INTRODUÇÃO
A atopia caracteriza-se como uma disfunção do sistema imunológico, que pode manifestar-se individualmente ou em associação com imunodeficiências ou demais estados das doenças autoimunes. As doenças alérgicas (rinite alérgica, asma, eczema atópico, urticária, entre outras) surgem pela interação entre uma tendência atópica e o ambiente (que expõe o indivíduo a múltiplos alérgenos). A prevalência de alergias no mundo aumentou nas últimas décadas, e entre os fatores que contribuíram para esse aumento estão a exposição ambiental a alérgenos, as mudanças no estilo de vida, os fatores infecciosos e socioeconômicos e a grande concentração de poluentes externos1.
A alergia tem etiologia multifatorial, e a interação entre fatores genéticos e não genéticos determina a expressão da doença. Muitos estudos têm avaliado o risco de uma criança tornar-se alérgica, com base na história familiar de alergia2. As principais comorbidades associadas à rinite alérgica são: asma, conjuntivite alérgica, rinossinusite aguda e crônica, otite média com efusão, alterações bucais do desenvolvimento craniofacial em crianças que apresentam respiração oral, além de apneia e hipopneia, presentes tanto em crianças como em adultos3,4.
A maloclusão dentária pode produzir alterações nos dentes ou face, sendo considerada um problema relacionado ao crescimento e desenvolvimento dos ossos maxilares ou mandibulares durante a infância e adolescência. Esse tipo de anomalia pode ter efeitos funcionais, estéticos ou psicossociais envolvendo a mastigação, a fonação e a oclusão, com impacto negativo na vida diária dos indivíduos afetados. Sua causa se deve a interação entre fatores ambientais, congênitos, morfológicos e biomecânicos5,6. Vem sendo observada uma alta prevalência de crianças atópicas com resposta positiva ao teste alérgico, além de apresentarem padrão de respiração bucal. Alterações respiratórias possuem uma relação com deformações orofaciais, como as maloclusões, especialmente a mordida cruzada. Hábitos de respiração oronasal e de chupar chupeta evidenciaram efeitos negativos na qualidade de vida de crianças e de seus familiares7. Dessa maneira, o objetivo deste estudo foi avaliar a frequência de pacientes portadores de alergias atendidos em Clínica de Odontopediatria de instituições de ensino e a provável associação entre atopias, maloclusão, traumatismos dentoalveolares, prematuridade e hábitos bucais viciosos.
MATERIAL E MÉTODO
Este estudo obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Veiga de Almeida, sob parecer número 2.369.137, e do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade São Leopoldo Mandic, sob parecer número 3.404.295. Foram avaliados prontuários de todos os pacientes que procuraram atendimento odontológico nas Clínicas de Odontopediatria da Universidade Veiga de Almeida e da Faculdade São Leopoldo Mandic, unidade Rio de Janeiro, ambas instituições de ensino particulares, durante o período de julho de 2017 a agosto de 2018.
Foram coletados dados referentes ao sexo, idade, histórico médico relacionado à gestação do paciente, parto, prematuridade, histórico médico atual, presença de reação alérgica, histórico de alergias, dentição atual, presença de maloclusão (mordida aberta, mordida cruzada e apinhamento dentário), traumatismo dentário e hábitos viciosos. Todos os atendimentos foram realizados por alunos do curso de graduação em Odontologia da Universidade Veiga de Almeida e do curso de especialização em Odontopediatria da São Leopoldo Mandic sob supervisão docente.
Para análise e tratamento estatístico dos dados, foi usado o programa SPSS-21.0 por meio do método estatístico qui-quadrado, tendo como nível de significância o valor de p<0,05.
RESULTADO
A amostra final foi composta de 136 crianças que receberam atendimento odontológico no período estudado. A faixa etária dos pacientes variou de 2 a 15 anos de idade, com uma média de 7,28 anos (±3,43). A maioria das crianças era do sexo masculino (74; 54,4%) e saudáveis (109; 80,1%).
Na Tabela 1 é observada a frequência absoluta e relativa relacionadas ao histórico médico das crianças, assim como dados relativos à gestação e ao parto. Na Tabela 2 é verificada a frequência absoluta das variáveis individuais dos participantes relacionadas à dentição. A Tabela 3 aponta a frequência absoluta e relativa referente às variáveis maloclusão, hábitos bucais viciosos, histórico de traumatismo dentário e prematuridade, em crianças e adolescentes que apresentaram ou não atopia de acordo com o relato de seus responsáveis. Foi verificada associação entre presença de atopia e histórico de traumatismos dentários, hábitos bucais viciosos e maloclusão (p<0,05).
Tabela 1 Características gerais da amostra estudada (n=136)
Variável | Frequência absoluta (n)* | Frequência relativa (%) | |
---|---|---|---|
Sexo | Masculino | 74 | 54,4 |
Feminino | 62 | 45,6 | |
Está em tratamento médico | Sim | 29 | 19,9 |
Não | 109 | 80,1 | |
Qual é o motivo do tratamento? | Alergia, rinite, bronquite e dermatite | 17 | 12,5 |
Alteração no comportamento | 7 | 5,1 | |
Alteração no trato respiratório | 3 | 2,2 | |
Outros | 2 | 1,5 | |
Já apresentou alguma reação alérgica aguda? | Sim, não relatou o motivo | 6 | 4,4 |
Sim, por antibióticos | 2 | 1,5 | |
Sim, por outros medicamentos | 3 | 2,2 | |
Sim, por corantes | 2 | 1,5 | |
Não | 121 | 89,0 | |
Seu filho tem alergia? | Sim | 49 | 36,0 |
Não | 83 | 61,0 | |
Não respondeu | 4 | 3,0 | |
Gestação | Normal | 41 | 30,1 |
Com intercorrências | 10 | 7,4 | |
Não relatou | 85 | 62,5 | |
Parto | Normal | 20 | 14,7 |
Cesárea | 27 | 19,9 | |
Dados ausentes | 89 | 65,4 | |
Prematuro | Sim | 9 | 6,6 |
Não | 113 | 83,1 | |
Dados ausentes | 14 | 10,3 | |
Uso da incubadora | Sim | 6 | 4,4 |
Não | 33 | 24,3 | |
Dados ausentes | 97 | 71,3 | |
Uso de mamadeira | Sim | 15 | 11,1 |
Não | 75 | 55,1 | |
Dados ausentes | 46 | 33,8 | |
Uso de chupeta | Sim | 35 | 25,8 |
Não | 52 | 38,2 | |
Dados ausentes | 49 | 36,0 |
*Dados analisados por meio do teste do qui-quadrado.
Tabela 2 Dados relativos à dentição, maloclusão, hábitos bucais viciosos e traumatismos dentários na amostra estudada (n=136)
Variável | Frequência absoluta (n)* | Frequência relativa (%) | |
---|---|---|---|
Dentição | Mista | 47 | 34,6 |
Decídua | 71 | 52,2 | |
Permanente | 18 | 13,2 | |
Maloclusão | Mordida aberta anterior | 16 | 11,8 |
Mordida aberta posterior | 8 | 5,9 | |
Outras maloclusões | 1 | 0,7 | |
Não apresenta | 60 | 44,1 | |
Dados ausentes | 51 | 37,5 | |
Hábitos bucais viciosos | Sim | 87 | 64,0 |
Não | 47 | 34,6 | |
Dados ausentes | 32 | 1,5 | |
Histórico de traumatismos dentários | Sim | 41 | 30,1 |
Não | 88 | 64,7 | |
Sim, por corantes | 7 | 5,1 |
*Dados analisados por meio do teste do qui-quadrado.
Tabela 3 Comparação das variáveis maloclusão, hábitos bucais viciosos, histórico de traumatismo dentário e prematuridade entre crianças e adolescentes atópicos e não atópicos
Variável | Pacientes atópicos (n=49) | Pacientes não atópicos (n=83) | p-valor* | |
---|---|---|---|---|
Maloclusão n (%) | Sim | 6 (12,24) | 19 (22,9) | 0,044 |
Não | 26 (53,1) | 34 (41,0) | ||
Dados ausentes | 17 (34,7) | 30 (36,1) | ||
Hábitos bucais viciosos | Sim | 32 (65,3) | 53 (63,9) | 0,003 |
Não | 17 (34,7) | 29 (34,9) | ||
Dados ausentes | 0 | 1 (1,2) | ||
Histórico de traumatismos dentários | Sim | 15 (30,6) | 26 (31,3) | 0,002 |
Não | 32 (65,3) | 54 (65,1) | ||
Prematuridade | Sim | 5 (10,2) | 4 (4,8) | 0.494 |
Não | 40 (81,6) | 72 (86,7) | ||
Dados ausentes | 4 (8,2) | 7 (8,4) | ||
Uso de mamadeira | Sim | 5 (10,2) | 10 (12,0) | 0.787 |
Não | 29 (59,2) | 44 (53,0) | ||
Dados ausentes | 15 (30,6) | 29 (35,0) |
*Dados analisados por meio do teste do qui-quadrado.
DISCUSSÃO
A atopia é a tendência de apresentar índices elevados de imunoglobulina E (IgE) e anticorpos para alérgenos ambientais comumente encontrados8. As manifestações clínicas mais comuns de atopia são asma, rinite alérgica e dermatite atópica8. A obstrução da via aérea nasal por causa da alergia atópica pode estar associada à respiração bucal e facial, favorecendo o desenvolvimento de anomalias, incluindo as maloclusões9,10. Neste estudo, 36% das crianças e adolescentes apresentaram alergias, segundo relato de seus responsáveis. Contudo, não foi observada nenhuma relação entre presença de atopia e manifestações clínicas e características gerais avaliadas, com exceção do histórico de traumatismo dentário, hábitos bucais viciosos e maloclusão (p<0,05). O grupo não alérgico (31,3%) demonstrou uma frequência ligeiramente maior de histórico de traumatismos dentários quando comparado ao grupo alérgico (30,6%), sendo um dado significativo (p=0,002). Isso pode estar relacionado a fatores de estresse psicológico e isolamento social que pacientes atópicos costumam apresentar, especialmente na exacerbação de sua condição, o que diminui seu convívio social e, consequentemente, a redução de atividades na infância que estão constantemente envolvidas na ocorrência de traumas dentários11-14.
A maioria das revisões sobre fatores de risco para asma recomenda o aleitamento estendido para reduzir a probabilidade de desenvolvimento de atopia e asma na infância15-17. Embora tal visão seja amplamente aceita e promovida, alguns estudos apresentam resultados conflitantes11,12. Alguns investigadores sugerem um risco maior de alergia e asma associado com aleitamento, enquanto outros apontam que o aleitamento apresenta função protetora. Uma das razões que explicam tal teoria seria a hipótese de que o leite produzido por mães alérgicas pode induzir a sensibilidade a alérgenos15. Essa temática é de suma importância considerando o agravo, pois se sabe que o aleitamento materno, quando comparado ao artificial, é um fator protetor contra a incidência de alergias respiratórias, especialmente a asma11. No estudo de Giuca et al.16, as crianças que receberam os benefícios do aleitamento materno apresentaram menos casos de rinite quando comparadas àquelas com aleitamento artificial exclusivo. Neste estudo, não foram investigadas informações a respeito da amamentação das crianças incluídas na amostra, entretanto foram registrados dados relativos (com baixa frequência) ao uso de mamadeiras (11,1%) e chupetas (25,8%), que predispõem ao aparecimento de mordidas abertas e cruzadas. Em pacientes atópicos, o uso de mamadeira apresentou uma frequência menor quando comparado ao grupo não alérgico (10,2% e 12%, respectivamente), não sendo possível observar uma associação significativa entre atopia e uso de mamadeira (p>0,05).
A associação entre respiração bucal e rinite tem sido amplamente documentada e ocorre como resultado da obstrução nasal, que é um dos sintomas mais desconfortáveis da rinite17. Estudos em longo prazo mostraram uma maior frequência de desenvolvimento facial alterado e maloclusão dentária, principalmente como possível consequência da respiração bucal crônica18,19. Esses estudos estão de acordo com os achados da presente pesquisa, em que a presença de hábitos bucais viciosos, como a onicofagia e morder objetos, foi relatada em 64% dos pacientes, indicando uma alta prevalência no atual grupo estudado (p>0,05). A relação entre presença de atopia e hábitos bucais viciosos demonstrou-se significativa neste estudo (p<0,003), em que o grupo com alergia apresentou uma frequência de 65,3%.
Sabe-se que a presença da mordida aberta pode dificultar o vedamento labial e favorecer a presença da respiração bucal20. Em um estudo prévio, Menezes et al.21 (2006) avaliaram indivíduos portadores de respiração bucal, e os maiores percentuais verificados relacionados a alterações faciais foram para a presença de mordida aberta anterior (60%), selamento labial inadequado (58,8%) e palato ogival (38,8%)21. No presente estudo, foi observada uma associação entre maloclusão e atopia (p=0,044), em que o grupo alérgico apresentou uma frequência menor de maloclusões quando comparado ao grupo não alérgico (12,24% e 22,9%, respectivamente).
A rinite alérgica é considerada uma das principais causas de obstrução das vias aéreas em crianças, o que pode induzir uma perda de respiração nasal fisiológica habitual e, consequentemente, alterar o desenvolvimento craniofacial22. Os fatores predisponentes do traumatismo dentário são a cobertura labial inadequada e o aumento do overjet, com protrusão dentária22. Um estudo prévio com portadores de rinite alérgica demonstrou que crianças portadoras da patologia tinham um risco aumentado para o traumatismo dentário, concluindo haver a necessidade de uma maior atenção de profissionais da saúde e cuidadores dessas crianças23. Diante de uma associação prévia descrita na literatura, foi feita a busca na população estudada de uma associação entre o relato de alergias e o traumatismo dentário, em que pacientes não atópicos apresentaram uma frequência maior de histórico de trauma dentário quando comparados a pacientes atópicos (p=0,002).
O parto cesariano também demonstra ser um fator importante no desenvolvimento de atopias, como dermatite atópica e alergia alimentar24. Essa associação deve-se a alterações na microbiota intestinal presentes na primeira infância desses pacientes24. Um estudo que avaliou 459 crianças que foram acompanhadas até o 36º mês de idade verificou que o parto cesariano predispôs ao desenvolvimento de alergia alimentar nesses pacientes24. Além disso, crianças que possuíam pelo menos um pai alérgico apresentavam uma maior probabilidade de desenvolver alergia alimentar quando comparadas a crianças que não possuíam histórico de alergia e nasceram por meio do parto normal (OR 10,0; 95% CI 3,06-32,7)24. No presente estudo, foi constatada uma frequência ligeiramente maior de pacientes que nasceram por parto cesariano (19,9%) quando comparados aos que nasceram de parto normal (14,7%), apesar de não haver nenhuma correlação entre a presença de alergia e o tipo de parto (p>0,05).
A prematuridade propicia a um maior risco de desenvolvimento de asma, assim como um precoce desconforto respiratório e maior risco de infecção respiratória, quando comparada com crianças que tiveram parto normal25. Neste estudo, foi verificada uma baixa frequência de relato de prematuridade pelos responsáveis (6,6%), não havendo associação entre atopia e prematuridade (p>0,05).
Nesta pesquisa, diversos aspectos apresentaram uma alta frequência na população avaliada, como hábitos bucais viciosos (64%) e presença de alergias (36%). Já outros foram significativos quando correlacionados à atopia, como histórico de traumatismos dentários, maloclusão e hábitos viciosos. Contudo, alguns aspectos, como tipo de dentição, prematuridade, uso de mamadeira e chupeta, não apresentaram significância, o que pode ser justificado em razão das limitações deste estudo, como a presença de uma amostra pequena em relação ao número total de crianças atendidas anualmente e a ausência do diagnóstico médico por escrito das crianças participantes. Somente o relato dos responsáveis foi utilizado para caracterizar a presença das atopias.
CONCLUSÃO
Diante dos resultados observados neste estudo, é possível concluir que:
O estudo possibilitou verificar uma alta prevalência de hábitos bucais viciosos (64%) nas crianças atendidas na Clínica de Odontopediatria do curso de Odontologia da Universidade Veiga de Almeida.
A prevalência de alergias relatadas nessa população foi de 36%, sendo observada associação significativa entre presença de atopias e histórico de traumatismos dentários, maloclusão e hábitos bucais viciosos (p<0,05).