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Educação Física Escolar: desafiando a sua presumível imutabilidade

School Physical Education: challenging its presumed immutability

Resumos

O presente ensaio tem por objetivo analisar o senso comum que sinaliza para uma presumível imutabilidade ou ineficácia social do componente curricular Educação Física. A premissa da presente elaboração teórica é a de que a Educação Física Escolar comporta um processo evolutivo que aponta para sua legitimidade curricular desafiando, portanto, os corporativismos e as concepções a-históricas provenientes de determinadas esferas acadêmicas e profissionais.

Educação; Educação física; Currículo


This essay aims to analyze the common sense regarding to an apparent immutability or social ineffectiveness of the Physical Education as a curriculum component. The premise of this theoretical framework is that the Physical Education at school involves an evolutionary process which indicate its curricular legitimacy, thus challenging the corporatist and non-historical conception from certain academic and professional spheres.

Education; Physical education; Curriculum


Presume-se que a Educação Física Escolar não mudou ou, até mesmo, não evoluiu nas últimas décadas tanto nos conceitos como nas práticas educativas. Essa é uma assertiva recorrente nas manifestações de muitos interlocutores provenientes das esferas acadêmicas e, sobretudo, do âmbito do sistema educacional. O presente ensaio tem a pretensão de problematizar essas disposições discursivas, a partir de elementos inerentes à própria historicidade da área e de exemplificações oriundas do cotidiano escolar.

A presente proposição analítica tem o pressuposto de que a linguagem desqualificadora da função e da eficácia social do componente curricular Educação Física no Ensino Básico está “ancorada” em questões que perpassam aspectos como: a) interesses de grupos e comunidades epistemológicas, que atuam com suas lógicas parciais e interessadas tanto no Ensino Básico como no Ensino Superior; b) a inexorável não-consensualidade sobre as intenções educativas e curriculares; c) uma visão a-histórica e desinformada do componente curricular Educação Física.

Assim sendo, tomemos inicialmente a esfera dos grupos representativos da rede acadêmica como um “lócus” de anunciação da “presumível imutabilidade” do componente curricular Educação Física. Nesse contexto é certo que a produção de uma compreensão crítica da realidade aliada à liberdade de pensamento e expressão são incontestes imperativos do horizonte da pesquisa e do Ensino Superior. Todavia, não é demasiado lembrarmos que a pesquisa e o pensamento esclarecido não podem prescindir da rigorosidade epistemológica para qual, a dúvida e a isenção são condições de fomento à liberdade. Apesar da obviedade de tal constatação, uma conduta mais zelosa e atenta aos movimentos do cenário educacional não vem se constituindo como critérios para muitos dos interlocutores do campo acadêmico, na medida em que anunciam, sem escrúpulos e plenos de interesses corporativistas, que uma determinada área do conhecimento e/ou de intervenção educacional seja destituída de relevância e capacidade de evolução própria. Ainda que respeitemos a livre expressão das ideias, colocar-se-á em questão a legitimidade dessas crenças, sobretudo quando identificamos manifestações provenientes de “personagens” que não se ocupam detida e responsavelmente sobre o desenvolvimento do campo em questão (Educação Física Escolar). Esclarecendo, detidos no sentido de se comprometerem com a pesquisa e o ensino para o desenvolvimento da Educação Física Escolar e, responsáveis, por não terem demandas que os obriguem a responder por essa prática social.

Assumimos o entendimento de que as expressões proferidas pelos protagonistas dos “palcos” acadêmicos produzem ressonâncias em expedientes diversos, como por exemplo, salas de aulas com alunos de graduação e pós-graduação, departamentos, comissões, congregações universitárias, corpo editorial de periódicos, editoras, políticas públicas e processos de formação inicial e continuada de professores. Dito de outra forma, o discurso que se repete e que se investe toma corpo e, principalmente, ganha “vida” própria, ou seja, emerge como “verdade”. Destarte, é propício lembrar a relevância e a prevalência da autoridade do argumento e não o argumento da autoridade. O compromisso com uma orientação esclarecida nos convoca para uma atitude mais cautelosa junto às “convicções”, por admitirmos a inexorável parcialidade do nosso “olhar”, ou seja, termos em conta a improvável neutralidade entre sujeito e objeto de estudo.

Dessa forma, consideramos a Educação Física e o Esporte como subsistemas de um sistema social mais amplo, como instituições ou organizações sociais específicas, que lançam esforços para legitimarem suas objetivações profissionais e acadêmicas em busca de saberes e poderes. Entretanto, podemos constatar que além de embates por espaços sociais com outras profissões, existe uma dinâmica de conflitos internos por busca de hegemonias. É sob essa premissa que entendemos parte da gênese das linguagens desabonadoras remetidas para Educação Física Escolar. Assertivas de que a finitude histórica da Educação Física Escolar como área de conhecimento e como profissão está próxima, partem de grupos ideologicamente posicionados no campo interno do binômio acadêmico-profissional da referida área. Portanto, convém elencarmos algumas evidências para postularmos o contra-argumento.

Nesse empreendimento discursivo, torna-se relevante destacarmos que a Educação Física Escolar como componente curricular da educação nacional tem sua inserção social datada desde o século XIX1Betti M. Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento; 1991., perpassando o século XX e segue mostrando sua vitalidade no século XXI a partir dos expedientes legais e curriculares - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional2Brasil. MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394. São Paulo: Editora do Brasil; 1996.; Parâmetros Curriculares Nacionais/PCN3Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: educação física. Brasília: MEC/SEF; 1997.; Proposta Curricular do Estado de São Paulo4São Paulo (Estado). Proposta curricular do Estado de São Paulo: educação física. São Paulo: SE/CENP; 2008.; - presentes nas atuais políticas públicas de educação. O referido componente da Educação Básica pode ser considerado, portanto, uma prática socioeducativa tradicional da escolarização a partir da sua reiteração histórica no âmbito do sistema educacional. Consideramos aqui como tradicional aquilo que culturalmente emergiu no passado e segue no presente como uma manifestação antropológica dotada de eficácia e eficiência num determinado contexto ou conjuntura sociocultural. Eficácia por ter uma adequação contingencial numa determinada situação social e, eficiente, na perspectiva da sua vitalidade e prolongamento sustentável na história da educação brasileira.

Ainda sob essa perspectiva, cabe a sinalização das relações históricas entre o componente curricular e a sociedade. Segundo BETTI1Betti M. Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento; 1991., do ponto de vista de um modelo ou paradigma sistêmico a Educação Física na escolarização pode ser considerada como um subsistema da Educação e, por sua vez, representa uma configuração singular atrelada ao macro sistema social com todas as presumíveis determinações e/ou condicionantes. Desse ponto de vista, podemos subentender a força da sociedade como um sistema amplo sobre os seus níveis constituintes e suas relações dialéticas. Todavia, admite-se a possibilidade de um nível relativo - não absoluto- de autonomia do subsistema na interação com elementos das macros-determinações. Dito de outra maneira, em que pese a configuração política e social de uma dada sociedade, a educação e a escolarização possuem expedientes de transgressão, rupturas e singularidades pela própria dinâmica inexorável de mutação. Nesse sentido, a Educação Física assimilou elementos políticos e ideológicos de uma dada situação histórica e, concomitantemente, gestou os indícios de sua própria particularização e singularização como instituição. É importante ressaltar que esse processo foi inevitavelmente, como toda prática humana, “grávido” de tensões, ambivalências e contradições entre suas promessas/intentos e suas elaborações/realizações.

A título de exemplificação, retomemos os primórdios da historicidade do componente curricular Educação Física para efeito de caracterização do seu processo evolutivo em relação aos contextos sociais em que estava inserida. A pretensão é sublinharmos a sua inexorável abertura como um subsistema, na qual poderemos apresentar nossa premissa de que o componente vem seguindo sua trajetória com atualizações sucessivas do ponto de vista da sua função social e, dessa forma, dispor de elementos contestes à ideia da sua presumível imutabilidade. Cabe aqui que os apontamentos históricos serão mobilizados com o intuito de subsidiar a argumentação acima mencionada e não implica uma proposta investigativa nos moldes e no rigor da Pesquisa Histórica.

Sendo assim, segundo CASTELLANI FILHO5Castellani Filho, L. Educação física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus; 1991. e BETTI1Betti M. Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento; 1991., a Educação Física tem sua presença firmada no âmbito da educação escolarizada desde o XIX a partir de duas influências relevantes à época, ou seja, a instituição militar e a instituição médica. A significância social dessas instituições não estava circunscrita ao âmbito da educação, mas certamente, tinham seus poderes e relevâncias expandidos no contexto mais geral da sociedade. Além de representarem o “espírito positivo” - Positivismo-, esses grupos sociais portavam a simbologia e a promessa da “ordem” e do “progresso” necessários aos imperativos nacionalistas que tomavam o mundo como um todo. A “Ordem da Razão” se impunha como discurso legitimador de práticas e poderes que, recorrentemente, não escapavam dos interesses das elites, o quê, por sua vez, legitimou formas de organização social. Paradoxalmente, foi a partir desse ímpeto que foi possível o desencadeamento de formas e produções inéditas nos campos da ciência, das artes, da literatura, da tecnologia, do poder e do pensamento humano que impactam e formatam as realizações das sociedades contemporâneas. Concomitantemente, esse mesmo ideário fomentou e consubstancializou dispositivos de legitimação de desigualdades sociais intra/extra nacionais e, até mesmo, a opressão brutal de povos e nações.

A escolarização e a Educação Física Escolar foram subsidiadas pelas instituições médicas e militares e, dessa maneira, aportaram suas práticas pelos usos da linguagem e dos conteúdos dos métodos ginásticos europeus pautados pelos imperativos militarista/nacionalistas e pela medicina higienista/eugênicas. Tomados pelos espíritos da “ordem” e do “progresso”, a escola e a Educação Física Escolar tinham suas funções e estratégias educativas balizadas pelo projeto “moderno” na produção de corpos disciplinados, adestrados, aptos, não degenerados pela miscigenação de raças e, principalmente, disponíveis para defender a pátria contra os inimigos internos e externos servindo aos processos de industrialização e urbanização tardias. O corpo devia ser trabalhado por uma linguagem ginástica que promovesse a assepsia e a disciplina do povo na e a partir da escola sob os conclamos dos seus “líderes nacionais”. Essa visão de cunho ideológico se expandia como uma verdadeira “onda” sobre um mundo em que, estados nacionais mobilizavam seus compatriotas para expansão de suas fronteiras movidos, sobretudo, por ímpetos nacionalistas com vistas a lograrem a perpetuação de suas culturas/etnias.

Avançando na primeira metade do século XX, os métodos ginásticos europeus se constituíram na linguagem preponderante nos cenários escolares. Contudo, conjecturarmos que no cenário da escolarização seria muito plausível que um restrito contingente de professores e professoras transgredissem a “ordem estabelecida” e inserissem outras práticas, como por exemplo, as dança e os jogos. Essa proposição ou conjectura reitera a possiblidade de espaços de autonomia e renovação para momentos posteriores da história.

Retomando o contexto, a influência de métodos provenientes das culturas gímnicas alemãs, dinamarquesas, suecas e, principalmente, a francesa no Estado Novo, constituíram discurso, prática e investimento de legitimação de processos sociais inerentes a uma conjuntura social mais ampla. Durante o período ditatorial do Estado Novo da “Era Vargas”, em meio às profundas modificações estruturais num cenário internacional de franca mutação, a educação e a Educação Física Escolar tinham como pressuposto, serem fatores coadjuvantes no preparo de novas gerações na transição de um mundo agrário- exportador para um mundo urbano- industrial. O Método Francês para os homens e a Calistenia para as mulheres estavam prescritos no intuito de gerar uma ordem social pautada em estereótipos sexistas, que se coadunavam não apenas com uma visão ordinária de mundo, mas explicitamente, com uma divisão social do trabalho e da vida política. Homens fortes, viris, obedientes e dispostos física e moralmente a tomares em suas mãos armas e ferramentas para o “projeto de nação”. Mulheres dóceis e saudáveis para parirem filhos não “degenerados” para uma nação “triunfante”.

Seguindo nosso itinerário temporal, com a eclosão da segunda guerra mundial do século passado, emerge uma nova configuração do mundo, especialmente pelas resultantes do conflito mencionado. A estruturação do mundo em dois grandes blocos, ou seja, o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos e o socialista capitaneado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), geram um dinamismo em escala global pela legitimação de poderes que absorveram as mais diversas nações e culturas, ou seja, a “Guerra Fria”. Os referidos blocos estabeleceram alianças políticas, econômicas e militares, cujas estratégias alcançavam as mais diversas esferas de atuação social. Um dos campos de enfrentamento ideológico sobre os quais os blocos exerciam suas propagandas ideológicas foi o palco do cenário esportivo. Inserido no bojo amplo e complexo das transformações do pós-guerra, as “Ciências do Esporte” foram alavancadas a partir de investimentos em larga escala, tendo em vista a visibilidade que os sistemas políticos poderiam explorar e apoiar na perspectiva dos seus interesses ideológicos.

Nesse sentido, como uma instância entre outras, elegeu-se os jogos olímpicos como campo de demonstração de força e supremacia dos sistemas políticos. Para tal empreendimento outras instâncias foram cooptadas para subsidiarem tal configuração. Processos de inculcação ideológica em massa e, sobretudo, em escala global, exigem a mobilização de amplos e diversos recursos. Nesse sentido, as ciências, as tecnologias, as artes, as literaturas, os meios de comunicação, a educação, as formas de pensamento e expressão sejam elas individuais ou coletivas, sem exceção, estariam sob a supervisão e o controle dos poderes. Ainda que um processo dessa natureza não seja absoluto, sem dúvidas foi arrojado e impactante. Assim sendo, a educação, a cultura e o esporte foram inseridos como subsistemas importantes da conjuntura social mais ampla. Nesse sentido o paradigma ginástico perde sua eficácia simbólica para as imagens e linguagens do esporte como referência para educação escolar e, principalmente, para Educação Física Escolar.

Como exemplificação, temos a chegada de proposições, como a proveniente do Método Desportivo Generalizado, sendo protagonizado por Auguste LISTELLO6Listello A. Educação pelas atividades físicas, esportivas e do lazer: organização do ensino: do esporte para todos ao esporte de alto nível. São Paulo: EPU; 1979. em cursos de formação de professores em território nacional. A linguagem e a valorização dos jogos e das atividades recreativas estavam ancoradas como subsídios para uma educação esportiva de massa. O processo em questão não é linear e tampouco consensual. A memória da cultura ginástica estava encarnada na “alma” e nos “corpos” de gerações de professores e professoras, cujas tensões e embates não têm alcançado de uma forma mais premente a narrativa oficial da área. Todavia, o ideário esportivo está investido de uma força supra-individual e institucional, cujo vigor ainda pode ser sentido até os dias atuais.

Pautados nas promessas de desenvolvimento nacional, de proteção dos sistemas políticos e preparação das massas às configurações econômicas, o projeto “Esporte para Todos” se tornava um imperativo social. Subjaz ao significante “desenvolvimento bio-psico-social”, a educação e a Educação Física Escolar estavam orientadas e subordinadas aos conceitos e códigos das instituições esportivas. Palavras de ordem como: Esporte é saúde; Esporte é cultura; Esporte é educação; Esporte é integração social; Esporte é ferramenta para a paz social, Esporte para todos; constituíram-se em ferramentas simbólicas de suporte ao “projeto de grande nação”, dentro e fora da escolarização.

Escrevemos Esporte com “E” maiúsculo, por entendermos que essa objetivação social é um fenômeno específico e relevante do ponto de vista social. Também para destacá-lo e diferenciá-lo de outro fenômeno, ou seja, da Educação Física Escolar. Em que pese que o esporte tenha vínculos com essas dimensões da vida cotidiana, entretanto, não são consensuais e, tampouco desprovidas de ambivalências e contradições. O fenômeno esportivo tem comporta concomitantemente a sua polissemia (múltiplos sentidos) com a sua polifonia (múltiplas vozes). Nesse contexto, funções e papéis sociais se colocam em permanente tensionamento no âmago das relações ordinárias das escolas e da Educação Física Escolar.

Esse complexo dinamismo histórico e identitário no qual subscrevemos a Educação Física e o Esporte nos tempos e nos espaços da escolarização, gerou polaridades semânticas e representações em torno das distinções relativas aos conceitos escola e clube, aluno e atleta, aula e treino, jogo e esporte, competição e cooperação, tecnicismo e humanismo, rendimento máximo e rendimento ótimo, inclusão e exclusão e etc. Aqui temos um solo fértil para a “pavimentação” de uma crise de identidade a ser eclodida no fluxo do processo histórico.

A esportivização e o tecnicismo foram consubstanciados pelo modelo da aptidão física, na qual a visão de corpo e saúde estava ancorada num reducionismo biológico/fisiológico patente. Esse processo que emerge com vitalidade no pós- guerra e perpassou os movimentos totalitários dos anos 60 e 70, tem sua portabilidade ideológica sustentada a partir de expedientes legais como a LDB 5692/71, na qual se insere legalmente ao lado da disciplina de Educação Moral e Cívica. A obrigatoriedade do componente curricular em todas as séries, numa regularidade de três sessões semanais, com a necessidade de uma periodicidade de avaliação da aptidão por meio de testes padronizados para as denominadas “capacidades físicas e habilidades motoras”, circunscreveram a Educação Física Escolar como uma atividade disciplinar sem implicações teóricas ou sistematizações mais arrojadas.

No que tange o Ensino Superior, sua obrigatoriedade ampla e geral junto às organizações esportivas universitárias, foram forjadas no sentido de alicerçar os propósitos das elites econômicas e seu ideário de industrialização tardia, do nacionalismo militar e totalitário e, dessa maneira, asseverar um controle e um arrefecimento dos movimentos estudantis. Dito de outra forma, o Esporte para reorientar e prevenir os anseios dos estudantes de “ideias perniciosas” e, sobremaneira, garantir a imperiosa “segurança e unidade nacional”.

No bojo das transformações das últimas décadas do século passado, temos o marco histórico do fim da guerra fria e seus desdobramentos para uma nova configuração mundial. Como uma das resultantes desse processo, tivemos uma verdadeira “onda” de redemocratizações das nações, incluindo-se nesse movimento o Brasil e a América Latina. No seio do referido processo, especialmente no que diz respeito à década de 80, o processo de abertura democrática conteve uma efervescência de movimentos sociais em que pavimentaram a consolidação do fim do regime militar e a preparação para os expedientes formais e constituintes da jovem democracia brasileira. Nesse sentido, tivemos uma infinidade de movimentos sociais mobilizados na perspectiva de uma nova ordem jurídica e social, o quê, por sua vez, incluiu os interlocutores do campo educacional.

A educação brasileira tinha nesse contexto, o desafio de superar o legado deixado pelo período ditatorial, ou seja, a produção sistemática do fracasso escolar. Como índices sintomáticos desse processo, temos os fenômenos da exclusão, evasão, repetência e a precariedade da aprendizagem dos saberes escolares. O modelo excludente da época nos remetia para um aparato institucional autoritário, que expulsava sistematicamente crianças, jovens e adultos das salas escolares por uma inadequação dos seus procedimentos metodológicos e avaliativos. O sistema escolar deslegitimava a cultura das classes populares, imputando responsabilidade pelo rendimento escolar aos indivíduos e se eximindo de responsabilidades. Parcelas expressivas das crianças e jovens não acessavam a escola e, quando logravam essa condição, não aprendiam e gradativamente viam a porta de saída do sistema educacional pelos mecanismos da repetência e da evasão. Em suma, a educação escolar não era um direito consolidado na sociedade brasileira.

Como uma das enfermidades mais graves do sistema educacional, tivemos, sem sombra de dúvidas, as diferentes formas e faces do analfabetismo. Esse sintoma é a prova cabal do atraso e da não observância da educação como direito da cidadania. O analfabetismo era uma das “lições de casa” mais desafiadoras para que fosse possível escrever tanto em verso como em prosa a tão esperada democracia brasileira. A tarefa, portanto, era produzir novos paradigmas na perspectiva da viabilização de uma educação para todos.

A Educação Física Escolar é um subsistema do sistema educacional e, por sua vez, está inserida no movimento mais amplo de transformação social. Dito de outra maneira, a Educação Física não está imune ao dinamismo da realidade e é inexoravelmente absorvida na perspectiva da revisão dos seus valores e pressupostos. MEDINA7Medina JPS. A Educação física cuida do corpo... e mente: bases para a renovação e transformação da educação física. Campinas: Papirus; 1983. propunha que a Educação Física deveria entrar em crise e perguntar-se a serviço de quem os profissionais estariam envidando seus esforços. Para uma nova ordem social, ou seja, a democracia, a Educação Física deveria rever a sua forma de conceber o corpo, o movimento e, sobretudo, sua prática. Um modelo pautado na exclusão dos alunos e alunas que não atendiam aos preceitos e as expectativas técnicas provenientes do contexto esportivo; uma visão reducionista de corpo e saúde restritos a atividade física mecânica e repetitiva; atitudes e posturas autoritárias apoiadas na linguagem ou na memória da cultura militar; todas essas características não se coadunavam com o contexto emergente. MOREIRA8Moreira WW. Por uma concepção sistêmica na pedagogia do movimento. In: Gebara A, Moreira WW, organizadores. Educação física e esportes: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus; 1992. denomina esse intercurso histórico como a “crise de identidade” da Educação Física!

Sendo assim, a área foi tomada por movimentos que expressam sua pluralidade intrínseca, consubstanciada pela participação de interlocutores das esferas acadêmicas e profissionais. Como um sistema que detém uma abertura relativa, os representantes da Educação Física e do Esporte articulam-se aos movimentos do exterior, a partir dos avanços das comunidades científicas e no protagonismo dos programas de pós-graduação. Temos nesse ínterim a gênese da produção de uma massa crítica que comporta um potencial revisionista dos pressupostos epistemológicos e profissionais para área. Pautados nas experiências dos programas de pós-graduação e dos subsídios passíveis de serem resgatados de áreas do conhecimento ou ciências consolidadas, emergem os chamados Movimentos Renovadores da Educação Física9Darido SC. Educação física na escola: questões e reflexões. Araras: Topázio; 1999.. Destarte, dispomos de múltiplas perspectivas de análise que emergiram no portal entreaberto dos anos 80 e 90, indicando limites e possibilidades para Educação Física nacional. No bojo dessa diversidade discursiva, temos significantes que perpassam as atuais configurações curriculares das políticas públicas contemporâneas de Educação Física Escolar.

Os “Movimentos Renovadores” apoiaram-se em diferentes matrizes teóricas e produziram um conjunto amplo de considerações e inferências didáticas e metodológicas para a Educação Física Escolar. Esse mesmo aporte foi comumente compreendido como abordagens de ensino ou tendências pedagógicas nas esferas acadêmicas e profissionais. Os referenciais teóricos produzidos entre os anos 80 e 90 penetraram fortemente os cursos de graduação e pós-graduação e, sobremaneira, as políticas públicas de Educação Física. Cabe nesse momento, uma ressalva de que o presente ensaio não se constitui numa análise histórica e mesmo uma descrição detalhada desses corpos teóricos. O apontamento de alguns elementos históricos e a menção desses expedientes epistemológicos são mobilizados na perspectiva da problematização da presumível imutabilidade da área.

Assim sendo, a título de uma simples exemplificação, sinalizaremos alguns elementos provenientes dessas perspectivas teóricas que foram incorporados pela área e podem ser notados no manejo das discussões e das práticas pedagógicas, ou seja, alguns significantes que dão dinamismo ao ideário da Educação Física Escolar. De maneira mais explícita, a consideração dessas teorias e suas formas de legitimação no âmbito da Educação Física Escolar podem ser entendidas como indicações do seu processo evolutivo contradizendo o discurso da imutabilidade.

Com contribuições e subsídios provenientes das mais distintas ciências, os interlocutores denominados “Renovadores” tinham como território comum uma crítica contundente a denominada “Educação Física Tradicional” de cunho tecnicista/ esportivizante, apoiada num reducionismo biológico, sobretudo, marcadamente elitista e excludente. Ainda que possamos desafiar com a nossa impertinência os limites e as possiblidades da nomenclatura anteriormente citada- “tradicional”- podemos admitir que o modelo ou a cultura vigente não se sustentava no âmago das transformações sociais. Sua eficácia teve o prazo de validade desafiado pelas mutações da história, mesmo que atualmente encontremos com muita facilidade, professoras e professores pautando suas práticas educativas sob a premissa do paradigma tecnicista/mecanicista.

Portanto, em que pese as diferenças patentes das abordagens teóricas da área, todas têm como preocupação superar o paradigma anterior e pautar suas proposições sob a égide do acesso crítico e democrático à cultura corporal ou ao estudo do movimento do corpo humano. Importante destacar que, na nossa compreensão1010 Correia WR. Educação física escolar: entre inquietudes e impertinências. Rev Bras Educ Fís Esporte. 2012;26:171-8. mesmo tendo as premissas de superação de um modelo arcaico, dado os imperativos históricos e sociais da educação, essas comunidades epistemológicas por meio dos seus interlocutores estabeleceram embates públicos por hegemonias nos mais diferentes níveis do sistema educacional. Podemos entender que a expressão dessa dimensão política entre os saberes e os poderes desses protagonistas representavam faces do dinamismo evolutivo da Educação Física Escolar. Na conjuntura dos discursos “Renovadores”, alguns significantes podem ser destacados como aspectos inexoráveis ao avanço da área mesmo estando intrínseca sua incompletude e as incompatibilidades políticas do ponto de vista dos desafios da ação pedagógica.

Tomando a Perspectiva Desenvolvimentista1111 Tani G. Educação física escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU; 1988., entre vários preceitos, destacamos a importância dada aos aspectos relativos ao crescimento e ao desenvolvimento humano como referência para a delimitação de critérios na proposição de uma educação do, a partir e sobre o movimento do corpo humano. O estabelecimento de uma abordagem desenvolvimentista tem como fito subsidiar os professores e as professoras no planejamento das suas atividades pedagógicas. Na perspectiva dos seus interlocutores, as crianças e os jovens têm o direto ao acesso ao patrimônio das atividades motoras presentes na cultura e, dessa forma, demanda uma pedagogia eficaz para esses propósitos. O ensino das habilidades motoras ganham destaque e relevância nessa perspectiva e presumem a observância de certos fundamentos provenientes do campo do comportamento motor entre outros. Temos nessa abordagem que o movimento é o objeto de estudo e aplicação da área.

Explorando a polissemia epistemológica da área, temos a perspectiva construtivista que pautada nas premissas de Piaget, Wallon e Vygotsky, tem como foco os processos de construção da inteligência e do conhecimento, do pensamento e da linguagem. Os pressupostos trazidos a partir dessas matrizes implicaram no reconhecimento do respeito às diferenças dos indivíduos nos processos de aprendizagem, valorização do sujeito como protagonista na elaboração dos conhecimentos, foco na aprendizagem significativa e o reconhecimento da importância da ludicidade e das manifestações culturais populares. Como destaque dessa perspectiva pedagógica, temos a noção do aprender a aprender, a pró-atividade na elaboração do conhecimento, a estratégia de soluções de problemas e, especialmente, a relação entre o fazer e o compreender inerente às práticas corporais e de movimento. Sentir, pensar e agir na perspectiva de uma Educação de Corpo Inteiro1212 Silva JBF. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: Scipione; 1989..

Outra importante referência para área foi a perspectiva denominada Crítica- Superadora1313 Soares CL, Taffarel C, Varjal E, Castellani Filho L, Escobar M, Bracht V. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez; 1992., que tinha como propósito a tematização crítica da cultura corporal como linguagem nos seus grande temas, ou seja, Jogo, Dança, Lutas, Esporte e Ginástica. Aqui se tem o entendimento da construção do conhecimento como um processo em espiral em contraposição as noções do conteúdismo, etapismo, seriação e do meritocratismo tão recorrentes na escolarização. No âmbito do processo de tematização crítica dos conteúdos e valores subjacentes da cultura corporal, ganham destaques no momento da concepção e viabilização dos projetos pedagógicos a inclusão das dimensões diagnóstica, judicativa e teleológica. Compreender e contextualizar (diagnóstica) a realidade, avaliar as possíveis demandas do ponto de vista dos interesses das classes populares (judicativa) na perspectiva da sua emancipação e lançar as perspectivas de ação para superação das contradições da sociedade e da cultura capitalista (teleológica) são aspectos relevantes desse processo.

Na perspectiva de uma abordagem Cultural/Antropológica1414 Daolio J. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus; 1995. o conceito semiótico de cultura pautado nas contribuições de Clifford Geertz e Marcel Mauss subsidiam os princípios de pluralidade, diversidade, alteridade e técnica corporal no seio da Educação Física Escolar. De uma concepção do corpo matéria prima para um corpo cidadão, temos nessa orientação a admissão do corpo como sede de símbolos e signos construídos nas relações socioculturais. Aqui se admite que os sujeitos usufruam das práticas corporais nas mais distintas formas e, invariavelmente, buscando eficácia simbólica nas suas ações. Na perspectiva de uma “Educação Física Plural” o corpo não é um aparato exclusivo do campo biológico, tampouco, expressão de matéria inerte. O corpo é expressão viva de uma dinâmica cultural.

O profissional de educação física não atua sobre o corpo ou com movimento em si, não trabalha com esporte em si, não lida com a ginástica em si. Ele trata do ser humano nas suas manifestações culturais relacionadas ao corpo e ao movimento humanos, historicamente definidas como jogo, esporte, dança, luta e ginástica. O que irá definir se uma ação corporal é digna de trato pedagógico pela educação física é a própria consideração e análise desta expressão na dinâmica cultural específica do contexto onde se realiza1515 Daolio J. Educação física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados; 2004. (p.3).

Outra abordagem ou perspectiva teórica relevante para área da Educação Física Escolar foi a denominada Crítico-Emancipatória1616 Kunz E. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí:UNIJUÍ; 2000.. Pautada nas referências da teoria crítica da Escola de Frankfurt, temos um escopo teórico que propõe a trasformação didática e pedagógica do “se-mover” humano como condição indispensável a tomada de consciência das condicionantes alientantes subjazes as formas de linguagem, de trabalho e de interação inerentes às práticas corporais e de movimento dentro e fora da escola. A orientação didática e metodológica está assentada sob a premissa da emancipação dos sujeitos.

Somando-se aos movimentos e proposições acima citadas, cabe destacar outras abordagens como a Fenomenológica8Moreira WW. Por uma concepção sistêmica na pedagogia do movimento. In: Gebara A, Moreira WW, organizadores. Educação física e esportes: perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus; 1992., a Sistêmica1Betti M. Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento; 1991. e da Saúde Renovada. Em que pese as contribuições dessas contruções análitica e propositivas para o debate da área, essas mesmas não se circuncreveram-se como proposições sistematizadas. Todavia, essas linguagens consubstanciadas por esses acervos teóricos foram reconhecidas e mobilizadas, sobretudo, pelos interlocutores das esferas acadêmicas.

Nesse intercurso histórico a Educação Física Escolar acompanhava a “efervescências” sociais decorrentes da abertura democrática no país, especialmente no que tangia as questões da política educacional. No referido período, tivemos os marcos dos movimentos constituintes1717 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva; 1988., a questão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional2Brasil. MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394. São Paulo: Editora do Brasil; 1996. e elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais3Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: educação física. Brasília: MEC/SEF; 1997.. A Educação Física Escolar nesse contexto tem sua presença como componente curricular obrigatório da Educação Básica reiterado pelo artigo 26 da LDB. Nesse importante dispositivo legal, a Educação Física é tida como uma disciplina que integra a parte comum do currículo da Educação Básica. Podemos admitir que a obrigatoriedade e a inclusão do componente curricular na parte comum dos currículos brasileiros é indicativo que a Educação Física Escolar é um direito dos cidadãos e cidadãs e comporta um pressuposto saber dotado de relevância social.

A Educação Física na perspectiva do Parâmetros Curriculares Nacionais está inserida na área de códigos e linguagens. Considerando a trajetória do componente desde o século XIX como uma atividade curricular de cunho biologizante e tecnicista, a inserção da Educação Física nesse grupo de disciplinas denota uma ressignificação do seu papel e função. Entretanto, conjecturamos que tanto a admisão da Educação Física no Ensino Superior como área pertencente aos domínios da Saúde e, no Ensino Básico, como disciplina do bloco de Código e Linguagens, podem ser resultantes dos embates internos da área a partir dos interesses de certos grupos que atuam nas distintas eferas da política educacional. Se perscrutarmos rigorosamente essas classificações, provavelmente encontraremos fragilidades e inconsistências conceituais em ambas proposições.

Retomando a questão da Educação Física no contexto da política pública, ainda que com uma clara influência construtivista, é possível identificar nos diferentes textos que compõem os PCNs de Educação Física, a presença de elementos provenientes de diversas matrizes teóricas. Quando observamos o elenco de colaboradores que assinam o documento oficial, não é difícil imaginar que o processo de elaboração conteve as dimensões de disputas por hegemonias e seus correspondentes expedientes de negociação conceitual e curricular. Aliás, a não consensualidade é um dos traços típicos dessa realidade, quando se tem a incumbência de prover uma estruturação curricular de alcance nacional. Em áreas relacionadas às Ciências Humanas e a Língua Portuguesa, dentre outras, os embates foram dignos de nota. Quando nos reportamos as teorias de currículo, esses processos apenas ratificam a noção do currículo como um campo de não neutralidades, embates e que implicam um jogo dinâmico de ênfases e omissões1818 Canen A, Moreira AFB. Ênfases e omissões no currículo. Campinas: Papirus; 2001..

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, a Educação Física Escolar trata pedagogicamente de dois conceitos indissociáveis, ou seja, o corpo e o movimento. Fica reservado para esse componente currcular a tematização de objetos ou manifestações como as danças, as lutas, os esportes, os jogos, as ginásticas, as atividades ritmicas e expressivas e conhecimentos e cuidados sobre o corpo. O processo de sistematização do conhecimento deve pautar-se pelo princípio da inclusão, do respeito às diferenças pessoais e grupais com foco na aprendizagem significativa dos conteúdos. Ainda nessa direção, é recomendado o investimento na dimensão da transversalidade, ou seja, na articulação da especificidade do componente curicular com temas socialmente relevantes como saúde, sexualidade, meio ambiente, pluralidade cultural, trabalho, lazer, consumo etc.. Outro destaque é para atenção na exploração dos diferentes tipos de conteúdo do tipo factual, conceitual, procedimental e atitudinal. O conceito de competências como uma articulação profícua de capacidades e habilidades para solução de problemas, perpassa constantemente as orientações didáticas e metodológicas. O processo de avaliação, segundo as diretrizes contidas nos PCNs, deverá priorizar a dimensão qualitativa, enfantizando o processo de construção do conhecimento sendo permanente ao longo de todo o empreendimento educativo. Talvez seja oportuno sublinharmos que os Parâmetros Curriculares Nacionais incorporaram vários subsídios das reformas e propostas curriculares dos estados do eixo sul e sudeste do país, fortemente marcadas pela perspectiva sócio-interacionista-construtivista. De alguma maneira, os PCNs assimilaram os debates e as reformas educacionais postas em marcha nas décadas finais do século passado.

Em que pese reconhecimento das críticas proferidas aos PCNs no que tange aos aspectos de coerência e consistência conceitual, generalidade, minimização do potencial crítico na abordagem dos conteúdos, incorporação de ideias tidas como neoliberais ou, até mesmo, modismos pedagógicos, seria importante considerar, também, essas sinalizações na perspectiva da historicidade da educação brasileira. No que concerne à Educação Física Escolar, tendo em vista o percurso efetuado desde o século XIX até os nossos dias, a premissa da inclusão, o respeito às diferenças individuais e identitárias de grupos, atenção aos tipos de conhecimento, o foco na premissa da aprendizagem significativa e relevante, a incorporação de múltiplos temas da cultura corporal de movimento na possibilidade de articulação transversal com aspectos relevantes da cultura, são dados inequívocos do processo evolutivo da área que dialoga com a sociedade e com o sistema educacional que, de forma patente, vem legitimando sua condição como disciplina e componente curricular. A posição aqui não é tomarmos uma posição otimista ingênua! O posicionamento em questão é, sobretudo, dar reconhecimento aos desdobramentos evolutivos da área como um processo inerente a historicidade da escolarização brasileira.

Ainda a titulo de exemplificação, tomemos a Proposta Curricular do Estado de São Paulo4São Paulo (Estado). Proposta curricular do Estado de São Paulo: educação física. São Paulo: SE/CENP; 2008. em algumas de suas proposições, no sentido de colocarmos em evidências algumas de seus conteúdos e temas. Nessa política que por ora está em andamento e deve ser objeto de estudo e intervenção por parte dos protagonistas da área, podemos sublinhar temáticas socialmente relevantes do ponto de vista dos saberes escolares e impensáveis ao longo de pelo meno 2/3 da historicidade da área. A partir da noção do “se movimentar”, a proposta trás a premissa da autonomia e da importância da significação simbólica das práticas corporais e de movimento. Temáticas como corpo e contemporaneidade, corpo e saúde, corpo e mídias, corpo e meio ambiente, corpo e padrões de estética e beleza para efeito de tematização e sistematização do conhecimento escolar, são expressões patentes de um movimento de ampliação e complexificação dos objetivos e finalidades do componente curricular Educação Física.

Portanto, para efeito das considerações finais do presente exercício ensaístico, nos sentimos na obrigação de esclarecer alguns pontos. De saída, nos desculpamos com os nossos pares da academia que se dedicam aos estudos históricos e, também, àqueles que se debruçam sobre as discussões metodológicas. O propósito do presente empreendimento discursivo foi o de apresentar alguns elementos contidos na historicidade da área de forma a desafiar as assertivas recorrentes nos campos acadêmicos e profissionais que sistematicamente afirmam que a Educação Física Escolar está subjugada a uma condição de imutabilidade e, portanto, se vê em volta de um anacronismo permanente. Como tese contrária, exploramos alguns elementos de transformação ao longo da história da escolarização e, sobretudo, oferecemos singelos exemplos de interação do subsistema Educação Física Escolar com o macro sistema social.

No exercício da presente tarefa, tendo como ponto de partida o século XIX, temos um clara evidência da vitalidade e relevância social do componente curricular ao longo desses últimos três séculos. Como expressão do seu dinamismo e da sua mutabilidade ressaltamos aspectos como: 1) Incorporação de princípios como a inclusão, direito ao ensino e a aprendizagem; 2) Respeito às diferenças e reconhecimento da diversidade humana ; 3) Pluralidade conceitual e espistemológica contidas nas teorias pedagógicas (desenvolvimentista, construtivista, crítico-superadora, crítico-emancipatória, fenomenológica, sistêmica, saúde renovada, multiculturalista etc.); 4) Pluralidade temática na perspectiva dos conteúdos da cultura corporal de movimento (esporte, dança, luta, ginástica, jogos, conhecimentos e cuidados sobre o corpo, etc.); 5) Transversalidade como potencial de ampliação das aprendizagens significativas e interação interdisciplinar; 6) Radicalidade e relevância dos fenômenos “Corpo” e “Movimento” como objetos de ensino e aprendizagem; 7) Participação crescente de professores e professoras em congressos, seminários e simpósios, cuja contribuição tem mostrado um crescente interesse em expor as práticas e iniciativas pedagógicas como formas protagonismo e inovação curricular; 8) Adensamento progressivo da “dimensão sistematizadora” das intenções educativas conferindo legitimidade a Educação Física como componente curricular.

Enfim, não nos colocamos nas armadilhas dos impulsos corporativistas e, tampouco, sob a penumbra do otimismo ingênuo no exercício da anunciação da mutabilidade, da evolução e da transformação da Educação Física Escolar. É preciso destacar que a Educação Física Escolar é uma prática social investida de ambivalências, contradições e precariedades, bem como, possibilidades,viabilidades e realizações. Cabe como compromisso acadêmico e profissional o estabelecimento de um posicionamento crítico-propositivo-esclarecido. Entretanto, deixamos aqui o desafio e a impertinência aos provedores das assertivas desabonadoras remetidas para o campo da Educação Física Escolar, tendo como premissa que muitas dessas anunciações estão grávidas de desejos e anseios particulares e contigenciais, sobretudo, na busca por hegemonias e/ou conveniências nas esferas acadêmicas e profissionais.

Como posicionamento final e provisório, temos que a presumível imutabilidade da área é expressão de uma “astuta desinformação interessada” e, por sua vez, compreende uma visão a-histórica. A tonalidade fatalista que dá suporte ao argumento da presumível imutabilidade da Educação Física Escolar é de base conservadora/corporativista e, quando levada a cabo sem escrúpulos, é reacionária. A noção de história como determinação ou pré-destinação deve ser superada pela concepção de história como possibilidade e sonho possível.

Referências

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    Canen A, Moreira AFB. Ênfases e omissões no currículo. Campinas: Papirus; 2001.
  • CDD. 20.ed. 796.017

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2014
  • Aceito
    08 Out 2014
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