilizado, por meio de ações oportunistas do agente (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Jensen, 1986Jensen, M. C. (1986). Agency costs of free cash flow, corporate finance, and takeovers. The American Economic Review, 76(2), 323-329.; Myers & Rajan, 1998Myers, S. C., & Rajan, R. G. (1998). The paradox of liquidity. The Quarterly Journal of Economics, 113(3), 733-771. http://dx.doi.org/10.1162/003355398555739.
http://dx.doi.org/10.1162/00335539855573...
). O agente, como um indivíduo maximizador de sua função utilidade, pode fazer uso mais facilmente de sua situação informacional privilegiada para consumir os benefícios privados vinculados ao caixa de sua empresa às custas do principal (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Jensen, 1986Jensen, M. C. (1986). Agency costs of free cash flow, corporate finance, and takeovers. The American Economic Review, 76(2), 323-329.; Manoel & Moraes, 2021aManoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021a). Accounting conservatism and corporate cash levels: Empirical evidence from Latin America. Corporate Governance, (in press).; Masulis et al., 2009Masulis, R. W., Wang, C., & Xie, F. (2009). Agency problems at dual-class companies. The Journal of Finance, 64(4), 1697-1727.; Myers & Rajan, 1998Myers, S. C., & Rajan, R. G. (1998). The paradox of liquidity. The Quarterly Journal of Economics, 113(3), 733-771. http://dx.doi.org/10.1162/003355398555739.
http://dx.doi.org/10.1162/00335539855573...
; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.).

De forma geral, o valor que os acionistas atribuem para as reservas de caixa é espelhado na forma pela qual eles esperam que esses recursos sejam utilizados (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023...
; Pinkowitz & Williamson, 2007Pinkowitz, L., & Williamson, R. (2007). What is the market value of a dollar of corporate cash? Journal of Applied Corporate Finance, 19(3), 74-81. http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.2007.00148.x.
http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.20...
). Em mercados de capitais considerados perfeitos, o valor de um dólar adicional em caixa deveria ser exatamente US$ 1,00, sendo os custos para obter e manter esses recursos igual a seus benefícios esperados (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.). Entretanto, as imperfeições dos mercados de capitais, como assimetria de informações e custos de agência, fazem que os gestores atribuam um valor diferente para as reservas de caixa das empresas (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
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; Pinkowitz & Williamson, 2007Pinkowitz, L., & Williamson, R. (2007). What is the market value of a dollar of corporate cash? Journal of Applied Corporate Finance, 19(3), 74-81. http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.2007.00148.x.
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). O mercado, ciente da vulnerabilidade do caixa, desconta seu valor em organizações em que os mecanismos de governança corporativa não conseguem mitigar o entrincheiramento gerencial relacionado a seu uso. Em outras palavras, um dólar adicional em caixa pode não valer um dólar para os acionistas na ausência de mecanismos robustos de alinhamento de interesses entre agente e principal (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
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; Pinkowitz & Williamson, 2007Pinkowitz, L., & Williamson, R. (2007). What is the market value of a dollar of corporate cash? Journal of Applied Corporate Finance, 19(3), 74-81. http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.2007.00148.x.
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).

Os descontos relacionados ao valor de mercado do caixa, entretanto, podem ser mitigados pela existência e eficácia dos mecanismos de monitoramento utilizados no controle das ações oportunistas do agente (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Masulis et al., 2009Masulis, R. W., Wang, C., & Xie, F. (2009). Agency problems at dual-class companies. The Journal of Finance, 64(4), 1697-1727.). Estudos anteriores, por exemplo, apontam que um conjunto de mecanismos de governança corporativa robustos consegue reduzir o risco de os gestores transformarem o caixa em benefícios privados. Como resultado da redução de destruição de valor associada às reservas de caixa, os investidores atribuem um maior valor para este ativo em empresas com melhor governança corporativa (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Masulis et al., 2009Masulis, R. W., Wang, C., & Xie, F. (2009). Agency problems at dual-class companies. The Journal of Finance, 64(4), 1697-1727.; Pinkowitz et al., 2006Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.).

Nesse cenário, insere-se o conservadorismo contábil, dado que políticas contábeis conservadoras reduzem, pelo menos em parte, os custos de agência que permeiam as relações entre as partes envolvidas em uma empresa (García Lara et al., 2009García Lara, J. M., Osma, B. G., & Penalva, F. (2009). Accounting conservatism and corporate governance. Review of Accounting Studies, 14(1), 161-201.; Manoel & Moraes, 2021aManoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021a). Accounting conservatism and corporate cash levels: Empirical evidence from Latin America. Corporate Governance, (in press).; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.). A teoria positiva da contabilidade sugere que o conservadorismo dos relatórios financeiros desempenha um papel importante na redução das ineficiências de investimento. Mais precisamente, políticas contábeis conservadoras restringem, ex ante, os incentivos dos gestores de investir em projetos de destruição de valor, pois não permite que eles adiem o reconhecimento das perdas para os gestores subsequentes. Da mesma forma, fornecem mecanismos ex post no abandono precoce de projetos de baixo desempenho antes do acúmulo de grandes perdas (Ahmed & Duellman, 2011Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2011). Evidence on the role of accounting conservatism in monitoring managers’ investment decisions. Accounting and Finance, 51(3), 609-633.; Ball & Shivakumar, 2005Ball, R., & Shivakumar, L. (2005). Earnings quality in UK private firms: Comparative loss recognition timeliness. Journal of Accounting and Economics, 39(1), 83-128.; Francis & Martin, 2010Francis, J. R., & Martin, X. (2010). Acquisition profitability and timely loss recognition. Journal of Accounting and Economics, 49(1-2), 161-178.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.).

Porquanto, o conservadorismo contábil, como um componente da qualidade da informação contábil e um mecanismo de governança corporativa, é um aspecto importante no monitoramento efetivo de uma empresa, reduzindo os custos de agência e aumentando a eficiência na contratação. Sendo assim, este estudo se baseia na literatura que sugere que políticas contábeis conservadoras são parte da estrutura de controle corporativo de uma empresa, que reduz os incentivos dos gestores de aceitar projetos de destruição de valor (Ahmed & Duellman, 2007Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2007). Accounting conservatism and board of director characteristics: An empirical analysis. Journal of Accounting and Economics, 43(2-3), 411-437.; Ball & Shivakumar, 2005Ball, R., & Shivakumar, L. (2005). Earnings quality in UK private firms: Comparative loss recognition timeliness. Journal of Accounting and Economics, 39(1), 83-128.; Francis & Martin, 2010Francis, J. R., & Martin, X. (2010). Acquisition profitability and timely loss recognition. Journal of Accounting and Economics, 49(1-2), 161-178.; García Lara et al., 2009García Lara, J. M., Osma, B. G., & Penalva, F. (2009). Accounting conservatism and corporate governance. Review of Accounting Studies, 14(1), 161-201.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.). Portanto, parte-se do pressuposto, nesta pesquisa, de que políticas contábeis conservadoras conseguem mitigar parte da destruição de valor associadas as reservas de caixa.

Apesar de a literatura tratar dos efeitos dos mecanismos de governança corporativa sobre o valor de mercado de caixa (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Pinkowitz et al., 2006Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.), pouco se sabe sobre a relação entre políticas contábeis conservadoras e o valor que os acionistas atribuem às reservas de caixa. Explorar essa associação representa uma oportunidade promissora para expandir a compreensão da interação entre os conflitos de agência e a gestão do caixa, e seu efeito combinado no valor das empresas. Este estudo aproveita essa lacuna empírico-teórica da literatura para examinar se o conservadorismo contábil consegue mitigar parte dos custos de agência relacionados ao uso do caixa e se isso se reflete no valor que os acionistas atribuem a esse ativo. Dado os pressupostos teóricos, espera-se uma associação positiva entre políticas contábeis conservadoras e o valor de mercado do caixa.

Para atingir o objetivo de pesquisa, utilizou-se neste estudo o mercado acionário brasileiro. O Brasil, considerado um mercado emergente, é demarcado pela dificuldade de acesso a fontes de financiamento (Manoel & Moraes, 2018Manoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2018). Cash holdings in Brazil: A study considering the effects of financial constraints and the adoption of international financial reporting standards. Revista Universo Contábil, 14(2), 118-136.). Logo, em um ambiente de restrições financeiras, ter mecanismos que consigam controlar as ações oportunistas do gestor é essencial, pois o entrincheiramento gerencial é indesejável e resulta, dentre outras coisas, na redução da riqueza dos acionistas (Jensen, 1986Jensen, M. C. (1986). Agency costs of free cash flow, corporate finance, and takeovers. The American Economic Review, 76(2), 323-329.). O conservadorismo contábil, dessa forma, representaria um mecanismo alternativo e menos custoso de governança corporativa, objetivando mitigar os conflitos de agência relacionados ao mau uso do caixa.

Analisar o valor que os acionistas atribuem ao caixa das empresas é relevante, especialmente em mercados menos desenvolvidos, pois manter ativos na forma de caixa e equivalentes de caixa é custoso, visto que parte desses recursos poderia estar alocada em outros investimentos mais rentáveis (Kim et al., 1998Kim, C., Mauer, D. C., & Sherman, A. E. (1998). The determinants of corporate liquidity: Theory and evidence. Journal of Financial and Quantitative Analysis, 33(3), 335-359.; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.; Manoel & Moraes, 2021bManoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021b). The impact of the degree of internationalization on cash levels: Evidence from Latin America. International Business Review, (in press).). Além do mais, as firmas alocam uma parte substancial de seus ativos em caixa e a expropriação desses recursos tem um impacto devastador no bem-estar dos acionistas (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Manoel & Moraes, 2021aManoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021a). Accounting conservatism and corporate cash levels: Empirical evidence from Latin America. Corporate Governance, (in press).; Pinkowitz et al., 2006Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.). Por conseguinte, a existência de mecanismos que melhorem a eficiência dos contratos e atuem como limitador do oportunismo gerencial, tal como o conservadorismo contábil, pode fazer que o agente utilize o caixa, na melhor das hipóteses, apenas em projetos que maximizem a função utilidade do principal.

Consistente com os argumentos apresentados, verificamos uma associação positiva entre políticas contábeis conservadoras e o valor de mercado do caixa. As evidências obtidas são consistentes com o conservadorismo contábil desempenhando um papel de governança corporativa relevante, fornecendo aos gestores incentivos ex ante para evitar projetos de valor presente líquido (VPL) negativo e no monitoramento ex post das decisões de investimento (Ball & Shivakumar, 2005Ball, R., & Shivakumar, L. (2005). Earnings quality in UK private firms: Comparative loss recognition timeliness. Journal of Accounting and Economics, 39(1), 83-128.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.). Sendo assim, cientes de que o conservadorismo contábil consegue mitigar parte dos custos de agência associados às reservas de caixa, pode-se verificar que os acionistas atribuem um maior valor para o caixa das empresas que adotam políticas contábeis conservadoras. Realizou-se uma série de testes de robustez, que fornecem evidências adicionais em apoio à hipótese de pesquisa.

A literatura aponta diversos benefícios associados às políticas contábeis conservadoras, tal como: redução do custo da dívida (Ahmed et al., 2002Ahmed, A. S., Billings, B. K., Morton, R. M., & Stanford-Harris, M. (2002). The role of accounting conservatism in mitigating bondholder-shareholder conflicts over dividend policy and in reducing debt costs. The Accounting Review, 77(4), 867-890.); redução dos conflitos de agência sobre as políticas de dividendos (Ahmed et al., 2002Ahmed, A. S., Billings, B. K., Morton, R. M., & Stanford-Harris, M. (2002). The role of accounting conservatism in mitigating bondholder-shareholder conflicts over dividend policy and in reducing debt costs. The Accounting Review, 77(4), 867-890.) e do risco de colapso no preço das ações (Kim & Zhang, 2016Kim, J. B., & Zhang, L. (2016). Accounting conservatism and stock price crash risk: Firm-level evidence. Contemporary Accounting Research, 33(1), 412-441.); menor nível de assimetria informacional (LaFond & Watts, 2008LaFond, R., & Watts, R. L. (2008). The information role of conservatism. The Accounting Review, 83(2), 447-478.) e de gerenciamento das más notícias (Kim & Zhang, 2016Kim, J. B., & Zhang, L. (2016). Accounting conservatism and stock price crash risk: Firm-level evidence. Contemporary Accounting Research, 33(1), 412-441.); aquisições mais lucrativas (Francis & Martin, 2010Francis, J. R., & Martin, X. (2010). Acquisition profitability and timely loss recognition. Journal of Accounting and Economics, 49(1-2), 161-178.), dentre outros. As evidências deste estudo, por sua vez, indicam que políticas contábeis conservadoras mitigam parte dos problemas de agência associados ao ativo mais vulnerável às ações oportunistas, de maneira que os acionistas valorizam mais o caixa das empresas mais conservadoras. Assim, em um primeiro momento este trabalho contribui com a literatura fornecendo evidências de que o conservadorismo contábil, como um mecanismo de governança corporativa e um atributo proeminente dos relatórios financeiros, reduz a valor destruição associada ao uso indevido das reservas de caixa.

Os achados deste estudo também fornecem implicações práticas relevantes. A literatura considera relevante os estudos acerca dos benefícios econômicos do conservadorismo contábil, dado o debate em curso ao longo da década de 2000 sobre os méritos da neutralidade em oposição ao conservadorismo como uma característica desejável dos números contábeis (Artiach & Clarkson, 2012Artiach, T. C., & Clarkson, P. (2012). Conservatism, disclosure and the cost of equity capital. Australian Journal of Management, 39(2), 293-314.; Francis et al., 2013Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346.). E, em última análise, o International Accounting Standards Board (IASB) e o Financial Accounting Standards Board (FASB) adotaram a neutralidade das demonstrações financeiras como de ordem superior, em detrimento da prudência ou do conservadorismo como qualidades desejáveis. Tal opção se deu pois o IASB e o FASB afirmam que o conservadorismo introduz preconceitos nos relatórios financeiros e, por consequência, aumenta a assimetria informacional (Artiach & Clarkson, 2012Artiach, T. C., & Clarkson, P. (2012). Conservatism, disclosure and the cost of equity capital. Australian Journal of Management, 39(2), 293-314.; Francis et al., 2013Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346.).

Nesse sentido, as evidências empíricas indicam que a retirada do princípio da prudência representaria, dentre outras coisas, um aumento nos custos de agência, o que, por sua vez, reduz a acurácia no processo de tomada de decisão e o bem-estar do investidor. Assim, esta pesquisa também fornece implicações práticas ao revelar que adotar números contábeis mais conservadores tem o potencial de trazer benefícios econômicos reais para as organizações, servindo como um mecanismo de governança corporativa, de maneira a mitigar os conflitos de agência associados ao caixa. Diante disso, o princípio do conservadorismo contábil representaria um papel relevante e benéfico dentro dos princípios e práticas contábeis.

O restante do artigo prossegue da seguinte maneira: na seção 2, a hipótese de pesquisa é desenvolvida. A seção 3 descreve o desenho da pesquisa em termos da seleção da amostra utilizada, do modelo de regressão proposto e da descrição das variáveis. A seção 4 apresenta os resultados encontrados e os testes de robustez. E, por fim, na seção 5 são apresentadas as considerações finais deste estudo.

2 Fundamentação teórica e desenvolvimento da hipótese

Manter parte dos ativos na forma de caixa e equivalentes de caixa traz benefícios para as empresas em mercados de capitais imperfeitos. Dentre esses benefícios, a literatura menciona, por exemplo, como financiar as operações diárias de uma empresa (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Keynes, 1936Keynes, J. M. (1936). The general theory of employment, interest and money. McMillan.; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.), atender contingências inesperadas (Kim et al., 1998Kim, C., Mauer, D. C., & Sherman, A. E. (1998). The determinants of corporate liquidity: Theory and evidence. Journal of Financial and Quantitative Analysis, 33(3), 335-359.; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.), aproveitar as oportunidades de investimento (Keynes, 1936Keynes, J. M. (1936). The general theory of employment, interest and money. McMillan.; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.), evitar os custos transacionais de captação de recursos (Kim et al., 1998Kim, C., Mauer, D. C., & Sherman, A. E. (1998). The determinants of corporate liquidity: Theory and evidence. Journal of Financial and Quantitative Analysis, 33(3), 335-359.), reduzir os problemas de subinvestimento (Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.) e restrições financeiras, especialmente durante períodos de crise (Manoel & Moraes, 2018Manoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2018). Cash holdings in Brazil: A study considering the effects of financial constraints and the adoption of international financial reporting standards. Revista Universo Contábil, 14(2), 118-136.; Manoel et al., 2017Manoel, A. A. S., Moraes, M. B. C., Santos, D. F. L., & Neves, M. F. (2017). Determinants of corporate cash holdings in times of crisis: Insights from Brazilian Sugarcane Industry private firms. The International Food and Agribusiness Management Review, 21(2), 201-218.), dentre outros.

Embora manter recursos em caixa proporcione benefícios para as empresas, as reservas de caixa também possuem um lado negativo. Em primeiro lugar, parte dos ativos alocados em caixa poderia ser utilizada em outros investimentos mais rentáveis (Kim et al., 1998Kim, C., Mauer, D. C., & Sherman, A. E. (1998). The determinants of corporate liquidity: Theory and evidence. Journal of Financial and Quantitative Analysis, 33(3), 335-359.; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.). Além do mais, as reservas de caixa expõem as empresas ao oportunismo gerencial, uma vez que esse ativo é mais facilmente convertido em benefícios privados em comparação a ativos menos líquidos (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Myers & Rajan, 1998Myers, S. C., & Rajan, R. G. (1998). The paradox of liquidity. The Quarterly Journal of Economics, 113(3), 733-771. http://dx.doi.org/10.1162/003355398555739.
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; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.). O modo de expropriação das reservas de caixa pode assumir diversas formas, como o consumo de gratificações, construção de impérios, remuneração excessiva ou até mesmo por roubo (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Jensen, 1986Jensen, M. C. (1986). Agency costs of free cash flow, corporate finance, and takeovers. The American Economic Review, 76(2), 323-329.; Masulis et al., 2009Masulis, R. W., Wang, C., & Xie, F. (2009). Agency problems at dual-class companies. The Journal of Finance, 64(4), 1697-1727.; Myers & Rajan, 1998Myers, S. C., & Rajan, R. G. (1998). The paradox of liquidity. The Quarterly Journal of Economics, 113(3), 733-771. http://dx.doi.org/10.1162/003355398555739.
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).

Dessa forma, caso não haja mecanismos para alinhar os interesses entre agente e principal, espera-se que o agente, como um indivíduo maximizador de sua função utilidade, nem sempre aja de acordo com os interesses dos acionistas (Jensen & Meckling, 1976Jensen, M. C., & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, 3(4), 305-360.). Os problemas de agência representam uma das questões principais acerca dos estudos sobre a gestão do caixa (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Jensen & Meckling, 1976Jensen, M. C., & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, 3(4), 305-360.; Myers & Rajan, 1998Myers, S. C., & Rajan, R. G. (1998). The paradox of liquidity. The Quarterly Journal of Economics, 113(3), 733-771. http://dx.doi.org/10.1162/003355398555739.
http://dx.doi.org/10.1162/00335539855573...
; Pinkowitz et al., 2006Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.). O cerne dessa teoria consiste no fato de o principal saber que irá perder parte de sua riqueza, de modo que buscará conseguir do agente seu melhor desempenho dentro das condições possíveis. Portanto, o principal deverá buscar meios de estimular o agente a tomar decisões que estejam de acordo com seus interesses (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Jensen & Meckling, 1976Jensen, M. C., & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, 3(4), 305-360.).

Nesse contexto, Basu (1997)Basu, S. (1997). The conservatism principle and the asymmetric timeliness of earnings. Journal of Accounting and Economics, 24(1), 3-37. e Watts (2003)Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221. afirmam que o conservadorismo contábil, como uma das características mais proeminentes da contabilidade que influencia sua prática há séculos, é um mecanismo que surge naturalmente quando as partes precisam formalizar um contrato e reduzir os custos de agência. Para Basu (1997)Basu, S. (1997). The conservatism principle and the asymmetric timeliness of earnings. Journal of Accounting and Economics, 24(1), 3-37., o conservadorismo contábil pode ser entendido como a tendência da contabilidade de demandar um maior grau de verificação para o reconhecimento de boas notícias do que para as más notícias, de modo que o lucro reflete as más notícias de forma mais rápida do que as boas notícias. Em outras palavras, a partir da perspectiva de Basu (1997)Basu, S. (1997). The conservatism principle and the asymmetric timeliness of earnings. Journal of Accounting and Economics, 24(1), 3-37., pode-se dizer que o conservadorismo contábil é a tendência da contabilidade de exigir um maior grau de verificação para reconhecer as perspectivas positivas (Good News), se comparado com o registro das perdas (Bad News).

O desalinhamento de interesses entre agente e principal pode fazer que o primeiro invista em projetos de investimento com VPL negativo, bem como adie o abandono de projetos não rentáveis que de alguma forma os beneficiem. Esconder más notícias, por conseguinte, permite que as empresas menos conservadoras mantenham projetos de investimentos não rentáveis, por um período mais longo, em comparação com as empresas mais conservadoras (Ahmed & Duellman, 2011Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2011). Evidence on the role of accounting conservatism in monitoring managers’ investment decisions. Accounting and Finance, 51(3), 609-633.; Ball & Shivakumar, 2005Ball, R., & Shivakumar, L. (2005). Earnings quality in UK private firms: Comparative loss recognition timeliness. Journal of Accounting and Economics, 39(1), 83-128.; Francis & Martin, 2010Francis, J. R., & Martin, X. (2010). Acquisition profitability and timely loss recognition. Journal of Accounting and Economics, 49(1-2), 161-178.; García Lara et al., 2009García Lara, J. M., Osma, B. G., & Penalva, F. (2009). Accounting conservatism and corporate governance. Review of Accounting Studies, 14(1), 161-201.; LaFond & Watts, 2008LaFond, R., & Watts, R. L. (2008). The information role of conservatism. The Accounting Review, 83(2), 447-478.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.). O reconhecimento mais oportuno das perdas do que dos ganhos, no entanto, permite aos acionistas, e ao conselho de administração, identificar prontamente os projetos de investimentos não rentáveis, de modo a obrigar os gestores a tomarem providências acerca disso (Francis et al., 2013Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346.; LaFond & Watts, 2008LaFond, R., & Watts, R. L. (2008). The information role of conservatism. The Accounting Review, 83(2), 447-478.). O conservadorismo contábil, dessa forma, contrabalança a tendência dos gestores de esconderem as más notícias dos investidores e de acelerarem a liberação de boas notícias para os usuários das informações, de maneira a reduzir os incentivos do agente em se envolver em ações oportunistas que expropriem o principal (LaFond & Watts, 2008LaFond, R., & Watts, R. L. (2008). The information role of conservatism. The Accounting Review, 83(2), 447-478.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.).

Sendo assim, políticas contábeis mais conservadoras fornecem incentivos ex ante eficientes que podem inibir os gestores a investirem em projetos com VPL negativo, pois os gestores sabem que as perdas serão reconhecidas mais tempestivamente durante sua gestão. Da mesma forma, políticas contábeis conservadoras facilitam o monitoramento ex post das decisões de investimentos, permitindo aos diretores e acionistas captarem sinais iniciais sobre a rentabilidade dos projetos de investimentos. A partir de informações mais tempestivas, os gestores podem tomar ações corretivas, vide abandono do projeto e substituição do gestor responsável (Ahmed & Duellman, 2011Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2011). Evidence on the role of accounting conservatism in monitoring managers’ investment decisions. Accounting and Finance, 51(3), 609-633.; Ball & Shivakumar, 2005Ball, R., & Shivakumar, L. (2005). Earnings quality in UK private firms: Comparative loss recognition timeliness. Journal of Accounting and Economics, 39(1), 83-128.; Francis & Martin, 2010Francis, J. R., & Martin, X. (2010). Acquisition profitability and timely loss recognition. Journal of Accounting and Economics, 49(1-2), 161-178.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.).

Consequentemente, espera-se que em empresas mais conservadoras o agente preserve parte das reservas de caixa, investindo, na melhor das hipóteses, somente em projetos que realmente demonstrem ser rentáveis e que sejam do interesse do principal. Por outro lado, em empresas menos conservadoras, espera-se que o gestor seja mais propenso a aceitar projetos de investimentos com VPL negativo, bem como adie o abandono de projetos com fluxos de caixa ex post negativo.

Os investidores avaliam o valor de mercado do caixa de uma empresa espelhando a forma com que eles esperam que os gestores utilizem esse recurso (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
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; Masulis et al., 2009Masulis, R. W., Wang, C., & Xie, F. (2009). Agency problems at dual-class companies. The Journal of Finance, 64(4), 1697-1727.). Cientes dos problemas relacionados ao mau uso do caixa, os investidores penalizam o valor de mercado desse ativo nas empresas em que os mecanismos de controle não conseguem evitar o uso indevido do caixa em ações que não criam valor para os acionistas. Consequentemente, o valor de mercado desse ativo é maior nas empresas em que os interesses entre agente e principal estão alinhados, de forma que o primeiro utilize o caixa apenas em situações que maximizem a função utilidade do principal (Bates et al., 2018Bates, T. W., Chang, C. H., & Chi, J. D. (2018). Why has the value of cash increased over time? Journal of Financial and Quantitative Analysis, 53(2), 749-787.; Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
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; Masulis et al., 2009Masulis, R. W., Wang, C., & Xie, F. (2009). Agency problems at dual-class companies. The Journal of Finance, 64(4), 1697-1727.).

Posto isso, evidências empíricas anteriores indicam que os acionistas atribuem um maior valor de mercado ao caixa nas empresas com mecanismos de governança mais robustos (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
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). Assim, políticas contábeis conservadoras podem auxiliar na mitigação dos problemas de agência relacionados ao uso do caixa, de modo a fornecer às partes interessadas ferramentas que auxiliam no monitoramento e limitam a capacidade do agente de expropriar esse ativo. Espera-se, portanto, que os investidores, cientes de que o conservadorismo contábil resulta na prevenção ex ante de projetos com VPL negativo e/ou na identificação ex post de projetos com desempenho insatisfatório, então atribuam um maior valor ao caixa das empresas conservadoras. Isso posto, a hipótese de pesquisa é que o mercado atribui um maior valor de mercado para as reservas de caixa das empresas de capital aberto no Brasil que adotam políticas contábeis conservadoras.

3 Metodologia da pesquisa

3.1 Descrição da amostra

A amostra inicial utilizada neste estudo engloba todas as empresas de capital aberto listadas na bolsa de valores oficial do Brasil (B3) com informações disponíveis no banco de dados da Economática® entre 2008 e 2019. Optou-se por iniciar o período amostral em 2008, pois o modelo econométrico proposto necessita de variáveis que são apresentadas no Demonstrativo de Fluxo de Caixa (DFC). Todas as informações coletadas estão em milhares de dólares norte-americanos para fins comparativos com a literatura que embasa este artigo, vide os trabalhos de Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751., Dittmar e Mahrt-Smith (2007)Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634. e Frésard & Salva (2010)Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.. A escolha das organizações ocorreu conforme a disponibilidade de dados para a construção do modelo econométrico proposto.

Seguindo a literatura sobre o tema (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Opler et al., 1999Opler, T., Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (1999). The determinants and implications of corporate cash holdings. Journal of Financial Economics, 52(1), 3-46.), foram retiradas da amostra final as empresas financeiras e as de utilidade pública, pois as políticas de caixa dessas empresas são influenciadas pelas exigências de capital estatutário e outras regulamentações governamentais. Por fim, para mitigar qualquer preocupação com o viés de sobrevivência, foram incluídas na amostra empresas sobreviventes e não sobreviventes com informações disponíveis durante o período de análise (Manoel & Moraes, 2021bManoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021b). The impact of the degree of internationalization on cash levels: Evidence from Latin America. International Business Review, (in press).). Após impor essas restrições, a amostra final utilizada consiste em um painel desbalanceado com 293 companhias não financeiras, totalizando 1.839 observações.

O Material Suplementar contém a base de dados utilizada. Para evitar possíveis influências dos valores extremos nos resultados, optou-se por winsorizar todas as variáveis contínuas nos níveis de 1% e 99% (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.).

3.2 Conservadorismo contábil

A literatura acerca do conservadorismo contábil aponta dificuldades no desenvolvimento de proxies consistentes desse constructo, de maneira que não existe, até o momento, uma medida única geralmente aceita na literatura (Artiach & Clarkson, 2012Artiach, T. C., & Clarkson, P. (2012). Conservatism, disclosure and the cost of equity capital. Australian Journal of Management, 39(2), 293-314.; Francis et al., 2013Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346.). No entanto, as evidências de Givoly & Hayn (2000)Givoly, D., & Hayn, C. (2000). The changing time-series properties of earnings, cash flows and accruals: Has financial reporting become more conservative? Journal of Accounting and Economics, 29(3), 287-320. indicam que políticas contábeis conservadoras levam a accruals negativos persistentes. Isso sugere que accruals negativos médios, ao longo do tempo, fornecem uma proxy consistente do conservadorismo contábil. Sendo assim, optamos por utilizar os accruals antes da depreciação (CONACC) como proxy de políticas contábeis conservadoras. Essa medida é baseada em Givoly & Hayn (2000)Givoly, D., & Hayn, C. (2000). The changing time-series properties of earnings, cash flows and accruals: Has financial reporting become more conservative? Journal of Accounting and Economics, 29(3), 287-320., sendo amplamente utilizada na literatura contábil − vide, por exemplo, Ahmed e Duellman (2007)Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2007). Accounting conservatism and board of director characteristics: An empirical analysis. Journal of Accounting and Economics, 43(2-3), 411-437. e Francis et al. (2013)Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346..

Essa medida é baseada nos accruals e foi obtida como o lucro líquido mais depreciação e menos o fluxo de caixa operacional multiplicados por -1 e deflacionados pelos ativos totais acumulados nos três anos anteriores. Valores positivos dessa medida indicam maior conservadorismo. A intuição subjacente a tal medida é a de que o conservadorismo contábil resulta em accruals persistentemente negativos, de maneira que, quanto mais negativos forem os accruals médios, maior o nível de conservadorismo contábil em determinada firma (Ahmed & Duellman, 2007Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2007). Accounting conservatism and board of director characteristics: An empirical analysis. Journal of Accounting and Economics, 43(2-3), 411-437.; Francis et al., 2013Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346.; Givoly & Hayn, 2000Givoly, D., & Hayn, C. (2000). The changing time-series properties of earnings, cash flows and accruals: Has financial reporting become more conservative? Journal of Accounting and Economics, 29(3), 287-320.). Essa medida possui duas vantagens: 1) não é baseada no mercado, isto é, não depende dos movimentos dos preços das ações para identificar boas e más notícias; e 2) é específica para o ano da empresa. Assim, para capturar os efeitos do conservadorismo contábil no valor de mercado do caixa foi adicionada a variável CONACC no modelo proposto, apresentado na sequência.

3.3 Valor de mercado do caixa

A fim de satisfazer os propósitos da pesquisa, utilizou-se o modelo de regressão com dados em painel. Para estimar o valor de mercado do caixa, recorreu-se ao modelo inicialmente desenvolvido por Fama & French (1998)Fama, E. F., & French, K. R. (1998). Taxes, financing decisions, and firm value. The Journal of Finance, 53(3), 819-843. para estudar o impacto da dívida e dos dividendos no valor da empresa, e que posteriormente foi adaptado por Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751. para analisar o valor de mercado do caixa. O modelo utilizado por Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751. pode ser observado na Equação 1:

V i , t = α i + β 1 E i , t + β 2 d E i , t + β 3 d E i , t + 1 + β 4 d N a i , t + β 5 d N a i , t + 1 + β 6 R D i , t + β 7 d R D i , t + β 8 d R D i , t + 1 + β 9 I i , t + β 10 d I i , t + β 11 d I i , t + 1 + β 12 D i , t + β 13 d D i , t + β 14 d D i , t + 1 + β 15 d V i , t + 1 + β 16 d C 15 h i , t + β 17 d C a s h i , t + 1 + ϵ i , t (1)

Em que V é o valor de mercado de uma empresa (market-to-book) calculado no final do ano fiscal como a soma do valor de mercado do patrimônio líquido e do valor contábil das dívidas de curto e longo prazo; E é o lucro antes dos juros e impostos; NA é o ativo líquido, isto é, o número total de ativos menos caixa e equivalentes; RD representa os gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D); I é a despesa financeira; D são os dividendos pagos; Cash é a soma do caixa com os equivalentes de caixa. Além do mais, Xt é o nível de cada variável X no ano t dividido pelo total de ativos no ano t; dXt é a mudança no nível de X do ano t1 para o ano t dividido pelo total de ativos no ano t, ou seja, ((Xt - Xt1)/ Ativo Totalt); dXt+1 é a mudança no nível de X do ano t+1 para o ano t dividido pelo total de ativos no ano t, isto é, ((Xt+1 - Xt)/ Ativo Totalt);

As variáveis de controle em nível e diferenças são incluídas no modelo de regressão para capturar as expectativas sobre os lucros futuros e outros efeitos que potencialmente influenciam o valor de uma empresa. Ademais, todas as variáveis foram divididas pelo ativo total para tornar os atributos das empresas comparáveis. Na Equação 1, o coeficiente β 16 pode ser interpretado como uma medida do valor que os acionistas atribuem a um dólar em caixa (Pinkowitz et al., 2006Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.). O modelo de Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751. utiliza a variável market-to-book como dependente em conjunto com outras variáveis de controle. Todavia, considerando que essa variável também é uma proxy do conservadorismo contábil, optou-se por utilizar o Q de Tobin como variável dependente no modelo proposto (Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023...
; Manoel & Moraes, 2021aManoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021a). Accounting conservatism and corporate cash levels: Empirical evidence from Latin America. Corporate Governance, (in press).). O Q de Tobin é uma proxy comum em estudos de finanças corporativas e contabilidade para mensurar o valor de uma empresa (Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023...
).

Além dessa adaptação, também optamos por utilizar a variação percentual nas receitas como proxy de oportunidades de investimento em vez dos gastos com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Essa escolha se deu em virtude de as empresas brasileiras não reportarem seus gastos com P&D antes de 2007, bem como, pois, essa informação só está disponível nas notas explicativas após esse período. Doravante, optamos por utilizar a variação da receita como melhor proxy disponível do constructo oportunidades de investimento, vide o uso em Ahmed e Duellman (2007)Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2007). Accounting conservatism and board of director characteristics: An empirical analysis. Journal of Accounting and Economics, 43(2-3), 411-437., Pinkowitz e Williamson (2007)Pinkowitz, L., & Williamson, R. (2007). What is the market value of a dollar of corporate cash? Journal of Applied Corporate Finance, 19(3), 74-81. http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.2007.00148.x.
http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.20...
, Frésard e Salva (2010)Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384. e Manoel e Moraes (2021a)Manoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2021a). Accounting conservatism and corporate cash levels: Empirical evidence from Latin America. Corporate Governance, (in press)..

Por fim, optou-se por aumentar o modelo de Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751. ao incluir a medida de conservadorismo (CONACC) e sua interação com a variação no nível de caixa. A inclusão da variável CONACC, de maneira isolada no modelo, ocorreu no intuito de controlar a associação direta do conservadorismo contábil e o valor de mercado das empresas. Sendo assim, para testar a relação entre o conservadorismo contábil e o valor de mercado do caixa, utilizamos o modelo de regressão conforme Equação 2:

V i , t = α i + β 1 E i , t + β 2 d E i , t + β 3 d E i , t + 1 + β 4 d N a i , t + β 5 d N a i , t + 1 + β 6 G r o w t h O p p o r t u n i t i e s i , t + β 7 I i , t + β 8 d I i , t + β 9 d I i , t + 1 + β 10 D i , t + β 11 d D i , t + β 12 d D i , t + 1 + β 13 d V i , t + 1 + β 14 d C a s h i , t + β 15 CONACC i , t + β 16 d C a s h i , t * C O N A C C i , t + β 17 d C a s h i , t + 1 + ϵ i , t (2)

Em que V é o valor de mercado de uma empresa (Q de Tobin) calculado como a razão entre o valor de mercado da empresa e os ativos totais; Growth Opportunities é a proxy de oportunidades de investimentos utilizada, obtida por meio da variação percentual nas receitas; CONACC é a proxy de conservadorismo utilizada, definida como o lucro líquido mais depreciação e menos os fluxos de caixa operacionais multiplicados por -1 e deflacionados pelos ativos totais acumulados nos três anos anteriores; as demais variáveis são as mesmas da Equação 1.

Conforme elencado na hipótese de pesquisa, tem-se interesse no valor de mercado do caixa em conjunto com o conservadorismo contábil. Assim, o teste de hipótese é de que o coeficiente β 16 (dCashi,t*CONACCi,t) seja estatisticamente positivo, indicando que os acionistas valorizam mais o caixa das empresas que adotam políticas contábeis conservadoras. Para controlar os efeitos macroeconômicos também foram incluídas variáveis dummies por ano. Para mitigar parte dos problemas potenciais de variáveis omitidas correlacionadas, utilizou-se o modelo de efeitos fixos por empresa.

4 Resultados

4.1 Estatística descritiva

A Tabela 1 reporta a estatística descritiva das variáveis utilizadas neste estudo para uma amostra de 293 empresas de capital aberto entre 2008 e 2019, perfazendo um total de 1.839 observações.

Tabela 1
Estatística descritiva

Observando a Tabela 1, verifica-se que as companhias não financeiras listadas na B3 mantêm um nível médio (mediana) do total de ativos alocados em caixa e equivalentes em relação ao ativo total de 7,86% (5,40%), com um desvio padrão de 7,92%. Verifica-se também que o valor médio (mediana) das reservas de caixa em relação ao ativo líquido, isto é, ativo total menos caixa e equivalentes de caixa, é de 9,47% (5,71%). A estatística descritiva também aponta que as empresas apresentaram um decrescimento anual nas vendas de aproximadamente -2,31%. O valor médio da medida de conservadorismo (CONACC) utilizada é de -85,48%, consistente com os accruals sendo na média negativos, uma vez que multiplicamos essa proxy por -1. A variação nos níveis de caixa em função do total de ativos tem uma média (mediana) de -1,21% (-0,24%).

4.2 Principais resultados

O Painel A da Tabela 2 apresenta os resultados do modelo econométrico (Equação 2) sem a medida de conservadorismo contábil. No Painel B, por sua vez, estão os resultados das análises da Equação 2 considerando os efeitos do conservadorismo contábil no valor de mercado do caixa. Inicialmente, optou-se por relatar os achados sem considerar os efeitos do conservadorismo contábil, no intuito de ter uma base de comparação acerca do valor de mercado do caixa no Brasil com outras pesquisas internacionais (Dittmar & Mahrt-Smith, 2007Dittmar, A., & Mahrt-Smith, J. (2007). Corporate governance and the value of cash holdings. Journal of Financial Economics, 83(3), 599-634.; Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.; Kalcheva & Lins, 2007Kalcheva, I., & Lins, K. V. (2007). International evidence on cash holdings and expected managerial agency problems. Review of Financial Studies, 20(4), 1087-1112. http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023.
http://dx.doi.org/10.1093/rfs/hhm023...
; Pinkowitz & Williamson, 2007Pinkowitz, L., & Williamson, R. (2007). What is the market value of a dollar of corporate cash? Journal of Applied Corporate Finance, 19(3), 74-81. http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.2007.00148.x.
http://dx.doi.org/10.1111/j.1745-6622.20...
). A variável dependente do modelo de regressão é o Q de Tobin, computado por meio da razão do valor de mercado de uma empresa por seu total de ativos. Para preservar espaço, as tabelas a seguir não incluem os coeficientes das dummies de ano.

Tabela 2
Modelo de regressão de efeitos fixos com erros-padrão robustos

Os resultados obtidos e não tabulados do teste de fator de inflacionamento da variância indicaram que multicolinearidade não é um problema neste estudo, haja vista que o maior valor encontrado para o teste foi de 2,06 (Gujarati & Porter, 2012Gujarati, D. N., & Porter, D. C. (2012). Econometria básica (5th ed.). McGraw-Hill.). Ademais, utilizou-se o teste de White para testar a heterocedasticidade do modelo. Rejeitou-se a hipótese nula ao verificar que o modelo apresentou problema de heterocedasticidade. Logo, fez-se uso da técnica de regressão com erros-padrão robustos dada sua melhor adequação em situações em que há problemas de heterocedasticidade. Resultados não tabulados também indicaram que as evidências empíricas se mantêm quando incluída a correção com erros clusterizados por indústria. Por fim, relata-se na Tabela 2 o teste de Durbin-Watson. Os resultados obtidos desse teste foram 0,827 e 0,802 para o Painel A e B, respectivamente. Esses valores podem indicar problemas de autocorrelação serial positiva. Entretanto, há de se ponderar que existem elementos estocásticos no modelo, que é estático com dados em painel, o que pode prejudicar as análises (Gujarati & Porter, 2012Gujarati, D. N., & Porter, D. C. (2012). Econometria básica (5th ed.). McGraw-Hill.).

O principal coeficiente de interesse do Painel A da Tabela 2 é o da variação do caixa (dCashi,t). Os resultados reportados indicam que esse coeficiente é positivo com um valor de 0,092. Apesar de não ser estatisticamente significativo, o coeficiente de variação do caixa indica que os investidores atribuem um baixo valor de mercado ao caixa das empresas brasileira. Esse valor de US$ 0,092 possivelmente reflete a preocupação do mercado de que os gestores desperdiçarão o caixa em projetos de investimentos que não agregam valor aos acionistas no Brasil. Segundo Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751., países emergentes geralmente oferecem baixa proteção aos direitos dos investidores e padrões de governança corporativa mais fracos. Dessa forma, o mercado espera que os gestores consigam expropriar mais facilmente os recursos corporativos de empresas situadas em mercados emergentes (Pinkowitz et al., 2006Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.). Sendo assim, consistente com as evidências de Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751., o presente estudo pode identificar fracas evidências de que em um contexto com baixa proteção aos direitos dos acionistas, como no Brasil, o valor de mercado do caixa é menor do que um dólar.

Em se tratando das variáveis de controle, pode-se verificar que os resultados são geralmente consistentes com Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751.. A variação percentual da receita, por exemplo, obteve um coeficiente estatisticamente positivo com a variável Q de Tobin. O coeficiente positivo para essa variável indica que as empresas com maiores oportunidades de investimento possuem um maior valor de mercado. Além do mais, os resultados sugerem uma associação positiva entre o coeficiente da variável de lucro utilizada (Ei,t) e o valor de uma empresa. Outra observação importante é que as empresas que distribuem um percentual maior de dividendos em relação a seu ativo total possuem um maior valor de mercado.

Na sequência, para testar a hipótese de pesquisa, estimamos o modelo de regressão dado pela Equação 2 com efeitos fixos por empresa, conforme Painel B da Tabela 2. A partir do Painel B da Tabela 2, percebe-se que o coeficiente do termo de interação β 16 (dCashi,t*CONACCi,t) é positivo (1,078) e estatisticamente significativo ao nível de 5%. A associação positiva entre políticas contábeis conservadoras e o valor de mercado de caixa indica que os investidores, todos os demais fatores constantes, atribuem um maior valor para o caixa das empresas que adotam políticas contábeis conservadoras. No geral, os investidores avaliam o valor de mercado do caixa espelhando como esperam que esse ativo seja utilizado. As evidências, portanto, sugerem que o conservadorismo contábil está associado a um maior valor de mercado do caixa.

Mais especificamente, os achados indicam que políticas contábeis conservadoras parecem levar a decisões de investimentos mais eficientes, de modo a preservar as reservas de caixa que seriam utilizadas em projetos de investimentos com VPL negativo e/ou em projetos com desempenho insatisfatório que não seriam descontinuados. O mercado, ciente de que o conservadorismo reduz parte dos conflitos de agência relacionados ao uso inapropriado das reservas de caixa, então valoriza mais esse ativo em empresas que adotam políticas contábeis conservadoras. Por outro lado, nas companhias que não adotam políticas contábeis conservadoras, os acionistas preveem que os gestores se beneficiarão mais facilmente dos benefícios privados vinculados às reservas de caixa e, consequentemente, descontam mais o valor de mercado desse ativo nessas empresas. Assim sendo, esse primeiro conjunto de resultados suporta a hipótese de pesquisa. Também, os achados fornecem evidências adicionais acerca do papel desempenhado pelo conservadorismo contábil como um mecanismo de governança corporativa na redução dos custos de agência (Ball & Shivakumar, 2005Ball, R., & Shivakumar, L. (2005). Earnings quality in UK private firms: Comparative loss recognition timeliness. Journal of Accounting and Economics, 39(1), 83-128.; Watts, 2003Watts, R. L. (2003). Conservatism in accounting part I: Explanations and implications. Accounting Horizons, 17(3), 207-221.).

Ainda sobre o Painel B da Tabela 2, pode-se verificar que o coeficiente da variável de conservadorismo utilizada isoladamente (0,274) também é positivo e significativo. Isso sugere que empresas que adotam políticas contábeis conservadoras possuem um maior valor de mercado. Essa evidência suporta o argumento de LaFond e Watts (2008)LaFond, R., & Watts, R. L. (2008). The information role of conservatism. The Accounting Review, 83(2), 447-478. de que o conservadorismo contábil aumenta o valor de uma empresa. Ademais, os resultados das variáveis de controle são geralmente consistentes com as evidências apresentadas no Painel A da Tabela 2. Por fim, o R2 ajustado obtido é de 32,1%, indicando que o modelo utilizado explica uma parte substancial na variação do valor de mercado das empresas no Brasil.

4.3 Testes de robustez

Nesta seção, são reportados os resultados de uma série de testes de robustez que fornecem evidências adicionais em apoio à hipótese de pesquisa. Como primeiro teste de robustez, analisou-se o modelo inicial após retirar da amostra as companhias que estão listadas na bolsa dos EUA por meio de American Depositary Receipt (ADR). As evidências de Frésard & Salva (2010)Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384. indicam que as empresas emissoras de ADR recebem um maior valor por seu excesso de caixa do que suas contrapartes domésticas. Os autores atribuem esse resultado ao fato de os investidores associarem a listagem nos EUA a um compromisso com melhores práticas de governança corporativa, que diminui o risco de as reservas de caixa serem expropriadas. Além da exposição às leis norte-americanas, as empresas listadas nos EUA por meio de ADR também estão sujeitas ao escrutínio extra dos grandes investidores, jornalistas e outros intermediários do mercado financeiro, como analistas financeiros e auditores. Esse aumento no monitoramento, por sua vez, limita a capacidade do gestor de expropriar recursos às custas do principal (Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.).

Dessa forma, uma listagem cruzada no mercado acionário norte-americano tem várias características que limitam os benefícios privados associados às reservas de caixa e que, por consequência, reduzem os descontos que os investidores colocam no valor de mercado desse ativo (Frésard & Salva, 2010Frésard, L., & Salva, C. (2010). The value of excess cash and corporate governance: Evidence from US cross-listings. Journal of Financial Economics, 98(2), 359-384.). Nesse sentido, objetivando isolar os efeitos da listagem cruzada no mercado norte-americano dos resultados do presente estudo, analisou-se novamente o modelo proposto na Equação 2 sem as empresas brasileiras (179 observações) que emitem ADR em qualquer nível. Os resultados do modelo de efeitos fixos estão reportados na Tabela 3.

Tabela 3
Modelo de regressão de efeitos fixos com erros-padrão robustos

Quando realizada a análise com as empresas brasileiras que não emitem ADR, conforme Tabela 3, verifica-se que o coeficiente da variável de interação (dCashi,t*CONACCi,t) é positivo (1,067) e estatisticamente significativo. Esse resultado novamente apoia a hipótese de pesquisa. Por conseguinte, as evidências são robustas em relação à remoção dos efeitos da listagem cruzada no mercado acionário norte-americano.

Resultados não reportados também apontam que os principais achados deste estudo são os mesmos quando utilizada a variável market-to-book, computada no final do ano fiscal como a soma do valor de mercado do patrimônio líquido e do valor contábil das dívidas de curto e longo prazo divido pelo valor contábil dos ativos, como proxy do conservadorismo contábil. No entanto, salienta-se que utilizar essa medida talvez não seja a melhor opção para mensurar o conservadorismo contábil, pois ela também é utilizada como proxy de oportunidades de crescimento (Francis et al., 2013Francis, B., Hasan, I., & Wu, Q. (2013). The benefits of conservative accounting to shareholders: Evidence from the financial crisis. Accounting Horizons, 27(2), 319-346.).

Evidências não tabuladas também indicam que as principais conclusões deste estudo se mantêm quando o período amostral é iniciado em 2010 em vez de em 2008. O Brasil passou a adotar de maneira parcial as Normas Internacionais de Contabilidade (International Financial Reporting Standards – IFRS) nos anos de 2008 e 2009 em decorrência da Lei 11.638/2007. Após o período de transição iniciado em 2008, teve início em 2010 a adoção obrigatória plena das IFRS no Brasil conforme as normas emitidas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC). Esse teste adicional é relevante, pois mitiga qualquer possível influência do período de transição às normas nos resultados do estudo. Em suma, as evidências reportadas neste subtópico fornecem suporte para a hipótese de pesquisa, indicando que os acionistas atribuem um maior valor de mercado para o caixa das empresas conservadoras.

4.4. Controle pela qualidade da auditoria

Apesar dos achados iniciais desta pesquisa indicarem que políticas contábeis conservadoras conseguem reduzir os custos de agência associados ao uso das reservas de caixa, os efeitos encontrados podem não ser necessariamente uma influência direta do conservadorismo contábil. Estudos como o de Ahmed e Duellman (2007)Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2007). Accounting conservatism and board of director characteristics: An empirical analysis. Journal of Accounting and Economics, 43(2-3), 411-437. e García Lara et al. (2009)García Lara, J. M., Osma, B. G., & Penalva, F. (2009). Accounting conservatism and corporate governance. Review of Accounting Studies, 14(1), 161-201., por exemplo, indicam que políticas contábeis conservadoras estão associadas a fortes estruturas de governança, de maneira que as disposições do conjunto total dos dispositivos de governança desempenham um papel relevante na implementação do conservadorismo contábil.

Nesse caminho, Ahmed e Duellman (2007)Ahmed, A. S., & Duellman, S. (2007). Accounting conservatism and board of director characteristics: An empirical analysis. Journal of Accounting and Economics, 43(2-3), 411-437. apontam que as políticas contábeis conservadoras fazem parte de um sistema de mecanismos de boas práticas de governança corporativa, como: conselhos de administração independentes, diretores com experiência financeira, auditores independentes, dentre outros. Esses mecanismos, por sua vez, buscarão assegurar que uma organização se comprometa em longo prazo com políticas contábeis que abrangem o princípio do conservadorismo.

Doravante, a associação positiva entre o conservadorismo contábil e o valor de mercado do caixa poderia ser atribuída ao efeito capturado por outros mecanismos de governança corporativa em conjunto com políticas contábeis conservadoras e, não necessariamente, apenas pelo efeito do conservadorismo contábil. Dessa forma, a natureza endógena da governança corporativa e do conservadorismo contábil talvez possa estar influenciando nossos resultados. À vista disso, afirmar que o valor de mercado de um dólar adicional em caixa aumenta significativamente nas empresas que adotam políticas contábeis mais conservadoras demanda maiores esforços para aumentar o poder de generalização dos resultados.

Para mitigar a preocupação que os resultados sejam impulsionados por outras variáveis de governança omitidas, também foram incluídas no modelo econométrico proposto uma proxy do constructo qualidade da auditoria. Controlou-se pela qualidade da auditoria, pois a auditoria externa de qualidade desempenha um papel de governança significativo no alinhamento de interesses entre agente e principal. Para tanto, utilizou-se neste estudo a variável binária Big 4, em que atribuímos o valor 1 caso uma empresa tenha sido auditada por uma das quatro grandes empresas de auditoria (Deloitte, Ernst & Young, KPMG e PWC) em cada respectivo ano, e 0 caso contrário. Optou-se por esse critério, pois os auditores Big 4 promovem o conservadorismo condicional (Chung et al., 2003Chung, R., Firth, M., & Kim, J. (2003). Auditor conservatism and reported earnings. Accounting and Business Research, 33(1), 19-32.) e incondicional (Cano-Rodríguez, 2010Cano-Rodríguez, M. (2010). Big auditors, private firms and accounting conservatism: Spanish evidence. European Accounting Review, 19(1), 131-159.) em maior grau do que os auditores não Big 4. A demanda dos auditores Big 4 por políticas contábeis conservadoras decorre de seu objetivo de reduzir o risco de litígio e evitar danos a sua imagem (Chung et al., 2003Chung, R., Firth, M., & Kim, J. (2003). Auditor conservatism and reported earnings. Accounting and Business Research, 33(1), 19-32.).

Assim, espera-se que as empresas de auditoria de maior qualidade possuam maiores incentivos para preferir políticas contábeis conservadoras nas firmas por eles auditadas (Cano-Rodríguez, 2010Cano-Rodríguez, M. (2010). Big auditors, private firms and accounting conservatism: Spanish evidence. European Accounting Review, 19(1), 131-159.; Chung et al., 2003Chung, R., Firth, M., & Kim, J. (2003). Auditor conservatism and reported earnings. Accounting and Business Research, 33(1), 19-32.). Logo, para evitar uma possível interferência da qualidade da auditoria nos resultados obtidos, dada a natureza endógena da qualidade da auditoria e do conservadorismo contábil, também foi adicionada a variável binária Big 4 separadamente e sua interação com a variação no caixa no modelo econométrico. O novo modelo pode ser observado na Equação 3.

V i , t = α i + β 1 E i , t + β 2 d E i , t + β 3 d E i , t + 1 + β 4 d N a i , t + β 5 d N a i , t + 1 + β 6 G r o w t h O p p o r t u n i t i e s i , t + β 7 I i , t + β 8 d I i , t + β 9 d I i , t + 1 + β 10 D i , t + β 11 d D i , t + β 12 d D i , t + 1 + β 13 d V i , t + 1 + β 14 d Cash i , t + β 15 CONACC i , t + β 16 d Cash i , t * CONACC i , t + β 17 BIG4 i , t + β 18 d Cash i , t * BIG4 i , t + β 19 d Cash i , t + 1 + ϵ i , t (3)

Espera-se, nesse modelo, que o coeficiente de interação β 16 (dCashi,t*CONACCi,t) continue sendo positivo mesmo após controle pela qualidade da auditoria. As definições das demais variáveis são as mesmas da Equação 2. Os resultados estão reportados na Tabela 4.

Tabela 4
Modelo de regressão de efeitos fixos com erros-padrão robustos

Observando a Tabela 4, verifica-se que o coeficiente de interesse β 16 é positivo e estatisticamente significativo ao nível de 5%. Consistente com as evidências iniciais, os resultados reportados na Tabela 4 indicam que os investidores atribuem um maior valor de mercado para o caixa das empresas brasileiras que adotam políticas contábeis conservadoras. Portanto, o efeito do conservadorismo contábil que foi documentado se mantém mesmo após controle pela qualidade da auditoria. Continuando com os resultados da Tabela 4, observamos que a variável binária BIG 4 i,t e sua interação com a variação do caixa são positivas, porém sem significância estatística. Os demais resultados apresentados são similares aos documentados anteriormente.

5 Considerações finais

O mercado, ciente dos problemas relacionados ao mau uso do caixa, penaliza o valor de mercado desse ativo nas empresas em que os mecanismos de governança corporativa não conseguem alinhar os interesses do agente com os do principal. O objetivo desta pesquisa foi analisar a relação entre políticas contábeis conservadoras e o valor que os acionistas atribuem para as reservas de caixa das empresas de capital aberto listadas na Bolsa de Valores do Brasil. A amostra final utilizada engloba as companhias não financeiras listadas na B3 com dados disponíveis entre 2008 e 2019. A hipótese de pesquisa é a de que os investidores atribuem um maior valor de mercado para o caixa das empresas que adotam políticas contábeis conservadoras em relação àquelas menos conservadoras. Para analisar o valor de mercado do caixa utilizamos a metodologia de Pinkowitz et al. (2006)Pinkowitz, L., Stulz, R., & Williamson, R. (2006). Does the contribution of corporate cash holdings and dividends to firm value depend on governance? A cross-country analysis. The Journal of Finance, 61(6), 2725-2751. e uma medida baseada nos accruals antes da depreciação (CONACC) como proxy do conservadorismo contábil.

Consistente com a hipótese de pesquisa, encontramos fortes evidências de uma associação positiva entre políticas contábeis conservadoras e o valor de mercado de caixa. Esse resultado sugere que o mercado atribui um maior valor de mercado para o caixa em empresas que adotam políticas contábeis conservadoras. Os achados do estudo se mantêm após testes de robustez e controle pela qualidade da auditoria. Dessa forma, as evidências empíricas indicam que políticas contábeis conservadoras conseguem mitigar parte dos problemas de agência associados às reservas de caixa. Isso ocorre mais precisamente porque políticas contábeis conservadoras restringem, ex ante, os incentivos dos gestores de investir em projetos de destruição de valor, pois não permitem que adiem o reconhecimento das perdas para os gestores subsequentes. Da mesma forma, fornecem mecanismos ex post no abandono precoce de projetos de baixo desempenho antes do acúmulo de grandes perdas. Em conjunto, essas evidências são consistentes com o conservadorismo contábil desempenhando um papel importante como um mecanismo de governança corporativa na redução dos custos de agência, e os acionistas se beneficiam com isso.

O conservadorismo contábil, portanto, oferece um meio alternativo e geralmente menos custoso de impedir os gestores de se envolverem em projetos de destruição de valor. Esses achados são relevantes para o contexto brasileiro, pois sugerem que o conservadorismo é um mecanismo de governança que pode ser utilizado para reduzir a valor destruição associada ao uso das reservas de caixa. Ademais, apresentar outro benefício associado ao conservadorismo contábil também tem implicações para os regulares e responsáveis pela definição das normas contábeis. De fato, auxiliar na discussão acerca do conservadorismo nos relatórios financeiros é relevante dado o debate em curso sobre os méritos da neutralidade em oposição ao conservadorismo como uma característica desejável dos números contábeis.

Apesar de todos os cuidados nos aspectos metodológicos, esta pesquisa também está sujeita a limitações. Primeiro, menciona-se como alerta que as evidências obtidas podem não ser necessariamente um benefício direto do conservadorismo. Em vez disso, os achados talvez reflitam o efeito combinado do conservadorismo com outros mecanismos de governança corporativa. Tal fato ocorre, em função da natureza endógena da governança corporativa, por governança e conservadorismo poderem ser determinados simultaneamente (García Lara et al., 2009García Lara, J. M., Osma, B. G., & Penalva, F. (2009). Accounting conservatism and corporate governance. Review of Accounting Studies, 14(1), 161-201.); o conservadorismo contábil também complementa outros mecanismos de governança (Francis & Martin, 2010Francis, J. R., & Martin, X. (2010). Acquisition profitability and timely loss recognition. Journal of Accounting and Economics, 49(1-2), 161-178.). Portanto, mesmo após controle pela qualidade da auditoria, não se pode descartar que as evidências obtidas sejam em decorrência do efeito combinado do conservadorismo contábil em conjunto com outros mecanismos de governança para os quais não temos outras medidas prontamente disponíveis.

Na sequência, os achados deste artigo também estão limitados ao contexto do mercado acionário brasileiro. Por fim, outra limitação está associada à capacidade da proxy utilizada na captura do constructo conservadorismo contábil. O foco na utilização de uma medida baseada nos accruals antes da depreciação (CONACC) se deu, pois ela não é baseada no mercado e é específica para o ano da empresa. Outras proxies também são utilizadas pela literatura, mas a maioria delas é de medidas transversais, ao passo que neste estudo são necessárias medidas específicas da empresa.

Considerando as limitações apresentadas, entende-se que novas pesquisas podem ser realizadas. Por exemplo, nos últimos anos as práticas ambientais, sociais e de governança corporativa de uma organização vêm ganhando destaque nas mídias nacionais e internacionais. Sendo assim, novos estudos podem analisar a relação entre Environmental, Social and Governance (ESG) e o valor de mercado do caixa. Ademais, governança corporativa é um constructo muito amplo. Dessa forma, novas pesquisas também podem analisar a relação entre outros mecanismos de governança e o valor que os acionistas atribuem para as reservas de caixa. Para tal, entende-se que seja importante a tentativa de isolar os efeitos de cada mecanismo de governança no valor do caixa, dada a natureza endógena da governança corporativa.

Material Suplementar

Este artigo acompanha material suplementar.

Supplementary Data - Accounting Conservatism and the Market Value of Cash Holdings in Brazil

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  • Processo de avaliação: Double Blind Review
  • Esse artigo possui dados abertos
  • Como citar: Manoel, A. A. S., & Moraes, M. B. C. (2022). Conservadorismo contábil e o valor de mercado do caixa no Brasil. Revista Brasileira de Gestão de Negócios, 24(2), p. 383-399. https://doi.org/10.7819/rbgn.v24i2.4182
  • Agências de fomento: Nada a declarar.
  • Ciência aberta: Divulgação de dados: Os dados e o questionário utilizados nesta pesquisa estão disponíveis publicamente, em consonância com as políticas de ciência aberta da RBGN em: Manoel, Aviner Augusto Silva; Moraes, Marcelo Botelho da Costa, 2022, “Supplementary Data - Accounting Conservatism and the Market Value of Cash Holdings in Brazil”, https://doi.org/10.7910/DVN/PBCKLW, Harvard Dataverse, V1
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    Análise de plágio: A RBGN realiza análise de plágio em todos os seus artigos no momento da submissão e após a aprovação do manuscrito por meio da ferramenta iThenticate.

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Editor responsável: Prof. Dr. Ivam Ricardo Peleias
Revisor: Juliana Molina Queiroz; Veronica Santana

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2021
  • Aceito
    13 Abr 2022
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