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A regra-matriz de incidência antitruste para condutas anticoncorrenciais

Content and logical structure of the article 20 of statute 8.884/94 (antitrust law)

Resumos

Característica marcante do direitoda concorrência éa interdisciplinaridade. Nas análises de condutas lesivas à ordem econômica, existe a necessidade de aplicação do direito sobre um suporte fático geralmente composto por fatos econômicos. Por essa razão, a evolução doutrinária e jurisprudencial da matéria aponta um aprofundamento da utilização da ciência econômica na identificação jurídica das condutas anticoncorrenciais. No entanto, no atual estágio de evolução dos estudos da matéria no Brasil, verifica-se pouca clareza a respeito dos papéis e dos níveis de atuação de cada disciplina. Este artigo procurará facilitar essa visualização, dissecando a estrutura lógica da norma jurídica de direito concorrencial para repressão a condutas lesivas à ordem econômica, identificando os critérios que a compõem e permitindo, com isso, a localização dos termos que viabilizam a utilização do instrumental econômico na tarefa de dizer o direito nos casos de condutas anticoncorrenciais.

direitoda concorrência; condutas anticoncorrenciais; norma jurídica; estruturas lógicas; regra-matriz de incidência; suporte fático


A striking feature of antitrust law is its interdisciplinarity. The analysis of anticompetitive conducts generally requires the implementation of law on a factual support composed of economic facts. Therefore, the development of doctrine and case law indicates a deepening of the use of economic science in the legal identification of anticompetitive conducts. However, in the current stage of the studies in Brazil, there is little clarity regarding the roles of the law and the economics in this task. This article seeks to make this viewing easier, dissecting the logical structure of the brazilian antitrust legal standard for anticompetitive conduct, identifying the criteria that compose it, and allowing thereby the location of the terms that enable the use of economic instruments and legal prudence in the analysis of anticompetitive conducts.

antitrust law; anticompetitive conducts; legal standards; logic structures; matrix rule of incidence; factual support


ARTIGOS

A regra-matriz de incidência antitruste para condutas anticoncorrenciais

Content and logical structure of the article 20 of statute 8.884/94 (antitrust law)

Marcel Medon Santos* * Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Concorrência pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (DIREITO GV). Ex-Coordenador-Geral de Assuntos Jurídicos e Ex-Diretor do Departamento de Proteção e Defesa Econômica da Secretaria de Direito Econômico (MJ). Advogado em São Paulo e Brasília.

Especialista em Direito da Concorrência pela Direito GV, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Marcel Medon Santos Rua Monte Alegre, 470, apto. 171 Perdizes – 05014-000 São Paulo, Brasil marcelmedon@hotmail.com

RESUMO

Característica marcante do direitoda concorrência éa interdisciplinaridade. Nas análises de condutas lesivas à ordem econômica, existe a necessidade de aplicação do direito sobre um suporte fático geralmente composto por fatos econômicos. Por essa razão, a evolução doutrinária e jurisprudencial da matéria aponta um aprofundamento da utilização da ciência econômica na identificação jurídica das condutas anticoncorrenciais. No entanto, no atual estágio de evolução dos estudos da matéria no Brasil, verifica-se pouca clareza a respeito dos papéis e dos níveis de atuação de cada disciplina. Este artigo procurará facilitar essa visualização, dissecando a estrutura lógica da norma jurídica de direito concorrencial para repressão a condutas lesivas à ordem econômica, identificando os critérios que a compõem e permitindo, com isso, a localização dos termos que viabilizam a utilização do instrumental econômico na tarefa de dizer o direito nos casos de condutas anticoncorrenciais.

Palavras-chave: direitoda concorrência, condutas anticoncorrenciais, norma jurídica, estruturas lógicas, regra-matriz de incidência, suporte fático.

ABSTRACT

A striking feature of antitrust law is its interdisciplinarity. The analysis of anticompetitive conducts generally requires the implementation of law on a factual support composed of economic facts. Therefore, the development of doctrine and case law indicates a deepening of the use of economic science in the legal identification of anticompetitive conducts. However, in the current stage of the studies in Brazil, there is little clarity regarding the roles of the law and the economics in this task. This article seeks to make this viewing easier, dissecting the logical structure of the brazilian antitrust legal standard for anticompetitive conduct, identifying the criteria that compose it, and allowing thereby the location of the terms that enable the use of economic instruments and legal prudence in the analysis of anticompetitive conducts.

Keywords: antitrust law, anticompetitive conducts, legal standards, logic structures, matrix rule of incidence, factual support.

1. INTRODUÇÃO

Como é sabido, tem sido crescente a utilização dos conceitos da Ciência Econômica na análise de infrações à ordem econômica. O avanço da utilização do instrumental microeconômico faz-se cada vez mais importante para conferir maior precisão possível ao descobrimento da verdade pelo julgador antitruste em sua atividade de aplicar o Direito aos casos concretos.

No entanto, embora o estudo de base microeconômica venha avançando, não se observa a mesma evolução quanto à pesquisa sobre os limites jurídicos de abrangência da aplicação da norma de Direito da Concorrência para condutas anticoncorrenciais. Com isso, não raro, vêem-se os operadores do Direito da Concorrência distanciando-se da percepção de que a base para a aplicação da teoria microeconômica nos casos concretos é exatamente a existência de uma norma jurídica, que, como em qualquer outro ramo do Direito, requer a compreensão dos elementos que compõem sua estrutura lógica e da fenomenologia da incidência de seus conceitos aos conceitos dos casos concretos.

Como resultado dessa compreensão parcial, observa-se uma tendência à mistura de entendimentos acerca dos níveis de atuação do Direito e da Economia nas análises, prejudicando, inclusive, a tarefa de aplicação da lei aos casos concretos.

O que se pretende demonstrar neste trabalho, a partir de uma identificação dos elementos constitutivos da norma de defesa da concorrência para condutas anticoncorrenciais, inserta no artigo 20 da Lei 8.884, de 11.06.1994, é que Direito e Economia atuam em níveis lógicos diferentes e não-conflitantes. Para tanto, serão utilizados, como ferramenta, conceitos e metodologia de análise consagrados em outros ramos da Ciência Jurídica, que certamente já foram objeto de mais estudos jurídicos do que o Direito da Concorrência no Brasil.

Acredita-se, com isso, contribuir para deixarem-se mais claros os limites de abrangência da aparentemente amplíssima norma que prevê as hipóteses de condutas lesivas à ordem econômica.

Este trabalho inicia com uma revisão doutrinária acerca da estrutura lógica das normas jurídicas de comportamento, de caráter sancionador. Em seguida, analisam-se os fundamentos constitucionais e o conteúdo da norma jurídica de defesa da concorrência para condutas anticoncorrenciais. Por fim, passa-se a aplicar a metodologia de análise lógica realizada na parte inicial à norma jurídica de Direito da Concorrência para condutas lesivas à ordem econômica.

2. CONCEITO DE REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA

2.1 PREÂMBULO

A expressão "regra-matriz de incidência", que será utilizada neste trabalho, é extraída da teoria exposta por Paulo de Barros Carvalho, em seu Curso de direito tributário. Nessa obra, o autor descreveu com profundidade e clareza a estrutura lógica das normas jurídicas, em especial das normas tributárias, e analisou a fenomenologia de incidência normativa.

Como a base das lições do eminente professor pode ser aplicada em qualquer ramo do Direito, pretende-se visualizar e analisar, da mesma forma, a estrutura lógica da norma de Direito de Defesa da Ordem Econômica, inserta no artigo 20 da Lei 8.884, de 1994, para condutas anticoncorrenciais e a fenomenologia de sua incidência.

Para fins de simplificação, serão utilizadas como sinônimas à expressão "defesa da ordem econômica" as expressões "antitruste" e "defesa da concorrência", uma vez que não representam prejuízos à correção do que se pretende expressar.

2.2 A COMPLETUDE DAS NORMAS E A SANÇÃO

Relevante iniciar o estudo proposto fazendo referência às duas principais correntes de pensamento acerca da completude das estruturas lógicas das normas jurídicas.

De um lado, há os chamados sancionistas, que atribuem grande importância ao papel desempenhado pela sanção no Direito. Para Hans Kelsen, precursor e principal autor dessa corrente, a norma jurídica completa tem uma estrutura dúplice, formada por uma norma primária e uma norma secundária. A norma secundária é a que prevê um fato e prescreve uma determinada conduta humana. A norma primária é a que prevê o descumprimento da prescrição da norma secundária, prescrevendo, para tanto, a sanção (MELLO, 1999, p. 31).1 1 Para Kelsen, a sanção exerce papel fundamental no Direito, daí por que, para o autor, a sanção comporia a norma primária. No entanto, em obra publicada após a sua morte, Allgemeine theorie der normen, Kelsen parece ter esboçado uma revisão dessa nomenclatura, invertendo-a. (MELLO, 1999, p. 29, nota 21) Para alguns autores, como Lourival Villanova, norma primária deve ser a norma que prescreve o comportamento e a norma que prescreve a sanção deve ser a norma secundária. Carlos Cossio, aceitando a estrutura dúplice apregoada por Kelsen, mas evitando a polêmica sobre a correção da nomenclatura de normas primárias e normas secundárias, denomina as normas que prescrevem as condutas de endonormas e as que prescrevem sanções, de perinormas.

De outro lado, há a corrente dos não-sancionistas, que defendem ser a norma jurídica uma proposição completa sempre que preveja um fato e prescreva um preceito a ele correspondente. Segundo esse pensamento, por ser dotada de ambos os elementos, a norma que prescreve a sanção é outra norma jurídica completa. Para os defensores dessa idéia, como Pontes de Miranda,Von Tuhr e Larenz, a incompletude da norma estaria relacionada à falta de menção ao fato ou ao preceito (MELLO, 1999, p. 32).

Pode-se afirmar que essa discussão ganha maior relevância quando se estudam as normas jurídicas sem sanção, que estabelecem princípios, procedimentos, criação de órgãos e a forma como as normas devem ser criadas, transformadas ou expulsas do sistema jurídico. Segundo Paulo de Barros, tais normas são intituladas normas de estrutura. Estas não serão tratadas neste estudo, por não apresentarem pertinência com o tema proposto. Já as normas de conduta, que serão aqui examinadas, estão diretamente voltadas à conduta das pessoas, nas suas relações de intersubjetividade (CARVALHO, 1999, p. 174). Para as últimas, a presença da sanção exerce papel vital. Os seres humanos, a quem se destinam as normas jurídicas, podem cumprir os deveres estabelecidos nas prescrições legais ou podem proceder em sua desobediência, incorrendo, conseqüentemente, nas chamadas sanções. O ordenamento jurídico, com intuito de regular a vida em sociedade, garante o cumprimento de suas ordens, por meio da estipulação de medidas coercitivas, que afetam a propriedade ou a liberdade das pessoas. "Daí por que, ao criar uma prestação jurídica, concomitantemente o legislador enlaça uma providência sancionatória ao não-cumprimento do referido dever" (CARVALHO, 1999, p. 343).

A norma de Direito da Concorrência, inserta no artigo 20 da Lei 8.884/94, é evidentemente uma norma de comportamento, de caráter sancionador, na medida em que disciplina a conduta dos agentes econômicos em seu proceder nos mercados, prescrevendo punições para as hipóteses de violação que prevê. Tal qual ocorre com as demais normas de caráter sancionador, as normas de Direito da Concorrência que estabelecem as proibições ou as condutas desejáveis, em conformidade com o Direito, não se encontram escritas. Adota o legislador, nesse particular, uma linguagem elíptica, "omitindo-se a referência expressa à conduta desejada, que, no entanto, é de ser considerada parte integrante da norma" (MELLO, 1999, p. 30).

Segundo Marcos Bernardes de Mello:

[...] o próprio Kelsen reconhece não ser necessário que esteja a proibição ou a imposição da conduta desejada (para cuja transgressão se estabelece a sanção) explicitamente expressada na formulação legislativa da norma, uma vez que constitui pressuposto necessário de sua incidência.

Assim, "tanto em sua formulação legislativa, com linguagem elíptica, como em sua expressão integral a norma penal contém, sempre, uma norma primária e uma norma secundária" (MELLO, 1999, p. 30-31).

Quando o legislador prevê como conduta reprovável pelo Direito, por exemplo, "abusar de posição dominante", estabelecendo as penas para a violação, está proibindo o abuso de posição dominante e deixando claro (porém não expresso em texto) que a conduta desejável seria o "não-abuso de posição dominante". Apesar de o texto da norma apenas prever o fato "abuso de posição dominante" e prescrever a pena, a "proibição" de tal conduta ou a "estipulação da conduta desejável", contrária a tal violação, apesar de implícita, está obviamente presente na estrutura lógica da norma jurídica em comento. Em termos didáticos, portanto, a regra referida, em sua completude, deve ser assim entendida: (1) é proibido abusar de posição dominante; (2) se alguém abusar de posição dominante, deverá ser punido com penas previstas nos artigos 23 e 24 da Lei 8.884/94. Como visto, apesar de apenas estar escrita a segunda proposição na Lei 8.884/94, é inegável que a primeira esteja presente, ainda que de forma implícita.

Tomando-se mais uma vez por base a metodologia de Paulo de Barros, podem-se identificar, analogamente, dois tipos de normas de Direito Antitruste. As normas em sentido amplo e as em sentido estrito. A norma antitruste em sentido estrito descreve os fatos que violam a ordem econômica, estipula os sujeitos da relação jurídica e estabelece as sanções. A essa norma será atribuída a denominação de "regra-matriz de incidência antitruste".

A norma jurídica que prevê o controle de atos de concentração também pode ser considerada norma antitruste em sentido estrito. No entanto, neste trabalho, será focalizada apenas a regra antitruste para condutas anticoncorrenciais, propondo-se uma interpretação do texto2 2 Segundo Eros Roberto Grau (2005, p. 23/26), a norma ou regra jurídica é o produto da interpretação, sendo incorreto afirmar que se interpretam normas jurídicas: "O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo". Ou ainda: "Repetindo: as normas resultam da interpretação, que se pode descrever como um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo". do artigo 20 da Lei 8.884/943 3 Tem havido, em algumas ocasiões, certa dificuldade na distinção entre condutas anticoncorrenciais e atos de concentração, uma vez que o artigo 54, caput, pertinente ao controle de atos de concentração, refere-se aos mesmos efeitos produzidos pelos atos previstos pelo artigo 20, incisos I e II, da mesma Lei 8.884/94, referente a condutas anticoncorrenciais. Contribui para essa dificuldade a inexistência de imposição pelo mesmo artigo 54 da Lei Antitruste, de apresentação prévia dos atos ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), já que efeitos (lesivos ou não) desses tipos de atos podem ser produzidos concretamente antes de sua submissão à autoridade antitruste. Sem qualquer pretensão de esgotar esse assunto, uma vez que se trata de tema para outro estudo, pode-se exemplificar, grosso modo, como atos de concentração aqueles previstos no § 3.º do artigo 54 da Lei 8.884/94, isto é, "fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário resultante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais)". Por outro lado, podem ser citados como exemplos de condutas os cartéis, a venda casada, a prática de preços predatórios, o estabelecimento de acordos entre empresas que se mantêm independentes, verticalmente relacionadas, para obtenção do fechamento dos canais de distribuição de produtos ou aquisição de insumos, entre outras hipóteses exemplificativamente previstas nos incisos do artigo 21 da Lei 8.884/94. . As demais normas presentes na Lei de Defesa da Ordem Econômica, sejam as que definem princípios ou que fixam quaisquer outras providências, são as normas antitruste em sentido amplo, que não constituem objeto da presente análise, também por não se relacionarem diretamente com o tema proposto.

2.3 SUPORTE FÁTICO E HIPÓTESE

Muitas são as formas para denominação do evento desencadeador da incidência normativa e para denominação de sua previsão abstrata no plano normativo.As discussões em torno do tema revelam defensores das expressões "situação-base", "pressuposto de fato, "suporte fático", "fato imponível", "hipótese de incidência", "fato gerador".4 4 Carvalho, 1999, p. 170. Segundo Marcos Bernardes de Mello (1999, p. 37-38): "A expressão suporte fáctico – com que Pontes de Miranda traduziu a alemã Tatbestand – foi utilizada inicialmente no Direito Penal, e trazida para o Direito privado por Tohl, segundo depoimento de Cammarata. O conceito, conforme demonstra Pontes de Miranda no prefácio do seu Tratado de Direito Privado, é de aplicação universal na Ciência Jurídica, não sendo privativo de um determinado ramo do Direito. Tanto isso é verdade que nos diversos campos jurídicos o vemos empregado muitas vezes disfarçado por outras denominações, como pressuposto de incidência, tipificação legal, tipo legal, hipótese de incidência.No Direito Tributário, emprega-se a expressão fato gerador, embora com muita impropriedade, como mostramos em nossa Contribuição do Estudo da Incidência da Norma Jurídica Tributária, pág. 34, porque na verdade o fato gerador da obrigação tributária é o fato jurídico, portanto, o suporte fático depois da incidência, já juridicizado, e não o suporte fático apenas. Entre os autores italianos está difundido o uso do termo fattispecie – proposto por Betti – e entre os autores de língua espanhola a expressão supuesto de hecho".

Aqui, será adotada a metodologia de separação do que é previsão normativa, abstrata, existente no mundo das idéias, e do que é fato concreto, existente no mundo dos fatos.

A parte da regra-matriz que prevê abstratamente o fato e todas as suas características e circunstâncias, que, se implementados, desencadearão o fenômeno da incidência, é a "hipótese". Essa parte da regra de incidência de Direito da Concorrência em sentido estrito será denominadaneste trabalho, de "hipótese antitruste".

É a hipótese antitruste, pois, que define, de forma abstrata, quais dos incontáveis fatos da realidade serão considerados "fatos jurídicos", após a incidência do conceito da regra jurídica. Já ao conjunto dos acontecimentos no plano dos fatos – que sejam previstos pela hipótese de uma norma jurídica –, independentemente do fenômeno da incidência, a doutrina denomina "suporte fático".5 5 Paulo de Barros não utiliza essa expressão em seu Curso de direito tributário. Extraímo-la das obras de Pontes de Miranda (1954) e de Marcos Bernardes de Mello (1999).

É importante ficar claro que "hipótese" e "suporte fático" referem-se a conceitos que se encontram em regiões ontologicamente distintas, não havendo, portanto, que confundir ambos.

2.4 ESTRUTURA DA NORMA JURÍDICA EM NÍVEL LÓGICO

Em termos de estrutura lógica, a doutrina considera que a "hipótese" localiza-se no "antecedente" ou "descritor" da norma, isto é, no campo de previsão descritiva abstrata dos fatos objeto de sua incidência. O estudo da hipótese permite dividi-la em três critérios: "critério material", "critério temporal" e "critério espacial".

Sobre o critério material ("Cm"), Paulo de Barros, em seu Curso de direito tributário, reproduz lição de sua obra Teoria da norma tributária, afirmando tratar-se do "encontro de expressões genéricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerram um fazer, um dar ou, simplesmente, um ser (estado)". O critério material, nesse contexto, é sempre composto de um verbo mais seu complemento.6 6 "Esse núcleo, ao qual nos referimos, será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento. Daí por que aludirmos a comportamento humano, tomada a expressão na plenitude de sua força significativa, equivale a dizer, abrangendo não só as atividades refletidas (verbos que exprimem ação) como aquelas espontâneas (verbos de estado: ser, estar, permanecer etc.)." O autor, entretanto, logo em seguida, pondera: "estimaríamos melhor considerar os procedimentos humanos em consonância com a teoria clássica dos movimentos, de origem aristotélica, que os divide em três categorias básicas: movimentos voluntários, involuntários e reflexos. A cada qual corresponderia um grupo de verbos, denotadores dos diversos comportamentos. Nesse quadro imenso, qualquer forma de manifestação estará certamente contida, possibilitando a livre escolha do objeto da disciplina jurídica". O autor, ainda, faz uma ressalva para o fato de que não são admissíveis verbos impessoais, como haver, ou verbos sem sujeito, como chover. (CARVALHO, 1999, p. 180-181).

Critério temporal ("Ct"), por sua vez, é a previsão do momento do acontecimento do fato previsto na hipótese. É com esse acontecimento que automaticamente se considera ocorrido o fenômeno da incidência. Por fim, critério espacial ("Ce") é aquele que define o lugar do acontecimento do fato previsto na hipótese. Nem sempre existe registrado na hipótese, textualmente, o local do fato previsto. Sendo assim, nesses casos, deve-se entender o critério espacial como qualquer local de ocorrência do fato previsto, dentro do âmbito de validade territorial da Lei.

Já no "conseqüente" ou "prescritor", dentro da estrutura lógica da norma jurídica, localiza-se a prescrição dos efeitos jurídicos que o acontecimento propagará após a incidência. Isto é, ocorrido o fato descrito na hipótese, sobre seu conceito incide o conceito da norma jurídica, tornando-o fato jurídico e irradiando os efeitos jurídicos. Assim, o conseqüente da norma é aquele em que se localiza a previsão dos efeitos jurídicos, como a instauração da relação jurídica, o nascimento de direitos e deveres correlatos. Dois são os critérios componentes do conseqüente: critério pessoal e critério quantitativo.

É no critério pessoal ("Cp") que se localiza a "relação jurídica". Nos exatos termos do magistério de Paulo de Barros (1999, p. 201):

[...] para a Teoria Geral do Direito, relação jurídica é definida como o vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação.

Na relação jurídica, pois, correlato ao direito do sujeito ativo existe um dever do sujeito passivo. No caso de normas de caráter penal ou administrativo-sancionador de aplicação exclusiva pelo Estado, diz-se haver não propriamente um "direito" do Estado de punir, mas sim um "dever-poder".7 7 Celso Antônio Bandeira de Mello (1998, p. 587) assim explica referido conceito: "[...] a Administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, 'deverespoderes', no interesse alheio. Quem exerce 'função administrativa' está adstrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido. Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder –, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como 'poderes' ou como 'poderes-deveres'. Antes se qualificam e melhor se designam como 'deveres-poderes', pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações".

O critério quantitativo ("Cq") é aquele em que se localiza a previsão da constrição patrimonial ou de liberdade do sujeito passivo. No caso das normas de natureza penal ou administrativo-sancionadora que fixam sanções pecuniárias, geralmente o critério quantitativo é composto de uma base de cálculo e uma percentagem a ser aplicada sobre ela, podendo também ser uma quantia determinada, prevista em lei. Há, ainda, normas que prevêem sanções de caráter não pecuniário, como a imposição de obrigações de fazer ou de não-fazer ou qualquer outra forma de constrição patrimonial ou de liberdade.

Pode-se construir o seguinte esquema gráfico para resumir a estrutura lógica da norma jurídica de caráter sancionador:

Em resumo, toda vez que ocorrem determinados fatos da realidade, cujo conceito compõe o conceito da hipótese de uma regra jurídica, opera-se a entrada desses fatos no plano jurídico. A operação lógica que propicia tal "entrada" é denominada pela Ciência Jurídica "incidência",8 8 "Quando o suporte fático suficiente ocorre, a regra jurídica incide". Pontes de Miranda (1954, p. 17). "A incidência é, assim, o efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte do seu suporte fáctico que o Direito considerou relevante para ingressar no mundo jurídico" (MELLO, 1999, p. 58). sendo a operação lógica inversa denominada "subsunção".9 9 Adverte Karl Engisch (2001, p. 95) acerca da inadequação técnica da expressão "subsunção do fato à norma", visto que a subsunção, por tratar-se de operação lógica, somente opera-se entre iguais. Por isto, segundo o autor, o correto é afirmar que o conceito do fato subsume-se ao conceito da norma jurídica: "A um conceito apenas pode ser subsumido um conceito. [...] São, portanto, subsumidos conceitos de factos a conceitos jurídicos". No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho (1999, p. 173): "A subsunção, como operação lógica que é, só se opera entre iguais".

No momento em que ocorre um fato e sobre seu conceito incide o conceito de uma regra jurídica, nasce o "fato jurídico", do qual se irradiam "efeitos jurídicos". A etapa pós-incidência denomina-se "eficácia jurídica".10 10 Djalma Bittar, citando lição de José Souto Maior Borges, assevera: "'A eficácia jurídica é a produção de efeitos jurídicos', constituindo-se em 'irradiação do fato jurídico depois da incidência no suporte fático'". (BORGES apud BITTAR, 1993, p. 66). Marcos Bernardes de Mello (1999, p. 58) chama a atenção para a distinção entre eficácia da regra jurídica e a eficácia do fato jurídico:"É preciso,portanto,considerar que há a eficácia da norma jurídica (chamada eficácia legal), de que resulta o fato jurídico, e a eficácia jurídica que decorre do fato jurídico já existente". Neste sentido, Pontes de Miranda (1954, p. 56) é enfático: "A incidência da regra jurídica é a sua eficácia; não se confunde com ela, nem com a eficácia do fato jurídico; a eficácia da regra jurídica é a sua incidência; a do fato jurídico, irradia-se, é a juridicização das conseqüências dele, devido à incidência. Cada regra de direito enuncia algo sobre os fatos (positivos ou negativos). Se os fatos, de que trata, se produzem, sobre eles incide a regra jurídica e irradia-se deles (feitos com a incidência, jurídicos) a eficácia jurídica. Já aqui estão nitidamente distinguidos apesar da confusão reinante na ciência européia: – a eficácia da regra jurídica, que é a de incidir, eficácia 'legal' (da lei), eficácia jurídica, mera irradiação de efeitos dos fatos jurídicos. Seria erro dizer-se que é a regra jurídica que produz a eficácia jurídica; a eficácia jurídica provém da juridicização dos fatos (incidência da regra jurídica sobre os fatos, tornando-os jurídicos). Os fatos a que a regra jurídica se refere são ditar o dado fáctico, da regra jurídica. No direito, como em outras ciências, o fato pode ser múltiplo, complexo ou simples. A morte é fato simples, como o nascimento o é; o suporte fáctico suficiente ocorre, a regra jurídica incide; a conduta humana, de tal maneira que trata o fato se não houvesse incidido. Sem regra jurídica, e sem fato, ou fatos, sobre os quais ela incida, não há fatos jurídicos e, pois, efeitos jurídicos. Daí não se conclua que todo efeito tenha de ser efeito da lei e do fato. Toda eficácia jurídica é eficácia de fato jurídico, portanto, da lei e do fato, e não da lei ou do fato". Na lição de Pontes de Miranda: "é o que se produz no mundo do Direito como decorrência dos fatos jurídicos" (PONTES DE MIRANDA, 1954, p. 4). Ou, ainda, "a eficácia jurídica provém da juridicização dos fatos" (PONTES DE MIRANDA, 1954, p. 17). É, pois, a eficácia jurídica (ou eficácia do fato jurídico) o nascimento das "relações jurídicas", com seus inerentes "direitos e deveres subjetivos". A instauração de uma relação jurídica é caracterizada pela formação de um vínculo entre dois elos subjetivos. Logo, diz-se haver o "liame subjetivo" ou "vínculo de imputação deôntica".

No caso de fato regulado pela norma jurídica antitruste para condutas, desencadeiam-se, como efeitos jurídicos, o nascimento da relação jurídica entre o Estado e o particular, caracterizada pelo dever do Estado de exercer o jus puniendi, do qual é titular monopolista, e o dever do particular de coadunar-se à sanção.

3. A NORMA JURÍDICA ANTITRUSTE PARA CONDUTAS ANTICONCORRENCIAIS

Estabelecidas as bases metodológicas para uma análise da estrutura de normas jurídicas de caráter sancionador, passa-se agora a analisar a norma jurídica antitruste para condutas anticoncorrenciais, com suas peculiaridades.

3.1 SUPORTE FÁTICO E HIPÓTESE

Nos termos do artigo 20 da Lei 8.884/94, o suporte fático da regra jurídica antitruste completa-se com a ocorrência de determinados "atos", que produzem ou podem produzir certos "efeitos". Esses "atos", com a incidência, passam a ser considerados fatos jurídicos ilícitos,11 11 Nesse sentido, perfeitamente aplicável ao Direito Antitruste a lição de Geraldo Ataliba (1999, p. 65), relativa ao Direito Tributário, quanto à não-importância da classificação do fato, por outros ramos do Direito, como ato jurídico; a norma jurídica sempre incidirá sobre um fato: "[...] a melhor doutrina é unânime na afirmação da tese segundo a qual o fato imponível é um fato jurídico e não um ato jurídico. Isto quer dizer: se a lei colocar como aspecto material da hipótese de incidência um fato que para os outros ramos do direito é voluntário, para o direito tributário esse fato será fato jurídico simplesmente, sendo indiferente sua classificação como fato voluntário ou não. Em outras palavras: para o direito tributário é irrelevante a vontade das partes na produção de um negócio jurídico.Tal vontade é relevante, para os efeitos privados (negociais) do negócio. Para o direito tributário a única vontade relevante, juridicamente, é a vontade da lei, que toma esse negócio (ou ato unilateral privado) como fato, ao colocá-lo, como simples fato jurídico, na h.i. [hipótese de incidência]". dando ensejo ao nascimento da relação jurídica entre o Estado e o particular, caracterizada pelo dever daquele de aplicar as punições previstas nos artigos 23 e 24 do mesmo diploma legal.

As normas jurídicas em questão, portanto, são resumidas de acordo com o seguinte enunciado, como qualquer outra norma de caráter punitivo: completado o suporte fático, satisfaz-se a previsão contida na hipótese, incidindo o conceito da norma inserta no artigo 20; com a incidência, os fatos passam a ser considerados fatos jurídicos ilícitos; dados os fatos jurídicos ilícitos, deve ser aplicada a punição, legitimada pelo nascimento da relação jurídica entre o Estado e o particular infrator.

Ocorre que, diferentemente de muitos ramos do Direito, que lidam com acontecimentos razoavelmente certos e determinados no tempo e no espaço, o Direito de Defesa da Ordem Econômica cuida predominantemente de fatos inseridos em situações dinâmicas, que requerem uma análise do contexto econômico específico em que estão inseridos e uma boa dose de previsibilidade acerca de situações futuras.

Esse aspecto tenta o intérprete, na busca por conferir um viés jurídico a uma previsão normativa sobre fatos predominantemente econômicos, a enveredar pela controvertida teoria dos fatos jurídicos simples e complexos, disseminada no Direito Tributário. A tendência do intérprete, nesse contexto, seria considerar os fatos previstos pela regra-matriz de incidência antitruste como pertencentes aos da segunda categoria.

Paulo de Barros (1999, p. 188-189), em contexto de crítica, descreve essa teoria da seguinte forma:

Os fatos geradores seriam instantâneos, quando se verificassem e se esgotassem em determinada unidade de tempo, dando origem, cada ocorrência, a uma obrigação tributária autônoma. Os continuados abrangeriam todos os que configurassem situações duradouras, que se desdobrassem no tempo, por intervalos maiores ou menores. Por fim, os complexivos nominariam aqueles cujo processo de formação tivesse implemento com o transcurso de unidades sucessivas de tempo, de maneira que, pela integração dos vários fatores, surgiria o fato final.

No entanto, para o autor, não existem hipóteses simples ou complexas, pois esses predicados são atribuíveis a eventos do mundo físico exterior. As hipóteses normativas, são conceitos abstratos do plano das idéias, permitem a decomposição dos acontecimentos da realidade em unidades. O exercício de abstração possibilita cindir o que muitas vezes é incindível no mundo físico exterior e isso ocorre com freqüência quando se trata de hipóteses normativas.

A própria descrição da fenomenologia de incidência das normas jurídicas, feita acima, desde a realização do suporte fático até a produção de efeitos jurídicos, como se fosse uma seqüência de eventos em disposição cronológica, é claramente um exercício de raciocínio abstrato. Em realidade, ocorridos os fatos previstos, tudo o que foi descrito posteriormente se dá automática e simultaneamente, sendo, no entanto, impossível discorrer sobre tais ocorrências sem descrevê-las em seqüência, o que só é possível em razão de um exercício de abstração.

Ora, o mesmo tipo de raciocínio, portanto, é aplicável às hipóteses normativas, entre elas, como não poderia deixar de ser, as hipóteses antitruste. Relevante reproduzir o questionamento de Paulo de Barros: "Porventura um acontecimento do mundo social, econômico, político, histórico, fisiológico ou jurídico pode independer de seus antecedentes integrativos? Certamente que não. Inexiste fato que advenha do nada" (CARVALHO, 1999, p. 177).

Sendo assim, no momento em que o legislador faz menção a determinados fatos para compor o suporte fático de uma norma, destacando-os do encadeamento factual seqüencial ou mesmo concomitante em que estejam inseridos na realidade, está deixando de considerar jurídicos todos os outros fatos do mesmo encadeamento. E isso, por óbvio, não significa que os fatos que compõem a hipótese advenham do nada no plano da realidade. Esses fatos, descartados da hipótese normativa, apenas não apresentam relevância para o direito de que se trata.

Paulo de Barros (1999, p. 190), arrematando a crítica à doutrina dos fatos geradores "simples", "continuados" e "complexivos", afirma que:

O acontecimento só ganha proporção para gerar o efeito da prestação fiscal, mesmo que composto por mil outros fatos que se devam conjugar, no instante em que todos estiverem concretizados, na forma legalmente estipulada. Ora, isso acontece num determinado momento, num especial marco de tempo. Antes dele, nada de jurídico existe, em ordem ao nascimento da obrigação tributária. Só naquele átimo irromperá o vínculo jurídico que, pelo fenômeno da imputação normativa, o legislador associou ao acontecimento do suposto. Se o chamado fato gerador complexivo aflora no mundo jurídico, propagando seus efeitos, apenas em determinado instante, é força convir em que, anteriormente àquele momento, não há que falar-se em obrigação tributária, pois nenhum fato ocorreu na conformidade do modelo normativo, inexistindo portanto os efeitos jurídico-fiscais próprios da espécie.

Entende-se que a hipótese antitruste deve ser encarada de forma análoga. Apesar da inegável complexidade dos fatos anticoncorrenciais, a hipótese normativa só é satisfeita com a ocorrência completa daquele conjunto de fatos abrangidos pela norma. O desafio do operador do Direito, então, é identificar o momento preciso da incidência, em vista da formulação das hipóteses antitruste em termos evidentemente abertos.

O legislador, pois, exatamente no intuito de prever satisfatoriamente os fatos juridicamente relevantes, utilizou uma formulação que leva o intérprete a analisar o contexto econômico em que os fatos estiverem inseridos, bem como o dinamismo próprio dos fatos econômicos. Não basta, pois, em geral, que um fato ocorrido no ambiente econômico apresente uma semelhança com uma descrição de um acontecimento estático, que possa ocorrer no mercado (vide incisos do artigo 21 da Lei 8.884/94). Deverá o intérprete considerar os efeitos, atuais ou potenciais, para o mercado e para a coletividade, decorrentes da conduta (vide caput do artigo 21 e artigo 20 do mesmo diploma legal).

É para que seja possível a previsão adequada desses fatos que a técnica legislativa utiliza os chamados "conceitos jurídicos" expressados por "termos indeterminados" (BRUNA, 2001, p. 148-149).12 12 Eros Roberto Grau (2005, p. 231-232) lança reserva à expressão conceitos jurídicos indeterminados, defendendo que, em realidade, indeterminados são os termos (expressões lingüísticas) que exprimem os conceitos jurídicos: "Este ponto era e continua a ser, para mim, de importância extremada: não existem conceitos indeterminados. Se é indeterminado o conceito, não é conceito. O mínimo que se exige de uma suma de idéias, abstrata, para que seja um conceito é que seja determinada. Insisto: todo conceito é uma suma de idéias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de idéias, não chega a ser conceito". Trata-se de conceitos exprimidos por termos "abertos", ou seja, termos que apresentam pouca precisão ou alguma ambigüidade, devendo a sua significação ser atribuída pelo operador do Direito em cada caso examinado, sempre vinculado, no entanto, aos princípios que fundamentam a norma.13 13 Eros Roberto Grau (2005, p. 233), como visto acima, após fazer importante reserva à expressão conceitos jurídicos indeterminados, assim explica o que se entende pela indeterminação comentada: "Podemos, todavia, de modo amplo e sumariamente, mencionar que são tidos como 'indeterminados' os 'conceitos' cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos –, razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique. Neste sentido, são eles referidos como 'conceitos' carentes de preenchimento com dados extraídos da realidade. Os parâmetros para tal preenchimento – quando se trate de conceito aberto por imprecisão – devem ser buscados na realidade, inclusive na consideração das concepções políticas predominantes, concepções, essas, que variam conforme a atuação das forças sociais [Forsthoff 1973: 17-18]. Quando se trate de conceito aberto por ambigüidade seu preenchimento é procedido também mediante a consideração do contexto em que inserido – o que, de qualquer forma, não deve obscurecer a verificação de que, sempre,é da participação no jogo de linguagem no qual inserido o termo do conceito que decorre a possibilidade de o compreendermos, procedendo ao seu preenchimento. Como observei anteriormente, ainda que ambíguas e imprecisas, as palavras e expressões jurídicas (= os termos dos conceitos) expressam significações sempre determináveis".

A seguir, discorre-se sobre os princípios que fundamentam a norma concorrencial.

3.2 CONTEÚDO

3.2.1 PRINCÍPIOS E OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS.AS POLÍTICAS DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA

Para a interpretação do conteúdo da regra-matriz de incidência antitruste para condutas anticoncorrenciais, faz-se necessário recorrer aos princípios constitucionais que lhe dão fundamento.

O artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, estabelece a livre iniciativa como princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Especificamente em relação ao domínio econômico, o princípio da livre iniciativa foi erigido como um dos fundamentos da ordem econômica, conforme previsto no caput do artigo 170 da Carta Constitucional. Portanto, conforme a Constituição, o Brasil é um país regido pela economia capitalista, caracterizada pela liberdade de iniciativa.

Para o bom funcionamento de uma economia capitalista, no entanto, é fundamental que outros princípios sejam observados, a fim de estabelecerem-se limites para o exercício da liberdade de iniciativa. A história mundial é rica em exemplos de que uma economia capitalista sem regras mínimas estruturais e de disciplina comporta-mental entre os agentes econômicos é "autofágica", isto é, leva à própria destruição do capitalismo, com efeitos desastrosos para o sistema econômico e para a dignidade humana, em razão dos abusos e da exploração excessiva que podem ocorrer.

Sobre a preocupação com o bom funcionamento dos mercados e com a dignidade dos indivíduos no campo econômico, encontram-se no texto constitucional, estabelecendo os limites para o exercício da livre iniciativa, os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho (incisos III e IV do artigo 1.º e caput do artigo 170), da livre concorrência (inciso IV do artigo 170), da propriedade privada (inciso II do artigo 170), da função social da propriedade (inciso III do artigo 170) e da defesa dos consumidores (inciso V do artigo 170). Além disso, a Constituição estabelece expressamente que o Estado reprimirá os abusos do poder econômico (§ 4.º do artigo 173).

A livre concorrência, nesse contexto, apresenta papel de destaque. Uma economia com livre concorrência funciona com limites naturais e corretos para a liberdade de iniciativa, evitando os abusos por parte de entes com poder econômico, sejam eles privados ou públicos. Com isso, protegem-se os indivíduos da exploração excessiva pelo poder econômico, preservando-se a propriedade privada e a liberdade de iniciativa também dos agentes que não detenham esse poder.

O princípio da livre concorrência, no entanto, não confere um direito absoluto de concorrer ou de permanecer no mercado. Sendo o Brasil um país regido por uma economia de livre mercado, a retirada do sistema competitivo de agentes econômicos puramente por razões de ineficiência em relação aos seus competidores, bem como a existência de limitações naturais de ingresso de concorrentes em determinados mercados, não constituem causas ou efeitos da violação ao conjunto de princípios que regem a ordem econômica.

É importante observar que a aplicação desses princípios, além de ter a finalidade de "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (artigo 170, caput, da Constituição Federal), constitui-se em um meio para o alcance de determinados objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, expressos no artigo 3º da Carta Política: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalidade, com a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos.

Para obtenção desses resultados, a Constituição Federal, em seu artigo 174, caput, estabelece que o Estado é "agente normativo e regulador da atividade econômica" e deve exercer, "na forma da lei", funções como as de "fiscalização, incentivo e planejamento". Com base nas duas primeiras funções, o Estado estabelece "políticas de defesa da concorrência",14 14 Sobre o papel das políticas de defesa da concorrência, discorre Elizabeth Farina (2005, p. 37): "Desde os primórdios da Ciência Econômica, a concorrência tem sido considerada como o motor da transformação e do desenvolvimento econômico. Se na Escola Econômica Neoclássica é a concorrência que garante a eficiência alocativa do sistema, para Schumpeter ela provê incentivo à inovação e garante a eficiência dinâmica. Para North a concorrência estimula o aprendizado favorecendo o desempenho econômico através do tempo. Aí está a principal justificativa fornecida pela Ciência Econômica para as políticas de defesa da concorrência: proteger e mesmo intensificar a força competitiva, que se supõe constituir o mecanismo mais eficaz para alcançar a eficiência produtiva, o vigor da inovação técnica e a criação de novos produtos". Maria Tereza Leopardi Mello e Mario Luiz Possas (2002, p. 136-137) também discorrem sobre a finalidade social da defesa da concorrência: "A política de defesa da concorrência tem por finalidade garantir a existência de condições de competição, preservando-se e/ou estimulando a formação de ambientes competitivos com vistas a induzir, se possível, maior eficiência econômica como resultado do funcionamento dos mercados. [...] A esta altura, cabe indagar por que se esperam da concorrência resultados positivos do ponto de vista social. A resposta só pode ser encontrada no âmbito da teoria econômica: a concorrência deve ser defendida porque gera – ainda que não exclusivamente, e nem sempre – eficiência no funcionamento dos mercados. É essa sua 'finalidade social' – espera-se que agentes concorram por meio da busca de maior eficiência que lhes propicie vantagens competitivas". Direito e economia na análise de condutas anticompetitivas. visando à produção e ao incremento da eficiência econômica.

Ao estimular o funcionamento eficiente dos mercados, o Estado procura obter a alocação ótima dos recursos produzidos na sociedade. Atividades que consomem mais recursos do que o necessário para satisfazer a demanda tendem a reduzir esses gastos desnecessários e vice-versa. Fornecedores são direcionados a competir, cumprindo a função social de suas propriedades e gerando, inclusive, efeitos positivos para o ambiente econômico e para a sociedade.15 15 A Ciência Econômica denomina "externalidades" os efeitos de uma ação que afeta não apenas os indivíduos participantes dessa ação. Quando a ação de um indivíduo impõe custos a outros, há externalidade negativa. Quando uma ação de um indivíduo gera benefícios a outros, ocorre externalidade positiva. Exemplo clássico de externalidade negativa é a poluição ambiental provocada por indústrias e automóveis e de externalidade positiva, a plantação de árvores. Cf. Eduardo Andrade e Regina Madalozzo (2002, p. 86-87) e Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 555-558). Conforme lição de Fábio Nusdeo (2001, p. 152), tais custos e benefícios circulam externamente ao mercado, não sendo apropriados pelos participantes da ação que os gera e restam não compensados, e a eles o mercado não consegue imputar um preço. As externalidades representam uma "falha de mercado" e sua presença resulta em ineficiência, porque, no caso das positivas, os incentivos para a prática das ações que as geram são insuficientes e, por essa razão, tais ações acabam sendo praticadas menos do que o socialmente desejável e, no caso das negativas, as proibições ou incentivos contrários são insuficientes ou inexistentes, resultando em mais práticas do que o socialmente desejável. O Direito pode e deve atuar para "internalizar" os custos e benefícios externos nas próprias unidades produtoras, de modo a contribuir para o incentivo aos comportamentos socialmente benéficos e para o desestímulo daqueles socialmente indesejáveis.Veja-se, a respeito, Fábio Nusdeo (2001, p. 158-160). Cria-se uma tendência saudável ao aumento da produção e à diminuição de custos e de desperdício de recursos utilizados. Os preços dos produtos e serviços tendem a diminuir, com uma melhora da qualidade. Estimula-se, ainda, a inovação e o aumento da tecnologia. Para os consumidores, os produtos e serviços ofertados tendem a se aproximar de seus desejos e suas disponibilidades financeiras, trazendo-lhes bem-estar. Para os competidores, permite-se um incremento do valor econômico dos bens ofertados.

Em razão da referida necessidade de redução de custos que os agentes econômicos enfrentam em uma economia competitiva, aumenta a competição no mercado de trabalho, estimulando os trabalhadores, tanto estabelecidos quanto ingressantes, a aprimorar suas habilidades e contribuir da melhor forma com seus empregadores, o que, além de trazer ganhos privados para os trabalhadores e empregadores, acaba também gerando um aumento da eficiência da economia, fortalecendo a competitividade das empresas e dos mercados e contribuindo para o desenvolvimento nacional.

Um dos instrumentos utilizados pelo Estado para a consecução de políticas de defesa da concorrência, especificamente na vertente fiscalizadora mencionada, é a própria Lei de Defesa da Concorrência,16 16 Paula A. Forgioni (2005, p. 193-194), destacando o papel da lei antitruste como instrumento para a realização de políticas públicas, afirma: "Tendo-se em mente os objetivos da Lei Antitruste, aparece clara, conjuntamente com o aspecto instrumental desse tipo de norma, sua aptidão para servir à implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como 'meios de que dispõe o Estado para influir de maneira sistemática sobre a economia'. Ou seja, o antitruste já não é visto apenas em sua função de eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos (ou meios, conforme a terminologia utilizada por José Francisco Camargo) de que dispõe o Estado para conduzir o sistema". que possui dupla função: viabilizar a "repressão" aos abusos do poder econômico cometidos, que produzem ou podem concretamente produzir efeitos prejudiciais à ordem econômica e, na medida em que representa uma ameaça de punição, "prevenir" o sistema econômico de efeitos prejudiciais, desestimulando os comportamentos anticoncorrenciais.17 17 Com a defesa da concorrência, "reprime-se a tentativa, por parte dos agentes, de relaxar as pressões competitivas a que estão submetidos; a lei busca evitar que se utilizem de meios 'artificiais' para ganhar o mercado – i.e., meios não baseados na maior eficiência, que falseiem a concorrência". (MELLO; POSSAS, 2002, p. 137). A prevenção torna-se mais eficaz à medida que a aplicação da lei seja mais efetiva, tornando-se, assim, uma "ameaça crível" aos agentes detentores de poder econômico.

3.2.2 CONTEÚDO DO ARTIGO 20 DA LEI 8.884/94

Para a realização de uma atividade justa e eficiente de identificação e repressão aos ilícitos concorrenciais, o aplicador do Direito Antitruste necessita munir-se de ferramentas que o tornem apto a buscar em suas análises a aproximação da verdade real.18 18 O princípio da verdade real fundamenta predominantemente o processo penal e o processo administrativo. Por esse princípio, o juiz não se restringe às provas produzidas pelas partes, devendo dar seguimento à instrução por inércia da parte e mesmo determinar, ex officio, a produção de provas para descobrir, tanto quanto possível, a verdade. Cf. Julio Fabbrini Mirabete (1998, p. 44). Já pelo princípio da verdade formal, predominante no Processo Civil, o juiz decide a lide "nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte" (artigo 128 do Código de Processo Civil) e aprecia as provas "atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos" (artigo 131 do Código de Processo Civil). É nesse ponto que se faz importante a utilização dos conceitos e técnicas de microeconomia, que subsidiam o aplicador do Direito na delimitação do contexto econômico, na identificação da racionalidade dos agentes envolvidos e das conseqüências (efeitos) dos fatos submetidos ao seu exame.

Tendo em vista os objetivos deste trabalho, não serão expostas as técnicas de análise antitruste para identificação dos ilícitos concorrenciais, como os requisitos colocados pela tradicional análise estrutura-conduta-desempenho (E-C-D). Apenas procede-se a uma interpretação dos termos contidos no artigo 20 da Lei 8.884/94.

Para tanto, deve-se ter em mente os princípios e objetivos constitucionais referidos anteriormente. Em acordo com referidos princípios, a Lei Antitruste, em seu artigo 1º, caput, estabelece que:

[...] esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

Por sua vez, seu parágrafo único dispõe que "a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei".19 19 Calixto Salomão Filho (2003, p. 61-94) identifica três interesses protegidos pela Lei Concorrencial: o interesse dos consumidores, o interesse dos concorrentes e o interesse institucional da ordem concorrencial, sendo este último o objeto imediato da tutela legal. O autor entende ser mais adequada a identificação do interesse imediato protegido em razão de seu objeto ( interesse institucional da ordem concorrencial) do que em razão de seus sujeitos ( interesses difusos).

Segundo a doutrina, para se verificar uma lesão à ordem econômica proveniente de uma conduta anticoncorrencial, os atos previstos no artigo 20 da Lei 8.884/94 devem ser submetidos a uma análise de seu impacto sobre o "bem-estar social" (SCHUARTZ, 2002, p. 98).20 20 Jorge Fagundes (2003, p. 114), discorrendo sobre o bem-estar e a política econômica, afirma que o "objetivo de qualquer organização econômica, incluindo o sistema econômico como um todo, é o de satisfazer as necessidades e desejos dos indivíduos, de modo que é possível – e mesmo desejável – julgar a performance econômica do sistema ou organização em termos dessa meta". A técnica para aferir o impacto sobre essa "grandeza" é a constatação do efeito líquido produzido.21 21 Como se verá na nota 32, infra, nada obsta que a produção desse efeito, em alguns casos e presentes algumas condições, passe a ser presumida. Para qualquer conduta, a soma dos efeitos negativos e positivos resultará no impacto causado sobre o bem-estar. Por "efeitos positivos", entende-se as eficiências para a economia, provenientes da conduta e, por "efeitos negativos", o desperdício produzido com a alocação ineficiente de recursos, além do desestímulo à inovação e ao desenvolvimento tecnológico.

Segundo lição de Schuartz (2002, p. 98-99):

[...] uma determinada configuração econômica (ou mudança entre duas configurações) é eficiente se e somente se os ganhos dos agentes econômicos beneficiados por essa configuração (ou por essa mudança) são suficientes para compensar as perdas dos agentes econômicos prejudicados pela mesma, isto é, se e somente se o valor total desses ganhos é maior ou igual ao valor total dessas perdas. Posto dessa maneira, o conceito de eficiência (aqui denominada de eficiência econômica, alocativa ou "potencial de Pareto") irá servir como instrumento de mediação entre a idéia normativa de bem-estar social – agora despida das habituais conotações ético-políticas – e sua operacionalização sob forma de uma aplicação tecnicamente controlável da legislação antitruste.22 22 No debate teórico sobre a aplicação dos conceitos de Direito e Economia para a formulação de políticas públicas e para a aplicação da Lei de Defesa da Concorrência, destacam-se algumas concepções de "eficiência econômica". O conceito de "ótimo de Pareto" refere-se à situação de equilíbrio em que é impossível melhorar o bem-estar de um indivíduo sem que seja piorado, ao mesmo tempo, o de outro. No critério de eficiência de Kaldor-Hicks ou "potencial de Pareto", mencionado, admite-se a existência de indivíduos ganhadores e indivíduos perdedores. Segundo esse critério, uma mudança de configuração econômica é eficiente quando os ganhos obtidos pelos indivíduos ganhadores compensam (ou mesmo superam) as perdas dos indivíduos perdedores.Veja-se, a respeito, Daniel K. Goldberg (2006, p. 28-45).

O fato de a Lei de Defesa da Concorrência prever, no § 1º do artigo 20, que a maior eficiência do agente não caracteriza o ilícito previsto no inciso II (dominar mercado relevante) não significa que os ilícitos previstos nos incisos I e III (limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre iniciativa ou a livre concorrência; e aumentar arbitrariamente os lucros) dispensem a cogitação sobre os efeitos benéficos das condutas que provocam tais efeitos.

Isso porque, na realidade, as hipóteses ali referidas, compostas por conceitos expressados por "termos abertos", referem-se aos efeitos "preponderantes" das condutas que os produziram. O legislador, nesses casos, destacou que as hipóteses concernem ao efeito líquido negativo ao bem-estar que a limitação, falseamento ou prejuízo, sob qualquer forma, da concorrência e aumento arbitrário23 23 O adjetivo "arbitrário", constante do inciso III do artigo 20, por si só já contém a idéia de que se trata de lucro obtido por meio de atuação abusiva, lesiva à ordem econômica e que, portanto, extrapola os benefícios dos ganhos de eficiência. de lucros provoca. Portanto, para a autoridade antitruste decidir se uma conduta limitou, falseou ou prejudicou de qualquer forma a livre concorrência ou causou o aumento arbitrário de lucros,24 24 Para Calixto Salomão Filho (2003, p. 86-87), "o aumento dos lucros só pode ser considerado arbitrário, e, portanto, só pode constituir ilícito independente, quando decorrente da exploração de uma situação de monopólio. [...] O aumento arbitrário dos lucros só se caracteriza em presença de poder no mercado, pela simples razão de que a arbitrariedade só se configura quando o aumento dos lucros decorre do aproveitamento de posição dominante no mercado (seja ela monopolista ou oligopolista). O fato de a dominação dos mercados e o aumento arbitrário dos lucros aparecerem na nova lei em incisos separados (II e III) do art. 20 não significa que possam ter configurações independentes". Veja-se, também, nota 29, infra. deverá verificar se a conduta produziu um prejuízo preponderante ao bem-estar social.25 25 Como se verá na nota 32, infra, nada obsta que essa produção preponderante de efeitos negativos, em alguns casos e presentes algumas condições, passe a ser presumida.

Interpretação diversa parece ir de encontro com a finalidade da Lei Antitruste, que é, como visto, proteger a ordem econômica, preservando ou mesmo promovendo o bem-estar social. Ora, se uma conduta, ainda que cause limitação à concorrência ou aumento de lucros, possa causar ou tenha causado, em termos líquidos, maior eficiência para a economia, não há sentido considerá-la ilícita no âmbito antitruste, sob pena de subverterem-se os princípios, valores e objetivos da ordem econômica.

Quanto ao inciso IV do artigo 20, da mesma forma, ao se referir a "abuso" de posição dominante, partiu o legislador da premissa de que condutas economicamente abusivas provocam efeito líquido negativo para a sociedade.26 26 Sérgio Varella Bruna (2001, p. 177), conceituando abuso de poder econômico, adiciona ao elemento econômico (apropriação de excedente) o elemento jurídico (desvio da função social do poder econômico), in verbis: "[...] tem-se por abuso do poder econômico o exercício, por parte de titular de posição dominante, de atividade empresarial contrariamente a sua função social, de forma a proporcionar-lhe, mediante restrição à liberdade de iniciativa e à livre concorrência, apropriação (efetiva ou potencial) de parcela da renda social superior àquela que legitimamente lhe caberia em regime de normalidade concorrencial, não sendo abusiva a restrição quando ela se justifique por razões de eficiência econômica, não tendo sido excedidos os meios estritamente necessários à obtenção de tal eficiência, e quando a prática não represente indevida violação de outros valores maiores (econômicos ou não) da ordem jurídica". O mesmo pode ser dito, como visto, quanto à expressão "aumentar arbitrariamente os lucros", do inciso III: o lucro arbitrário é aquele obtido a partir da adoção de uma conduta economicamente lesiva à sociedade.

Para a configuração de infração à ordem econômica, a conduta deve ter sido praticada por agente com "aptidão" (ou "capacidade") de produzir efeitos lesivos, tendo o mercado "condições estruturais favoráveis" de sofrê-los, não havendo eficiências que possam ser produzidas pela conduta, aptas a compensar ou superar os prejuízos ao bem-estar social.

Frise-se, no entanto, que a ineficiência também pode ser produzida por condutas "não-abusivas", podendo advir do mero exercício regular do poder de mercado, o que não se configura ilícito.

Admita-se, como exemplo, uma empresa que, em um mercado sujeito às liberdades de iniciativa e de concorrência, eliminou concorrentes e conquistou posição dominante exclusivamente por sua maior eficiência. Essa empresa procurará maximizar seu lucro, ofertando seu produto a um preço acima do custo marginal,27 27 O termo "marginal", em Economia, refere-se à diferença resultante de uma unidade adicional de algo. Cf. Fábio Nusdeo (2001, p. 33-34/240-242). Custo marginal, por isso, refere-se ao custo de produzir uma unidade a mais de um bem. Cf. Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 185). Em um mercado perfeitamente competitivo, um vendedor procura igualar o preço do produto ao custo marginal; se produzir menos do que a quantidade correspondente a esse ponto, não lucrará tanto quanto poderia; se produzir mais, o custo será superior à receita obtida com a quantidade a mais. Nessa situação, nenhum vendedor ou comprador em particular são capazes de influenciar o preço do produto, que é dado pelo mercado. Já na situação de monopólio, dada a falta de alternativas para os consumidores, fixar o preço do produto acima do custo de produzir uma unidade a mais não significará uma redução significativa das vendas. Portanto, nesse caso, em comparação com um mercado competitivo, o vendedor provoca maior escassez, eleva o preço do produto, lucra mais em detrimento dos consumidores e gera para a sociedade um desperdício de recursos. Para uma explicação detalhada sobre o processo de formação dos preços no mercado nas situações mencionadas e seus efeitos, Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 287 et seq.) e Sérgio Varella Bruna (2001, p. 17-35). conduta economicamente racional de um agente econômico que atue com perspectiva de lucro em um livre mercado.28 28 Ocorre que a existência de um "mercado contestável" evita esse exercício exacerbado de poder. A presença de baixas barreiras à entrada de novos concorrentes, baixo grau de diferenciação de produtos e altas elasticidades cruzadas da oferta e da demanda evitam que o agente econômico eleve em demasia o preço de seu produto. Caso o agente, no entanto, insista em elevar o preço nessas condições, poderá ocasionar a entrada de novos concorrentes no mercado (a concorrência, antes desse fato, encontra-se em estado potencial) ou um movimento de substituição, pelos consumidores, do produto por ele ofertado por produtos similares. Para uma explanação sobre "mercado contestável" e "concorrência potencial", veja-se Paula A. Forgioni (2005, p. 334-341). Para a conceituação de barreiras à entrada, veja-se Sérgio Varella Bruna (2001, p. 57) e Hovenkamp (2005, p. 39). Para a conceituação de produtos diferenciados e homogêneos, veja-se Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 222/377). E para a conceituação de elasticidades preço e cruzada da oferta e da demanda, veja-se Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 30) e Fábio Nusdeo (2001, p. 230-235/255-256).

No entanto, o êxito do intento mencionado (oferta consistente de bens a preços acima do custo marginal) significa também uma redução da quantidade ofertada a um nível inferior ao eficiente, uma extração do excedente dos consumidores e uma perda de bem-estar, em razão de um desperdício de recursos (deadweight loss). Não obstante a produção desses efeitos negativos, o agente atuou, em todos os momentos, estritamente conforme a racionalidade econômica e dentro das regras de livre mercado. Considerar ilícita tal conduta seria desestimular os agentes econômicos a concorrer, subtraindo da sociedade os benefícios do processo competitivo.29 29 O artigo 21, inciso XXIV, da Lei 8.884/94 estabelece a hipótese de cobrança de preços excessivos como um possível ilícito antitruste. No entanto, a hipótese remete à necessidade de constatação da presença ou potencialidade de produção dos efeitos lesivos à coletividade. Nesse sentido, vale reproduzir o voto do ex-Conselheiro do Cade Leônidas R. Xausa: "'Contudo, o aumento abusivo de preços não é senão um sintoma de uma prática restritiva da concorrência. Esta sim merece a atenção deste órgão. Não cabe ao Conselho punir o aumento de preços em si – estas medidas o governo por diversas vezes tentou operar, sempre com fracasso –, mas tê-lo como indício de uma outra conduta, esta sim passível de sanção. Trata-se por exemplo de aumento abusivo de preços em decorrência de um abuso de posição dominante ou da formação de um conluio. Nestes casos, o órgão de defesa da concorrência deve punir o abuso da posição dominante ou o conluio, utilizando o aumento abusivo de preços como mero indicador da conduta antijurídica'. Voto na Averiguação Preliminar n.º 08000.000178/90, de 1.º de outubro de 1997, Representante: Revalino Vieira da Cunha, Representada: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde S/C. In DOU de 16 de outubro de 1997, Seção I, pág. 23385"( Franceschini, 1998, p. 108). Veja-se, no mesmo sentido, o entendimento reproduzido na nota 24, supra. O aumento de lucro proporcionado pela conquista de mercado é o prêmio para a maior eficiência da empresa, que, ao adotar uma postura competitiva, gerou benefícios à sociedade. Daí porque não há que falar, também nesse caso, em abuso do poder econômico ou, mais especificamente, em aumento "arbitrário" de lucros.

As únicas hipóteses de intervenção do Estado em casos como esse seriam a regulação de mercado – o que, no entanto, somente pode ocorrer nas situações constitucional e legalmente previstas –, a coibição de atos praticados pelo agente para afastar a entrada ou o crescimento de concorrentes e a "advocacia da concorrência".30 30 A Lei 8.884/94, em seu artigo 7.º, incisos X e XVIII, e em seu artigo 14, incisos XII, XIII e XIV, atribui poderes de advocacia da concorrência aos Órgãos Administrativos responsáveis por sua aplicação. Uma das inúmeras possibilidades de utilização desses poderes é a recomendação a outros Órgãos Públicos que adotem medidas em suas áreas de competência de forma a promover ou incentivar a concorrência. Como exemplo, pode-se mencionar a recomendação à Câmara de Comércio Exterior (Camex) que reduza alíquotas do Imposto de Importação, a fim de facilitar a entrada de produtos no mercado interno e diminuir o poder do agente econômico dominante sobre os preços. Das três hipóteses, apenas as duas últimas coadunar-se-iam com a aplicação da Lei de Defesa da Concorrência.

A idéia de "abuso", "arbítrio" ou "desvio da função social da propriedade" na Lei Antitruste refere-se à adoção de condutas que extrapolam a razoabilidade e a proporcionalidade em vista dos objetivos privados pretendidos, sacrificando valores jurídicos ou econômicos do ordenamento jurídico e produzindo ou sendo capaz de produzir concretamente, com isso, um resultado lesivo, traduzido por efeito líquido negativo (ineficiente) para a sociedade.

Em nosso ordenamento jurídico, a hipótese de "abuso de direito" encontra-se prevista no Código Civil, que estabelece, em seu artigo 187, que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". No âmbito de proteção à coletividade, os abusos ocorrem quando são ofendidos bens jurídicos de interesse desta, em afronta a princípios maiores da Constituição. No caso da defesa da concorrência, são considerados abusivos os atos que violam os princípios da ordem econômica, acima mencionados.

Um agente econômico, em sua atuação no mercado, almejando aumentar seus lucros, pode escolher um entre dois caminhos: (1) enfrentar a concorrência pela eficiência, procurando reduzir custos e produzir em maior escala, baixando seus preços e, mesmo assim, obtendo lucro, investindo no aumento da qualidade e procurando conquistar os consumidores ou adquirentes pela diferenciação de seu produto em relação aos de seus concorrentes; ou (2) prejudicar a concorrência e os consumidores por meios artificiais, caracterizados por estratégias voltadas a eliminar concorrentes, influindo nas estruturas e no funcionamento do mercado por meio de condutas como o estabelecimento de acordos com empresas concorrentes, para diminuir a produção, aumentar os preços e auferir maiores lucros, o estabelecimento de acordos com empresas verticalmente relacionadas para obter o fechamento aos concorrentes dos canais de aquisição de insumos ou de distribuição dos produtos, a adoção de práticas que ensejem a elevação dos custos dos rivais, a oferta de produtos a preços predatórios etc.

A decisão entre adotar uma ou outra postura envolve uma análise de custo-benefício. Os agentes econômicos maximizam seus interesses quando, entre as alternativas que se lhes apresentam, escolhem as que lhes tragam os maiores ganhos a menores custos, presentes ou futuros. Muitas vezes, competir vigorosamente investindo na eficiência representa para o agente econômico um alto grau de incerteza quanto à possibilidade, à intensidade e ao momento do retorno dos investimentos realizados, especialmente se o mercado for competitivo. De outra parte, pode ser mais cômodo e lucrativo ao agente adotar uma estratégia prejudicial à concorrência, especialmente se a perspectiva de seu êxito for rápida e o risco de punição pelas autoridades antitruste e mesmo o montante da punição forem pequenos.31 31 Nesse ponto, como já visto, uma eficaz aplicação da Lei de Defesa da Concorrência representa um risco elevado de condenação de práticas restritivas da concorrência, reforçando a perspectiva de que os agentes econômicos podem incorrer em elevados custos caso decidam adotá-las. Vide notas 15 e 17, supra.

Como já visto, quando um agente econômico adota uma postura competitiva, baseada na eficiência, não apenas benefícios privados são produzidos, mas também benefícios para toda a coletividade. Diferentemente, uma atuação em prejuízo da livre concorrência, apesar de trazer, como visto, alguns benefícios privados, acarreta também um custo social considerável.

Assim, para um mesmo resultado – a apropriação de lucros –, os agentes econômicos podem adotar condutas eficientes, desejáveis à luz do ordenamento jurídico, com efeitos positivos à sociedade, ou condutas lesivas à ordem econômica, consideradas juridicamente reprováveis, porque "desproporcionais" e "não-razoáveis". Incorrem esses agentes econômicos, nesse último caso, em "abuso", "arbítrio" ou "desvio da função social da propriedade". Destarte, para a configuração do abuso importa considerar se, para o mesmo fim, o agente econômico poderia ter se valido de conduta menos onerosa, ou mesmo benéfica, à coletividade.

Sendo assim, como já adiantado acima, os diferentes efeitos previstos nos incisos do artigo 20 da Lei 8.884/94 "nada mais seriam do que instâncias de um tipo genérico de infração, definível então como produção efetiva ou potencial de efeito líquido negativo sobre o bem-estar social" (SCHUARTZ, 2002, p. 98).A essa assertiva acres-centa-se que, para a configuração da infração, deve também estar presente o componente jurídico do "abuso", "arbítrio" ou "desvio da finalidade social do poder econômico", isto é, a reprobabilidade da conduta em razão do ferimento à razoabilidade e à proporcionalidade dos meios utilizados para o alcance dos fins visados, violando-se indevidamente "outros valores maiores (econômicos ou não) da ordem jurídica" (BRUNA, 2001, p. 177).

Ao final de sua análise, pois, o aplicador do Direito Antitruste deve responder se a conduta examinada provoca ou pode concretamente provocar, "abusivamente, efeito líquido negativo ao bem-estar social".32 32 Muito se discute sobre a possibilidade de condenações de condutas per se ou sobre uma suposta necessidade de utilização da chamada "regra da razão" na análise das condutas anticoncorrenciais à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Costuma-se afirmar que, pela regra per se, basta a simples comprovação da prática para se considerar configurada a infração. Já pela regra da razão, para tanto, devem-se sopesar os efeitos negativos com eventuais efeitos positivos que a prática produza. No entanto, a adoção da regra per se não significa um abandono dessa ponderação entre efeitos. A diferença é que, na regra per se, a produção de efeitos líquidos negativos passa a ser presumida. Isto porque a reiteração de condenações de um mesmo tipo de prática, cujas investigações sempre apontam a presença de efeito líquido negativo, somada a uma previsão razoavelmente segura – em geral fundamentada no direito comparado e na doutrina econômica – de que em tais casos é mínima ou inexistente a probabilidade de produção líquida de efeitos benéficos, pode autorizar a dispensa da investigação prática e comprovação desses efeitos. No texto da Lei 8.884/94 essa possibilidade também é albergada na expressão "tenham por objeto ou possam produzir" do caput do artigo 20 da Lei 8.884/94. A autoridade antitruste, baseada nessa expertise adquirida, passa a considerar que o ato analisado tem por objeto ou produz efeitos líquidos negativos sem a necessidade de comprová-los, bastando para tanto apenas comprovar a prática do referido ato. Para efeitos práticos, o que ocorrerá nesses casos será apenas uma diminuição do número de etapas de investigação, privilegiando-se o princípio da eficiência administrativa. Portanto, no atual sistema jurídico antitruste brasileiro nada impede, a partir de uma evolução jurisprudencial, a criação de regras per se. Corroborando o entendimento de que regra per se e regra da razão distinguem-se pela quantidade de informações requeridas para consideração da prática como uma infração e que a regra per se promove uma diminuição do número das etapas de investigação, (Hovenkamp, 2005, Seção 5.6b, intitulada "The exaggerated distinction between rule of reason and per se treatment", p. 255-259) e Luis Fernando Schuartz (2002, item 2, intitulado "O real significado da distinção entre a regra per se ea 'regra da razão'", p. 111-118).

a) Responsabilidade objetiva

Conforme regra geral do Código Civil, a responsabilidade civil resultante de atos ilícitos será independente de culpa "nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" (parágrafo único do artigo 927).

Analogamente ao dever de reparação originado pela responsabilidade civil pela prática de um ato ilícito, no Direito Administrativo Sancionador (assim como no Direito Penal), a conseqüência jurídica para a prática de um ato considerado ilícito é o dever de submissão à sanção que deve ser aplicada.

No caso das infrações à ordem econômica, o artigo 20, caput, da Lei 8.884/94 expressamente dispensa a cogitação acerca da existência de culpa. Portanto, para apuração da responsabilidade em nível administrativo pela infração, a análise da conduta prescinde da constatação de negligência, imprudência ou imperícia do agente que a pratica. Importa apenas o nexo de causalidade entre o resultado lesivo e o fato causador.

Isso porque, segundo a doutrina, aquele que disponha de um conforto oferecido pelo desenvolvimento econômico ou exerça uma atividade que gera utilidade ou bem-estar deve suportar os riscos a que exponha os outros (PEREIRA, 2005, p. 663). A noção de culpa, portanto, desloca-se para a noção de "risco" da atividade (PEREIRA, 2005, p. 663-664). Nesse sentido, a norma contida no já comentado artigo 187 do Código Civil considera ato ilícito o exercício de um direito que exceda seu "fim econômico ou social", que contrarie a boa-fé e os bons costumes, sem cogitar a necessidade de identificação de qualquer elemento subjetivo.

Logo, sendo objetiva a responsabilidade do agente que lesou a ordem econômica, os efeitos previstos podem ou não advir de conduta culposa (ou mesmo dolosa) do agente. A ausência de tal elemento subjetivo, desse modo, não serve de escusa para a violação.

b) Não-exigência de formalidades

O artigo 20 da Lei 8.884/94 expressamente dispensa formalidades para manifestação dos atos que considera anticoncorrenciais (atos "sob qualquer forma manifestados"), porque os atos que interessam ao Direito da Concorrência podem se expressar sob as mais variadas formas, importando apenas os efeitos que são ou podem ser produzidos nos mercados.

De negócios jurídicos formalizados a atos com efeitos meramente morais, basta que produzam ou possam produzir os efeitos previstos nos incisos do artigo 20 para serem sujeitos à Lei 8.884/94. Portanto, mesmo documentos tidos por atos preparatórios de negócios jurídicos, que em geral não produzem efeitos para o Direito Civil ou para o Direito Comercial, podem servir como prova para constatação de infração à ordem econômica.33 33 "Com efeito, no caso, serão vedadas práticas ainda que não possam ser consideradas jurídicas, ou seja, ainda que não produzam (ou possam produzir) qualquer efeito juridicamente vinculante, qualquer obrigação. Note-se que a doutrina especializada chega até a colocar atos que produzam efeitos meramente morais, desde que restritivos da concorrência, como sendo vedados pela Lei Antitruste. Assim também, ainda que se trate de ato nulo de pleno direito, inválido ou ineficaz, ou mesmo que não tenha chegado a existir no mundo jurídico, poderá subsumir-se à Lei Antitruste brasileira, caso determine a incidência de qualquer dos incisos do artigo 20 da Lei 8.884 de 1994" (Forgioni, 2005, p. 159-160). No mesmo sentido, quanto ao significado do termo "acordo" no artigo 81 do Tratado da Comunidade Européia: "a noção de 'acordos' é aqui usada em sentido amplo de forma a abranger quer os contratos [...] quer outros acordos, mesmo que tácitos e não assinados, de onde derivem restrições, incluindo por meio de sanções morais ou económicas, à liberdade de agir ou decidir autonomamente de uma ou algumas das partes. Ficam assim incluídos quer os gentlemen's agreements, quer os cartéis ou uniões informais e mesmo os actos preparatórios de contratos futuros" (SANTOS; GONÇALVES; MARQUES, 1998, p. 372).

Exigir, diferentemente, que os atos anticoncorrenciais devam ser sempre externados por meio de uma formalização faria da Lei Antitruste letra morta. Não seria razoável presumir que os agentes em atuação anticoncorrencial, sujeitos a punições pelos efeitos de suas condutas no mercado, haveriam sempre de externar suas ações de forma solene, seja registrando suas estratégias comerciais, seja formalizando negócios jurídicos, com força vinculante entre os envolvidos. Em muitos casos, como nos cartéis, os agentes envolvidos geralmente se preocupam mesmo em ocultar ao máximo suas atitudes das autoridades.34 34 Nesse sentido, valiosas as palavras de Benjamin M. Shieber (1966, p. 88), sobre a dificuldade de encontrar provas sobre o acordo de vontades em restrição da concorrência: "Às vezes não existem provas diretas da concordância de vontades, ainda que o acordo em restrição da concorrência seja notório. A dificuldade em encontrar provas documentais decorre do fato de raramente acontecer que conspiradores que visam praticar um abuso do poder econômico lavrem e arquivem atas de suas reuniões, tanto quanto provas testemunhais, pois é evidente que não podemos esperar que os participantes de acordo em restrição da concorrência testemunhassem contra si e admitissem a existência de tal acordo. Freqüentemente, negam eles a existência de qualquer concordância de vontades, e, portanto, a existência de um acordo". Mais recentemente, a Lei 10.129/2000 inseriu na Lei 8.884/94 os artigos 35-B e 35-C, que prevêem a celebração de "acordos de leniência", como uma forma de estimular a confissão e a delação das atividades ilícitas por seus próprios participantes. Com a celebração desse acordo, os autores de infração à ordem econômica procuram obter a extinção da ação punitiva da Administração Pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, bem como a extinção da punibilidade dos crimes correlatos, previstos na Lei 8.137/90.

A norma jurídica antitruste, portanto, incide sobre fatos, e não necessariamente sobre atos jurídicos ou negócios jurídicos, sob o ponto de vista do Direito Civil ou do Direito Comercial, não se exigindo formalidades ou solenidades em sua realização.35 35 Veja-se nota de rodapé 11, supra.

c) Hipótese de potencialidade

Importante frisar, como adiantado acima, que o conceito da norma jurídica antitruste incide não somente sobre o conceito de atos que produzem efetivamente efeitos líquidos lesivos i.A expressão "atos [...] que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos", conjugada com "ainda que não sejam alcançados", do caput do artigo 20 da Lei 8.884/94, institui claramente que atos com "potencialidade de produção líquida de efeitos lesivos" também configuram infração à ordem econômica.

A hipótese contemplada em tais expressões é a da prática de atos que representem "risco" de desestabilização da normalidade concorrencial, em prejuízo à coletividade.Apesar de dispensar a constatação empírica da produção líquida de efeitos negativos à coletividade, a hipótese exige ao menos que haja possibilidade "concreta" de sua produção, considerando-se a "aptidão" (ou "capacidade") do agente econômico e "condições estruturais de mercado favoráveis".

Diante disso, é importante observar que a hipótese constante das expressões "atos [...] que tenham por objeto" e "possam produzir" "não exige" a presença de uma intenção especificamente voltada à provocação do resultado lesivo. Obviamente que a deflagração de uma intenção desse tipo também pode contribuir para a configuração do ilícito. No entanto, o que define a infração é a possibilidade concreta de provocação de tal resultado, "prevendo-se consistentemente" a produção líquida de efeito negativo.36 36 Como visto na nota de rodapé 32, supra, a referida produção líquida de efeitos, no caso da adoção da regra per se, pode ser presumida.

A expressão "tenham por objeto" não pode ser interpretada isoladamente, apartada das demais contidas no dispositivo, sob pena de autorizar-se a punição de agentes econômicos simplesmente por possuírem uma intenção de vencer a concorrência.

Tratando-se de atos praticados no ambiente econômico, intenção geralmente está associada à noção de "racionalidade econômica", que pode ser traduzida como o intuito dos agentes econômicos de vencer a batalha concorrencial e prosperar, adquirir poder econômico, auferir lucros. Essa intenção genérica, por si só, é algo presumivelmente lícito, por estar plenamente de acordo com o que se espera de um agente econômico em um livre mercado.

A intenção só passa a ser um componente relevante do ilícito quando, externa-da por qualquer meio ou forma, seja especificamente direcionada a um resultado não-razoável e desproporcional, caracterizado pela produção, plenamente possível concretamente, de efeito líquido negativo à coletividade.

Nesse ponto, não se alegue que sempre que a prática não tenha causado efeitos de fato é porque estes não teriam condições de ocorrer. A refutação a essa assertiva advém exatamente da conjugação das expressões "tenham por objeto ou possam produzir" com "ainda que [os efeitos previstos nos incisos I a IV] não sejam alcançados", porque não se pode olvidar da possibilidade da ocorrência de eventos imprevisíveis ou mesmo da existência de circunstâncias alheias à vontade do agente e estranhas ao funcionamento regular dos mercados, que frustrem a produção dos efeitos, não obstante a verificação de sua potencialidade.37 37 Como exemplo, pode-se mencionar a hipótese de aplicação de medida preventiva pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) ou pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) (artigo 52 da Lei 8.884/94), de forma a evitar, cautelarmente, a produção efetiva de efeitos lesivos. Outro exemplo é a hipótese em que três únicas empresas em um mercado, caracterizado por elevadas barreiras à entrada de novos concorrentes, alto grau de homogeneidade do produto e baixas elasticidades cruzadas da oferta e da demanda (vide nota de rodapé 28, supra), resolvem reunir-se para estabelecer um acordo informal de fixação de preços e quantidades de produção. Para tanto, trocam informações estratégicas sobre preços, quantidades produzidas e capacidade de produção. Ocorre que, antes do início da implementação do combinado, duas das empresas são adquiridas por grupos econômicos distintos, que não concordam, por razões éticas ou mesmo comerciais, com a realização do cartel e resolvem não dar início à execução dos termos acordados. Nesse caso, não obstante o cartel não tenha chegado a produzir efeitos concretos, não se pode negar que as três empresas, dado o contexto, colocaram concretamente em risco os princípios constitucionais relativos à ordem econômica ao terem se reunido para estabelecê-lo, incorrendo, assim, em infração à ordem econômica. Destarte, quaisquer documentos ou informações (cf. exposto no item 3.2.2, b, supra) que demonstrem a ocorrência e o conteúdo de tal reunião, poderão contribuir substancialmente para se provar a infração.

Em conclusão, para se constatar a infração à ordem econômica caracterizada pela "potencialidade", deve-se verificar se o ato examinado, sob qualquer forma manifestado, independentemente de culpa do agente e, ainda que não produza os efeitos lesivos, é praticado por agente "com aptidão" de causá-los, tendo o mercado "condições estruturais favoráveis" de sofrê-los, não havendo eficiências decorrentes do próprio ato que compensem ou superem os prejuízos potenciais verificados.38 38 Veja-se nota de rodapé 36, supra.

3.3 ESTRUTURA LÓGICA

De acordo com a divisão metodológica proposta inicialmente, compõem a estrutura lógica da norma jurídica em sentido estrito a hipótese, ou antecedente, e o conseqüente.

3.3.1 HIPÓTESE OU ANTECEDENTE

Esta parte da norma jurídica, como visto, é composta pelos critérios material, temporal e espacial. É nesta parte que os conceitos e técnicas de microeconomia são utilizados.

a) Critério material

Pode-se identificar, na hipótese ou antecedente da regra-matriz de incidência antitruste para condutas anticoncorrenciais, seu "critério material" como prática de ato que produza ou possa concretamente produzir, efetiva ou potencialmente, de maneira abusiva, independentemente de culpa, efeito líquido negativo sobre o bem-estar social. Como visto, as formas pelas quais se externe a prática do ato que produz ou possa produzir tal efeito não interessam para o Direito Antitruste.

b) Critério temporal

O critério temporal identifica o momento em que uma conduta "coloca em risco" a ordem econômica (hipótese de potencialidade), de acordo com os moldes descritos acima, ou "efetivamente" provoca o prejuízo descrito (hipótese de danos concretos). Neste último caso, os prejuízos concorrenciais podem ser permanentes, prolongando-se no tempo. De qualquer modo, o momento da incidência é a prática do ato que representa o risco ou produz efetivamente o efeito lesivo.

c) Critério espacial

Dentro do critério espacial está previsto qualquer mercado relevante,39 39 Segundo Paula A. Forgioni (2005, p. 231), "mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado". Para sua delimitação, identificam-se duas dimensões, a material e a geográfica. "O mercado relevante geográfico é a área onde se trava a concorrência relacionada à prática que está sendo considerada restritiva". (FORGIONI, 2005, p. 233). "O mercado relevante material (ou mercado do produto) é aquele em que o agente econômico enfrenta a concorrência, considerado o bem ou serviço que oferece" (FORGIONI, 2005 p. 241). Para o Cade, em sua Resolução 20, de 09.06.1999: "O mercado relevante constitui o espaço – em suas dimensões produto ou geográfica – no qual é razoável supor a possibilidade de abuso de posição dominante". A técnica utilizada pelos três órgãos administrativos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) no Brasil para delimitação de mercados relevantes em casos concretos é o chamado "teste do monopolista hipotético", do qual a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE/MF), na Portaria Conjunta SEAE/SDE 50, de 1.º.08.2001, extraem a seguinte definição de mercado relevante: "o menor grupo de produtos e a menor área geográfica necessários para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um 'pequeno porém significativo e não transitório' aumento de preços". No mesmo sentido, Portaria SEAE 70, de 12.12.2002 e Resolução CADE 20, de 09.06.1999. abrangido pela validade territorial da Lei 8.884/94, no qual se desenvolva a prática.

Como já visto, os ditames constitucionais relativos à proteção da ordem econômica devem nortear-se pelos princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que, por sua vez, é "formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal". Além disso, em nível infraconstitucional, o artigo 1.º, caput e parágrafo único, da Lei 8.884/94, estabelece que a titular da proteção à livre iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e beneficiária da repressão ao abuso do poder econômico é a coletividade. Por sua vez, dispõe o artigo 2.º, caput, do diploma legal mencionado: "aplica-se esta lei, sem prejuízo de convenções e tratados de que seja signatário o Brasil, às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos".

Da interpretação sistemática da Lei e dos dispositivos da Constituição referentes à ordem econômica extrai-se que o regramento antitruste brasileiro incide sobre danos, potenciais ou efetivos, a algum mercado relevante no Brasil ou parte de mercado relevante localizada no Brasil.40 40 A Constituição Federal, ainda, em outro dispositivo, estabelece que: "Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". A "coletividade" a que se refere o parágrafo único do artigo 1º da Lei Antitruste é a coletividade do território nacional, porque não tem a Lei 8.884/94 a finalidade de tutelar a regularidade do funcionamento concorrencial de mercados mundiais nem a coletividade de outros países.

A conjugação das expressões "práticas cometidas no todo ou em parte do território nacional" e "ou que nele produzam ou possam produzir efeitos", portanto, abrange somente as práticas que, realizadas no Brasil ou no exterior, produzam ou possam produzir efeitos "em face da coletividade no Brasil".

3.3.2 CONSEQÜENTE

Ocorrido o fato que satisfaz a hipótese ou antecedente normativo, sobre seu conceito incide o conceito da norma jurídica antitruste, passando a ter destaque o conseqüente normativo. Compõem o conseqüente, como visto, os critérios pessoal e quantitativo da norma jurídica.

a) Critério pessoal

No critério pessoal encontra-se a "relação jurídica" entre o Estado e o particular infrator, ligados que estão pelo "vínculo abstrato de imputação deôntica". Ao dever do Estado de punir corresponde o dever do particular de submeter-se à sanção.

b) Critério quantitativo

No critério quantitativo, encontra-se a previsão da constrição patrimonial ou de liberdade do sujeito passivo. Os artigos 23 e 24 da Lei 8.884/94 prevêem multa, correspondente a um percentual aplicado a uma base de cálculo, ou um valor determinado,41 41 "Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas: publicação da condenação em jornal, proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, junto à Administração Pública Federal, Estadual, Municipal e do Distrito Federal, bem como entidades da administração indireta, por prazo não inferior a cinco anos, inscrição no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor, recomendação aos órgãos públicos competentes para que seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator, não seja concedido ao infrator parcelamento de tributos federais por ele devidos ou para que sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos e a cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos, cessação parcial de atividade, ou qualquer outro ato ou providência necessários para eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

Ante todo o exposto, pode-se construir o seguinte esquema gráfico para retratar a estrutura lógica da norma jurídica de defesa da ordem econômica para condutas anticoncorrenciais:

3.4 INCIDÊNCIA E EFEITOS JURÍDICOS

Em resumo, ao escolher, além de outros acontecimentos, alguns atos para compor o suporte fático da norma, o legislador nada mais fez do que selecioná-los para considerá-los, toda vez que possam concretamente produzir, ou que produzam de fato, efeitos negativos à sociedade, que não sejam compensados ou compensáveis, ou superados ou superáveis por efeitos benéficos (sobre seu conceito incidindo, portanto, o conceito da norma jurídica mencionada), como "fatos jurídicos ilícitos".

Da mesma forma que em qualquer ramo do Direito, a partir do acontecimento desses fatos, passando a ser considerados fatos jurídicos ilícitos, irradiar-se-ão os efeitos jurídicos, como, in casu, a instauração da relação jurídica, consistente no nascimento do dever do Estado de punir os infratores, mediante constrição em seu patrimônio ou liberdade.

4. CONCLUSÕES

Os princípios constitucionais da ordem econômica, previstos no artigo 1º, inciso IV, artigo 170, caput e incisos II, III, IV,V e artigo 173, § 4.º, da Constituição Federal de 1988, orientam-se para a realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no artigo 3º da Carta Política.

Para cumprimento desses objetivos, o Estado, em seu papel de fiscalização das atividades econômicas, previsto no artigo 174, caput, da Constituição, formula e executa políticas de defesa da concorrência, visando à produção de eficiências econômicas, benéficas para o sistema econômico do País e para o bem-estar social, o que contribui para a consecução dos objetivos fundamentais referidos.

A Lei de Defesa da Concorrência, na vertente de fiscalização, é um dos instrumentos para realização dessas políticas. Quanto mais efetiva sua aplicação, mais ela tende a se tornar uma ameaça crível de punição aos agentes econômicos, que, com isso, são desestimulados a adotar comportamentos anticompetitivos. Com isso, a Lei contribui para estimulá-los a competir, produzindo eficiências, benéficas não só para os consumidores e os próprios agentes econômicos, como também para toda a sociedade.

Para cumprimento da tarefa de persecução dos ilícitos conconcorrenciais por parte das autoridades, o legislador, com intuito de definir satisfatoriamente as hipóteses antitruste, valeu-se de conceitos jurídicos expressos por termos abertos ou indeterminados. A razão disso é a complexidade característica dos fatos que constituem infrações à ordem econômica, seja por estarem inseridos em situações dinâmicas, que requerem certa previsibilidade de situações futuras, seja porque requerem uma investigação do contexto econômico de que fazem parte.

Para determinação da existência ou não de infração à ordem econômica, deve o aplicador do Direito examinar se a conduta, externada por qualquer meio ou forma, provoca ou pode concretamente provocar, abusivamente, independentemente de culpa do agente, efeito líquido negativo ao bem-estar da coletividade no Brasil.

Para identificar essas infrações e punir aqueles que as cometem, as autoridades antitruste devem utilizar a teoria microeconômica, que se constitui em ferramenta fundamental para delimitação do contexto econômico em que as condutas dos agentes são praticadas, além de possibilitar a identificação dos efeitos benéficos ou prejudiciais ao bem-estar da sociedade. Serve, ainda, para estabelecer as previsões mais prováveis sobre esses efeitos, de acordo com a racionalidade dos agentes econômicos e as condições estruturais dos mercados.

A teoria econômica, portanto, é indispensável para conferir maior precisão às autoridades antitruste na busca da verdade real, possibilitando-lhes emitir "decisões jurídicas", consistentes (i) no reconhecimento da incidência ou não do conceito da norma jurídica antitruste ao conceito do fato examinado, (ii) na declaração de que o particular é ou não infrator da Lei, reconhecendo-se a existência ou não da relação jurídica entre o Estado e o particular e, (iii) no caso do reconhecimento da relação jurídica, na aplicação da punição, que ocorre mediante constrição do patrimônio ou da liberdade do infrator. Com isso, permite-se uma aplicação do Direito da Concorrência direcionada a atingir da melhor forma os objetivos constitucionais pertinentes à ordem econômica.

NOTAS

I – no caso de empresa, multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável;

II – no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida por empresa, multa de dez a cinqüenta por cento do valor daquela aplicável à empresa, de responsabilidade pessoal e exclusiva ao administrador.

III – No caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se o critério do valor do faturamento bruto, a multa será de 6.000 (seis mil) a 6.000.000 (seis milhões) de Unidades Fiscais de Referência (Ufir), ou padrão superveniente. (Incluído pela Lei n.º 9.069, de 29.6.95).

Parágrafo único. Em caso de reincidência, as multas cominadas serão aplicadas em dobro".

Recebido em 18/03/2007

Artigo aprovado (12/09/2007)

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  • VARIAN, Hal R. Microeconomia: princípios básicos. Trad. Ricardo Onojosa e Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
  • 42
    3.3.3 ESQUEMA GRÁFICO
  • *
    Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Concorrência pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (DIREITO GV). Ex-Coordenador-Geral de Assuntos Jurídicos e Ex-Diretor do Departamento de Proteção e Defesa Econômica da Secretaria de Direito Econômico (MJ). Advogado em São Paulo e Brasília.
  • 1
    Para Kelsen, a sanção exerce papel fundamental no Direito, daí por que, para o autor, a sanção comporia a norma primária. No entanto, em obra publicada após a sua morte,
    Allgemeine theorie der normen, Kelsen parece ter esboçado uma revisão dessa nomenclatura, invertendo-a. (MELLO, 1999, p. 29, nota 21)
  • 2
    Segundo Eros Roberto Grau (2005, p. 23/26), a norma ou regra jurídica é o produto da interpretação, sendo incorreto afirmar que se interpretam normas jurídicas: "O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo". Ou ainda: "Repetindo: as normas resultam da interpretação, que se pode descrever como um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo".
  • 3
    Tem havido, em algumas ocasiões, certa dificuldade na distinção entre condutas anticoncorrenciais e atos de concentração, uma vez que o artigo 54,
    caput, pertinente ao controle de atos de concentração, refere-se aos mesmos efeitos produzidos pelos atos previstos pelo artigo 20, incisos I e II, da mesma Lei 8.884/94, referente a condutas anticoncorrenciais. Contribui para essa dificuldade a inexistência de imposição pelo mesmo artigo 54 da Lei Antitruste, de
    apresentação prévia dos atos ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), já que efeitos (lesivos ou não) desses tipos de atos podem ser produzidos concretamente antes de sua submissão à autoridade antitruste. Sem qualquer pretensão de esgotar esse assunto, uma vez que se trata de tema para outro estudo, pode-se exemplificar,
    grosso modo, como atos de concentração aqueles previstos no § 3.º do artigo 54 da Lei 8.884/94, isto é, "fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário resultante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais)". Por outro lado, podem ser citados como exemplos de condutas os cartéis, a venda casada, a prática de preços predatórios, o estabelecimento de acordos entre empresas que se mantêm independentes, verticalmente relacionadas, para obtenção do fechamento dos canais de distribuição de produtos ou aquisição de insumos, entre outras hipóteses exemplificativamente previstas nos incisos do artigo 21 da Lei 8.884/94.
  • 4
    Carvalho, 1999, p. 170. Segundo Marcos Bernardes de Mello (1999, p. 37-38): "A expressão
    suporte fáctico – com que Pontes de Miranda traduziu a alemã
    Tatbestand – foi utilizada inicialmente no Direito Penal, e trazida para o Direito privado por Tohl, segundo depoimento de Cammarata. O conceito, conforme demonstra Pontes de Miranda no prefácio do seu Tratado de Direito Privado, é de aplicação universal na Ciência Jurídica, não sendo privativo de um determinado ramo do Direito. Tanto isso é verdade que nos diversos campos jurídicos o vemos empregado muitas vezes disfarçado por outras denominações, como
    pressuposto de incidência,
    tipificação legal,
    tipo legal,
    hipótese de incidência.No Direito Tributário, emprega-se a expressão
    fato gerador, embora com muita impropriedade, como mostramos em nossa Contribuição do Estudo da Incidência da Norma Jurídica Tributária, pág. 34, porque na verdade o
    fato gerador da obrigação tributária é o
    fato jurídico, portanto, o suporte fático depois da incidência, já juridicizado, e não o suporte fático apenas. Entre os autores italianos está difundido o uso do termo
    fattispecie – proposto por Betti – e entre os autores de língua espanhola a expressão
    supuesto de hecho".
  • 5
    Paulo de Barros não utiliza essa expressão em seu
    Curso de direito tributário. Extraímo-la das obras de Pontes de Miranda (1954) e de Marcos Bernardes de Mello (1999).
  • 6
    "Esse núcleo, ao qual nos referimos, será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento. Daí por que aludirmos a comportamento humano, tomada a expressão na plenitude de sua força significativa, equivale a dizer, abrangendo não só as atividades refletidas (verbos que exprimem ação) como aquelas espontâneas (verbos de estado: ser, estar, permanecer etc.)." O autor, entretanto, logo em seguida, pondera: "estimaríamos melhor considerar os procedimentos humanos em consonância com a teoria clássica dos movimentos, de origem aristotélica, que os divide em três categorias básicas: movimentos voluntários, involuntários e reflexos. A cada qual corresponderia um grupo de verbos, denotadores dos diversos comportamentos. Nesse quadro imenso, qualquer forma de manifestação estará certamente contida, possibilitando a livre escolha do objeto da disciplina jurídica". O autor, ainda, faz uma ressalva para o fato de que não são admissíveis verbos impessoais, como
    haver, ou verbos sem sujeito, como
    chover. (CARVALHO, 1999, p. 180-181).
  • 7
    Celso Antônio Bandeira de Mello (1998, p. 587) assim explica referido conceito: "[...] a Administração exerce
    função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no
    dever de satisfazer dadas finalidades em prol do
    interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são
    instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do
    dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, 'deverespoderes', no
    interesse alheio. Quem exerce 'função administrativa' está adstrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados Democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido. Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder –, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como 'poderes' ou como 'poderes-deveres'. Antes se qualificam e melhor se designam como 'deveres-poderes', pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações".
  • 8
    "Quando o suporte fático
    suficiente ocorre, a regra jurídica incide". Pontes de Miranda (1954, p. 17). "A
    incidência é, assim, o efeito da norma jurídica de transformar em fato jurídico a parte do seu suporte fáctico que o Direito considerou relevante para ingressar no mundo jurídico" (MELLO, 1999, p. 58).
  • 9
    Adverte Karl Engisch (2001, p. 95) acerca da inadequação técnica da expressão "subsunção do fato à norma", visto que a
    subsunção, por tratar-se de operação lógica, somente opera-se entre iguais. Por isto, segundo o autor, o correto é afirmar que o
    conceito do fato subsume-se ao
    conceito da norma jurídica: "A um conceito apenas pode ser subsumido um conceito. [...] São, portanto, subsumidos conceitos de factos a conceitos jurídicos". No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho (1999, p. 173): "A subsunção, como operação lógica que é, só se opera entre iguais".
  • 10
    Djalma Bittar, citando lição de José Souto Maior Borges, assevera: "'A eficácia jurídica é a produção de efeitos jurídicos', constituindo-se em 'irradiação do fato jurídico depois da incidência no suporte fático'". (BORGES apud BITTAR, 1993, p. 66). Marcos Bernardes de Mello (1999, p. 58) chama a atenção para a distinção entre eficácia da regra jurídica e a eficácia do fato jurídico:"É preciso,portanto,considerar que há a eficácia da norma jurídica (chamada eficácia legal), de que resulta o fato jurídico, e a eficácia jurídica que decorre do fato jurídico já existente". Neste sentido, Pontes de Miranda (1954, p. 56) é enfático: "A incidência da regra jurídica é a sua eficácia; não se confunde com ela, nem com a eficácia do fato jurídico; a eficácia da regra jurídica é a sua incidência; a do fato jurídico, irradia-se, é a juridicização das conseqüências dele, devido à incidência. Cada regra de direito enuncia algo sobre os fatos (positivos ou negativos). Se os fatos, de que trata, se produzem, sobre eles incide a regra jurídica e irradia-se deles (feitos com a incidência, jurídicos) a eficácia jurídica. Já aqui estão nitidamente distinguidos apesar da confusão reinante na ciência européia: – a eficácia da regra jurídica, que é a de incidir, eficácia 'legal' (da lei), eficácia jurídica, mera irradiação de efeitos dos fatos jurídicos. Seria erro dizer-se que é a regra jurídica que produz a eficácia jurídica; a eficácia jurídica provém da juridicização dos fatos (incidência da regra jurídica sobre os fatos, tornando-os jurídicos). Os fatos a que a regra jurídica se refere são ditar o dado fáctico, da regra jurídica. No direito, como em outras ciências, o fato pode ser múltiplo, complexo ou simples. A morte é fato simples, como o nascimento o é; o suporte fáctico suficiente ocorre, a regra jurídica incide; a conduta humana, de tal maneira que trata o fato se não houvesse incidido. Sem regra jurídica, e sem fato, ou fatos, sobre os quais ela incida, não há fatos jurídicos e, pois, efeitos jurídicos. Daí não se conclua que todo efeito tenha de ser efeito da lei e do fato. Toda eficácia jurídica é eficácia de fato jurídico, portanto, da lei e do fato, e não da lei ou do fato".
  • 11
    Nesse sentido, perfeitamente aplicável ao Direito Antitruste a lição de Geraldo Ataliba (1999, p. 65), relativa ao Direito Tributário, quanto à não-importância da classificação do fato, por outros ramos do Direito, como ato jurídico; a norma jurídica sempre incidirá sobre um fato: "[...] a melhor doutrina é unânime na afirmação da tese segundo a qual o fato imponível é um fato jurídico e não um ato jurídico. Isto quer dizer: se a lei colocar como aspecto material da hipótese de incidência um fato que para os outros ramos do direito é voluntário, para o direito tributário esse fato será fato jurídico simplesmente, sendo indiferente sua classificação como fato voluntário ou não. Em outras palavras: para o direito tributário é irrelevante a vontade das partes na produção de um negócio jurídico.Tal vontade é relevante, para os efeitos privados (negociais) do negócio. Para o direito tributário a única vontade relevante, juridicamente, é a vontade da lei, que toma esse negócio (ou ato unilateral privado) como fato, ao colocá-lo, como simples fato jurídico, na h.i. [hipótese de incidência]".
  • 12
    Eros Roberto Grau (2005, p. 231-232) lança reserva à expressão
    conceitos jurídicos indeterminados, defendendo que, em realidade, indeterminados são os
    termos (expressões lingüísticas) que exprimem os conceitos jurídicos: "Este ponto era e continua a ser, para mim, de importância extremada: não existem
    conceitos indeterminados. Se é indeterminado o
    conceito, não é
    conceito. O mínimo que se exige de uma suma de idéias, abstrata, para que seja um conceito é que seja determinada. Insisto: todo conceito é uma suma de idéias que, para ser conceito, tem de ser,
    no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si,
    uma suma determinada de idéias, não chega a ser conceito".
  • 13
    Eros Roberto Grau (2005, p. 233), como visto acima, após fazer importante reserva à expressão
    conceitos jurídicos indeterminados, assim explica o que se entende pela indeterminação comentada: "Podemos, todavia, de modo amplo e sumariamente, mencionar que são tidos como 'indeterminados' os 'conceitos' cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente imprecisos –, razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique. Neste sentido, são eles referidos como 'conceitos' carentes de preenchimento com dados extraídos da realidade. Os parâmetros para tal preenchimento – quando se trate de conceito aberto por imprecisão – devem ser buscados na realidade, inclusive na consideração das concepções políticas predominantes, concepções, essas, que variam conforme a atuação das forças sociais [Forsthoff 1973: 17-18]. Quando se trate de conceito aberto por ambigüidade seu preenchimento é procedido também mediante a consideração do contexto em que inserido – o que, de qualquer forma, não deve obscurecer a verificação de que,
    sempre,é da
    participação no jogo de linguagem no qual inserido o termo do conceito que decorre a possibilidade de o compreendermos, procedendo ao seu preenchimento. Como observei anteriormente, ainda que ambíguas e imprecisas, as palavras e expressões jurídicas (= os termos dos conceitos) expressam significações sempre determináveis".
  • 14
    Sobre o papel das políticas de defesa da concorrência, discorre Elizabeth Farina (2005, p. 37): "Desde os primórdios da Ciência Econômica, a concorrência tem sido considerada como o motor da transformação e do desenvolvimento econômico. Se na Escola Econômica Neoclássica é a concorrência que garante a eficiência alocativa do sistema, para Schumpeter ela provê incentivo à inovação e garante a eficiência dinâmica. Para North a concorrência estimula o aprendizado favorecendo o desempenho econômico através do tempo. Aí está a principal justificativa fornecida pela Ciência Econômica para as políticas de defesa da concorrência: proteger e mesmo intensificar a força competitiva, que se supõe constituir o mecanismo mais eficaz para alcançar a eficiência produtiva, o vigor da inovação técnica e a criação de novos produtos". Maria Tereza Leopardi Mello e Mario Luiz Possas (2002, p. 136-137) também discorrem sobre a finalidade social da defesa da concorrência: "A política de defesa da concorrência tem por finalidade garantir a existência de condições de competição, preservando-se e/ou estimulando a formação de ambientes competitivos com vistas a induzir, se possível, maior eficiência econômica como resultado do funcionamento dos mercados. [...] A esta altura, cabe indagar por que se esperam da concorrência resultados positivos do ponto de vista social. A resposta só pode ser encontrada no âmbito da teoria econômica: a concorrência deve ser defendida porque gera – ainda que não exclusivamente, e nem sempre – eficiência no funcionamento dos mercados. É essa sua 'finalidade social' – espera-se que agentes concorram por meio da busca de maior eficiência que lhes propicie vantagens competitivas". Direito e economia na análise de condutas anticompetitivas.
  • 15
    A Ciência Econômica denomina "externalidades" os efeitos de uma ação que afeta não apenas os indivíduos participantes dessa ação. Quando a ação de um indivíduo impõe custos a outros, há externalidade negativa. Quando uma ação de um indivíduo gera benefícios a outros, ocorre externalidade positiva. Exemplo clássico de externalidade negativa é a poluição ambiental provocada por indústrias e automóveis e de externalidade positiva, a plantação de árvores. Cf. Eduardo Andrade e Regina Madalozzo (2002, p. 86-87) e Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 555-558). Conforme lição de Fábio Nusdeo (2001, p. 152), tais custos e benefícios circulam externamente ao mercado, não sendo apropriados pelos participantes da ação que os gera e restam não compensados, e a eles o mercado não consegue imputar um preço. As externalidades representam uma "falha de mercado" e sua presença resulta em ineficiência, porque, no caso das positivas, os incentivos para a prática das ações que as geram são insuficientes e, por essa razão, tais ações acabam sendo praticadas menos do que o socialmente desejável e, no caso das negativas, as proibições ou incentivos contrários são insuficientes ou inexistentes, resultando em mais práticas do que o socialmente desejável. O Direito pode e deve atuar para "internalizar" os custos e benefícios externos nas próprias unidades produtoras, de modo a contribuir para o incentivo aos comportamentos socialmente benéficos e para o desestímulo daqueles socialmente indesejáveis.Veja-se, a respeito, Fábio Nusdeo (2001, p. 158-160).
  • 16
    Paula A. Forgioni (2005, p. 193-194), destacando o papel da lei antitruste como instrumento para a realização de políticas públicas, afirma: "Tendo-se em mente os objetivos da Lei Antitruste, aparece clara, conjuntamente com o aspecto instrumental desse tipo de norma, sua aptidão para servir à implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como 'meios de que dispõe o Estado para influir de maneira sistemática sobre a economia'. Ou seja, o antitruste já não é visto apenas em sua função de eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos (ou meios, conforme a terminologia utilizada por José Francisco Camargo) de que dispõe o Estado para conduzir o sistema".
  • 17
    Com a defesa da concorrência, "reprime-se a tentativa, por parte dos agentes, de relaxar as pressões competitivas a que estão submetidos; a lei busca evitar que se utilizem de meios 'artificiais' para ganhar o mercado –
    i.e., meios não baseados na maior eficiência, que falseiem a concorrência". (MELLO; POSSAS, 2002, p. 137).
  • 18
    O princípio da verdade real fundamenta predominantemente o processo penal e o processo administrativo. Por esse princípio, o juiz não se restringe às provas produzidas pelas partes, devendo dar seguimento à instrução por inércia da parte e mesmo determinar,
    ex officio, a produção de provas para descobrir, tanto quanto possível, a verdade. Cf. Julio Fabbrini Mirabete (1998, p. 44). Já pelo princípio da verdade formal, predominante no Processo Civil, o juiz decide a lide "nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte" (artigo 128 do Código de Processo Civil) e aprecia as provas "atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos" (artigo 131 do Código de Processo Civil).
  • 19
    Calixto Salomão Filho (2003, p. 61-94) identifica três interesses protegidos pela Lei Concorrencial: o interesse dos consumidores, o interesse dos concorrentes e o interesse institucional da ordem concorrencial, sendo este último o objeto imediato da tutela legal. O autor entende ser mais adequada a identificação do interesse imediato protegido em razão de seu objeto (
    interesse institucional da ordem concorrencial) do que em razão de seus sujeitos (
    interesses difusos).
  • 20
    Jorge Fagundes (2003, p. 114), discorrendo sobre o bem-estar e a política econômica, afirma que o "objetivo de qualquer organização econômica, incluindo o sistema econômico como um todo, é o de satisfazer as necessidades e desejos dos indivíduos, de modo que é possível – e mesmo desejável – julgar a
    performance econômica do sistema ou organização em termos dessa meta".
  • 21
    Como se verá na nota 32,
    infra, nada obsta que a produção desse efeito, em alguns casos e presentes algumas condições, passe a ser
    presumida.
  • 22
    No debate teórico sobre a aplicação dos conceitos de Direito e Economia para a formulação de políticas públicas e para a aplicação da Lei de Defesa da Concorrência, destacam-se algumas concepções de "eficiência econômica". O conceito de "ótimo de Pareto" refere-se à situação de equilíbrio em que é impossível melhorar o bem-estar de um indivíduo sem que seja piorado, ao mesmo tempo, o de outro. No critério de eficiência de Kaldor-Hicks ou "potencial de Pareto", mencionado, admite-se a existência de indivíduos ganhadores e indivíduos perdedores. Segundo esse critério, uma mudança de configuração econômica é eficiente quando os ganhos obtidos pelos indivíduos ganhadores compensam (ou mesmo superam) as perdas dos indivíduos perdedores.Veja-se, a respeito, Daniel K. Goldberg (2006, p. 28-45).
  • 23
    O adjetivo "arbitrário", constante do inciso III do artigo 20, por si só já contém a idéia de que se trata de lucro obtido por meio de atuação abusiva, lesiva à ordem econômica e que, portanto, extrapola os benefícios dos ganhos de eficiência.
  • 24
    Para Calixto Salomão Filho (2003, p. 86-87), "o aumento dos lucros só pode ser considerado arbitrário, e, portanto, só pode constituir ilícito independente, quando decorrente da exploração de uma situação de monopólio. [...] O aumento arbitrário dos lucros só se caracteriza em presença de poder no mercado, pela simples razão de que a arbitrariedade só se configura quando o aumento dos lucros decorre do aproveitamento de posição dominante no mercado (seja ela monopolista ou oligopolista). O fato de a dominação dos mercados e o aumento arbitrário dos lucros aparecerem na nova lei em incisos separados (II e III) do art. 20 não significa que possam ter configurações independentes". Veja-se, também, nota 29,
    infra.
  • 25
    Como se verá na nota 32,
    infra, nada obsta que essa produção preponderante de efeitos negativos, em alguns casos e presentes algumas condições, passe a ser
    presumida.
  • 26
    Sérgio Varella Bruna (2001, p. 177), conceituando abuso de poder econômico, adiciona ao elemento econômico (apropriação de excedente) o elemento jurídico (desvio da função social do poder econômico),
    in verbis: "[...] tem-se por abuso do poder econômico o exercício, por parte de titular de posição dominante, de atividade empresarial contrariamente a sua função social, de forma a proporcionar-lhe, mediante restrição à liberdade de iniciativa e à livre concorrência, apropriação (efetiva ou potencial) de parcela da renda social superior àquela que legitimamente lhe caberia em regime de normalidade concorrencial, não sendo abusiva a restrição quando ela se justifique por razões de eficiência econômica, não tendo sido excedidos os meios estritamente necessários à obtenção de tal eficiência, e quando a prática não represente indevida violação de outros valores maiores (econômicos ou não) da ordem jurídica".
  • 27
    O termo "marginal", em Economia, refere-se à diferença resultante de uma unidade adicional de algo. Cf. Fábio Nusdeo (2001, p. 33-34/240-242). Custo marginal, por isso, refere-se ao custo de produzir uma unidade a mais de um bem. Cf. Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 185). Em um mercado perfeitamente competitivo, um vendedor procura igualar o preço do produto ao custo marginal; se produzir menos do que a quantidade correspondente a esse ponto, não lucrará tanto quanto poderia; se produzir mais, o custo será superior à receita obtida com a quantidade a mais. Nessa situação, nenhum vendedor ou comprador em particular são capazes de influenciar o preço do produto, que é dado pelo mercado. Já na situação de monopólio, dada a falta de alternativas para os consumidores, fixar o preço do produto acima do custo de produzir uma unidade a mais não significará uma redução significativa das vendas. Portanto, nesse caso, em comparação com um mercado competitivo, o vendedor provoca maior escassez, eleva o preço do produto, lucra mais em detrimento dos consumidores e gera para a sociedade um desperdício de recursos. Para uma explicação detalhada sobre o processo de formação dos preços no mercado nas situações mencionadas e seus efeitos, Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 287 et seq.) e Sérgio Varella Bruna (2001, p. 17-35).
  • 28
    Ocorre que a existência de um "mercado contestável" evita esse exercício exacerbado de poder. A presença de baixas barreiras à entrada de novos concorrentes, baixo grau de diferenciação de produtos e altas elasticidades cruzadas da oferta e da demanda evitam que o agente econômico eleve em demasia o preço de seu produto. Caso o agente, no entanto, insista em elevar o preço nessas condições, poderá ocasionar a entrada de novos concorrentes no mercado (a concorrência, antes desse fato, encontra-se em estado potencial) ou um movimento de substituição, pelos consumidores, do produto por ele ofertado por produtos similares. Para uma explanação sobre "mercado contestável" e "concorrência potencial", veja-se Paula A. Forgioni (2005, p. 334-341). Para a conceituação de barreiras à entrada, veja-se Sérgio Varella Bruna (2001, p. 57) e Hovenkamp (2005, p. 39). Para a conceituação de produtos diferenciados e homogêneos, veja-se Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 222/377). E para a conceituação de elasticidades preço e cruzada da oferta e da demanda, veja-se Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 30) e Fábio Nusdeo (2001, p. 230-235/255-256).
  • 29
    O artigo 21, inciso XXIV, da Lei 8.884/94 estabelece a hipótese de cobrança de preços excessivos como um possível ilícito antitruste. No entanto, a hipótese remete à necessidade de constatação da presença ou potencialidade de produção dos efeitos lesivos à coletividade. Nesse sentido, vale reproduzir o voto do ex-Conselheiro do Cade Leônidas R. Xausa: "'Contudo, o aumento abusivo de preços não é senão um sintoma de uma prática restritiva da concorrência. Esta sim merece a atenção deste órgão. Não cabe ao Conselho punir o aumento de preços em si – estas medidas o governo por diversas vezes tentou operar, sempre com fracasso –, mas tê-lo como indício de uma outra conduta, esta sim passível de sanção. Trata-se por exemplo de aumento abusivo de preços em decorrência de um abuso de posição dominante ou da formação de um conluio. Nestes casos, o órgão de defesa da concorrência deve punir o abuso da posição dominante ou o conluio, utilizando o aumento abusivo de preços como mero indicador da conduta antijurídica'. Voto na Averiguação Preliminar n.º 08000.000178/90, de 1.º de outubro de 1997, Representante: Revalino Vieira da Cunha, Representada: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde S/C. In
    DOU de 16 de outubro de 1997, Seção I, pág. 23385"( Franceschini, 1998, p. 108). Veja-se, no mesmo sentido, o entendimento reproduzido na nota 24,
    supra.
  • 30
    A Lei 8.884/94, em seu artigo 7.º, incisos X e XVIII, e em seu artigo 14, incisos XII, XIII e XIV, atribui poderes de
    advocacia da concorrência aos Órgãos Administrativos responsáveis por sua aplicação. Uma das inúmeras possibilidades de utilização desses poderes é a recomendação a outros Órgãos Públicos que adotem medidas em suas áreas de competência de forma a promover ou incentivar a concorrência. Como exemplo, pode-se mencionar a recomendação à Câmara de Comércio Exterior (Camex) que reduza alíquotas do Imposto de Importação, a fim de facilitar a entrada de produtos no mercado interno e diminuir o poder do agente econômico dominante sobre os preços.
  • 31
    Nesse ponto, como já visto, uma eficaz aplicação da Lei de Defesa da Concorrência representa um risco elevado de condenação de práticas restritivas da concorrência, reforçando a perspectiva de que os agentes econômicos podem incorrer em elevados custos caso decidam adotá-las. Vide
    notas 15 15 A Ciência Econômica denomina "externalidades" os efeitos de uma ação que afeta não apenas os indivíduos participantes dessa ação. Quando a ação de um indivíduo impõe custos a outros, há externalidade negativa. Quando uma ação de um indivíduo gera benefícios a outros, ocorre externalidade positiva. Exemplo clássico de externalidade negativa é a poluição ambiental provocada por indústrias e automóveis e de externalidade positiva, a plantação de árvores. Cf. Eduardo Andrade e Regina Madalozzo (2002, p. 86-87) e Pindyck e Rubinfeld (2006, p. 555-558). Conforme lição de Fábio Nusdeo (2001, p. 152), tais custos e benefícios circulam externamente ao mercado, não sendo apropriados pelos participantes da ação que os gera e restam não compensados, e a eles o mercado não consegue imputar um preço. As externalidades representam uma "falha de mercado" e sua presença resulta em ineficiência, porque, no caso das positivas, os incentivos para a prática das ações que as geram são insuficientes e, por essa razão, tais ações acabam sendo praticadas menos do que o socialmente desejável e, no caso das negativas, as proibições ou incentivos contrários são insuficientes ou inexistentes, resultando em mais práticas do que o socialmente desejável. O Direito pode e deve atuar para "internalizar" os custos e benefícios externos nas próprias unidades produtoras, de modo a contribuir para o incentivo aos comportamentos socialmente benéficos e para o desestímulo daqueles socialmente indesejáveis.Veja-se, a respeito, Fábio Nusdeo (2001, p. 158-160). e
    17 17 Com a defesa da concorrência, "reprime-se a tentativa, por parte dos agentes, de relaxar as pressões competitivas a que estão submetidos; a lei busca evitar que se utilizem de meios 'artificiais' para ganhar o mercado – i.e., meios não baseados na maior eficiência, que falseiem a concorrência". (MELLO; POSSAS, 2002, p. 137). ,
    supra.
  • 32
    Muito se discute sobre a possibilidade de condenações de condutas
    per se ou sobre uma suposta necessidade de utilização da chamada "regra da razão" na análise das condutas anticoncorrenciais à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Costuma-se afirmar que, pela regra
    per se, basta a simples comprovação da prática para se considerar configurada a infração. Já pela regra da razão, para tanto, devem-se sopesar os efeitos negativos com eventuais efeitos positivos que a prática produza. No entanto, a adoção da regra
    per se não significa um abandono dessa ponderação entre efeitos. A diferença é que, na regra
    per se, a produção de efeitos líquidos negativos passa a ser
    presumida. Isto porque a reiteração de condenações de um mesmo tipo de prática, cujas investigações sempre apontam a presença de efeito líquido negativo, somada a uma previsão razoavelmente segura – em geral fundamentada no direito comparado e na doutrina econômica – de que em tais casos é mínima ou inexistente a probabilidade de produção líquida de efeitos benéficos, pode autorizar a dispensa da investigação prática e comprovação desses efeitos. No texto da Lei 8.884/94 essa possibilidade também é albergada na expressão "tenham por objeto ou possam produzir" do
    caput do artigo 20 da Lei 8.884/94. A autoridade antitruste, baseada nessa
    expertise adquirida, passa a considerar que o ato analisado tem por objeto ou produz efeitos líquidos negativos sem a necessidade de comprová-los, bastando para tanto apenas comprovar a prática do referido ato. Para efeitos práticos, o que ocorrerá nesses casos será apenas uma
    diminuição do número de etapas de investigação, privilegiando-se o princípio da eficiência administrativa. Portanto, no atual sistema jurídico antitruste brasileiro nada impede, a partir de uma
    evolução jurisprudencial, a criação de regras
    per se. Corroborando o entendimento de que regra
    per se e regra da razão distinguem-se pela quantidade de informações requeridas para consideração da prática como uma infração e que a regra
    per se promove uma diminuição do número das etapas de investigação, (Hovenkamp, 2005, Seção 5.6b, intitulada "The exaggerated distinction between rule of reason and per se treatment", p. 255-259) e Luis Fernando Schuartz (2002, item 2, intitulado "O real significado da distinção entre a regra
    per se ea 'regra da razão'", p. 111-118).
  • 33
    "Com efeito, no caso, serão vedadas práticas ainda que não possam ser consideradas jurídicas, ou seja, ainda que não produzam (ou possam produzir) qualquer efeito juridicamente vinculante, qualquer obrigação. Note-se que a doutrina especializada chega até a colocar atos que produzam efeitos meramente morais, desde que restritivos da concorrência, como sendo vedados pela Lei Antitruste. Assim também, ainda que se trate de ato nulo de pleno direito, inválido ou ineficaz, ou mesmo que não tenha chegado a existir no mundo jurídico, poderá subsumir-se à Lei Antitruste brasileira, caso determine a incidência de qualquer dos incisos do artigo 20 da Lei 8.884 de 1994" (Forgioni, 2005, p. 159-160). No mesmo sentido, quanto ao significado do termo "acordo" no artigo 81 do Tratado da Comunidade Européia: "a noção de 'acordos' é aqui usada em sentido amplo de forma a abranger quer os contratos [...] quer outros acordos, mesmo que tácitos e não assinados, de onde derivem restrições, incluindo por meio de sanções morais ou económicas, à liberdade de agir ou decidir autonomamente de uma ou algumas das partes. Ficam assim incluídos quer os
    gentlemen's agreements, quer os cartéis ou uniões informais e mesmo os actos preparatórios de contratos futuros" (SANTOS; GONÇALVES; MARQUES, 1998, p. 372).
  • 34
    Nesse sentido, valiosas as palavras de Benjamin M. Shieber (1966, p. 88), sobre a dificuldade de encontrar provas sobre o acordo de vontades em restrição da concorrência: "Às vezes não existem provas diretas da concordância de vontades, ainda que o acordo em restrição da concorrência seja notório. A dificuldade em encontrar provas documentais decorre do fato de raramente acontecer que conspiradores que visam praticar um abuso do poder econômico lavrem e arquivem atas de suas reuniões, tanto quanto provas testemunhais, pois é evidente que não podemos esperar que os participantes de acordo em restrição da concorrência testemunhassem contra si e admitissem a existência de tal acordo. Freqüentemente, negam eles a existência de qualquer concordância de vontades, e, portanto, a existência de um acordo". Mais recentemente, a Lei 10.129/2000 inseriu na Lei 8.884/94 os artigos 35-B e 35-C, que prevêem a celebração de "acordos de leniência", como uma forma de estimular a confissão e a delação das atividades ilícitas por seus próprios participantes. Com a celebração desse acordo, os autores de infração à ordem econômica procuram obter a extinção da ação punitiva da Administração Pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, bem como a extinção da punibilidade dos crimes correlatos, previstos na Lei 8.137/90.
  • 35
    Veja-se nota de rodapé
    11 11 Nesse sentido, perfeitamente aplicável ao Direito Antitruste a lição de Geraldo Ataliba (1999, p. 65), relativa ao Direito Tributário, quanto à não-importância da classificação do fato, por outros ramos do Direito, como ato jurídico; a norma jurídica sempre incidirá sobre um fato: "[...] a melhor doutrina é unânime na afirmação da tese segundo a qual o fato imponível é um fato jurídico e não um ato jurídico. Isto quer dizer: se a lei colocar como aspecto material da hipótese de incidência um fato que para os outros ramos do direito é voluntário, para o direito tributário esse fato será fato jurídico simplesmente, sendo indiferente sua classificação como fato voluntário ou não. Em outras palavras: para o direito tributário é irrelevante a vontade das partes na produção de um negócio jurídico.Tal vontade é relevante, para os efeitos privados (negociais) do negócio. Para o direito tributário a única vontade relevante, juridicamente, é a vontade da lei, que toma esse negócio (ou ato unilateral privado) como fato, ao colocá-lo, como simples fato jurídico, na h.i. [hipótese de incidência]". ,
    supra.
  • 36
    Como visto na nota de rodapé
    32 32 Muito se discute sobre a possibilidade de condenações de condutas per se ou sobre uma suposta necessidade de utilização da chamada "regra da razão" na análise das condutas anticoncorrenciais à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Costuma-se afirmar que, pela regra per se, basta a simples comprovação da prática para se considerar configurada a infração. Já pela regra da razão, para tanto, devem-se sopesar os efeitos negativos com eventuais efeitos positivos que a prática produza. No entanto, a adoção da regra per se não significa um abandono dessa ponderação entre efeitos. A diferença é que, na regra per se, a produção de efeitos líquidos negativos passa a ser presumida. Isto porque a reiteração de condenações de um mesmo tipo de prática, cujas investigações sempre apontam a presença de efeito líquido negativo, somada a uma previsão razoavelmente segura – em geral fundamentada no direito comparado e na doutrina econômica – de que em tais casos é mínima ou inexistente a probabilidade de produção líquida de efeitos benéficos, pode autorizar a dispensa da investigação prática e comprovação desses efeitos. No texto da Lei 8.884/94 essa possibilidade também é albergada na expressão "tenham por objeto ou possam produzir" do caput do artigo 20 da Lei 8.884/94. A autoridade antitruste, baseada nessa expertise adquirida, passa a considerar que o ato analisado tem por objeto ou produz efeitos líquidos negativos sem a necessidade de comprová-los, bastando para tanto apenas comprovar a prática do referido ato. Para efeitos práticos, o que ocorrerá nesses casos será apenas uma diminuição do número de etapas de investigação, privilegiando-se o princípio da eficiência administrativa. Portanto, no atual sistema jurídico antitruste brasileiro nada impede, a partir de uma evolução jurisprudencial, a criação de regras per se. Corroborando o entendimento de que regra per se e regra da razão distinguem-se pela quantidade de informações requeridas para consideração da prática como uma infração e que a regra per se promove uma diminuição do número das etapas de investigação, (Hovenkamp, 2005, Seção 5.6b, intitulada "The exaggerated distinction between rule of reason and per se treatment", p. 255-259) e Luis Fernando Schuartz (2002, item 2, intitulado "O real significado da distinção entre a regra per se ea 'regra da razão'", p. 111-118). ,
    supra, a referida produção líquida de efeitos, no caso da adoção da regra
    per se, pode ser
    presumida.
  • 37
    Como exemplo, pode-se mencionar a hipótese de aplicação de medida preventiva pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) ou pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) (artigo 52 da Lei 8.884/94), de forma a evitar, cautelarmente, a produção efetiva de efeitos lesivos. Outro exemplo é a hipótese em que três únicas empresas em um mercado, caracterizado por elevadas barreiras à entrada de novos concorrentes, alto grau de homogeneidade do produto e baixas elasticidades cruzadas da oferta e da demanda (vide nota de rodapé 28,
    supra), resolvem reunir-se para estabelecer um acordo informal de fixação de preços e quantidades de produção. Para tanto, trocam informações estratégicas sobre preços, quantidades produzidas e capacidade de produção. Ocorre que, antes do início da implementação do combinado, duas das empresas são adquiridas por grupos econômicos distintos, que não concordam, por razões éticas ou mesmo comerciais, com a realização do cartel e resolvem não dar início à execução dos termos acordados. Nesse caso, não obstante o cartel não tenha chegado a produzir efeitos concretos, não se pode negar que as três empresas, dado o contexto, colocaram concretamente em risco os princípios constitucionais relativos à ordem econômica ao terem se reunido para estabelecê-lo, incorrendo, assim, em infração à ordem econômica. Destarte, quaisquer documentos ou informações (cf. exposto no item 3.2.2,
    b,
    supra) que demonstrem a ocorrência e o conteúdo de tal reunião, poderão contribuir substancialmente para se provar a infração.
  • 38
    Veja-se nota de rodapé
    36 36 Como visto na nota de rodapé 32, supra, a referida produção líquida de efeitos, no caso da adoção da regra per se, pode ser presumida. ,
    supra.
  • 39
    Segundo Paula A. Forgioni (2005, p. 231), "mercado relevante é aquele em que se travam as relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento está sendo analisado". Para sua delimitação, identificam-se duas dimensões, a material e a geográfica. "O mercado relevante geográfico é a área onde se trava a concorrência relacionada à prática que está sendo considerada restritiva". (FORGIONI, 2005, p. 233). "O mercado relevante material (ou mercado do produto) é aquele em que o agente econômico enfrenta a concorrência, considerado o bem ou serviço que oferece" (FORGIONI, 2005 p. 241). Para o Cade, em sua Resolução 20, de 09.06.1999: "O mercado relevante constitui o espaço – em suas dimensões produto ou geográfica – no qual é razoável supor a possibilidade de abuso de posição dominante". A técnica utilizada pelos três órgãos administrativos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) no Brasil para delimitação de mercados relevantes em casos concretos é o chamado "teste do monopolista hipotético", do qual a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE/MF), na Portaria Conjunta SEAE/SDE 50, de 1.º.08.2001, extraem a seguinte definição de mercado relevante: "o menor grupo de produtos e a menor área geográfica necessários para que um suposto monopolista esteja em condições de impor um 'pequeno porém significativo e não transitório' aumento de preços". No mesmo sentido, Portaria SEAE 70, de 12.12.2002 e Resolução CADE 20, de 09.06.1999.
  • 40
    A Constituição Federal, ainda, em outro dispositivo, estabelece que: "Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal".
  • 41
    "Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas:
  • Endereço para correspondência:
    Marcel Medon Santos
    Rua Monte Alegre, 470, apto. 171
    Perdizes – 05014-000
    São Paulo, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Recebido
      18 Mar 2007
    • Aceito
      12 Set 2007
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