Charque é um produto cárneo salgado e seco ao Sol, típico do Brasil, conhecido também como carne do sertão, carne seca ou jabá (SHIMOKOMAKIet al., 2006; CORREIA; BISCONTINI, 2003).
Atualmente, no Brasil, o principal público consumidor se concentra nas regiões Nordeste, Centro Oeste e Sul, sendo também consumido por populações nordestinas fixadas na região Sudeste (LIRA; SHIMOKOMAKI, 1998).
Apesar de ser um dos produtos cárneos industrializados mais consumidos no país, sua expansão no mercado consumidor está longe de ser completamente explorada. Seu potencial ultrapassa o mercado interno, sendo um produto que não requer a utilização da cadeia do frio para a sua preservação. É, portanto, uma fonte de proteína de origem animal para qualquer região do mundo, desprovida das dificuldades de refrigeração (SHIMOKOMAKI et al., 2006), constituindo a base alimentar proteica de grande parte da população do Nordeste brasileiro, sendo típica do sertão e provavelmente tendo surgido em consequência das dificuldades de conservação da carne in natura nesta região (SOUZA, 2007).
O uso de matéria prima de qualidade microbiológica inadequada, bem como condições insatisfatórias de higiene durante e após o processamento do charque, pode resultar em produto com elevada carga microbiana (SHIMOKOMAKIet al., 2006).
Caso esses micro-organismos não sejam destruídos durante o processamento, podem multiplicar-se durante a produção, distribuição e comercialização dos alimentos, reduzindo a qualidade e aumentando o risco de provocar surtos (KUNIGK; ALMEIDA, 2001). Considerando a possibilidade de desenvolvimento microbiano neste produto cárneo bastante consumido, e pela sua relevante importância nutricional e econômica, objetivou-se avaliar a qualidade microbiológica da carne de charque produzida industrialmente sob serviço de inspeção estadual.
Foram coletadas no estado do Rio Grande do Norte, entre junho de 2009 e janeiro de 2010, 25 amostras de charque, prontas para comercialização, oriundas de um frigorífico com inspeção estadual (SIE). As amostras foram encaminhadas, devidamente acondicionadas, ao Laboratório de Inspeção de Produtos de Origem Animal (LIPOA), da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), para serem submetidas às análises microbiológicas, com período em torno de quatro horas entre o momento da coleta e o início das análises. Logo após a recepção das amostras, eram realizadas as análises de acordo com as recomendações da Instrução Normativa nº 62, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2003) para estafilococos coagulase positiva, Número Mais Provável (NMP) de coliformes termotolerantes e Salmonella spp. Para pesquisa de bactérias halofílicas, seguiu-se a metodologia descrita por VANDERZANT; SPLITTSTOESSER (1992).
Foram pesados assepticamente 25 g de cada amostra de charque, sendo homogeneizadas em 225 mL de água peptonada 0,1% em "stomacher". A diluição obtida correspondeu a 10-1, a partir da qual foram obtidas as demais diluições decimais até 10-3. Em seguida, foram submetidas às técnicas recomendadas para realização das análises.
Nas análises de estafilococos coagulase positiva, foram transferidas de cada diluição alíquotas de 1 mL para placas de Petri devidamente esterilizadas. Posteriormente, foram adicionados 15 mL de Ágar Baird-Parker enriquecido com solução de gema de ovo, com telurito 0,1%. Logo após a secagem, as placas foram incubadas em estufas a 37°C por 48 horas para posterior contagem das colônias. Os resultados foram expressos em UFC/g.
Para quantificação de coliformes termotolerantes utilizou-se a técnica de diluições decimais em triplicata, iniciando com a prova presuntiva, a qual consiste na incubação das diluições em caldo lauril sulfato de sódio contendo tubos de fermentação invertidos, incubados por 48 horas a 36° ± 1ºC em banho-maria. Os tubos com produção de gás foram inoculados em Verde Brilhante Bile Lactose a 2%, a 36º ± 1ºC por 48 horas. A partir de cada tubo positivo, foram inoculados em tubos contendo caldo E.C. e incubados a 45°C ± 0,2ºC por 48 horas para teste confirmativo de coliformes termotolerantes, sendo os resultados expressos em NMP/g.
Na determinação da ausência ou presença de Salmonella spp., utilizou-se a diluição correspondente a 10-1incubados a 36ºC, por 20 horas, como pré-enriquecimento. Para o enriquecimento seletivo, foram utilizados os caldos tetrationato (TT), Rappaport (RR) e caldo selenito-cistina, incubados juntamente com alíquotas das amostras em tubos a 41 ± 0,5ºC em banho-maria, com circulação contínua de água por 24 horas. A partir dos caldos seletivos de enriquecimento, foram repicados em placas contendo meio sólido seletivo, sendo incubados em estufa, por 24 horas, a 36ºC. Colônias suspeitas foram submetidas a provas bioquímicas para confirmação de Salmonella spp.
Para contagem de bactérias halofílicas transferiu-se 1 mL de cada diluição para placas de Petri estéreis, utilizando-se a técnica de semeadura em profundidade, adicionando, em seguida, 15 mL de Agar Plate Count (PCA), com 2% de NaCl, com incubação a 37°C por 24 horas. Os resultados foram expressos em Unidades Formadoras de Colônia (UFC)/g.
Avaliando a qualidade microbiológica da carne de charque (n = 25), verificou-se que cinco amostras (20%) encontravam-se em desacordo com a legislação vigente, que estabelece a contagem máxima de 5 x 103 UFC/g ou seu log 10 igual a 3,69 para análises de estafilococos coagulase positiva (BRASIL, 2001), apresentando uma variação de 1,38 a 3,93 UFC/g, valores expressos em log10 (Tabela 1).
Tabela 1 Valores das análises microbiológicas de amostras de carne de charque de um frigorífico no estado do Rio Grande do Norte.
*Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Regulamento Técnico sobre os Padrões Microbiológicos para Alimentos. RDC N° 12, de 2 de janeiro de 2001.
ARAÚJOet al. (2006), em estudo sobre a microbiologia do charque produzido em fábrica sob serviço de inspeção estadual em São Luís (MA), não detectaram crescimento de estafilococos coagulase positiva em nenhuma das sete amostras analisadas, e confirmaram presença de coliformes termotolerantes em duas delas.
Utilizando a mesma legislação como referência, os resultados das análises para coliformes termotolerantes neste estudo encontravam-se em conformidade, não sendo observado NMP acima de 103 por grama de carne, ou seu log10 igual a 3 (BRASIL, 2001). A presença dessas bactérias em alimentos com quantidades elevadas indica a possibilidade de contaminação fecal e da presença de outros micro-organismos enteropatogênicos, bem como a qualidade higiênico-sanitária do produto insatisfatória (MOURA, 2011).
Os alimentos estão sujeitos à contaminação por micro-organismos, que são capazes de levar ao desenvolvimento de enfermidades, causando risco à saúde pública, seja desencadeada por micro-organismos patogênicos ou suas toxinas (CUNHA NETO et al., 2002). Alguns alimentos estão frequentemente envolvidos em surtos de doenças, como leite e seus derivados, ovos, carnes e derivados. Entre os agentes causais mais envolvidos estão Staphylococcus aureus, Salmonella spp. e Escherichia coli (GERMANO; GERMANO, 2008).
A carne de charque pode servir de veículo para micro-organismos e causar surtos alimentares. Isso pode ocorrer devido ao processamento ao qual este produto é submetido, requerendo considerável manipulação, o que propicia a contaminação pelo S. aureus (FORSYTHE, 2002). Além disso, o S. aureus tem a capacidade de sobreviver em meio a dificuldades, e sua enterotoxina termoestável é capaz de resistir às técnicas convencionais de processamento térmico (PINTO et al., 1998).
Quanto à determinação da Salmonella spp., foi observada sua presença em sete amostras (28%), sendo estas impróprias ao consumo humano, de acordo com o regulamento vigente que determina ausência de Salmonella spp. em 25 g (BRASIL, 2001).
A salmonelose é uma das zoonoses de maior importância no mundo, devido a perdas econômicas causadas na produção animal e por sua implicação em saúde pública (STRECK et al., 2007). O risco de desenvolvimento desta enfermidade pelo consumo de um alimento é influenciado por diversos fatores, entre eles, a quantidade de Salmonella spp. presente, as práticas de armazenamento e a manipulação de alimentos (MÜRMANNet al., 2007).
A presença desses micro-organismos em alimentos direcionados ao consumo humano, como o do presente estudo, é inaceitável, tendo em vista os riscos à saúde que estes causam. Isso se torna ainda mais preocupante considerando que este produto apresenta inspeção, realizada por órgãos oficiais. Segundo BEZERRAet al. (2012), produtos como este devem apresentar condições apropriadas de consumo, entretanto, a manipulação a que são submetidos propicia contaminação pela falta de aplicação das boas práticas.
Segundo AMSONet al. (2006), práticas inadequadas que ocorrem durante o processamento dos alimentos permitem contaminações, sobrevivência e multiplicação de micro-organismos patogênicos, sendo necessário melhorar os métodos de adoção e aplicação de programas de Boas Práticas de Fabricação. Dessa forma, será possível reduzir a incidência das doenças de origem alimentar.
Para as bactérias halofílicas, constatou-se em média 2,25 UFC/g (Tabela 1), com contagem variando de 1,47 a 5,24 UFC/g. Os padrões microbiológicos atuais da ANVISA não fazem referência a limites de bactérias halofílicas para a carne de charque.
Para obter o charque, a carne passa por processamentos com o objetivo de promover a diminuição da atividade de água nos tecidos, com a adição de cloreto de sódio e a etapa de secagem ao Sol, dificultando, assim, o desenvolvimento de micro-organismos patogênicos (GOMEZ, 2006).
Entretanto, o sal utilizado durante o processamento na salga pode comprometer a qualidade final do produto, uma vez que o NaCl contaminado por bactérias halofílicas pode produzir nos alimentos pigmentação vermelha, sendo importante utilizar sal de boa qualidade (VAZ et al., 2007).
As amostras de charque analisadas apresentaram micro-organismos que comprometem a qualidade do produto e causam risco ao consumidor, havendo a necessidade de readequação das Boas Práticas de Fabricação durante o processamento do produto.