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“Não se Nasce Mulher, Torna-se”: Impressões das Mulheres Sobre a Carreira no Agronegócio e Seus Espaços

Resumo

Os estudos de discriminação de gênero e carreiras das mulheres nas organizações reforçam o quanto elas são silenciadas em suas falas, desvalorizadas em suas competências e recebem menos que os homens. No entanto, há poucas pesquisas que exploram esse tema no contexto do agronegócio. Neste sentido, o objetivo deste estudo foi compreender como a discriminação de gênero é percebida por mulheres egressas de cursos na área de ciências agrárias. Como metodologia, um questionário foi aplicado e contou com 315 respondentes, sendo realizada uma Análise Fatorial e, posteriormente, uma Análise de Agrupamentos. Foram identificados cinco fatores e, a partir disso, foram definidos dois grupos, denominados “mantenedoras do sistema patriarcal” e “conscientes do protagonismo”. Os dois grupos demarcam tensões sobre como percebem a discriminação e vivenciam os múltiplos desdobramentos dos comportamentos e atitudes sexistas que permeiam suas trajetórias de carreira no agronegócio.

Palavras-chave:
Agronegócio; Carreira; Discriminação; Gênero; Mulheres

Abstract

Studies on gender discrimination and women’s careers in organizations reinforce how much women are silenced in their speech, undermined in their skills, and paid less than men. However, there is little research on this topic in the context of agribusiness. In this sense, the objective of this study was to understand how gender discrimination is seen by women graduating from agricultural sciences programs. As a methodology, a questionnaire was applied and 315 respondents answered, and a Factor Analysis and, later, a Cluster Analysis were carried out. Five factors were identified, and, from that, two clusters were defined, called “maintainers of the patriarchal system” and “aware of protagonism”. Both clusters demarcate tensions about how women see discrimination and experience the multiple unfoldings of sexist behaviors and attitudes that permeate their career pathways in agribusiness.

Keywords:
Agribusiness; Career; Discrimination; Gender; Women

1. INTRODUÇÃO

Chamar a atenção para as mulheres e os espaços que essas buscam ocupar ou que já ocupam é tema amplo nas agendas de pesquisa e das organizações, bem como o avanço (ou não) das chamadas “conquistas”. As pesquisas sobre a ótica de gênero nas organizações trazem, por exemplo, diversas contribuições sobre os desafios vivenciados por elas ao construírem suas carreiras (Lemos et al., 2020Lemos, A. H. C., Barbosa, A. O., & Monzato, P. P. (2020). Mulheres em home-office durante a pandemia da covid-19 e as configurações do conflito trabalho-família. Revista de Administração de Empresas, 60(6), 388-399. https://doi.org/10.1590/S0034-759020200603
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). Aspectos como aqueles que tratam sobre o quanto as mulheres são silenciadas em suas falas, o quanto elas precisam demonstrar continuamente suas habilidades e expressar que são tão competentes quanto os homens são recorrentes e persistentes (Calás & Smircich, 2006Calás, M. B., & Smircich, L. (2006). From the ‘woman's point of view’ ten years later: Towards a feminist organization studies. In S. R. Clegg, C. Hardy, T. B. Lawrence, & W. R. Nord, The Sage Handbook of Organization studies (pp. 284-346). Sage Publications ltda.; Calás et al., 2014Calás, M. B., Smircich, L., & Holvino, E. (2014). Theorizing gender-and-organization: changing times…changing theories? In S. Kumra, R. Simpson, & R. J. Burke , The Oxford Handbook of Gender in Organizations (pp. 17-52). Oxford University Press.). E a desigualdade de gênero segue tendo palco e sustentando uma das questões centrais nos estudos sobre a mulher (Hooks, 2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras (15th ed.). Rosa dos Tempos. ). Essa desigualdade que se faz reconhecida no tocante ao salário, a escolha de carreira, o campo de atuação e assim por diante.

Ao somar os debates sobre teto de vidro e os conflitos decorrentes da relação trabalho-família, mais uma vez evidencia-se que as mulheres estão constantemente em situação conflitante diante de suas trajetórias profissionais (Santos et al., 2014Santos, C. M. M., Tanure, B., & Carvalho Neto, A. M. (2014). Mulheres executivas brasileiras: o teto de vidro em questão. Rad, 16(3), 56-75. https://doi.org/10.20946/rad.v16i3.13791
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). Por um lado, os ecos do feminismo desde os anos 1970 abriram muitas portas para que elas tivessem seu espaço legítimo no mercado de trabalho, ainda que nesse assunto deva ser levado em conta um recorte bem específico, das mulheres de classe média, branca, heterossexuais e com maior escolaridade. Por outro lado, décadas se passaram e continuam ganhando salários menores que os dos homens, tendo que fazer escolhas entre o trabalho e a família, e vivenciando situações discriminatórias de forma frequente (Souza et al., 2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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).

Enquanto esse panorama está dado na literatura de gênero clássica (Calás & Smircich, 2006Calás, M. B., & Smircich, L. (2006). From the ‘woman's point of view’ ten years later: Towards a feminist organization studies. In S. R. Clegg, C. Hardy, T. B. Lawrence, & W. R. Nord, The Sage Handbook of Organization studies (pp. 284-346). Sage Publications ltda.) e continua sendo revivido nos debates atuais, o foco desta pesquisa volta-se às mulheres que buscam construir carreiras em áreas relacionadas às ciências agrárias. Poucos são os estudos que buscam compreender a perspectiva daquelas que atuam no agronegócio (Menezes & Silva, 2016Menezes, R. S. S., & Silva, F. D. (2016). Trabalho e identidades de gênero de gestoras de organizações do agronegócio em minas gerais. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 3(2), 127-144.; Schwaab et al., 2019Schwaab, K. S., Dutra, V. R., Marschner, P. F., & Ceretta, P. S. (2019). O quanto a "enxada" é mais pesada para as mulheres? Discriminação salarial de gênero no setor agrícola brasileiro. Contextus - Revista Contemporânea de Economia e Gestão, 17(2), 37-62. https://doi.org/10.19094/contextus.v17i2.39969
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). Em bases de artigos na área de administração, tanto nacionais quanto internacionais, não é comum encontrar pesquisas sobre as carreiras das mulheres fora do mainstream organizacional. Há alguma literatura sobre elas na agricultura familiar e no meio rural, mas ainda assim fora do escopo da administração, ou com um olhar mais atento a esse campo.

Especificamente, esta pesquisa teve o intuito de olhar para as mulheres egressas do ensino superior na área de ciências agrárias (engenharia agronômica, engenharia florestal, ciências dos alimentos e outros). De um modo geral, estes são cursos dedicados a preparar profissionais para atuarem no agronegócio, o qual é entendido aqui como qualquer operação que envolve “a fabricação e distribuição de insumos agrícolas, operações de produção na fazenda e armazenamento, processamento e distribuição de commodities agrícolas” (Santos et al., 2021Santos, J. O., de Almeida Santos, F., Volpato, L. A., & Volpato, B. L. (2021). Análise do desempenho do retorno das ações ordinárias de empresas do setor do agronegócio em cenários econômicos adversos.Revista de Ciências da Administração,23(61), 37-51. https://doi.org/10.5007/2175-8077.2021.e79157
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, p. 39).

De acordo com o IBGE (2021IBGE. (2021). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no brasil (2nd ed.). IBGE.), apenas 36,7% das matrículas no ensino superior na área de “agricultura” são ocupadas por mulheres. Na área de “engenharia e profissões correlatas”, proporção é de 21,6%. Por outro lado, a área de “bem-estar” é composta por 88,3% de mulheres no ensino superior. Essas proporções já levantam questionamentos, principalmente quando se considera uma literatura que diz que elas são mais inclinadas a trabalhos relacionados ao cuidado, enquanto as engenharias são destinadas aos homens, que são considerados mais “racionais”. Assim, as representações sociais de gênero atravessam as carreiras (Antunes et al., 2018Antunes, C. V., Carvalho Neto, A., Lima-Souza, E. C. P., & Santos, C. M. M. (2018). O que eles pensam sobre elas? Representações sociais da mulher executiva. Revista Alcance, 25(3), 349-365.).

Neste sentido, o objetivo desta pesquisa foi compreender como a discriminação de gênero é percebida por mulheres egressas das ciências agrárias. A partir de uma investigação quantitativa, esta pesquisa busca contribuir para ampliar o debate sobre gênero além das fronteiras tradicionais das organizações e salientar que a discriminação de gênero é bastante evidente nas carreiras do agronegócio.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Carreira das Mulheres: Trajetórias Marcadas Pela Discriminação de Gênero

Vários estudos brasileiros têm explorado a carreira da mulher nas organizações. Os autores, inspirados por essa temática, defendem que a sociedade brasileira é fundamentalmente machista e relega um papel secundário à mulher em todas as esferas da vida, incluindo a organizacional (Souza et al., 2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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).

A inserção da mulher nas organizações reflete um caminho cheio de percalços. Entre as principais barreiras, destaca-se a desvalorização das competências individuais, a desigualdade salarial, a incipiente presença das mulheres em altos cargos de gestão, a presença do teto de vidro e seus desdobramentos, problematização de atitudes e vestimentas, e uma necessidade contínua de provação (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Henderson et al., 2016Henderson, P. A., Derreira, M. A. A., & Dutra, J. S. (2016). As barreiras para a ascensão da mulher a posições hierárquicas: Um estudo sob a óptica da gestão da diversidade no brasil. Revista de Administração UFSM, 9(3), 489-505. https://doi.org/10.5902/19834659 8208
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; Hryniewicz & Vianna, 2018Hryniewicz, L. G. C., & Vianna, M. A. (2018). Mulheres em posição de liderança: Obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos Ebape.br, 16(3), 331-344. https://doi.org/10.1590/1679-395174876
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; Souza et al., 2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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).

As pesquisas mais recentes sobre a mulher nas organizações traçam olhares, sobretudo, sobre as características das mulheres executivas (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Duarte & Gallon, 2021Duarte, E., & Gallon, S. (2021). ‘No, I do not suffer from it’: the analysis of the manipulation of the subjectivity of the executive woman in the rise of the career. Brazilian Business Review, 19(1), 78-95. https://doi.org/10.15728/bbr.2022.19.1.5
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; Santos et al., 2014Santos, C. M. M., Tanure, B., & Carvalho Neto, A. M. (2014). Mulheres executivas brasileiras: o teto de vidro em questão. Rad, 16(3), 56-75. https://doi.org/10.20946/rad.v16i3.13791
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). A justificativa que motiva a condução de estudos nesse tema é a baixa presença delas nessas circunstâncias face aos dados estatísticos que atestam a sua crescente inserção no mercado de trabalho e a proporção de homens e mulheres no topo da hierarquia organizacional (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Henderson et al., 2016Henderson, P. A., Derreira, M. A. A., & Dutra, J. S. (2016). As barreiras para a ascensão da mulher a posições hierárquicas: Um estudo sob a óptica da gestão da diversidade no brasil. Revista de Administração UFSM, 9(3), 489-505. https://doi.org/10.5902/19834659 8208
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).

A literatura destaca a existência de um movimento de “masculinização” da mulher no ambiente de trabalho à medida que ocorrem avanços na estrutura organizacional (Duarte & Gallon, 2021Duarte, E., & Gallon, S. (2021). ‘No, I do not suffer from it’: the analysis of the manipulation of the subjectivity of the executive woman in the rise of the career. Brazilian Business Review, 19(1), 78-95. https://doi.org/10.15728/bbr.2022.19.1.5
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). A mulher entende que os valores socialmente associados ao feminino, como a expressão de emoções, são desvalorizados nas organizações e, portanto, devem ser minimizados ou substituídos (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Souza et al., 2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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). Assim, elas incorporam papéis de gestão associados ao masculino e se tornam mais racionais em suas atitudes e comportamentos, utilizando um tom de voz mais alto e diretivo, impondo-se mais e sendo menos flexíveis (Henderson et al., 2016Henderson, P. A., Derreira, M. A. A., & Dutra, J. S. (2016). As barreiras para a ascensão da mulher a posições hierárquicas: Um estudo sob a óptica da gestão da diversidade no brasil. Revista de Administração UFSM, 9(3), 489-505. https://doi.org/10.5902/19834659 8208
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).

De acordo com Souza et al. (2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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), as mulheres executivas ou em posição de liderança são continuamente testadas quanto às suas competências. As falhas são sempre associadas ao fato de serem mulheres e, por isso, tendem a justificar a ausência delas em posições de topo (Hryniewicz & Vianna, 2018Hryniewicz, L. G. C., & Vianna, M. A. (2018). Mulheres em posição de liderança: Obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos Ebape.br, 16(3), 331-344. https://doi.org/10.1590/1679-395174876
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). Além disso, a sua trajetória profissional em cargos de gestão é normalmente desvalorizada e invariavelmente associada a posições alcançadas em troca de favores sexuais (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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).

As problemáticas que acompanham a mulher em sua trajetória profissional motivaram a discussão a respeito do fenômeno ‘teto de vidro’, o qual salienta barreiras invisíveis impedindo a ascensão vertical delas nas organizações. A invisibilidade é entendida através de práticas discriminatórias sutis e mascaradas que não revelam o preconceito sobre a mulher. Assim, ela se insere numa estrutura organizacional que contém espaços não acessíveis - redutos masculinos - independentemente de seus atributos individuais. Os conhecimentos, habilidades, tempo de empresa, alcance de metas, produção de resultados deixam de ser suficientes para permitir o progresso na carreira em virtude do gênero (Santos et al., 2014Santos, C. M. M., Tanure, B., & Carvalho Neto, A. M. (2014). Mulheres executivas brasileiras: o teto de vidro em questão. Rad, 16(3), 56-75. https://doi.org/10.20946/rad.v16i3.13791
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).

A presença feminina no mercado de trabalho também suscita discussões sobre a gravidez e a maternidade. Observa-se que os primeiros anos de desenvolvimento profissional das mulheres coincidem com o período no qual a mulher está mais preparada biologicamente para engravidar. Assim, a pressão do relógio biológico é vista como um dilema sobre a decisão de ter um filho, sendo acompanhada também de expectativas sociais principalmente quando ela é casada (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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).

Embora atualmente as disparidades de gênero sejam consideradas menores que há algumas décadas, a maternidade ainda é compreendida como um problema porque ela produz um conflito entre a esfera pública onde se exerce o trabalho e a esfera privada, de dedicação aos filhos. O aparente desequilíbrio indissolúvel decorre da escassez de suporte das organizações, da sociedade e muitas vezes da própria família. Ao mesmo tempo que a maternidade é celebrada a partir de uma realidade socialmente construída, a mulher em que almeja uma carreira identifica nesse momento um problema para o seu desenvolvimento profissional (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Hryniewicz & Vianna, 2018Hryniewicz, L. G. C., & Vianna, M. A. (2018). Mulheres em posição de liderança: Obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos Ebape.br, 16(3), 331-344. https://doi.org/10.1590/1679-395174876
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).

Devido a isso, os estudos sugerem que a sua carreira é demarcada por instabilidades e momentos de regressão. Aquelas que decidem interromper o trabalho para se dedicar à maternidade dificilmente conseguem se inserir no mercado de trabalho ganhando o mesmo salário ou tendo a mesma posição de antes (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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).

Para além do debate teórico, alguns dados estatísticos também reforçam as desigualdades de gênero na sociedade brasileira. No Brasil, as mulheres possuem maior nível de escolaridade que os homens, mas possuem uma presença no mercado de trabalho ainda muito distinta. Enquanto 73,7% dos homens com mais de 15 anos estão trabalhando, entre elas essa proporção é de 54,5%. E dentre aquelas com ocupação, 29,6% estão situadas em trabalhos parciais (até 30 horas), contra 15,6% dos homens (IBGE, 2021IBGE. (2021). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no brasil (2nd ed.). IBGE.). Esses indicadores expressam que um número significativo delas possui o trabalho não remunerado ainda como atividade principal.

Afinal, elas dedicam mais que o dobro de horas para atividades relacionadas aos afazeres domésticos e ao cuidado, registrando uma média de 21,4 horas semanais, quando em comparação aos homens. Em contrapartida, eles dedicam apenas 11 horas semanais para atividades não remuneradas no âmbito familiar. Essa disparidade de horas dedicadas à família não está associada à renda, pois mesmo entre as mulheres que compõem o grupo dos 20% com os maiores rendimentos, esse número é de 18,2 horas semanais contra 10,8 horas dos homens (IBGE, 2021IBGE. (2021). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no brasil (2nd ed.). IBGE.).

Na questão salarial, a situação não é muito diferente. De acordo com o IBGE (2021IBGE. (2021). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no brasil (2nd ed.). IBGE.), elas recebem, em média, 77,7% dos rendimentos médios dos homens. Quanto à ocupação de cargos gerenciais, ocupam apenas 37,4% das posições. Os dados recentes sobre as desigualdades entre homens e mulheres no Brasil realçam um cenário de mudanças tímidas, assim como identificado na literatura.

A célebre frase de Simone de Beauvoir (2012Beauvoir, S. (2012). O segundo sexo. Editora Nova Fronteira.) “não se nasce mulher, torna-se”, e colocada em evidência no título deste trabalho, evoca as dificuldades e barreiras enfrentadas todos os dias pelas mulheres em suas trajetórias profissionais. Uma trajetória demarcada pelo silenciamento, rebaixamento, e questionamento permanente. Isso fica notório tanto na literatura clássica quanto na literatura nacional e nos dados estatísticos mais recentes. Assim, “tornar-se mulher” representa um ato político para elas conquistarem espaços legítimos no ambiente de trabalho e, no contexto desta pesquisa, também no agronegócio.

Por outro lado, Bell Hooks (2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras (15th ed.). Rosa dos Tempos. ) lembra que o “tornar-se mulher” não está dado para todas as mulheres de forma clara e evidente. Homens e mulheres são socializados em todos os espaços, desde a infância, para incorporar crenças sexistas que privilegiam o reduto masculino. O machismo estrutural se apresenta como um produto da sociedade para o “ser”. Assim, homens e mulheres podem ser igualmente sexistas em seus comportamentos, falas e atitudes. De tal modo que a discriminação de gênero que permeia as carreiras delas pode ser materializada por homens, mas também por mulheres.

Este cenário de negação à sua figura no ambiente de trabalho e na sociedade nos recorda a contribuição de Acker (1990Acker, J. (1990). Hierarchies, jobs, bodies: A theory of gendered organizations.Gender & Society, 4(2), 139-158. https://doi.org/10.1177/089124390004002002
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), que reforça o quanto as organizações são constituídas a partir de normas de gênero impostas pelo homem. Embora por muito tempo tenha se persistido no imaginário da gestão que as organizações são neutras em termos de gênero, tem sido cada vez mais inquestionável que as organizações incorporam estruturas, corpos e posições os quais privilegiam a masculinidade.

Assim, quando se retrata que muitas mulheres utilizam estratégias de incorporação de traços masculinos em seus comportamentos (Duarte & Gallon, 2021Duarte, E., & Gallon, S. (2021). ‘No, I do not suffer from it’: the analysis of the manipulation of the subjectivity of the executive woman in the rise of the career. Brazilian Business Review, 19(1), 78-95. https://doi.org/10.15728/bbr.2022.19.1.5
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), ou visualizam normas masculinas em vigor que as silenciam e as rebaixam (Henderson et al., 2016Henderson, P. A., Derreira, M. A. A., & Dutra, J. S. (2016). As barreiras para a ascensão da mulher a posições hierárquicas: Um estudo sob a óptica da gestão da diversidade no brasil. Revista de Administração UFSM, 9(3), 489-505. https://doi.org/10.5902/19834659 8208
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), isso advém de uma tensão permanente com o sexismo.

2.2. O Lugar das Mulheres Também é no Agro

Pesquisas sobre as mulheres em contextos relacionados ao agronegócio ainda são bastante escassas. Ainda que haja alguns apontamentos sobre as dificuldades que enfrentam no “agro” (Menezes & Silva, 2016Menezes, R. S. S., & Silva, F. D. (2016). Trabalho e identidades de gênero de gestoras de organizações do agronegócio em minas gerais. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 3(2), 127-144.; Schwaab et al., 2019Schwaab, K. S., Dutra, V. R., Marschner, P. F., & Ceretta, P. S. (2019). O quanto a "enxada" é mais pesada para as mulheres? Discriminação salarial de gênero no setor agrícola brasileiro. Contextus - Revista Contemporânea de Economia e Gestão, 17(2), 37-62. https://doi.org/10.19094/contextus.v17i2.39969
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), este é um tema que demanda maior investigação.

A área agronômica se desenvolveu ao longo do tempo, partindo da descoberta da função da semente no processo de desenvolvimento das plantas, de maneira que este foi um fator determinante para que o ser humano passasse da coleta para o plantio, sendo essa uma significativa revolução cultural iniciada por elas. Desse modo, os pesquisadores associam a invenção da agricultura às mulheres, as quais tinham como atividade principal coletar alimentos, e com isso adquiriram conhecimento sobre os vegetais, flores e frutos e sobre o processo de semeadura e germinação das plantas de forma natural, passando então a reproduzir de forma intencional em locais próximos (Koss, 2000Koss, M. V. (2000). Feminino + masculino: uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. Escrituras.).

Mesmo com a invenção da agricultura sendo-lhes atribuída, as profissões dessa área são culturalmente atribuídas aos homens, justificando-se pela necessidade de condicionamento físico necessário para exercer o trabalho no campo, que envolve a utilização de grandes maquinários e trabalhar sob a ação de condições climáticas, tais como chuva, frio e sol (Brumer, 2004Brumer, A. (2004). Gênero e agricultura: A situação da mulher na agricultura do rio grande do sul. Estudos Feministas, 12(1), 205-227. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100011
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). Visualizar e encontrar mulheres atuando sob os desafios expostos era uma realidade pouco provável até pouco tempo atrás, visto que a primeira mulher a receber o título de engenheira agrônoma e exercer a profissão foi no ano de 1940 (Feichtenberger et al., 2010Feichtenberger, E., Kitajima, E. W., & Bové, J. (2010). Victória rossetti: 1917-2010. Summa Phytopathol, 37(1), 9-12.).

Há poucos estudos sobre a divisão do trabalho na agricultura, mas, mesmo entre aqueles que já se debruçaram sobre essa discussão, há um apontamento de que elas ocupam uma posição de subordinação e o trabalho que desenvolvem geralmente é considerado apenas como ajuda ou suporte, mesmo quando elas trabalham ou executam as mesmas atividades que os homens (Brumer, 2004Brumer, A. (2004). Gênero e agricultura: A situação da mulher na agricultura do rio grande do sul. Estudos Feministas, 12(1), 205-227. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100011
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).

Embora poucas pesquisas tenham sido conduzidas no contexto da agricultura, e de forma mais ampla no agronegócio, a publicação do informativo Mulheres Rurais (Embrapa, 2020EMBRAPA. (2020). Mulheres rurais - censo agro 2017. <https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1122107/mulheres-rurais-censo-agro-2017>.
https://www.embrapa.br/busca-de-publicac...
) traz alguns números que reforçam também a desigualdade no campo a partir de dados do Censo Agro 2017. Dentre os 5,07 milhões de estabelecimentos rurais registrados no Brasil, apenas 947 mil (19%) são dirigidos por elas. Enquanto no Nordeste essa proporção de estabelecimentos dirigidos por mulheres chega a 57%, no Centro-Oeste a proporção é de 6%. Isso indica que a desigualdade de gênero no país possui também um recorte regionalizado.

Aquelas que gerem estabelecimentos rurais compõem apenas 14,7% dos estabelecimentos com veículos, 5,7% dos estabelecimentos com implementos e máquinas, 5,6% dos estabelecimentos com tratores, 1,4% dos que possuem semeadeiras, 1,2% dos que possuem adubadeiras e apenas 0,6% dos estabelecimentos que possuem colheitadeiras (Embrapa, 2020EMBRAPA. (2020). Mulheres rurais - censo agro 2017. <https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1122107/mulheres-rurais-censo-agro-2017>.
https://www.embrapa.br/busca-de-publicac...
). Esses números revelam que elas não apenas gerenciam uma parcela muito pequena dos estabelecimentos rurais, como também estão à frente daqueles com o menor emprego de recursos tecnológicos.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Estudos que se utilizam de escalas validadas para abordagem da temática da discriminação de gênero são escassas, dado que ainda não há um consenso entre os pesquisadores da área a respeito de um instrumento que seja amplo o suficiente para tratar dos diversos espaços nos quais as mulheres estão inseridas (Torre-Pérez et al., 2022Torre-Pérez, L. de la, Oliver-Parra, A., Torres, X., & Bertran, M. J. (2022). How do we measure gender discrimination? Proposing a construct of gender discrimination through a systematic scoping review.International Journal For Equity in Health,21(1), 1-11. https://doi.org/10.1186/s12939-021-01581-5
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). Em decorrência desse cenário, para este estudo foi necessário o desenvolvimento de um instrumento específico para coleta dos dados.

O questionário elaborado compõe-se por questões socioeconômicas e uma escala para avaliação da percepção delas. O questionário foi aplicado via Google Forms com uso de questões fechadas e uma escala Likert de sete pontos. As assertivas a compor a escala foram criadas a partir da literatura discutida no referencial teórico, com enfoque para o contexto do agronegócio.

Para este estudo foi adotado o tipo de amostragem não probabilístico ou por conveniência (Creswell, 2014Creswell, J. W. (2014). Research design: Qualitative, quantitative, and mixed methods approaches (4th ed.). Sage.). O questionário foi distribuído através das redes sociais, visando à participação daquelas egressas há no máximo dois anos de cursos de graduação inseridos dentro da área das ciências agrárias e que tivessem experiência profissional no agronegócio (trabalho atual ou trabalhos anteriores). Não houve delimitação geográfica por região ou estado, uma vez que o questionário foi aplicado online, possibilitando o aumento do alcance de coleta. Ao todo foram coletados 315 questionários válidos.

O perfil dessa amostra é composto por mulheres, todas com graduação, sendo 80,3% no curso de Engenharia Agronômica, 15,2% no curso de Agronomia, e o restante em cursos correlatos. Com relação à faixa etária, 43,8% estão na faixa de 21 a 30 anos, 32,7% na faixa de 31 a 41 anos, e os demais 23,5% se concentram na faixa acima de 42 anos. A respeito da ocupação, 80% estão trabalhando atualmente, e 20% não estão (mas já trabalharam na área). Além da graduação, 62,2% possuem uma pós-graduação e 37,8% não a possuem, o que já indica uma amostra com maior nível de escolaridade. Por fim, com relação à renda familiar, 22,6% recebem até R$3.390,00 mensais, e os outros 77,4% recebem valores superiores a esse, o que também indica uma amostra com alta renda relativa.

Por conseguinte, para validação do questionário elaborado, foi aplicada uma análise fatorial exploratória de componentes principais, com método de rotação VARIMAX e carga fatorial mínima aceitável de 0,5. Para ajuste do modelo, foram excluídas 12 variáveis, restando 27 variáveis distribuídas em seis fatores. A partir da análise do Alfa de Cronbach, um fator composto por mais duas variáveis também foi eliminado, tendo o modelo final 25 variáveis distribuídas em cinco fatores (Tabela 1).

O modelo fatorial encontrado apresentou bom ajuste estatístico, segundo parâmetros propostos por Hair et al. (2009Hair Jr., J. F., Black, W. C., Babin, B. J., Anderson, R. E., & Tatham, R. L. (2009). Análise multivariada de dados (6th ed.). Bookman.), com KMO de 0,895, rejeição da hipótese nula do teste de Bartlett (χ2: 3710,5 e p-valor: 0,000), MSA para todas as variáveis superior a 0,5, todas as comunalidades acima de 0,5 e variância explicada de 62,202%. Os resultados da análise fatorial exploratória reforçaram a consistência do questionário elaborado.

Tabela 1
Fatores e cargas fatoriais

As denominações apresentadas para cada fator refletem a dimensão total e foram utilizadas para facilitar o entendimento do uso dos fatores nas etapas subsequentes da análise. Sobre a nomenclaturas, o Fator 1 “A área agrária que discrimina” traz a noção da discriminação de gênero na área agrária como um todo, sobre como enxergam o campo de atuação onde estão inseridas. O Fator 2 “Percepção de discriminação de gênero no ambiente de trabalho” expressa como essas mulheres percebem situações de discriminação que as envolvam em seus ambientes de trabalho. Em seguida, o Fator 3 “O ser mulher na área agrária” aborda a questão do “ser mulher” para elas, o que significa essa colocação, suas implicações e quais desafios derivam do fato de ser mulher, com o contexto da área agrária. O Fator 4 “Escolha de carreira na área agrária” avança sobre as escolhas que as levaram a escolherem essa área. O Fator 5 “Escolha de graduação” explora os elementos que as levaram a escolherem o curso superior na área de agrárias.

A partir dos fatores encontrados, foi realizada uma análise de agrupamentos hierárquica, com método de Ward e distância euclidiana quadrática. A motivação do uso da análise de agrupamentos nessa etapa da pesquisa emergiu do entendimento da teoria feminista que reconhece a pluralidade de manifestações do “ser” e do “tornar-se” mulher, rejeitando uma figura estável e universal da “mulher” (Hollanda, 2019Hollanda, H. B. de. (2019). Introdução. In H. B. de Hollanda (Org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais (pp. 10-22). Bazar do Tempo.). Desse modo, reconhece-se não ser adequado tratar a percepção daquelas egressas das ciências agrárias como uma visão única, assim possibilitando a identificação de diferentes percepções.

4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Com base na literatura utilizada e tamanho relativo da amostra, optou-se pela solução com dois agrupamentos, apesar de terem sido avaliadas as combinações para um, dois, três e quatro grupos. A solução com dois agrupamentos foi a que mais evidenciou as diferentes percepções entre grupos. Na Tabela 2 são apresentados os resultados dos fatores para cada um dos grupos selecionados. É importante indicar que os resultados entre 1 e 3 constituem respostas que tendem a discordar das afirmativas componentes de cada fator, o 4 representa o meio da escala e aqui é considerado neutro, uma vez que não há um posicionamento claro entre concordância e discordância, e os resultados de 5 a 7 constituem respostas as quais tendem a concordar com as afirmativas que compõem cada fator. Esses resultados advêm da escala Likert de sete pontos empregada no questionário aplicado.

Tabela 2
Agrupamento com solução para dois grupos

Para auxiliar a caracterização dos grupos, foram realizados cruzamentos entre as variáveis socioeconômicas coletadas e os agrupamentos, com aplicação do Teste Qui-Quadrado para comparações de variáveis não métricas. Verificou-se que para as variáveis renda familiar mensal (χ2: 13,269 e p-valor: 0,039) e faixa etária (χ2: 11,938 e p-valor: 0,018) constatou-se diferença estatisticamente significante entre os grupos. No caso da primeira variável, o grupo 1 se associou mais à faixa de renda superior a R$6.780,00, e o grupo 2 associou-se mais às faixas de renda inferiores a R$6.780,00. No caso da segunda variável, o grupo 2 teve maior associação à faixa etária de 21 a 41 anos, e o grupo 1, à faixa etária de 42 a 63 anos. A seguir será apresentado cada grupo e sua caracterização.

4.1. Grupo 01 - Mantenedoras do Sistema Patriarcal

O primeiro grupo é composto por 139 mulheres e representa 44,1% da amostra. Esse grupo foi denominado “mantenedoras do sistema patriarcal” porque representa um grupo de mulheres que não visualiza a discriminação de gênero. Para os três fatores iniciais, elas assumem uma posição de discordância ou passividade em relação à discriminação.

No primeiro fator (A área agrária que discrimina), esse grupo demonstra indiferença com relação às diversas afirmativas que buscam compreender a percepção sobre discriminação de gênero (Santos et al., 2014Santos, C. M. M., Tanure, B., & Carvalho Neto, A. M. (2014). Mulheres executivas brasileiras: o teto de vidro em questão. Rad, 16(3), 56-75. https://doi.org/10.20946/rad.v16i3.13791
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), especificamente na área agronômica. Conforme observado na literatura, a agricultura é uma área de atuação que privilegia historicamente a figura do homem em detrimento da mulher (Brumer, 2004Brumer, A. (2004). Gênero e agricultura: A situação da mulher na agricultura do rio grande do sul. Estudos Feministas, 12(1), 205-227. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100011
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). No entanto, isso não parece ser sustentado nesse grupo.

Nota-se que não há nem mesmo uma posição de concordância absoluta, mas também não há uma grande discordância com relação ao primeiro fator. Isso pode indicar que possuem algum nível de discernimento sobre a questão de gênero em suas trajetórias profissionais, mas isso não chega a causar incômodo ou prejuízo. Ou seja, a discriminação de gênero não é uma questão importante para elas.

O fator 02 (Percepção de discriminação de gênero no ambiente de trabalho) realça tal posicionamento, uma vez que esse grupo se mostrou contrário a situações de discriminação no trabalho, contrariando uma extensa literatura que reforça a existência de diversas práticas discriminatórias contra elas (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Henderson et al., 2016Henderson, P. A., Derreira, M. A. A., & Dutra, J. S. (2016). As barreiras para a ascensão da mulher a posições hierárquicas: Um estudo sob a óptica da gestão da diversidade no brasil. Revista de Administração UFSM, 9(3), 489-505. https://doi.org/10.5902/19834659 8208
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; Hryniewicz & Vianna, 2018Hryniewicz, L. G. C., & Vianna, M. A. (2018). Mulheres em posição de liderança: Obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos Ebape.br, 16(3), 331-344. https://doi.org/10.1590/1679-395174876
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; Souza et al., 2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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). Neste sentido, elas discordam de afirmativas como “preciso provar que sou capaz de desempenhar meu trabalho com frequência”, “ouço comentários machistas com frequência em minha área de atuação” e “preciso me impor para ser respeitada”.

Esse primeiro grupo se opõe à literatura sobre discriminação de gênero que historicamente vem reforçando a luta delas contra estereótipos e papéis sociais que subjugam continuamente a mulher. É um grupo que não sustenta a existência da discriminação. Muito pelo contrário, ele pode indicar até mesmo uma interface do machismo estrutural que faz com que elas próprias incorporem e reproduzam comportamentos sexistas (Hooks, 2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras (15th ed.). Rosa dos Tempos. ). Ou seja, os resultados associados a esse grupo para os três primeiros fatores podem indicar que elas não acreditam que haja discriminação de gênero na área agronômica.

O reconhecimento da discriminação de gênero não é premissa para uma mulher pelo simples fato de ser mulher. De acordo com Hooks (2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras (15th ed.). Rosa dos Tempos. ), os indivíduos são socializados desde a infância para incorporar crenças sexistas que privilegiam o homem. Por isso, podem ser tão sexistas quanto os homens. Com base na caracterização do grupo 01 nos três primeiros fatores, pode-se inferir que são mantenedoras de um sistema de repressão contra elas próprias.

As variáveis socioeconômicas mais marcantes para o grupo 01 foram a renda, especificamente no estrato de renda superior a R$6.780,00, e a idade, sendo um grupo composto por mulheres na faixa de 42 a 63 anos. Deste modo, nota-se que esse grupo está representado principalmente por aquelas com mais idade e de alta renda. Ainda que não seja possível inferir de forma absoluta, tal grupo pode estar retratado por um conjunto daquelas que atuam há mais tempo na área agronômica e que encara a posição privilegiada do homem com bastante naturalidade. Elas negam o fenômeno do teto de vidro e não reconhecem as faces degradantes do machismo (Santos et al., 2014Santos, C. M. M., Tanure, B., & Carvalho Neto, A. M. (2014). Mulheres executivas brasileiras: o teto de vidro em questão. Rad, 16(3), 56-75. https://doi.org/10.20946/rad.v16i3.13791
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).

Os resultados encontrados por Duarte e Gallon (2021Duarte, E., & Gallon, S. (2021). ‘No, I do not suffer from it’: the analysis of the manipulation of the subjectivity of the executive woman in the rise of the career. Brazilian Business Review, 19(1), 78-95. https://doi.org/10.15728/bbr.2022.19.1.5
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) corroboram os achados desta pesquisa para o grupo 01, uma vez que as executivas entrevistadas pelos pesquisadores se encontram, em sua maioria, nessa mesma faixa etária e com estrato de renda elevado. Duarte e Gallon (2021Duarte, E., & Gallon, S. (2021). ‘No, I do not suffer from it’: the analysis of the manipulation of the subjectivity of the executive woman in the rise of the career. Brazilian Business Review, 19(1), 78-95. https://doi.org/10.15728/bbr.2022.19.1.5
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) evidenciam que as executivas tendem a negar as dificuldades vivenciadas por mulheres em suas trajetórias de carreira e reproduzem comportamentos sexistas associados à preservação da masculinidade no ambiente de trabalho.

O terceiro fator (O ser mulher na área agrária) é o que apresenta maior nível de discordância para o grupo. Esse fator vai demarcar uma posição de que elas não se sentem inseguras em suas escolhas profissionais, não pensaram em trocar de área e não duvidam de suas capacidades por serem mulheres. Nesse fator, também há discordância para a afirmativa que diz que a profissão na área agronômica mudou a forma como esta mulher vê o feminismo.

A partir das afirmativas do terceiro fator, seria possível pensar na hipótese de que essas mulheres são muito seguras de si mesmas e não veem o fato de “ser mulher” como um impeditivo para atuar no agronegócio. No entanto, há um descompasso dessa hipótese com relação aos outros dois fatores iniciais que reforçam a invisibilidade da discriminação.

Deste modo, aquelas com maior nível de renda e mais idade podem admitir, com mais clareza, que o cenário indicado na literatura sobre a discriminação de gênero nas organizações e no contexto do agronegócio (Brumer, 2004Brumer, A. (2004). Gênero e agricultura: A situação da mulher na agricultura do rio grande do sul. Estudos Feministas, 12(1), 205-227. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100011
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; Hryniewicz & Vianna, 2018Hryniewicz, L. G. C., & Vianna, M. A. (2018). Mulheres em posição de liderança: Obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos Ebape.br, 16(3), 331-344. https://doi.org/10.1590/1679-395174876
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) não as impediu de construírem carreiras nesse setor. Elas já possuem maior maturidade associada às suas escolhas profissionais e às suas carreiras. Mas esse percurso desenvolvido no agronegócio também não rompeu com estereótipos de gênero, nem mesmo gerou um reconhecimento de que a discriminação existe nos espaços organizacionais (Acker, 1990Acker, J. (1990). Hierarchies, jobs, bodies: A theory of gendered organizations.Gender & Society, 4(2), 139-158. https://doi.org/10.1177/089124390004002002
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). A afirmativa “a área agronômica não me masculiniza” também aponta discordância com a literatura (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Souza et al., 2013Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma análise dos estudos sobre feminino e as mulheres na área de administração: a produção científica brasileira entre 2000 e 2010. Organização & Sociedade, 20(67), 603-621. https://doi.org/10.1590/S1984-92302013000400003
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). Afinal, para elas, a “profissão na área agronômica não mudou a forma como eu vejo o feminismo”.

O fator 04 (Escolha de carreira na área agrária) é o único que possui alto nível de concordância para o primeiro grupo. Dado que ele foi caracterizado como tendo maior renda, a afirmativa “ter um diploma na área agronômica me proporcionou uma melhor condição socioeconômica” fica em evidência. Esse grupo também sustenta a posição de que um diploma na área agronômica facilitou a entrada no mercado de trabalho e que há vantagens em seguir essa área. Além disso, elas se sentem valorizadas em seus trabalhos.

No entanto, o fator 05 (Escolha de graduação) apresenta discordância para o grupo. Esse fator vem reforçar que o curso de graduação na área de ciências agrárias não foi decorrente do interesse pela área, pelo título na área ou por uma atuação prévia no agronegócio. Ainda que essas mulheres demonstrem um interesse e veem vantagens em seguir na área agronômica, o setor não foi uma premissa para a escolha do curso. Não é possível averiguar, a partir das respostas, o que motivou especialmente esse grupo a escolher as ciências agrárias, mas é plausível inferir que estão satisfeitas com suas carreiras.

A partir da identificação do nível de concordância das componentes do grupo 01 para os cinco fatores, a nomenclatura “mantenedoras do sistema patriarcal” foi utilizada para reforçar a presença de um grupo que foi capaz de ganhar espaço em um contexto que possui uma forte interlocução com a discriminação de gênero (Brumer, 2004Brumer, A. (2004). Gênero e agricultura: A situação da mulher na agricultura do rio grande do sul. Estudos Feministas, 12(1), 205-227. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100011
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), mas ao mesmo tempo não visualiza essa discriminação na área e em seu ambiente de trabalho. Corroborando novamente Hooks (2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras (15th ed.). Rosa dos Tempos. ), trata-se de um grupo de mulheres socializadas no sistema patriarcal, que possivelmente sustenta atitudes e comportamentos sexistas, sem a consciência de que existe um cenário de discriminação repressivo sobre as mulheres, para as quais a discriminação de gênero não é um problema.

4.2. Grupo 02 - Conscientes do Protagonismo

O segundo grupo, composto por 176 mulheres (que representam 55,9% da amostra), recebeu a denominação de “conscientes do protagonismo”, por ser um grupo que mostrou observar mais os fatores relacionados à discriminação de gênero. Para os fatores “A área agrária que discrimina” e “Percepção de discriminação de gênero no ambiente de trabalho”, esse grupo mostrou concordância, sendo o nível de concordância para o primeiro fator mais elevado que o nível de concordância para o segundo fator. Para o fator “O ser mulher na área agrária”, esse grupo apresentou resultados neutros (mas vale indicar que superior ao do outro grupo). Para o fator “Escolha de carreira na área agrária”, houve novamente concordância e, para o fator “Escolha de graduação”, elas também se mantiveram neutras.

De forma resumida, esse grupo se caracterizou como: (1) elas reconhecem que a área agrária tem muitos elementos condizentes com a discriminação de gênero e ao mesmo tempo indicam sentir essa discriminação em sua própria pele; (2) essas mulheres são neutras com relação ao fato de ser mulher na área agrária; e (3) elas não possuem dúvidas com relação às suas escolhas de carreira na área agrária, mas ao mesmo tempo se mostram neutras com relação à escolha de seus cursos de graduação nessa área.

Com relação à colocação de que as mulheres reconhecem na área agrária elementos que fomentam a discriminação de gênero (Brumer, 2004Brumer, A. (2004). Gênero e agricultura: A situação da mulher na agricultura do rio grande do sul. Estudos Feministas, 12(1), 205-227. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2004000100011
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; Menezes & Silva, 2016Menezes, R. S. S., & Silva, F. D. (2016). Trabalho e identidades de gênero de gestoras de organizações do agronegócio em minas gerais. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 3(2), 127-144.; Schwaab et al., 2019Schwaab, K. S., Dutra, V. R., Marschner, P. F., & Ceretta, P. S. (2019). O quanto a "enxada" é mais pesada para as mulheres? Discriminação salarial de gênero no setor agrícola brasileiro. Contextus - Revista Contemporânea de Economia e Gestão, 17(2), 37-62. https://doi.org/10.19094/contextus.v17i2.39969
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), destacam-se certas proposições. Primeiro, que essa maior percepção pode advir de um maior entendimento do mundo que as cerca. Além disso, podem estar em ambientes ou organizações menos igualitárias e, por conta disso, percebem mais a discriminação. Ainda, em virtude do recorte de classe e idade, o fato de serem mais jovens e de estratos de renda menores, essa caracterização pode influenciar a forma como elas enxergam e sentem a discriminação de gênero.

A primeira suposição traz a discussão a respeito de como a discriminação de gênero é tratada atualmente e como a enxergavam no passado. Isso porque, atualmente, os debates sobre essa temática se fazem mais presentes, inclusive nas organizações, o que leva a crer que podem fazer parte da parcela que tem mais acesso às discussões de gênero, o que poderia levar ao fato de elas estarem mais cientes de sua posição, ou protagonismo, com relação a sua colocação como mulheres no mercado de trabalho.

Contudo, ao invés de terem mais acesso à discussão de gênero, na verdade elas podem estar vivenciando a discriminação com mais intensidade no dia a dia, por estarem inseridas em ambientes hostis para elas. Essa situação está evidenciada na literatura sobre as suas carreiras (Carvalho Neto et al., 2010Carvalho Neto, A. M. C., Tanure, B., & Andrade, J. (2010). Executivas: carreira, maternidade, amores e preconceitos. Revista de Administração de Empresas Eletrônica, 9(1), 1-23. https://doi.org/10.1590/S1676-56482010000100004
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; Santos et al., 2014Santos, C. M. M., Tanure, B., & Carvalho Neto, A. M. (2014). Mulheres executivas brasileiras: o teto de vidro em questão. Rad, 16(3), 56-75. https://doi.org/10.20946/rad.v16i3.13791
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). E essa discussão também é plausível, pois não se tem informação suficiente sobre o local de trabalho de cada uma delas.

Com relação à terceira suposição, a literatura traz a forte relação que pode haver entre intersecções de categorias sociais, tais como gênero, classe e idade (geracional). Aqui se aponta o fator geracional como forte indicador da forma como podem diferir do primeiro grupo, por estarem em uma faixa etária menor, ou por serem consideradas mais jovens. E aponta-se essa relação, pois como indicado pela literatura, a forma como enxergam a desigualdade de gênero no mundo e consigo mesmas tem grande influência pela forma como foram criadas, pois são os pais que socializam e influenciam a forma como os filhos veem o mundo (Hooks, 2018Hooks, B. (2018). O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras (15th ed.). Rosa dos Tempos. ).

Mesmo que essas filhas em idade mais avançada possam alterar sua percepção sobre o mundo, essa raiz ainda está presente e pode afetar a forma como essas mulheres até classificam o que seria discriminação de gênero para elas, dado que muitos comportamentos sexistas são normalizados e, por isso, não são problematizados por elas. E o que ocorre nesse grupo pode ser uma influência da nova geração, que nasceu com maior acesso à informação que seus pais, teve influência dos meios digitais e mais acesso à discussão de temas como gênero.

Para o recorte da renda, levantam-se diversos questionamentos, como se seria a posição de classe influenciadora na forma como vivenciam a discriminação. Além disso, seria possível questionar se são menos remuneradas, pois estão em ambientes mais discriminatórios, corroborando com dados do IBGE (2021IBGE. (2021). Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no brasil (2nd ed.). IBGE.) os quais apontam que elas ganham menos que os homens em média.

Em seguida, a respeito da segunda característica apontada para esse grupo, a indicação de serem neutras no fator que diz respeito ao “ser mulher” pode indicar duas possíveis situações. A primeira, que elas se sentem seguras com relação a sua colocação no mundo e com o fato de serem mulheres, mas ao mesmo tempo percebem que a estrutura na qual estão inseridas dificulta a sua própria noção de segurança, e por isso aparecem como neutras com relação a esse contexto. E segundo, como contraponto, de elas serem inseguras com sua colocação, mas existirem certos momentos que atenuam a discriminação pelo fato de serem mulheres, e como são momentos, elas se colocam neutras com relação a isso.

Por fim, acerca da terceira característica, assim como o primeiro grupo, elas se mostraram certas de suas escolhas de carreira na área agronômica, e isso sugere que sua percepção dessa área como discriminatória aparentemente não afetou o seu processo de escolha. Isso pode indicar que elas não tinham conhecimento desse cenário antes de adentrar no contexto do agronegócio ou apenas que não viram esse contexto como um impeditivo. E o fato de serem neutras com relação à escolha do curso pode indicar algumas coisas, como a contribuição da graduação ter sido baixa para ocupação atual, ou ainda, uma possível vontade de ter escolhido um caminho diferente no início de sua jornada.

A partir da identificação do nível de concordância das componentes do grupo 02 para os cinco fatores, a nomenclatura “conscientes do protagonismo” foi utilizada para reforçar a presença de um grupo que reconhece a discriminação de gênero, que vivencia as diferentes faces do machismo estrutural, bem como vivencia os múltiplos desdobramentos dos comportamentos e atitudes sexistas que permeiam as suas trajetórias profissionais.

Ao mesmo passo em que elas são conscientes da discriminação, elas relutam em assumir uma concordância clara com relação à segurança de ser mulher no agronegócio, ou uma discordância evidente que demonstre os riscos de ser mulher como um impeditivo para atuar na área agrária. Assim, também reconhecem haver armadilhas que podem colocar em risco suas posições a qualquer momento. As componentes do segundo grupo, ao contrário do primeiro, reverberam que a discriminação de gênero é uma problemática existente no agronegócio e que precisa ser contestada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando emprestado a frase que dá parte do título à essa pesquisa “Não se nasce mulher, torna-se” (Beauvoir, 2012Beauvoir, S. (2012). O segundo sexo. Editora Nova Fronteira.), o principal desejo desse texto foi trazer elementos que possam sinalizar como a trajetória delas em áreas ainda reificadas pela presença majoritária de homens é percebida por elas. Os resultados aqui obtidos revelaram aspectos que tocam em construções sociais que sustentam estruturas. Estruturas estas que estão no arquétipo das ações humanas e denunciam o quanto as compreensões são distintas, entre elas, na relação de equidade entre os gêneros e as faces de discriminação.

Desse modo, a partir do objetivo da pesquisa que buscou compreender como a discriminação de gênero é percebida por mulheres egressas das ciências agrárias e, tendo em mãos uma amostra de 315 mulheres, chegou-se à formação de dois grupos que, em suas análises, revelaram resultados antagônicos. Com destaque para o fato de que a idade das respondentes e a renda foram grandes influenciadores para os achados de pesquisa.

Os grupos foram nomeados da seguinte forma: “mantenedoras do sistema patriarcal” e “conscientes do protagonismo”. Entende-se com essa nomenclatura que, embora haja um forte discurso de práticas inclusivas e avanços nas políticas para elas, as barreiras e percepções sobre um “apartar” seguem vigentes no consciente de muitas mulheres. Isso levanta um sinal de alerta e merece um olhar atento para o possível silêncio que ainda permeia a discussão sobre mulheres, seus trabalhos e suas áreas de atuação.

O grupo “mantenedoras do sistema patriarcal” representa aquelas que não enxergam a discriminação de gênero em suas trajetórias profissionais no agronegócio. Tal resultado diverge significativamente da vasta literatura sobre o tema e dos indicadores sobre equilíbrio de gênero que trazem constantemente dados que ainda as colocam em condição secundária quando comparadas aos homens. Desse modo, o não reconhecimento ou a invisibilidade que esse grupo atribui às condições díspares entre os gêneros endossa a reprodução de um modelo que ainda sustenta o homem na sua condição de privilégio. Entende-se que realizar uma pesquisa qualitativa a posteriore se faz muito oportuna, pois pode permitir maior compreensão sobre quais elementos contribuem para a formação de opinião delas. Destaca-se que a não percepção de dificuldade individual na trajetória de carreira não deve balizar as suas inúmeras dificuldades coletivas, presentes em estruturas organizacionais e sociais.

O grupo “conscientes do protagonismo” representa mulheres mais alertas sobre suas condições nos espaços organizacionais relacionados ao agronegócio, além de perceberem mais claramente como a discriminação de gênero as afeta por serem mulheres. Nesse caso, independentemente das razões que as levaram a terem essa maior “consciência”, o contraponto entre os dois grupos é algo que aflora o debate sobre os (não) avanços nas pautas que falem sobre e para elas.

Os resultados indicam que mesmo considerando um perfil com formações profissionais semelhantes e que atuam notoriamente em ambientes com maioria de homens, há um contraste de compreensão existente dentro da própria estrutura do agronegócio. De um lado, aquelas que parecem reconhecer com mais nitidez a forma como são afetadas por essa estrutura, e de outro, as que assimilam e tendem a normalizar heranças históricas, que sustentam o modelo patriarcal.

Os estímulos gerados por meio desses resultados e que fazem eco com a provocação trazida por Beauvoir, mostram que a sua presença no agronegócio deveria caminhar para um processo de emancipação diante de um “mundo” mais preparado para os homens. Assim, reconhecer que ainda não há convergência nem entre elas próprias sobre estruturas que discriminam ou não, mostra o quanto ainda há insipiências sobre o tema igualdade, mulheres e escolhas profissionais. Cabe um alerta ao campo de pesquisa sobre os ajustes de suas lentes na investigação dos movimentos que sustentam os resultados ora mencionados.

Entende-se como contribuição desta pesquisa a caracterização do perfil da mulher profissional da área de agrárias, pouco explorado no contexto do agronegócio dentro da perspectiva dos estudos organizacionais. Tais resultados podem ser considerados como importantes insumos para avanços teóricos e aplicados, isso porque, diante das inúmeras pesquisas feitas com mulheres, observar dicotomias na compreensão sobre discriminação a partir de um recorte geracional, pode indicar que há caminhos e/ou ações que estão sendo mais assertivas e outras não quando se trata sobre conceitos de igualdade e marginalizações.

Como sugestões para pesquisas futuras, além do caráter iminente de uma pesquisa qualitativa, faz-se necessário compreender como essas percepções díspares sobre a mulher no agronegócio pode se refletir em outras áreas relacionadas a esse contexto, como nos espaços do campo e na agricultura familiar, bem como em ambientes de ensino e pesquisa. Propõe-se também a replicação da escala elaborada como forma de sustentar sua validação e contribuição como instrumento. Por fim, espera-se despertar futuras pesquisas direcionadas ao olhar sobre os contrastes nas percepções delas em suas trajetórias profissionais a respeito da discriminação de gênero em outros espaços organizacionais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2022
  • Revisado
    20 Jul 2022
  • Aceito
    24 Set 2022
  • Publicado
    22 Jun 2023
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