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O papel da pós-graduação no incremento da sanidade animal no Brasil

Com 200 milhões de cabeças de bovinos e líder mundial em exportação de carne bovina desde 2004, terceiro produtor mundial e líder de exportações de aves e, ainda, quarto lugar na produção mundial de suínos, o Brasil ocupa uma posição de destaque na área de produção animal. Quanto aos animais de companhia, a movimentação financeira anual do país ultrapassa o valor de 10 bilhões de reais. Todo esse contingente de animais exige a implantação e o aprimoramento contínuo de práticas destinadas à promoção e à preservação das condições de saúde.

Em uma análise da evolução dos serviços veterinários voltados para a saúde animal, Kalvin Schwabe (1982) considerou a existência de cinco períodos distintos: ações locais (tempos primitivos até o primeiro século a.C., organização de serviços veterinários militares); militar (primeiro século a.C. até 1762, criação da primeira Faculdade de Medicina Veterinária); polícia sanitária veterinária (1762 a 1884, revolução microbiológica, Bruce, Pasteur, Koch, Jenner); campanhas massais (1884 a 1960, criação de serviços de epidemiologia veterinária); vigilância e ações seletivas (a partir de 1960). O paradigma do quinto período foi o estabelecimento da etiologia multifatorial das doenças, a tríade epidemiológica (agente-hospedeiros-ambiente) e as suas interações, bem como o diagnóstico epidemiológico apoiado em uma análise epidemiológica qualitativa, quantitativa e econômica.

A marcante influência dos programas massais de vacinação antirrábica canina sobre a redução na ocorrência dos casos de raiva em seres humanos e a emergência de novos ciclos epidemiológicos com a raiva humana transmitida por quirópteros, além do registro da leishmaniose visceral nos estados do Centro-Oeste e Sudeste do Brasil em áreas periurbanas e urbanas, são exemplos da dinâmica das relações intrínsecas e extrínsecas hospedeiros-parasitas-ambiente. Os registros de agentes etiológicos de doenças cruzando a barreira das espécies animais e acometendo seres humanos, como na encefalite espongiforme bovina e na influenza aviária e suína, têm desafiado as autoridades sanitárias internacionais e estimulado o conceito de saúde única.

Os programas sanitários nas áreas humana e animal aplicados ao controle das doenças transmissíveis ocupam posição de destaque e, apoiando-se nas ações de vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental, buscam o aprimoramento permanente das ações de controle seletivas dirigidas a prioridades assentadas na análise das relações custo/benefício. A implantação da fase de ataque dos programas sanitários depende da iniciativa privada que produz os insumos necessários: raticidas, inseticidas, domissanitários, quimioterápicos, ecto/endoparasiticidas, vampiricidas, desinfetantes e imunobiológicos.

O crescimento da consciência sanitária desencadeou o estabelecimento de serviços privados e da atuação de profissionais autônomos preocupados com sanidade, fisiopatologia e biotecnologia dos rebanhos de animais de produção, controle de pragas urbanas, responsabilidade técnica de empresas que processam, distribuem e comercializam alimentos de origem animal e a responsabilidade técnica de canis, gatis, biotérios e zoológicos.

Novos paradigmas passaram a vigorar e todos, de alguma forma, estão correlacionados ao conceito de sustentabilidade (utilização dos recursos disponíveis sem prejudicar a disponibilidade de tais recursos para as gerações futuras): globalização, manejo ambiental integrado, bem-estar animal, posse responsável, ecologia com preservação da fauna, da flora e da biodiversidade, agricultura e pecuária orgânicas, controle da presença de resíduos no ambiente e nos alimentos, ações destinadas a controlar as mudanças climáticas, agricultura e pecuária sustentável com reciclagem e reaproveitamento de dejetos e subprodutos, biossegurança, bioética e zooterapia.

O conceito de saúde única se consolida com o reconhecimento da intersecção estabelecida entre as saúdes humana e animal, criando-se a área denominada como saúde pública veterinária, que apresenta quatro vertentes: controle de zoonoses; higiene alimentar e inspeção dos alimentos de origem animal; controle da poluição ambiental de origem animal; e medicina comparada, uso de modelos animais para o estudo de doenças dos seres humanos.

A partir da Reforma Universitária, efetivada no Brasil nos anos de 1969 e 1970, foi implantado no país o modelo americano de pós-graduação, senso estrito, com os respectivos cursos de mestrado e doutorado destinados à busca da excelência e da internacionalização da pesquisa científica com a formação de pessoal de alto nível, capacitado para o planejamento, execução, análise e interpretação dos resultados de investigações científicas originais aplicadas na fronteira do conhecimento de um determinado assunto. Essa política fez com que as Universidades e os Institutos de Pesquisa se adequassem à nova realidade e implantassem os programas de pós-graduação em ciência animal com vertentes para ciências básicas, clínica, cirurgia, patologia, epidemiologia, medicina veterinária preventiva, epidemiologia, bem como saúde e reprodução animal. O novo modelo propiciou a formação de docentes/pesquisadores estimulados a conceber projetos de pesquisa e a buscar recursos para a sua execução em agências de fomento à pesquisa com julgamento, análise e avaliação pelos próprios pares. A consequência desse processo foi o crescimento exponencial do número de projetos implantados, os quais, por retroalimentação, passaram a ter uma ação direta na formação de novos pesquisadores.

As linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação em ciência animal passaram a contemplar: desenvolvimento e aprimoramento de recursos diagnósticos, terapêuticos e profiláticos aplicados às doenças dos animais; desenvolvimento de ações destinadas ao saneamento ambiental e análise de fatores de risco; desenvolvimento e aprimoramento de ações destinadas à inspeção sanitária e higiene dos alimentos de origem animal; aproveitamento racional de subprodutos da indústria, agricultura e pecuária; desenvolvimento e aprimoramento de sistemas de manejo de criações com reduzido impacto ambiental; desenvolvimento e aprimoramento de biotécnicas aplicadas à reprodução animal; e controle de populações de animais selvagens em vida livre ou em cativeiro.

Retornando aos períodos de evolução do conhecimento científico voltado para a sanidade animal, propostos por Schawbe, ousamos sugerir que o quinto período iniciado em 1960 e referido como de Vigilância e Ações Seletivas encerrou-se por volta de 1990 com a revolução causada pela busca do desenvolvimento e aprimoramento de recursos diagnósticos e profiláticos, com vistas à melhoria dos indicadores de eficiência, eficácia e efetividade aplicados à redução de resultados falso-positivos e falso-negativos, acidentes pós-vacinais, interferência dos programas de imunização no diagnóstico e que culminaram com o desenvolvimento da biologia molecular.

A partir de 1990, iniciou-se o período da biologia molecular, biotecnologia, engenharia genética, vacinas e procedimentos diagnósticos produzidos com antígenos recombinantes, epidemiologia molecular, modelagem matemática, ecopatologia, geoprocessamento e análise de fatores de risco no qual nos encontramos e que dependem fundamentalmente da pós-graduação, senso estrito, para que consolidem e propiciem o equilíbrio e a harmonia das relações estabelecidas entre a saúde humana e animal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014
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