Acessibilidade / Reportar erro

Formação continuada em Educação Física na educação básica: da experiência com o instituído aos entrelugares formativos

Resumo

Este estudo objetiva analisar e dar visibilidade aos lugares/espaços identificados pelos professores de Educação Física da Superintendência de Carapina, na Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo, como significativos para sua formação. Usa como referencial teórico-metodológico a pesquisa narrativa, utilizando como fontes as narrativas (auto)biográficas de seis professores, em uma prática compartilhada de pesquisa no diálogo com docentes. A análise do estudo sinaliza movimentos diversificados, ora singulares, ora coletivos, de espaços formativos praticados. Esta análise amplia o entendimento de formação continuada para além de momentos instituídos, compreendendo tanto os entrelugares de formação, como os espaços autoformativos indicados pelos professores como significativos à sua formação. Aponta a necessidade de pensar mudanças em políticas de formação focada na valorização de ações investigativo-formativas que tenham como ponto de partida e chegada as práticas pedagógicas.

Palavras-chave:
Formação continuada; Entrelugares formativos; Educação Física

Abstract

This study aims to analyze and give visibility to the places/spaces identified by the physical education teachers of the Superintendence of Carapina, in the state education network of Espirito Santo, as being significant to their formation process. It uses the narrative research as the theoretical and methodological framework, using the autobiographical narratives of six teachers as the source, in a shared practice of research and dialogue with these teachers. The study analysis indicates diverse movements - sometimes single, sometimes collectives - of practiced formative spaces. This analysis expands the understanding of continuing training to beyond of the established moments, comprising the other places of training as much as the self-formative fields identified by the teachers as significant to their formation. It points out the need to think about changes in the education policies focused the valorization of investigative and training activities that have the pedagogical practices as the beginning and end.

Key Words:
Continued training; Formative boundaries in-between; Physical Education; Primary education

Introdução

O interesse em dar visibilidade aos modos com que os docentes de Educação Física na educação básica, da rede estadual de ensino do Espírito Santo, dão sentidos à sua formação continuada, nasceu dos diálogos produzidos nos momentos formativos ofertados pela Secretaria Estadual de Educação e das trocas de experiências realizadas nos espaços/lugares da escola. Compreendemos, assim como Gatti e Barreto11. Gatti B, Barreto ES, Políticas docentes no Brasil: um estado da arte. Brasília: Unesco; 2011, como formação continuada, atividades cuja natureza varia desde formas mais institucionalizadas que outorgam certificados com duração prevista e organização formal, até iniciativas menos formais que têm o propósito de contribuir para o desenvolvimento profissional do professor.

No ano de 2009, a Secretaria de Educação organizou uma formação continuada para a Educação Física vinculada ao projeto Esporte na Escola, que previa, em sua execução, momentos de capacitação/atualização docente, principalmente no conteúdo esporte. No entanto, em algumas reuniões do grupo da Superintendência de Carapina, os docentes sentiram necessidade de potencializar aqueles momentos coletivos de reflexões para além da perspectiva dos “jogos na rede”, trazendo relatos de experiência de diferentes níveis de ensino. É preciso, nesse caso, esclarecer que a Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo está organizada em 11 superintendências regionais, que têm por função a gestão administrativa e de supervisão escolar. Agrupa um determinado número de escolas dos municípios que são próximos. No caso da Superintendência de Carapina, correspondem as escolas do município de Vitória, Serra, Fundão e Santa Teresa.

No ano de 2010, o único encontro dessa Superintendência se inicia com as discussões do Currículo Básico Comum (CBC) da Educação Física. Nesse instante, os relatos/falas docentes dão sinais22. Ginzburg C. Mito, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. de possíveis desconfortos com o currículo prescrito em relação ao praticado nas escolas. Paralelamente a essas reuniões esporádicas na Superintendência, houve, em 2009–2010, a iniciativa de um Programa de Formação Continuada em Educação Física Escolar, no intuito de discutir as dificuldades dos fazeres docentes da área.

Nos limites deste artigo, propomo-nos a dar visibilidade, por meio das narrativas (auto)biográficas, aos lugares/espaços formativos identificados pelos professores de Educação Física do Ensino Médio da Rede Estadual do Espírito Santo, como significativos ao longo de sua história nessa rede de ensino. Para tanto apresentamos, no primeiro momenta, o diálogo teórico-metodológico do estudo; posteriormente, a análise das narrativas; e, por fim, retomamos as questões centrais da pesquisa, anunciando possibilidades para posteriores estudos da formação docente em Educação Física.

Método

O desafio teórico deste artigo está em construir um diálogo conceitual que nos permita dar visibilidade aos sentidos produzidos por professores de Educação Física aos lugares e espaços formativos e evidenciar a complexidade do tema, não reduzindo o conceito de formação continuada a cursos, palestras e/ou reuniões em lugares instituídos. É preciso dessa maneira, considerar lugares, no diálogo com Certeau33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994., como:

[…] a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência […] ali se impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado em um lugar próprio. O lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.

Consideramos também as operações de usos realizadas pelos professores com o que foi oferecido\ debatidos nos lugares instituídos. Nesse caso, os encontros e cursos de iniciativas da Secretaria Estadual de Educação, transformando o lugar em espaços praticados33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. entendidos como o “[…] efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidades polivalentes de programas conflituais ou de proximidades contratuais”33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. (p.201). Temos, nesse movimento, a produção de outros sentidos para além daqueles projetados como entendimento de formação continuada restritos a momentos formativos instituídos.

O agir dos professores produz espaços, contextos de circunstâncias de um fazer particular, entendidos como entrelugares de formação. Ferraço44. Ferraço CE. Currículo, formação continuada de professores e cotidiano escolar: fragmentos de complexidade das redes vividas. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p. 15–42. salienta a necessidade de dedicarmos nossa atenção às ações docentes que

[…] praticam currículos e processos de formação continuada que não se deixam aprisionar todo tempo por identidades culturais ou políticas, originais ou fixas, que ameaçam, em alguns momentos, o discurso oficial de uma proposta única para todo sistema, abrindo brechas que desafiam o instituído44. Ferraço CE. Currículo, formação continuada de professores e cotidiano escolar: fragmentos de complexidade das redes vividas. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p. 15–42. (p.37).

A leitura dos entrelugares de formação nos possibilitou visibilizar os usos33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. que os docentes fizeram com o que lhes foi oferecido, como subversores das estratégias das instituições, transformando, por meio das maneiras de fazer, lugares em espaços praticados. Para Certeau33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994., as estratégias seriam “[…] ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde forças se distribuem” (p.102).

O mesmo autor, ao estudar as práticas cotidianas de grupos sociais subalternos, sinalizou que existia uma ação de burlar regras e produtos que os poderes impõem socialmente, criando os praticantes maneiras de fazer que compreendem:

A outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. (p.39).

Nessa direção, a pesquisa analisou as práticas de formação docente nos diferentes espaços/tempos formativos de Educação Física no Ensino Médio da Rede Estadual de Ensino, em que as maneiras de fazer pudessem ficar evidenciadas. Assim, mergulhamos não somente nos momentos formadores institucionais denominados formação continuada, oferecidos pela Secretaria de Educação, mas também nos espaços formadores identificados pelos docentes como autoformativos. Concebemos, no diálogo com Oliveira55. Oliveira IB. Criação curricular, autoformação e formação continuada no cotidiano escolar. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p.43–67., a autoformação como:

[…] processos próprios de reflexão do fazer cotidiano, portanto, espaços privilegiados de produção curricular e, sobretudo, espaço de formação. Formas criativas e particulares pelas quais professoras e professores buscam o aprendizado de seus alunos, e avançam muito além daquilo que poderíamos compreender, via textos de propostas de cursos. […] processos de interação cotidianos com outros colegas e nos diálogos estabelecidos com estes. Aprendizagens mais ou menos não formais no contato com a produção acadêmica e na busca por cursos (p.46).

Entendemos que o processo de formação continuada não se restringe a momentos institucionalizados ofertados pelas Secretarias de Educação, por isso a busca pelos diversos espaços formativos praticados pelos docentes de Educação Física na Rede Estadual de Ensino, nas possíveis construções de processos autoformativos.

Podemos, nesse caso, diante das fontes, delimitar como espaços autoformativos aqueles que são criados pelos professores em iniciativas próprias, como planejamentos coletivos, criação de grupos de estudo, que não são determinados pela instituição de atuação profissional, nesse caso, a Secretaria Estadual de Educação. A inserção desse conceito nos permite observar os sentidos produzidos à formação continuada em três movimentos: a) aqueles ofertados pela Sedu; b) as práticas de apropriação dos docentes feitas com aquilo que é oferecido em momentos instituídos puxados pela Secretaria de Educação, dentro e fora das escolas, que denominados de entrelugares; e por fim; c) as iniciativas realizadas pelos professores, entendidas como autoformativas, por exemplo, como encontros de estudo dentro e fora da escola com os pares, conversas e planejamentos em momentos como recreio, entrada de turno, troca de horários, entre outros.

Os docentes assumiram o papel de narradores de suas práticas, fazendo o que Benjamin66. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221. nos alerta, uma escrita que a história hegemônica teima em calar: a das narrativas de histórias cotidianas. Dessa maneira, a arte de narrar foi compreendida como:

[…] Uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o puro em si' da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso66. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221. (p.205).

Nesse contexto, a narrativa foi vista como as experiências passadas de uma pessoa para outra, em um processo de trocas de vivências, emoções e sensações. Ao mergulharmos nas narrativas dos docentes em seus percursos de formação, aproximamo-nos do resgate das experiências singulares e coletivas, rememoradas e compartilhadas pelos professores colaboradores do estudo.

Assim, a história que a pesquisa se propôs a visibilizar, por meio das narrativas, trouxe na colaboração dos docentes suas memórias, compreendidas como ruínas66. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221. que devem ser revisitadas no presente, no sentido de organizar a narrativa em um movimento de reminiscência, entendida como “[…] uma cadeia de acontecimentos encarnada pelo narrador; ela tece uma rede de histórias comuns entre si. Em cada uma delas vive uma Sherazade, que cria uma nova história, aquela que está se contando”66. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221. (p.205). No presente, o narrador, a partir de uma atividade mimética66. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221., selecionou o que lembrar, delineando uma ação de produzir uma imagem dos acontecidos. Nesse sentido, a narrativa docente trouxe a intencionalidade do narrador ao produzir uma interpretação das práticas no presente daquilo que ele escolhe para rememorar.

A narrativa (auto)biográfica foi tecida ao longo dos encontros com seis docentes com vínculo efetivo, em exercício de sala de aula e que frequentaram alguns momentos de formação contínua oferecidos pela Secretaria de Educação, nos anos de 2001–2011. A Regional de Carapina foi escolhida pela facilidade de acesso e acompanhamento dos espaços/lugares de formação, já que a pesquisadora é docente concursada nessa regional, e ainda pelo interesse dos professores em participar do estudo.

Convidamos os professores que participaram desses momentos de formação continuada, por meio de e-mails explicando o objetivo da pesquisa, e pedindo confirmação de participação. De 10 e-mails enviados, seis docentes deram retorno. Os encontros aconteceram em diferentes espaços, de acordo com a disponibilidade dos narradores. A maioria foi em horário de planejamento na própria escola, alguns na Superintêndencia em momentos da formação continuada e outros na residência do professor.

No primeiro encontro, foi pedido ao docente que produzisse sua narrativa com base no tema: momentos de formação docente ao longo de sua carreira profissional. Partindo do que cada professor narrou nesse momento, fomos produzindo recortes narrativos que nos dessem indícios22. Ginzburg C. Mito, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. de como foram praticados espaços autoformativos55. Oliveira IB. Criação curricular, autoformação e formação continuada no cotidiano escolar. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p.43–67. e entrelugares formativos44. Ferraço CE. Currículo, formação continuada de professores e cotidiano escolar: fragmentos de complexidade das redes vividas. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p. 15–42.. Esses recortes foram retomados no encontro seguinte, com a finalidade de levar o docente a aprofundar camadas22. Ginzburg C. Mito, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. na rememoração daquela passagem narrada vivida\ praticada. Os encontros duravam uma média de uma hora, variando seu quantitativo de narrador para narrador. Assim, com os professores A, E, M e I tivemos um total de quatro encontros. E com as professoras T e L, tivemos seis momentos de produção da narrativa, pois foram as duas que permaneceram participando dos encontros na Superintência. Por isso, acompanhamos tanto o narrado em momentos individuais como nos encontros instituídos de formação continuada.

Essa formação foi um programa ofertado pela Secretaria Estadual de Educação, realizado no ano de 2010, uma vez por mês, aos sábados, objetivando pensar possibilidades de práticas pedagógicas na implementação do Currículo Básico Comum da rede para a área de Educação Física.

O número de encontros com os docentes se diferenciou por compreendermos que o processo de rememoração não ocorre de modo linear e progressivo, mas de acordo com a profundidade e os sentidos que o narrador dá ao verbalizar as suas práticas, mediado pelo diálogo com o entrevistador.

Nessa direção, formou-se o cenário de narradores da pesquisa: professores da mesma Superintendência, porém com percursos diferenciados de atuação profissional e espaços praticados. Uns com passagens em várias escolas da mesma rede, como no caso do professor A, com 30 anos de magistério, docente E com 25 anos de carreira; o narrador T com 21 anos de rede e I com 18 anos de exercício. Outros professores tinham longos anos de vivência na rede na mesma escola, como é o caso da professora M com 23 anos de função. Além dos já citados, completa o grupo de narradores a docente L, em início de sua carreira no magistério, com três anos como profissional. Os docentes colaboradores concederam o uso da gravação e divulgação da narrativa, assinando o Termo de Livre Consentimento, previsto pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Espírito Santo. O projeto do estudo foi aprovado pelo comitê, tendo como n. de protocolo 118/11. Optamos por usos de letras maiúsculas para identificar os docentes, no intuito de manter garantida a privacidade dos sujeitos.

Reunimos um registro transcrito de aproximadamente 72 páginas. A organização da escrita da narrativa (auto)biográfica e sua análise foi operada tomando como princípios norteadores três aspectos fundamentais definidos por Certeau77. Certeau , M. A escrita da História. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense; 2006: a) reconhecer o trabalho nos desvios, sem a pretensão de alcançar a totalidade; b) trabalhar com a história do particular e seus limites; c) analisar o lugar próprio da fonte e suas intencionalidades.

Interrogamos as fontes na tentativa de compreender o processo de construção da obra, o que nos permitiu, com base na leitura das narrativas, construir os seguintes eixos de análises: a) a produção de espaços autoformativos para além dos momentos ofertados pela escola e pela Secretaria de Educação e o lugar próprio construído pelo docente nesse processo; b) as tensões, apropriações e desafios encontrados ao praticar os momentos de formação continuada institucional. Compreendemos o conceito de lugar próprio no diálogo com os preceitos teóricos de Certeau77. Certeau , M. A escrita da História. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense; 2006 na discussão de escrita da histórica. Assim, o autor, ao identificar que fazer história é uma prática de sujeitos em uma organização relativa a um lugar e a um tempo, sinaliza que a escrita põe em cena uma população de personagens e mentalidades sob formas e conteúdos diferentes.

Resultados e discussão

Ao dialogarmos com as narrativas autobiográficas docentes de Educação Física da Rede Estadual de Ensino, analisamos, em especial, as concepções de formação docente elaboradas pelo professor.

No percurso formativo do professor A, os espaços praticados na escola, juntamente com o coletivo pedagógico, foram rememorados como valorativos, por compreender esse movimento instituinte necessário e qualitativo para a socialização, troca de experiências e debate entre os componentes curriculares que lidam com as mesmas turmas de ensino:

Entendo que formação continuada começa na escola, um espaço que tem que ser em função dos professores. Eu, quando tenho necessidade, sento com a pedagoga, e a gente troca uma ideia. Eu não tenho o que reclamar, pois essa escola - o Colégio Estadual - sempre proporcionou um espaço para discutirmos. Esse espaço eu considero muito importante para que os outros professores das outras disciplinas nos conheçam melhor. Teve um, por exemplo, que me disse: ‘Poxa, foi bom te conhecer melhor, pois eu pensava que você fosse daqueles professores que joga a bola para o aluno e acabou’. Então, nesse momento, mostro para eles os méritos que eu tenho, mas acho que a formação continuada, do jeito atual que está sendo, não funciona, pois não se pode tirar a carga horária do aluno. A Secretaria de Educação não entende que, com uma aula que você tira do aluno, o professor está aprendendo muita coisa no diálogo com os colegas. Houve uma época lá, no Hildebrando Lucas, muito boa, onde a equipe de professores se reunia uma vez por mês e funcionava assim: um dia eu ia assistir à aula do outro e, depois, ele vinha assistir a minha. A temática da aula era a mesma entre as disciplinas (Professor A, nov. 2010).

A narrativa ressalta as necessidades dos movimentos formativos entre o coletivo da escola na relação dialógica sobre o dia a dia da sala de aula e a importância de os professores conhecerem quem é o outro com quem trabalha, sua história docente, seus projetos com os alunos. A fala do professor sinaliza que, mesmo diante das dificuldades instituídas, as escolas por onde o docente lecionou produziram momentos coletivos que discutiram ações de prática pedagógica. Esses espaços coletivos foram construídos como visto na passagem narrada sobre a escola Hildebrando Lucas. Dessa forma, visualizamos o lugar próprio33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. que o corpo pedagógico constitui, independentemente de a iniciativa partir de uma ordem estabelecida pela da Secretaria de Educação e, assim, criam-se espaços autoformatívos que não são consideradas oficialmente como lugares de formação continuada.

As conversas de corredores na troca de horário, o momento da entrada e do recreio na sala de professores, a troca de um turno para o outro são produtos - fios dos espaços e tempos formativos em que o docente demonstra seus gestos táticos33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. no lidar com necessidades da prática pedagógica, denotando a ausência da passividade e conformismo ao instituído que, de certa maneira, não prevê nem reconhece esses movimentos como os de formação continuada. São espaços que se constituem na relação de poder, usados astuciosamente pelo professor como uma forma de dar visibilidade a seu trabalho na Educação Física. Nesse caso, os espaços exigiram

[…] intercâmbios, trocas, compartilhamentos, e não apenas a determinação da ‘lei de um lugar próprio’ […]. Os professores expressam em suas vozes a necessidade de um coletivo com intercâmbios, trocas, compartilhamentos, parcerias, assim como de instauração de comunidades compartilhadas locais e translocais88. Carvalho, J. O não lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada. Rev Bras Educ. 2005;28:96–108.(p.28).

Nesse caso, a narrativa do professor A evidencia ainda seu descontentamento com uma carga horária de trabalho semanal que pouco permite momentos de formação em serviço. A luta pelo reconhecimento e a institucionalização da formação em serviço é uma questão permanente nas narrativas dos professores, bem como na própria produção acadêmica, pois como salienta Nóvoa99. Nóvoa A. Professor se forma na escola. Nova Esc. 2001;142:41., é no espaço concreto de cada escola, em torno de problemas pedagógicos ou educativos reais, que se desenvolve a verdadeira formação do professor.

A questão central não está em definir um tempo para a formação em serviço, mas em tomar a profissionalidade docente como objeto dessa formação em um movimento alicerçado na “[…] reflexão na prática e sobre a prática, através de dinâmicas de investigação-ação e de investigação-formação, valorizando os saberes de que os professores são portadores”1010. Nóvoa A. Profissão professor. Porto: Porto Editora; 1991 (p.30). Nesse sentido, tanto a produção acadêmica como os narradores desta pesquisa nos dão indícios da necessidade de iniciativas formativas, dentro das escolas, com a comunidade escolar em momentos coletivos e também fora do ambiente escolar, nos encontros com a Secretaria de Educação e Universidade, na direção de produzir o conhecimento no diálogo com o protagonismo das práticas pedagógicas. Entendemos a potencialidade da perspectiva de formação-investigação1010. Nóvoa A. Profissão professor. Porto: Porto Editora; 1991 como fio condutor no processo de (res)significação e produção de sentidos às suas experiências docentes e, por aqui, as possibilidades qualitativas de melhoria do ensino e aprendizagem escolar.

Os recortes narrativos das professoras I e M incidem na discussão da formação continuada como política pública que deve ser garantida ao docente em momentos institucionalizados, no tempo e espaço de escola e fora dela, em reuniões, seminários e congressos da área, como sinalizado a seguir:

Eu entendo que formação continuada é um local em que vamos procurar adquirir novos conhecimentos e trocar experiências. Aqui, na escola, há um tempo atrás, tivemos reuniões aos sábados. Mas, hoje em dia, não dá, pois em que horário iremos conseguir nos reunir? Se prevê horário de planejamento por área, só que, na prática, mal dá para garantir o horário de planejamento de todos os professores. Isso porque tem, atualmente, no ensino médio, uma grade curricular com muitas disciplinas que não tinha, como espanhol, sociologia. Então, vejo que se podia fazer igual à da Prefeitura Municipal de Serra. Deveríamos ter momentos de formação continuada mensais, dentro e fora da escola. A verdade é que eu trago muitas coisas da Prefeitura para cá, pois lá, nos encontros, eu aprendo mais (Professora I, nov. 2010).

Na história da Rede Estadual de Ensino não lembro de formações oferecidas pela Sedu. O que tinha eram cursos, sempre quando tinha jogos, no fundo, interesse político. Acho que isso não mudou. A gente espera que eles levem pessoas que nos ajudem a resolver nossos problemas da prática para a gente debater, mas não é isso que acontece. Atualmente, vêm tendo as reuniões lá na Superintendência, mas não vêm contribuindo em quase nada para mim, pois só falam em jogos. Acho que essa formação do Estado vem sendo tempo perdido, poderia ser mais aproveitada. Não sei se é que eu me acostumei com a formação da Serra e estou exigindo uma qualidade igual (Professora M, set. 2010).

Os recortes narrativos docentes sinalizam dois pontos de análise no contexto da formação na Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo: um, o descontentamento com as políticas públicas de formação contínua que apresentam encontros esporádicos com discussões distantes do vivido/praticado nas aulas de Educação Física, levando-as à comparação com a formação ofertada pela Prefeitura de Serra; e o outro, o pouco tempo no horário escolar para espaços formativos dentro da escola tecidos pela comunidade pedagógica mediante as suas necessidades diárias.

O destaque e a identificação, no que se refere à formação continuada da Prefeitura de Serra, provêm da dinâmica formativa desse lugar. Ao proporcionar um espaço coletivo de discussão da Educação Física em encontros mensais, nos quais os autores e atores das discussões são os professores da rede, os docentes estudam no debate de suas experiências com a escola, trazidas para troca com os pares. Essa ação vem ao encontro de uma concepção de formação produzida tomando como ponto de partida e de chegada a centralidade nos espaços e tempos da escola, em contraposição à lógica de reuniões coletivas nos moldes de palestras, cursos de aplicação e instrumentalização docente1111. Tardiff M, Levasseur L. A divisão do trabalho educativo. Petrópolis: Vozes; 2011.. Portanto, o coletivo de professores de Educação Física da rede municipal de Serra, ao analisar suas práticas com base na socialização de suas experiências, produz espaços formativos que se identificam por ocuparem a autoria do processo da formação no lugar instituído.

Temos como esse movimento a transformação do entrelugares formativos em lugares instituídos em que a centralidade está no fazer pedagógico do professor e no seu reconhecimento como protagonista, autor e colaborar da formação oferecida pela Secretaria. A transformação desses lugares mediados pelas práticas dos professores sinaliza a possibilidade de as táticas se constituírem em novas estratégias. Foi nas operações táticas efetuadas dentro das estratégias que os professores criaram outros lugares próprios de formação continuada reconhecidos pelo poder institucionalizado.

As táticas se configuraram como “[…] campos de possibilidade de professores […] transcenderem a trajetória, transcenderem o lugar próprio de autoria individualizada rumo a um projeto estratégico/tático de criação coletiva contextualizada e problematizada [„.]”1212. Carvalho, J. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et Alii; 2009. (p.164). Além disso, há, nesse caso, o reconhecimento do trabalho dos pares como aqueles que podem apresentar inspiração para que os professores reinventem outras possibilidades de ensino, assumindo que a construção dos saberes da experiência passa também por processos investigativos e que o estímulo à atitude de estudo compartilhado das práticas potencializa a formação de professores, sobretudo à formação continuada.

Esse movimento vai tecendo outras formas de viver esse lugar, em que são estabelecidos vínculos de solidariedade, fundamentados na troca e na produção de saberes. Constrói-se uma afinidade entre o conhecimento produzido pelo professor e o que é oferecido na formação continuada, estabelecendo uma relação de pertencimento.

Nesse movimento, compreendemos que as

[…] experiências constituem produtos singulares, que nascem do ofício coletivo, criados e ressignificados pela pessoa do professor, ou seja, é fundamental fazer da experiência uma forma de afirmação dos conhecimentos produzidos ao longo da caminhada docente, compartilhar esses saberes com os colegas de trabalho e comunicar a experiência1313. Luiz IC, Ventorim S, Mello A, et al. Práticas de apropriação dos professores de educação física nas formações continuadas: trilhando a produção de sentidos. Motrivivência. 2014;26:70–88. (p.74).

A valorização e o compartilhamento das experiências de atuação pedagógicas como perspectiva de formação têm oferecido possibilidades de ensino nas quais o professor tem a condição de produzir outros conhecimentos ao contexto escolar. Para Benjamin66. Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221., a narrativa na troca de experiência representa o conhecimento da prática que interliga conselho e sabedoria. Nessa relação se constitui a tradição, ou seja, um baú de histórias e práticas assentadas na memória que, no presente, são desencadeadas por reminiscências e, por serem significativas ao narrador, são passíveis de novamente serem contadas.

A narrativa da docente M e a da professora I trazem a busca por espaços formativos dentro da escola, onde, nas diversas relações professor/professor, professor/aluno, formam fontes de conhecimentos na ação dialógica, as quais produzem formação mútua nos sujeitos envolvidos1414. Alves N, Oliveira IB, Macedo E, Manhães LC, organizadores. Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez; 2002.. No entanto, esse movimento de formação continuada por vezes é freado pelas dificuldades impostas pelo instituído. Nesse sentido, a Secretaria de Educação da Rede Estadual, a partir de 2010, constitui uma iniciativa de formação em serviço, chamada de planejamento por área de conhecimento, em que a Educação Física corresponderia à área de linguagem, agrupada às disciplinas de Língua Portuguesa, Estrangeira e Artes. Esses componentes curriculares, uma vez por semana, teriam seus planejamentos no mesmo horário e, com isso, possibilitariam trocas e planejamentos em um mesmo eixo temático por projetos interdisciplinares1515. Espírito Santo. Secretaria Estadual de Educação. Currículo básico escola estadual. Vitória: SEDU; 2009..

Essa iniciativa vem em consonância com a execução do Currículo Básico Comum (CBC), criado pelo Estado do Espírito Santo, demonstrando muito mais a intencionalidade em garantir os fazeres pedagógicos norteados pelo currículo prescrito do que uma possibilidade de propiciar um espaço formativo com autoria da comunidade escolar, haja vista, ainda, a ausência de um momento em que todas as disciplinas possam estar reunidas no mesmo horário. Apesar desse movimento de organização por área, os professores destacam a dificuldade de se construir, em serviço no horário escolar, lugares formativos que reunirão o coletivo da escola.

Os entrelugares formativos foram constituídos nas trajetórias docentes dos narradores, não somente na relação com o instituído pela Secretaria de Educação da Rede Estadual, mas, também, nos momentos praticados no diálogo com a universidade em congressos, cursos e seminários. A narrativa da professora T indica a valorização dos momentos de formações em lugares instituídos:

Quando passei no concurso da Prefeitura de Vitória, em 2006, o meu interesse, que hoje já não acho grande coisa, era estar na rede em que todo mundo falava: ‘Ah, lá tem reunião de estudo nas escolas, na Secretaria, formações para os professores’. Então, eu achava a ideia interessante, pois tudo, antes da Prefeitura, eu buscava estudando, planejando sozinha. No entanto, quando comecei a ir nos encontros da Prefeitura, eu vi que as pessoas levavam relatos de coisas simples e achavam aquilo o máximo, mas eu não. […] É sempre a mesma história: legitimar a Educação Física. Acho isso demais, ficar batendo sempre na mesma tecla. Vejo que a situação vai da vontade dos dois lados: de um lado, o professor, que precisa ter profissionalismo para levar sua aula, e, de outro, as políticas públicas para investir nesse profissional na escola. Não acho certo esse negócio de ficar julgando e falando mal do outro dentro de nossa classe de professores. Hoje mesmo estava lendo o texto do Mauro Betti, em que ele coloca o que a gente tem que fazer com 1° a 4° série e 5° a 8° série. Então virei para outro professor de Educação Física e disse: ‘Mas isso não é o que a gente já faz?’ Ele disse: ‘É’. Chegamos à conclusão de que, se a gente colocasse todas as nossas práticas, nossas experiências em um livro, já tínhamos nos tornado um “best seller”. Se é para escrever sobre isso, então a gente mesmo escreve, o professor da rede (nov. 2010).

A narrativa da professora T traz o panorama da legitimidade da área de Educação Física em dois contextos: de um lado, a discussão a partir das tensões, possibilidades e o fazer com o cotidiano escolar que a docente vivenciou ao longo da trajetória de magistério; por outro, o debate acadêmico que transversalizou momentos formativos docentes em lugares institucionais, principalmente com a universidade nos espaços da graduação, congressos e leituras que tratam sobre o tema.

Santos et al.1616. Santos W, Nunes KR, Ferreira Neto A. Currículo e avaliação na educação física: práticas e saberes. In: Schneider O, organizador. Educação física, esporte e sociedade: temas emergentes. São Cristovão: Editora da UFS; 2008. v.2., ao analisarem a produção do conhecimento da universidade em relação à Educação Física Escolar, ressaltam que a compreensão de alguns pesquisadores acerca do que são ou deveriam ser as práticas pedagógicas com a disciplina parece desconsiderar o lugar da escola como espaço de produção de conhecimentos. Os autores sinalizam sobre essa posição acadêmica:

[…] em nome do controle de campo científico, encontramos produções teóricas realizadas pelas vozes legitimadas que constituem a educação física, a construção de discursos que objetivam produzir um estado permanente de crise. O desconhecimento do que foi produzido pela própria área ou a opção de negligenciar, silenciar essa produção, tem comprometido o entendimento da diversidade e multirreferencialidade do que seja educação física (p.181–2).

Nessa direção, o narrado pela professora T indica sua compreensão acerca do debate sobre a legitimidade do componente curricular Educação Física. Diante da resistência à discussão acadêmica sobre o tema, a professora, ao questionar o texto de Mauro Betti, lido na formação continuada, analisa que a produção do conhecimento sobre a escola deveria partir da autoria daqueles que a praticam cotidianamente. Em sua participação nos debates dos lugares instituídos formativos, recusa-se a dialogar com o discurso de constante crise da Educação Física, indicando o compromisso docente com suas práticas pedagógicas como eixo norteador da legitimidade do componente curricular na escola.

Observamos, nesse caso, a necessidade do deslocamento da escola como espaço reprodutor de teoria para produtor de conhecimento nutrido pelas experiências das práticas pedagógicas. O reconhecimento do fazer pedagógico do professor como portador de um saber vai oferecendo possibilidades em produzir análises que fogem do diagnóstico de denúncia em um movimento que busca entender o que se faz, por quê, para que e como esse fazer apresenta possibilidades de se legitimar a Educação Física no contexto escolar ancorado nas práticas.

É interessante notar como esse movimento é lido positivamente pelos professores na medida em que destacam os espaços de troca de experiência com os pares como aqueles significativos para sua formação. Contudo, é preciso considerar que o fato de se assumir a prática escolar como produtora de conhecimento não exime o fato de se ter que estabelecer novas análises fundamentadas nos saberes acadêmicos, que, por sua vez, permitirão a produção de novas leituras e práticas. Entendemos, dessa maneira, que a formação não se tece “[…] por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim por meio de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de uma (re) construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir na pessoa e dar estatuto ao saber da experiência1717. Nóvoa A. Os professores e sua formação. 2a ed. Lisboa: Dom Quixote; 1995. (p.25).

Outro ponto de discussão que a narrativa de T e também a da docente M nos sinalizam é a necessidade da inovação nos debates das reuniões institucionais de formação continuada. Essa busca do “diferente” anuncia a necessidade de estudos que caminhem em consonância com a diversidade de temas que emergem do cotidiano das aulas, naquilo que os alunos questionam e se sentem motivados a praticar.

A própria produção acadêmica, desde a década de 90 aos dias atuais, sinaliza a necessidade de políticas de formação no diálogo com o vivido/praticado nas escolas, como constatado nos estudos de análise da produção em formação docente de Bueno et al.1818. Bueno BO, Chamlian HC, Sousa CP, Catani DB. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente: Brasil, 1985–2003. Rev Educ Pesq. 2006;32:385–410. e Vieira1919. Vieira A. Narrativas da formação docente de educação física no ensino médio da rede estadual de ensino do Espírito Santo [dissertação]. Vitória (ES): Universidade Federal do Espírito Santo; 2011.. Mediante esse panorama, o que vale questionar seria, então: as políticas públicas para a formação docente não possuem a compreensão sobre as necessidades da escola, ou há uma intencionalidade no projeto político-institucional ao propor um modelo de educação que se quer executado pelos professores? Existe ausência de financiamento para programas de formação continuada?

No Brasil, a partir de 2007, na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010), toma-se como documento fundamental para o âmbito da educação institucional o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE)2020. Brasil. Ministério da Educação. Indagações sobre o currículo. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica; 2007., no qual se identificam iniciativas na enunciação do objetivo da política nacional de educação:

[…] construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (p.5–6).

O projeto político desse piano, para ser difundido na escola, supunha formação do professor, em que, para tanto, o governo organizou 11 programas específicos para formação, cinco para preparo de material de estudo, um programa de estímulo à iniciação à docência no nível superior, três redes, um sistema de formação a distância, uma política de formação articulada à Capes; um prêmio para professores, um fundo (Fundeb), um banco de dados internacional, três programas de formação de profissionais da escola - entre eles, o professor - e os programas Gestão da Aprendizagem Escolar (Gestar) e Programa de Apoio aos Dirigentes Municipais de Educação (Pradime). Além disso, criou a política de editais com financiamento para a formação e transformou os Institutos Federais de Educação Tecnológica (Ifests) em agência de formação docente2121. Evangelista O, Triches J. Docência, gestão e pesquisa nas DCNP. Rev Bras Form Prof. 2009;2:178–203..

Evangelista e Triches2121. Evangelista O, Triches J. Docência, gestão e pesquisa nas DCNP. Rev Bras Form Prof. 2009;2:178–203. apontam como impactante o número de programas de formação docente e seu direcionamento político como questão de Estado. No entanto, as autoras ressaltam que, se, por um lado, isso indicia uma melhor qualificação profissional ao docente com iniciativas de formação, por outro, apenas demonstra um aumento nas exigências sobre os docentes, expressas na intensificação do trabalho, em manter tarefas já realizadas, como lecionar, planejar, porém com maiores exigências, como participação em formações e cursos nas Secretarias de Educação, em programas de formação coordenados pelo MEC na modalidade a distância, na construção de projetos interdisciplinares, dentre outros.

Esse apontamento ficou sinalizado nas narrativas dos professores da Rede Estadual do Espírito Santo, quando tensionam reflexões sobre a exigência ao trabalho docente após a implementação do Currículo Básico Comum. O narrado sinaliza que, na materialização do prescrito, houve uma estruturação do trabalho educativo que mudou as configurações do momento de planejamento, quando áreas afins dividiriam o mesmo tempo para garantir uma possibilidade de trabalho interdisciplinar. No caso da Educação Física, componente curricular da área de Linguagem, uma vez por semana, planejariam em conjunto professores de Língua Portuguesa, Artes e Língua Inglesa. Contudo, nas escolas, alguns impasses fizeram com que esses momentos coletivos não fossem possíveis, como demonstrado na narrativa da professora I:

[…] a aula é de uma hora e a carga horária do professor, dependendo do número de turmas, não fecha em um turno só, aí ele pede para não dar o último horário, pois tem que ir para outra escola (Professora I, nov. 2010).

Por outro lado, as narrativas revelam que houve algumas iniciativas de espaços construídos pela Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo, como o curso de extensão em Educação Física Escolar, nos anos de 2010 e 2011. Apesar de executado em horário extracurricular, em encontros aos sábados, e não remunerados, os professores que participaram viram nessa iniciativa uma maneira de melhor compreender como se apropriar do prescrito no CBC em suas aulas. Essa busca fica evidenciada na intencionalidade da professora T ao continuar participando dos lugares formativos instituídos e na narrativa da professora L, apesar de se encontrarem em momentos de percurso docente distintos, a primeira com 21 anos de rede, e a segunda com três anos, como apresentado a seguir:

Quando começaram, de dois anos atrás para cá, os cursos na Rede Estadual, eu fiz questão de participar, porque nunca tive. Eu queria me possibilitar isso, pois vai que me aposento e aí eu não vivi isso. Então, no ano passado, fui ao Fórum, aos jogos na rede e ao curso de extensão. Em relação ao ensino médio, sinto falta das oficinas e de troca de experiência, pois nessa história de Currículo Básico Comum, fico meio insegura (Professora T, nov. 2010).

Sinto e reconheço que não consigo trabalhar da forma que gostaria e acho ser o ideal. Por isso, tenro aprimorar meus conhecimentos para minha atuação na Rede Estadual. Os encontros da Sedu ajudam a gente a renovar, pois, no debate, a gente ‘abre a cabeça’. Assim, em todas as oportunidades, temos de pesquisar nossa prática na troca de experiência com outros docentes. Acho válido (Professora L, set. 2010).

O narrado vislumbra os entrecruzamentos em que o tempo de carreira se mistura com os objetivos que levam o docente a procurar momentos formativos. A professora T, em seus 22 anos de magistério, demonstra, apesar de toda a experiência com a prática pedagógica da Educação Física, dois sentimentos expostos em sua fala: o de pertencimento, no sentido de ocupar um lugar que ela considera de direito, ou seja, aproveitar todas as oportunidades de formação que a Sedu ofereça, por entender que, em seu percurso pela Rede Estadual, não teve essas alternativas e, por isso, na atualidade, participa desses eventos; e o sentimento da curiosidade metódica2222. Freire P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996 que a levou a esses lugares instituídos formativos, tendo, ao mesmo tempo, humildade para compreender que, diante das novas demandas que o cotidiano escolar apresenta, surge a constante necessidade da pesquisa e a prática da experiência que a levam a não aceitar tudo que lhe é oferecido. Isso fica evidenciado no instante em que T narra sua dificuldade em lidar com o CBC e as aproximações e distanciamentos deste com suas práticas no ensino médio.

O Currículo Básico Comum foi um documento construído na gestão de 2004 a 2010 do governo do Estado do Espírito Santo, como parte de um projeto de política pública direcionado a constituir diferentes dispositivos que, de acordo com a Secretaria de Educação, estariam previstos no chamado Plano Estratégico de uma Nova Escola, um contexto mais qualitativo de educação para toda a Rede Estadual de Ensino. O documento teve por objetivo servir de:

[…] instrumento que visa a dar maior unidade ao atendimento educacional, fortalecendo a identidade da rede estadual de ensino, que se concretiza na práxis docente consonante com os princípios de valorização e afirmação da VIDA em todas as suas dimensões; mediante o resgate de princípios históricos construídos na área da educação, como a relação entre trabalho, ciência e cultura, tendo-se os estudantes na centralidade dos processos educativos1515. Espírito Santo. Secretaria Estadual de Educação. Currículo básico escola estadual. Vitória: SEDU; 2009. (p.12).

A base teórica do documento que enuncia uma prática pedagógica respaldada nos preceitos de competências e habilidades segue, assim,

[…] uma orientação contida nos principais documentos de referência do Ministério da Educação (MEC), como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais e a do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As competências são entendidas como a ‘capacidade de agir em situações previstas e não previstas, com rapidez e eficiência, articulando conhecimentos tácitos e científicos a experiências de vida e laborais vivenciadas ao longo das histórias de vida’. E as habilidades, como desdobramentos das competências, como parte que as constituem. Comumente, expressam a forma de o aluno conhecer, fazer, aprender e manifestar o que aprendeu1515. Espírito Santo. Secretaria Estadual de Educação. Currículo básico escola estadual. Vitória: SEDU; 2009. (p.28).

No contexto da área de Educação Física, a Secretaria de Educação, objetivando instrumentalizar os professores para o trabalho nas escolas estaduais, elaborou um Programa de Formação Continuada baseado, inicialmente, no estudo de textos acadêmicos que dessem visibilidade às propostas teórico-metodológicas da Educação Física, em especial, aquelas que serviram de base à constituição do documento2323. Nunes K, Ferreira Neto, A. O currículo básico comum e formação continuada: experiências com a educação física na rede estadual/ES. Motrivivência. 2008;31:274–92..

O CBC questiona o papel da disciplina no contexto escolar e suas contribuições à sociedade, desencadeando a produção de teorias pedagógicas críticas, que procuram contribuir para as mudanças no entendimento do que venha a ser o ensino para esse componente curricular. Nessa direção, anuncia:

Foi com base nessas teorias críticas que traçamos a concepção de ensino da Educação Física deste documento curricular. Nos apropriamos da compreensão do Coletivo de Autores, de que a cultura corporal humana é um conhecimento sócio-histórico produzido e acumulado pela humanidade, que ao mesmo tempo em que o homem constrói a sua corporiedade ele também produz e reproduz uma cultura. Além disso, nos apoiamos no conceito de componente curricular, que é conjunto de conhecimentos sistematizados, que deverão promover uma reflexão acerca de uma dimensão da cultura com a finalidade de contribuir para a formação cultural do aluno1515. Espírito Santo. Secretaria Estadual de Educação. Currículo básico escola estadual. Vitória: SEDU; 2009. (p.99).

No diálogo com Nunes e Ferreira Neto2323. Nunes K, Ferreira Neto, A. O currículo básico comum e formação continuada: experiências com a educação física na rede estadual/ES. Motrivivência. 2008;31:274–92., percebemos, na narrativa da professora T e no prescrito no documento do CBC, que o currículo do ensino médio é repleto de conteúdos e competências que concorrem com demandas externas à escola e aos seus sujeitos. As temáticas e ações propostas no prescrito parecem estar distanciadas das experiências praticadas pelos docentes ao longo da história de práticas curriculares no ensino médio dessa rede de ensino. É por isso que professores como T veem com dúvidas, estranhamentos e inquietação o CBC.

Esse cenário narrado novamente demonstra o que Santos et al.1616. Santos W, Nunes KR, Ferreira Neto A. Currículo e avaliação na educação física: práticas e saberes. In: Schneider O, organizador. Educação física, esporte e sociedade: temas emergentes. São Cristovão: Editora da UFS; 2008. v.2. já sinalizavam: que, ao longo das décadas de 80 e 90, muitas pesquisas e discussões teóricas foram produzidas no intuito de destacar pontos negativos das práticas pedagógicas da Educação Física na Educação Básica, sem, no entanto, buscar proximidade com os professores, no intuito de lhes proporcionar narrar seus fazeres e saberes produzidos na escola.

Defendemos a necessidade de políticas públicas de formação continuada e práticas colaborativas entre educação básica e Universidade que partam do reconhecimento da autoria das práticas docentes, entendendo a escola como produtora de múltiplos conhecimentos, um lugar/espaço de circulação de saberes nos quais a diversidade é o referencial maior e a complexidade chamada cotidiano escolar. O desafio que se instaura é: ao mesmo tempo em que propicie um espaço de formação, faça deste um lugar que tome a pesquisa como eixo da formação docente, enfatizando a necessidade de se quebrar a dicotomia secular entre fazer e pensar, quase eternizada em outra dicotomia bem acadêmica: teoria/prática. Revisitando e, mais, ressignificando essas dicotomias, destacamos a pesquisa como uma possibilidade bem concreta da formação docente, pressupondo um contínuo aprofundamento teórico aliado às práticas cotidianas do fazer docente. Assim, sinalizamos a necessidade de políticas públicas que garantam e deem suporte financeiro e de recursos didáticos e humanos para que, essas iniciativas de formação continuada docente aconteçam, preferencialmente, no horário em serviço do professor e em seu local de trabalho. Compreendemos que esse seja um caminho para que possamos traçar outras possibilidades frente ao tratamento aligeirado que, em geral, vem recebendo a formação docente nas políticas de governo, o que explica, em grande parte, os constantes insucessos das ações tentadas e assim julgadas pelos professores.

A prática do educador, em seu contexto autoformativo, por exemplo, demonstra a capacidade de ele se ver em um processo inconcluso, flexibilizando as certezas daquilo que ensina na ação de buscar, questionar e se autocriticar ao longo de suas experiências pedagógicas. É preciso, então, transformar esse movimento em ações institucionalizadas de formação, em um movimento de pesquisar a singularidade do lugar próprio que o docente produz nos espaços praticados de cotidiano escolar, em diálogo com a política, o currículo etc. Freire2222. Freire P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996 compreende que o professor, ao se descobrir cotidianamente como um ser inacabado, desenvolve em si próprio o pesquisador-sujeito curioso, que busca o saber e o assimila de uma forma crítica, não ingênua, com questionamentos, e orienta seus educandos a seguirem também essa linha metodológica de estudar e entender o mundo, relacionando os conhecimentos adquiridos com a realidade de sua vida. Dessa maneira […] não há ensino sem pesquisa nem pesquisa sem ensino. […] ensinar, aprender e pesquisar lida com dois momentos: o em que se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente2222. Freire P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996 (p.31–2).

No diálogo com estudos de Tardiff e Levasseur1111. Tardiff M, Levasseur L. A divisão do trabalho educativo. Petrópolis: Vozes; 2011. e Alves2424. Alves N. A compreensão de políticas nas pesquisas com os cotidianos: para além dos processos de regulação. Educ Soc. 2010;113:1195–212., identificamos que, ainda na atualidade, se encontra frequentemente a ideia de que o trabalho educativo seja unicamente tarefa do docente, sem se levar em conta a organização coletiva à qual ele pertence e que se define a partir de múltiplas redes de negociação e interações com outros. Em síntese, há de se considerar que a formação se dá em múltiplos contextos, na articulação de diálogo entre atores da escola - docente e comunidade escolar - Secretarias e Ministério de Educação.

É pertinente afirmar que as políticas educacionais voltadas à formação continuada de professores da Educação Básica são fundamentais e possuem um potencial significativo para a promoção da melhoria da qualidade da aprendizagem dos alunos com um impacto relevante na prática social, na medida em que propiciam momentos de problematizações e novas invenções ao cotidiano escolar. Porém, as políticas de formação continuada precisam estar articuladas a outras políticas, uma vez que a problemática da aprendizagem e da construção da qualidade na educação pública exige uma multiplicidade de ações e intervenções para além da formação continuada de professores. Nesse caso, ressaltamos a Lei n. 11.738/2008, mais conhecida como Lei do Piso, que instituiu um valor mínimo nacional para os salários dos profissionais do Magistério Público da Educação Básica e definiu um limite máximo (dois terços da carga horária) para as atividades de sala de aula. Ou seja, o outro terço do tempo garanta ao educador o tempo de aperfeiçoamento de sua formação. É necessário compreender que a lei é uma conquista para o Magistério e que, ao garantir momentos de formação em serviço no dia a dia da escola, o trabalho docente é qualificado, ao discutir avanços e entraves da prática pedagógica no coletivo da comunidade escolar, na troca de experiências dentro da escola. Faz-se necessário compreender que formação continuada não se resume à autoformação, pois estaríamos ratificando a ideia de que é função apenas do docente o trabalho educativo, como também não se reduz às propostas governamentais de cursos e capacitação que não dialogam com o cotidiano escolar.

Formação é ação, em que o professor (trans)forma saberes e produz novos conhecimentos, (re)forma o pensamento e ressignifica suas concepções, de maneira subjetiva, potencializando a construção de saberes próprios e mudando suas compreensões para além dos enunciados na formação. Porém as práticas de formação e atuação profissional nunca são individualizadas; elas são coletivas, à medida que expressam anseios de uma identidade social (professores) e o pertencimento que têm com essas redes. Em última análise, as práticas dos professores podem ser entendidas como singularização das redes com as quais eles se relacionam.

Por isso, precisamos compreender formação como uma rede de autores em diálogos compartilhados, estando, nesta, docentes da Educação Básica, da Universidade e do Governo. Esse movimento parece-nos fundamental para que possamos unir esforços e iniciativas que deem visibilidade à necessidade de ampliação da formação em serviço e, assim, contribuir para a melhoria das condições do trabalho docente no País. Nesse ponto é preciso fortalecer os espaços coletivos de formação, como redes de trabalho e de partilha, pois, como enfatiza Nóvoa2525. Novoa A. Formação de professores e trabalho pedagógico. Lisboa: Educa; 2002.

Um dos eixos estratégicos mais importantes é o apoio a práticas de formação contínua que estimulem a apropriação pelos professores, a nível individual e coletivo, dos seus próprios processos de formação. A troca de experiências e a partilha de saberes consolidam redes de formação mútua, nas quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando […]. O diálogo entre os professores é fundamental para consolidar saberes emergentes da prática profissional. Mas a criação de redes coletivas de trabalho constitui, também, um fator decisivo de socialização profissional e de afirmação de valores próprios da profissão docente (p.63–4, grifo nosso).

No geral, o Curso de Formação Continuada da Sedu sinalizou a diversidade da representação que os docentes podem constituir, mediante os usos33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. feitos com o que lhe foi ofertado. Isso ficou vislumbrado nas duas narrativas das professoras L e T que, de maneira singular, construíram seus entrelugares formativos diante da formação continuada ofertada. Indicam, principalmente na relação com o instituído, um dos grandes desafios da carreira dos docentes da Rede Estadual de Ensino, o currículo praticado no trato com o conhecimento da Educação Física no ensino médio.

Em síntese, vemos que o entendimento de formação continuada apontado nas narrativas (auto) biográficas docentes nesta pesquisa demonstrou que os narradores identificam os momentos instituídos na escola com a equipe pedagógica e na Secretaria de Educação, em reuniões com docentes da Educação Física, como lugares de práticas formativas. No entanto, as ações autoformativas singulares, de pesquisa cotidiana de sua prática pedagógica, não são identificadas pelo professor como instâncias de formação continuada. Isso pode ser vislumbrado nos recortes narrativos aqui retomados, como o da professora que diz que “[…] Eu entendo que formação continuada é um local em que vamos procurar adquirir novos conhecimentos e trocar experiências” (Professora I). Além dela, a docente M aponta que formação “[…] é levar pessoas que nos ajudem a resolver nossos problemas da prática para a gente debater, mas não é isso que acontece”.

Esse contexto pode ser provocado por discursos científicos e de órgãos governamentais que difundem a ideia reduzida de que formação continuada seria o lugar instituído para estudo, cursos em parceria ou não com universidades, para a reflexão das práticas docentes na escola. Assim, enfatizamos a necessidade de pensar iniciativas de formação contínua na centralidade do agir dos educadores, ou seja, incentivar o docente à (re)leitura de seus espaços praticados, levando-o a narrar suas práticas curriculares e com isso se reconhecer na autoria dos processos formativos e de produções acadêmicas que deem visibilidades a essas iniciativas de formação continuada.

A pesquisa objetivou identificar e dar visibilidade aos lugares/espaços formativos identificados pelos professores de Educação Física da Superintendência de Carapina, na Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo. Nesse sentido, observamos que as narrativas autobiográficas docentes apresentam dois pontos de análise: a diversidade de processos formativos, desde entrelugares a movimentos autoformativos, que constituem a noção de formação continuada como conceito mais amplo, ou seja, além de iniciativas que o instituído ofereça; e, ainda, a difícil relação dialógica entre a produção acadêmica e os docentes que praticam a Educação Básica.

No que se refere à constituição de entrelugares formativos na relação docente com os lugares instituídos, constatamos que sua produção foi gerada na participação do professor em diferentes momentos institucionais de formação, tanto naqueles ofertados pela Secretaria de Educação como nos procurados por iniciativa do educador dentro e fora da escola. As narrativas (auto)biográficas demonstram que os docentes colaboradores, ao praticar os lugares de formação continuada, assumiram um papel de consumidore33. Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994. diante do ofertado, ao fazerem usos daquilo que elencaram como qualitativo dos debates e vivências, principalmente, as temáticas que os transportavam a interligar o debatido com suas práticas de cotidiano escolar. Por outro lado, os docentes, em vários momentos, demonstraram recusa em aceitar discussões que julgavam inoportunas, por considerá-las longe da realidade da escola. Esses momentos de tensão ocorreram não apenas com a Secretaria de Educação, mas nos congressos, fóruns e seminários e também nos debates com professores e pesquisadores da universidade.

Compreendemos, no diálogo com as narrativas docentes, que a relação produção acadêmica e professores da Educação Básica ainda se apresenta como os estudos de Tardiff2626. Tardiff M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2005., Carvalho88. Carvalho, J. O não lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada. Rev Bras Educ. 2005;28:96–108. e Santos2727. Santos W. Currículo e avaliação na educação física: do mergulho à intervenção. Vitória: Proteoria; 2005. já sinalizavam: as iniciativas de pesquisa, cujo objetivo vise a denunciar as práticas pedagógicas da Educação Básica, permanecendo mais centradas nas reflexões críticas, são consideradas irrelevantes aos educadores do cotidiano escolar, por não oferecerem contribuições qualitativas ao debate de avanços para sua prática profissional. Faz-se necessário, então, repensar a função das instituições formadoras e o modo como pensam a sua relação com a escola. Se o mundo do trabalho perpassa pela projeção de atuação futura e constante com o cotidiano escolar, há de se produzir uma cultura das práticas na ação conjunta entre professores da escola e professores da universidade, cujo vínculo é um dos principais desafios. Nesse caso, são necessárias relações de confiança, de parceria e de diálogo no enfoque que mobiliza os saberes da teoria da educação e que constituem os seus saberes-fazeres docentes, importantes à construção do processo de identidades do professor.

Nessa direção, sinalizamos a necessidade de maiores estudos sobre práticas colaborativas entre Universidade e Escola que discutam e deem visibilidade a iniciativas formativas que tomam as práticas de registros dos professores de suas práticas como ponto de partida e chegada para discussões sobre a Educação Física escolar e a formação continuada.

Referências

  • 1
    Gatti B, Barreto ES, Políticas docentes no Brasil: um estado da arte. Brasília: Unesco; 2011
  • 2
    Ginzburg C. Mito, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989.
  • 3
    Certeau M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes; 1994.
  • 4
    Ferraço CE. Currículo, formação continuada de professores e cotidiano escolar: fragmentos de complexidade das redes vividas. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p. 15–42.
  • 5
    Oliveira IB. Criação curricular, autoformação e formação continuada no cotidiano escolar. In: Ferraço CE, organizador. Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez; 2005. p.43–67.
  • 6
    Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W, organizador. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 5a ed. Rio de Janeiro: Brasiliense; 1994. p.197–221.
  • 7
    Certeau , M. A escrita da História. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense; 2006
  • 8
    Carvalho, J. O não lugar dos professores nos entrelugares de formação continuada. Rev Bras Educ. 2005;28:96–108.
  • 9
    Nóvoa A. Professor se forma na escola. Nova Esc. 2001;142:41.
  • 10
    Nóvoa A. Profissão professor. Porto: Porto Editora; 1991
  • 11
    Tardiff M, Levasseur L. A divisão do trabalho educativo. Petrópolis: Vozes; 2011.
  • 12
    Carvalho, J. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et Alii; 2009.
  • 13
    Luiz IC, Ventorim S, Mello A, et al. Práticas de apropriação dos professores de educação física nas formações continuadas: trilhando a produção de sentidos. Motrivivência. 2014;26:70–88.
  • 14
    Alves N, Oliveira IB, Macedo E, Manhães LC, organizadores. Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez; 2002.
  • 15
    Espírito Santo. Secretaria Estadual de Educação. Currículo básico escola estadual. Vitória: SEDU; 2009.
  • 16
    Santos W, Nunes KR, Ferreira Neto A. Currículo e avaliação na educação física: práticas e saberes. In: Schneider O, organizador. Educação física, esporte e sociedade: temas emergentes. São Cristovão: Editora da UFS; 2008. v.2.
  • 17
    Nóvoa A. Os professores e sua formação. 2a ed. Lisboa: Dom Quixote; 1995.
  • 18
    Bueno BO, Chamlian HC, Sousa CP, Catani DB. Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente: Brasil, 1985–2003. Rev Educ Pesq. 2006;32:385–410.
  • 19
    Vieira A. Narrativas da formação docente de educação física no ensino médio da rede estadual de ensino do Espírito Santo [dissertação]. Vitória (ES): Universidade Federal do Espírito Santo; 2011.
  • 20
    Brasil. Ministério da Educação. Indagações sobre o currículo. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica; 2007.
  • 21
    Evangelista O, Triches J. Docência, gestão e pesquisa nas DCNP. Rev Bras Form Prof. 2009;2:178–203.
  • 22
    Freire P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996
  • 23
    Nunes K, Ferreira Neto, A. O currículo básico comum e formação continuada: experiências com a educação física na rede estadual/ES. Motrivivência. 2008;31:274–92.
  • 24
    Alves N. A compreensão de políticas nas pesquisas com os cotidianos: para além dos processos de regulação. Educ Soc. 2010;113:1195–212.
  • 25
    Novoa A. Formação de professores e trabalho pedagógico. Lisboa: Educa; 2002.
  • 26
    Tardiff M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes; 2005.
  • 27
    Santos W. Currículo e avaliação na educação física: do mergulho à intervenção. Vitória: Proteoria; 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2013
  • Revisado
    27 Ago 2015
  • Revisado
    01 Out 2015
  • Aceito
    05 Out 2015
Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 65, 05508-030 São Paulo SP/Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3091 3147 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reveefe@usp.br