INTRODUÇÃO
As propriedades antibacterianas e cariostáticas dos cimentos de ionômero de vidro estão relacionadas com a quantidade e o tempo de flúor liberado1,2. Estudos demonstram que uma pequena quantidade de flúor liberada por longos períodos de tempo é suficiente para que aumente a remineralização e diminua a desmineralização, prevenindo, assim, a doença cárie3,4. Diante disso, materiais odontológicos com capacidade de recarga são uma alternativa para obter uma liberação baixa e contínua de flúor para o meio bucal.
Os cimentos de ionômero de vidro têm sofrido contínuo melhoramento de suas propriedades e tornaram-se populares como material restaurador, devido à sua adesividade e à capacidade de liberação de flúor2, sendo muito utilizados em pacientes com alto risco e atividade de cárie, como, por exemplos, em colagem de bráquetes ortodônticos e adequações bucais5. Além disso, atribui-se, aos cimentos de ionômero de vidro, serem biocompatíveis e possuírem estética aceitável6.
Uma das categorias destes materiais são os cimentos de ionômero de vidro modificados por resina, que consistem, essencialmente, de ionômero de vidro convencional combinado em torno de 20% de componentes orgânicos de monômeros fotopolimerizáveis, sendo ativados com luz visível7,8. Foram desenvolvidos para melhorar as propriedades mecânicas e reduzir a sensibilidade da umidade inicial de cimentos de ionômero de vidro convencionais9,10,11. Estes materiais são apresentados comercialmente de diversas formas, como por exemplos, pó e líquido, encapsulados ou em seringas prontas para o uso.
Devido ao fato de o flúor ser um dos principais elementos no controle da doença cárie, há grande interesse em pesquisas sobre seu mecanismo de ação5. Assim, o presente estudo teve como objetivo comparar a liberação de flúor de materiais com diferentes comportamentos físico-químicos, cimentos de ionômero de vidro modificado por resina e convencional, durante a simulação de desafio cariogênico, em soluções de desmineralização/remineralização, antes e após a recarga com fluoreto de sódio.
MATERIAL E MÉTODO
Os cimentos de ionômero de vidro avaliados foram: convencionais Ketac Molar Easy Mix (3M ESPE, St Paul, MN, EUA) e Maxxion (FGM, Joinville, SC, Brasil); o cimento de ionômero de vidro modificado por resina Vitrebond (3M ESPE, St Paul, MN, EUA), e como controle negativo, a resina composta Filtek Z350XT (3M ESPE, St Paul, MN, EUA). Foram confeccionados 12 corpos de prova para cada marca comercial, sendo distribuídos uniformemente em sistema de ciclagem de pH (soluções de desmineralização e remineralização, alternadamente). Os materiais foram proporcionados seguindo as recomendações dos fabricantes. Os cimentos de ionômero de vidro foram manipulados em placa de vidro grossa resfriada, com espátula de plástico. O ambiente de trabalho foi mantido resfriado em uma temperatura média de 23°C ± 1°C e desumidificação do ambiente.
Os corpos de prova foram confeccionados com 11,0 mm de diâmetro e 1,5 mm de altura, com uma área de superfície de 241,78 mm2, a partir de moldes em tubos de nylon confeccionados exclusivamente para este fim. Foi aplicada uma fina camada de vaselina na porção interna do molde com um pincel. O molde foi colocado sobre uma placa de vidro, sobre uma tira de poliéster (TDV Dental Ltda., Pomerode, SC, Brasil).
O material foi inserido em único incremento, na matriz, lentamente, com auxílio da seringa Centrix (DFL, Indústria e Comércio SA, Rio de Janeiro, RJ, Brasil), para evitar a formação de bolhas de ar. Em seguida, foi colocada outra tira de poliéster sobre o molde preenchido e, sobre esta, colocada outra placa de vidro, sendo feita uma pressão digital durante 1 minuto.
O ionômero de vidro modificado por resina foi também manipulado de acordo com as instruções do fabricante e, posteriormente, inserido na matriz por meio do uso da seringa descartável de 1 mL, fotopolimerizado com o aparelho Raddi Plus (SDI, Bayswater, Victoria, Austrália), com intensidade de luz aferida em 400 mW/cm2, conforme leitura em radiômetro, durante 40 segundos na superfície do conjunto lâmina de vidro/matriz nos dois lados, aguardando-se 20 minutos até a remoção da matriz.
Após a presa inicial (4 minutos) dos cimentos de ionômero de vidro convencionais e a fotoativação do cimento de ionômero modificado por resina, aplicou-se, ao redor das amostras, esmalte incolor para unhas (Colorama, São Paulo, SP, Brasil), para evitar a sinérese e favorecer a qualidade da amostra obtida com relação à sua estabilidade e à manutenção das propriedades. A resina composta foi inserida na matriz com o auxílio de espátula plástica e fotopolimerizada da maneira anteriormente descrita.
As amostras foram colocadas em tubos de ensaio plásticos com tampa, para serem bem vedados, e imersos em 5,0 mL de solução do sistema de ciclagem de pH, permanecendo 6 horas na solução de desmineralização e 18 horas na solução de remineralização; assim, as trocas foram realizadas diariamente, durante todo o período em estudo.
O sistema de ciclagem de pH utilizado foi aquele desenvolvido por Featherstone et al.4, e empregado por Bombonatti et al.12, sendo composto por uma solução de desmineralização (Ca 2,0 mmol/L, PO4 2,0 mmol/L e tampão acetato 75 mmol/L, pH 4,3, contendo NaN3 a 0,02%) e uma solução de remineralização (Ca 1,5 mmol/L, PO4 0,9 mmol/L, KCl 150 mmol/L e tampão tris 20 mmol/L, pH 7,0, contendo NaN3 a 0,02%).
O conjunto foi mantido entre as leituras em estufa, regulada à temperatura de 37°C ± 1°C. Foram realizadas leituras após 1, 2, 7 e 14 dias da confecção dos corpos de prova, com eletrodo específico para determinação da quantidade de flúor liberado. Após o 14º dia, foi realizada a recarga de flúor com aplicação tópica de gel de fluoreto de sódio neutro a 2% durante 4 minutos e, em seguida, os corpos de prova foram lavados e secos, sendo novamente imersos em 5,0 mL da solução do sistema de ciclagem de pH, para realização da leitura de liberação após a recarga.
A análise da quantidade de flúor liberada foi realizada por meio da água por eletrodo específico para esse íon (Orion, modelo 96-09), acoplado ao aparelho analisador de pH/fluoretos, previamente calibrado a cada medição com duas soluções padrão de fluoreto de sódio a 1 e 10 ppm, preparadas com TISAB II (Total Ionic Strength Adjustment Buffer, Analion) contendo tampão acetato 1,0 M, pH 5,0 contendo NaCl 1,0 M e CDTA 0,4%12.
As soluções foram armazenadas à temperatura ambiente. Para a análise do F-liberado, foi adicionado 0,5 mL da amostra a igual volume de TISAB II. Tanto os tubos da amostra como os frascos preparados com TISAB II foram agitados previamente às leituras. Os valores encontrados nas soluções de desmineralização e remineralização foram somados para a obtenção da liberação de flúor em 24 horas e os valores obtidos foram multiplicados por dois, devido à diluição no TISAB. O preparo das amostras foi realizado por um operador calibrado, que numerou as amostras de acordo com o grupo experimental em estudo, e por outro operador, que desconhecia a qual grupo pertencia cada amostra em que executou as leituras.
Os resultados de cada período de avaliação para cada grupo experimental em estudo foram submetidos estatisticamente à análise de variância de dois fatores, com nível de significância de 5% e, posteriormente, ao teste de Tukey (α = 0,05), para comparações múltiplas. O software estatístico SPSS, versão 20.0 (SPSS Statistics, IBM Corporation, Somers, NY, USA) foi utilizado durante as análises estatísticas do presente estudo.
RESULTADO
Na Tabela 1, são apresentados os resultados de liberação de flúor para os diferentes materiais, de acordo com o período de avaliação. Os materiais ionoméricos apresentaram maior liberação nas primeiras 24-48 horas, diminuindo gradativamente até o 14º dia. O Maxxion liberou mais flúor (p=0,0001), concentração que se manteve mais alta em comparação aos demais materiais avaliados durante os 14 dias, seguido do Vitrebond, Ketac Molar EasyMix e Z350 XT. No 14º dia, não houve diferença entre o Maxxion e o Vitrebond (p=1,000). Após recarga, os cimentos de ionômero de vidro apresentaram aumento nas concentrações de flúor, comprovando a capacidade de recarga pelos mesmos.
Tabela 1 Média (μgF/cm2) e desvio padrão da liberação de flúor em solução de desmineralização/remineralização dos diferentes grupos experimentais nos períodos em estudo
Período de avaliação | Vitrebond | Maxxion R | Ketac Molar | Z350 XT |
---|---|---|---|---|
1º Dia |
37,49 (5,7) Ab |
45,35 (4,7) Aa |
26,35 (8.3) Ac |
1,01 (0,6) Ad |
2º Dia |
24,44 (5,1) Ab |
39,39 (9,7) Aa |
7,09 (4,5) Bc |
0,76 (0,4) Ad |
7º Dia |
14,70 (3,8) Ab |
36,25 (7,9) Aa |
7,79 (4,5) Bb |
0,57 (0,3) Ac |
14º Dia |
7,20 (5,1) Ba |
11,05 (2,2) Ba |
0,98 (0,6) Cb |
0,05 (0,1) Ac |
15º dia (recarga) | 21,40 (7,1) Ab | 27,27 (10,4) Aa | 9,99 (6,9) Bc | 0,75 (0,6) Ad |
DISCUSSÃO
O efeito anticárie do flúor presente nos cimentos de ionômero de vidro depende da quantidade liberada nas restaurações; entretanto, depende ainda mais da longevidade desta liberação. Segundo Dionysopoulos et al.3, a maneira de fornecer uma quantidade de fluoreto baixo, mas eficaz, durante um período prolongado, seria ter um sistema de fluoreto de liberação lenta a partir de materiais dentários e que esse sistema pudesse ser recarregável. De acordo com Featherstone et al.4, materiais de ionômero de vidro foram introduzidos como materiais restauradores e podem oferecer algumas vantagens para resistir à formação de cáries secundárias ao redor de restaurações, devido ao fluoreto liberado.
Os sistemas ionoméricos convencionais, no entanto, sofrem de certas desvantagens, como o tempo curto de trabalho, o fato de serem suscetíveis à contaminação de umidade inicial e a fragilidade.
Recentemente, a fim de ultrapassar estas limitações e ainda preservar os seus benefícios, compósitos de resina foram introduzidos, gerando dois tipos de ionômero de vidro. O primeiro é o ionômero de vidro modificado por resina, um tipo de ionômero de vidro que oferece tempo de trabalho mais longo e baixa sensibilidade às variações de umidade do ambiente, podendo ser polido imediatamente após a reação de presa3. O segundo é o compósito poliácido-modificado, que contém alguns componentes de ionômero de vidro, mas não tem a reação ácido/base típica nos ionômeros de vidro durante o processo inicial. Assim, Neelakantan et al.2 correlacionaram a quantidade e o padrão de liberação de fluoreto de diferentes cimentos de ionômero de vidro. A liberação de fluoreto foi medida a cada 24 horas durante os primeiros sete dias, e após 14, 21 e 28 dias. O fluoreto teve uma maior liberação para todos os materiais na primeira avaliação, exceto para o controle (resina composta contendo flúor) e para o compômero. O cimento de ionômero de vidro convencional apresentou maior liberação de fluoreto nos primeiros três dias. O nanoionômero avaliado mostrou uma liberação máxima de fluoreto em todos os períodos. Um baixo nível constante de liberação de fluoreto foi visto a partir do compômero e da resina composta contendo fluoreto, durante todos os períodos do estudo, sendo também observado nos resultados do presente estudo para a resina composta.
As resinas compostas apresentam menor liberação de fluoreto assim como menor capacidade de recarga, diferentemente dos cimentos de ionômero de vidro convencionais, devido à quantidade de fluoreto presente na composição destes e na reação de presa. O flúor é um dos elementos que ficam fracamente ligados à estrutura superficial do cimento de ionômero de vidro durante a geleificação; portanto, é facilmente liberado. Um grande percentual de fluoreto é liberado imediatamente após a inserção deste material, devido ao fato de as partículas de pó não serem totalmente decompostas pelo líquido ou porque nem todo íon flúor que se apresenta fracamente ligado a esta matriz seja liberado13.
Outro fator a ser considerado, segundo Bombonatti et al.12, é que apesar de materiais odontológicos que apresentam liberação de fluoreto estejam sendo avaliados, normalmente as condições para realização dos estudos não simulam o meio ambiente bucal, a dinâmica de desenvolvimento da cárie e os conceitos atuais sobre o mecanismo de ação do flúor. Carvalho, Cury13 afirmam que é importante que a análise quantitativa de fluoreto liberado seja realizada utilizando-se corpos de prova imersos em soluções que reproduzam o ambiente bucal, as interações da superfície, a força iônica, o pH do meio e o grau de saturação, ou seja, em que haja períodos de desmineralização e remineralização pela ciclagem de pH, como realizado no presente estudo. O método, idealizado por Featherstone et al.4, consegue representar uma situação intrabucal de alta cariogenicidade, momento em que mais se necessita da ação do fluoreto. Assim, no estudo de Bombonatti et al.12, os resultados obtidos parecem estar de acordo com esta afirmativa, uma vez que demonstraram maior liberação de fluoreto nas soluções de desmineralização/remineralização do que em água deionizada.
No estudo de Silva et al.14, foi avaliada a liberação de fluoreto de cimentos de ionômero de vidro convencional e modificados por resina, antes e após a recarga com fluoreto de sódio neutro a 2%. Concluíram que todos os materiais estudados desenvolveram padrão semelhante de liberação de fluoreto, sendo esta mais acentuada nos primeiros dias e com decréscimo lento, mantendo nível constante até o 14º dia. Verificaram também que os cimentos de ionômero de vidro convencionais liberaram maiores concentrações de fluoreto do que os cimentos modificados por resina, sendo que após a aplicação tópica de fluoreto de sódio neutro a 2%, todos os materiais aumentaram significativamente a concentração de fluoreto liberado nas 24 horas subsequentes, comprovando a capacidade de recarga por estes materiais, esta também verificada nos resultados do presente estudo. A maior liberação de fluoretos de cimentos ionoméricos convencionais com relação aos modificados por resina está associada ao fato de esses materiais serem mais solúveis, apresentarem reação de presa mais lenta e serem mais porosos, devido à presença de partículas maiores, mais irregulares, maior relação líquido/pó e, consequentemente, maior fluidez14.
A maioria dos estudos que analisam essa liberação de fluoreto em diferentes ionômeros de vidro é realizada com corpos de prova imersos em soluções, para que, posteriormente, sejam realizadas leituras da liberação desse íon por um eletrodo específico. No entanto, a unidade de medida utilizada para apresentar os resultados, os métodos de estocagem das amostras e os diferentes períodos de realização das avaliações dificultam análises comparativas entre estudos13,14. Os resultados referentes às leituras fornecidas pelo aparelho, expressos em ppm, foram convertidos em µgF.mm–2, de acordo com outros trabalhos sobre liberação de fluoreto15,16,17. Essa unidade expressa a quantidade de fluoreto liberada com relação à superfície do espécime e, portanto, permite a comparação entre trabalhos, mesmo que estes tenham usado espécimes de diferentes tamanhos.
A colonização da superfície de materiais restauradores e das margens das restaurações por bactérias cariogênicas favorece a criação de condições ambientais adequadas para o desenvolvimento da doença cárie e de danos futuros ao próprio complexo dentinopulpar18. Nesse sentido, os cimentos de ionômero de vidro vêm ganhando destaque como material restaurador18. Os produtos do biofilme dental bacteriano reduzem o pH na superfície do dente18, resultando em desmineralização, a qual é simulada pelo processo de ciclagem de pH no presente estudo. São necessários mecanismos capazes de inibir esse processo, a fim de aumentar a resistência à desmineralização e facilitar a remineralização, sendo o flúor um agente auxiliar nesse processo13. Segundo Silva et al.14, materiais que apresentam uma maior liberação inicial tendem a apresentar uma maior capacidade de recarga, fato comprovado no presente estudo.
De acordo com as limitações deste estudo in vitro, apesar da tentativa de simular o potencial de liberação de fluoreto em amostras submetidas à ciclagem de pH, os resultados não devem ser comparados às condições clínicas, em decorrência da complexidade do meio bucal. Entretanto, pode-se afirmar que as diferenças de fluoreto liberado relacionam-se com o tipo de material testado, de forma que sua composição e maior ou menor porosidade influenciam diretamente no grau de difusão de fluoreto, como observado nos resultados apresentados. Dessa forma, na escolha do material restaurador, as propriedades do material não devem ser analisadas isoladamente, devendo-se avaliar também a capacidade de liberação ou capacidade de recarga de fluoreto, de acordo com a necessidade clínica de cada paciente, principalmente em pacientes com alto índice de cárie recorrente.
CONCLUSÃO
Os cimentos de ionômero de vidro apresentaram capacidade de liberação de fluoreto, sendo esta maior principalmente nas primeiras 24 horas. Após aplicação do flúor tópico neutro 2%, os cimentos de ionômero de vidro são capazes de liberar uma maior quantidade deste íon, comprovando a sua capacidade de recarga, quando comparados aos demais materiais testados.