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Supremocracia

Supremocracy

Resumos

o STF está hoje no centro de nosso sistema político, fato que demonstra a fragilidade de nosso sistema representativo. tal tribunal vem exercendo, ainda que subsidiariamente, o papel de criador de regras, acumulando a autoridade de intérprete da constituição com o exercício de poder legislativo, tradicionalmente exercido por poderes representativos. Este texto mostra como o supremo, de fato, tem exercido tais funções pela análise de alguns de seus julgados mais recentes. Em seguida, propõe mecanismos capazes de lidar com as tensões produzidas pela supremocracia, sem caracterizá-la como algo necessariamente bom ou ruim, mas buscando compreender seu sentido e apontar para seus perigos.

sistema político; separação de poderes; representação; STF


The text shows how the fsc is located at the heart of our political system and warns of the dangers to democracy inherent in this stance. Such a danger lies in the fact that the aforementioned court is fulfilling, albeit in a subsidiary manner, the role of rule-maker, accumulating the authority of constitutional interpreter while retaining exercise of legislative power, which traditionally belonged to the representative powers. The text attempts to prove that the supreme court has carried out such functions within an analysis of some of its recently tried cases. It also suggests mechanisms capable of dealing with the tensions generated by supremocracy, without characterizing them as something good or bad for our political system.

political system; separation of powers; representation; STF


ARTIGOS

Supremocracia* * A formulação do argumento que agora apresento neste texto, deu-se por ocasião da aula inaugural do curso de pós-graduação em Direito do Ibemec-SP (2008), que honrosamente proferi a convite do Professor e amigo Jairo Saddi; também apresentei este trabalho no saboroso "Colóquio Vinte Anos da Constituição", realizado em Petrópolis, entre os dias 14 de 17 de Agosto, ao convite dos também queridos amigos Daniel Sarmento, Cláudio Pereira Souza Neto e Gustavo Binenbojm. Se não fosse o meu atraso este texto deveria constar da publicação resultante daquele colóquio.Agradeço, por fim, à DIREITO GV, por ter assegurado as condições para que o presente ensaio pudesse ser realizado.

Supremocracy

Oscar Vilhena Vieira** ** Oscar Vilhena Vieira é Professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde coordena o Programa de Mestrado em Direito e Desenvolvimento, Professor licenciado da Faculdade de Direito da PUC/SP, diretor jurídico da organização não-governamental Conectas Direitos Humanos, mestre em direito (LLM) pela Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, Nova York, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, tendo realizado seus estudos de Pós-Doutoramento, no Center for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, onde foi Sergio Vieira de Mello Human Rights Fellow, em 2007.

Pós-Doutor pelo Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford. Professor e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito e Desenvolvimento da Direito GV

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Oscar Vilhena Vieira Rua Rocha, 233 - 11º andar Bela Vista - 01330-000 São Paulo - SP - Brasil oscar.vilhena@fgv.br

RESUMO

o STF está hoje no centro de nosso sistema político, fato que demonstra a fragilidade de nosso sistema representativo. tal tribunal vem exercendo, ainda que subsidiariamente, o papel de criador de regras, acumulando a autoridade de intérprete da constituição com o exercício de poder legislativo, tradicionalmente exercido por poderes representativos. Este texto mostra como o supremo, de fato, tem exercido tais funções pela análise de alguns de seus julgados mais recentes. Em seguida, propõe mecanismos capazes de lidar com as tensões produzidas pela supremocracia, sem caracterizá-la como algo necessariamente bom ou ruim, mas buscando compreender seu sentido e apontar para seus perigos.

Palavras-chave: sistema político; separação de poderes, representação, STF

ABSTRACT

The text shows how the fsc is located at the heart of our political system and warns of the dangers to democracy inherent in this stance. Such a danger lies in the fact that the aforementioned court is fulfilling, albeit in a subsidiary manner, the role of rule-maker, accumulating the authority of constitutional interpreter while retaining exercise of legislative power, which traditionally belonged to the representative powers. The text attempts to prove that the supreme court has carried out such functions within an analysis of some of its recently tried cases. It also suggests mechanisms capable of dealing with the tensions generated by supremocracy, without characterizing them as something good or bad for our political system.

Keywords: political system; separation of powers; representation; STF

"O Supremo Tribunal Federal está de vela na cúpula do estado"

Rui Barbosa

INTRODUÇÃO

Em 1968, Aliomar Baleeiro publicou "O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido". O título desta obra clássica de nosso direito constitucional não poderia estar em maior descompasso com a proeminência do Supremo Tribunal Federal no cenário político atual. Raros são os dias em que as decisões do Tribunal não se tornam manchete dos principais jornais brasileiros, seja no caderno de política, economia, legislação, polícia (e como!) e eventualmente nas páginas de ciências, educação e cultura.

Na academia, por sua vez, multiplica-se o número de trabalhos destinados a analisar os diversos aspectos da vida e da atuação do Supremo, seja nas faculdades de direito, seja nos programas de ciência política, sociologia, história, etc. O tema da interpretação constitucional que, no passado, ocupava um espaço residual na preocupação dos nossos constitucionalistas, passou a ser o principal foco de atenção de uma nova geração de juristas. Ponderação de valores, princípios ou moralidade, tornaram- se temas comuns aos estudos de direito constitucional1 1 Barroso (1994); Rothenburg (1999); Vieira (1999); Sarmento (2000); Binenbjom (2001); Barcellos (2002); Ávila (2003); Sarlet (2004); Silva (2004). : . Por outro lado, a ciência política, depois de longo período de desatenção em relação às instituições, despertou para a necessidade de compreender melhor o papel do direito e das agências responsáveis pela sua aplicação. Neste novo amanhecer da ciência política, com viés mais institucionalista, o Supremo tem se tornado objeto privilegiado de muitos autores.2 2 Vieira (1994a); Sadek (1995);Vianna (1999); Costa (2001); Almeida (2006); Mendes (2008). Até os economistas passaram a analisar as conseqüências, não raramente tomadas como externalidades pouco desejáveis, das decisões judiciais3 3 Arida; Bacha; Lara-Resende (2003); Pinheiro (2005). .

Surpreendente, no entanto, tem sido a atenção que os não especialistas têm dedicado ao Tribunal; a cada habeas corpus polêmico, o Supremo torna-se mais presente na vida das pessoas; a cada julgamento de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade, pelo plenário do Supremo, acompanhado por milhões de pessoas pela "TV Justiça" ou pela internet, um maior número de brasileiros vai se acostumando ao fato de que questões cruciais de natureza política, moral ou mesmo econômicas são decididas por um tribunal, composto por onze pessoas, para as quais jamais votaram e a partir de uma linguagem de difícil compreensão, para quem não é versado em direito.

Embora o Supremo tenha desempenhado posição relevante nos regimes constitucionais anteriores, com momentos de enorme fertilidade jurisprudencial e proeminência política, como na Primeira República4 4 Período brilhantemente capturado por Leda Boechat Rodrigues, precursora dos estudos sobre o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, publicou entre outros: História do Supremo Tribunal Federal, em quatro volumes, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira; Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1958; Direito e Política, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977. , ou ainda de grande coragem moral, como no início do período militar5 5 Ver Vieira (1994a). , não há como comparar a atual proeminência do Tribunal, com a sua atuação passada.

A expansão da autoridade do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais em geral não é, no entanto, um fenômeno estritamente brasileiro. Há, hoje, uma vasta literatura que busca compreender este fenômeno de avanço do direito em detrimento da política e conseqüente ampliação da esfera de autoridade dos tribunais em detrimento dos parlamentos.6 6 Tate;Vallinder (1995); Shapiro; Sweet (2002).

Para alguns analistas, o fortalecimento da autoridade dos tribunais tem sido uma conseqüência imediata da expansão do sistema de mercado, em plano global. Aos olhos dos investidores, os tribunais constituiriam um meio mais confiável para garantir a segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade do que legisladores democráticos, premidos por demandas "populistas" e necessariamente pouco eficientes, de uma perspectiva econômica.7 7 Esta é a tese central de Hirschal (2004); Cooter (1996) também apresenta o argumento sobre porque a democracia se torna uma ameaça à logica de mercado.

Uma segunda corrente enxerga a ampliação do papel do direito e do judiciário como uma decorrência da retração do sistema representativo e de sua incapacidade de cumprir as promessas de justiça e igualdade, inerentes ao ideal democrático e incorporadas nas constituições contemporâneas. Neste momento, recorre-se ao judiciário como guardião último dos ideais democráticos. O que gera, evidentemente, uma situação paradoxal, pois, ao buscar suprir as lacunas deixadas pelo sistema representativo, o judiciário apenas contribui para a ampliação da própria crise de autoridade da democracia. Este é o argumento fundamental do influente livro escrito por Antoine Garapon.8 8 Garapon (1996); ver também resenha do livro de Garapon realizada por Recoeur (2008).

Para muitos constitucionalistas, o deslocamento da autoridade do sistema representativo para o judiciário é, antes de tudo, uma conseqüência do avanço das constituições rígidas, dotadas de sistemas de controle de constitucionalidade, que tiveram origem nos Estados Unidos. Logo, não é um processo recente. Este processo de expansão da autoridade judicial, contudo, torna-se mais agudo com a adoção de constituições cada vez mais ambiciosas. Diferentemente das constituições liberais, que estabeleciam poucos direitos e privilegiavam o desenho de instituições políticas voltadas a permitir que cada geração pudesse fazer as suas próprias escolhas substantivas, por intermédio da lei e de políticas públicas, muitas constituições contemporâneas são desconfiadas do legislador, optando por sobre tudo decidir e deixando ao legislativo e ao executivo apenas a função de implementação da vontade constituinte, enquanto ao judiciário fica entregue a função última de guardião da constituição.9 9 Canotilho (2001). A hiper-constitucionalização da vida contemporânea, no entanto, é consequência da desconfiança na democracia e não a sua causa. Porém, uma vez realizada a opção institucional de ampliação do escopo das constituições e de reforço do papel do judiciário, como guardião dos compromissos constitucionais, isto evidentemente contribuirá para o amesquinhamento do sistema representativo.

Apenas como forma de ilustrar os argumentos acima, seria possível afirmar que a expansão da autoridade judicial começou a ser detectada, já no início do século passado, pelos realistas nos Estados Unidos10 10 Frank (1963). , a partir de uma série de decisões liberais da Suprema Corte, no que se convencionou chamar de era Lochner.11 11 Ver em especial voto do Justice Holmes em Lochner v. New York, 1905, pelo qual critica a maioria da corte por tomar uma posição ativista de proteção dos valores do liberalismo econômico. Nesse período, a Corte passou a tomar decisões que substituíam a vontade do legislador, por intermédio da doutrina do devido processo legal substantivo. Por essa doutrina, a Corte não apenas se limita a verificar a constitucionalidade formal de um ato normativo, mas também a sua razoabilidade face aos princípios da constituição. No caso Lochner, a Corte invalida legislação de cunho social, produzida pelo Estado de Nova York, em face de princípios implícitos pretensamente na Constituição.

Na Europa, onde por todo o século XIX, a doutrina do judicial review não encontrou eco, os tribunais apenas começaram a ocupar uma posição mais proeminente a partir da Segunda Guerra, em especial na Alemanha e na Itália. Como reação ao nazismo e ao fascismo e uma enorme desconfiança na democracia de massas12 12 Importante notar aqui a forte influência da ocupação americana na reconstitucionalização de países como a Alemanha e o Japão, ver Henkin (1994). , foram estabelecidas substantivas cartas de direitos e potentes tribunais constitucionais, rompendo com a velha tradição rousseauniana de soberania popular13 13 Cappelletti (1993). . Em alguma medida, a reconstitucionalização espanhola, no final da década de 1970, e a constitucionalização de diversos países da Europa oriental, após a queda do muro de Berlim, seguiram a mesma lógica.14 14 Schwartz (2000).

As constituições, em geral, buscam demarcar as diferenças entre o regime deposto e aquele por ela arquitetado. Esta lógica também esteve presente nas transições portuguesa, de 1976, brasileira, de 1988, sul-africana, de 1996, ou mesmo Indiana, de 1950, elaborada no contexto do processo de descolonização15 15 Ver Baxi (1980) e Sathe (2007). . Nestes casos, no entanto, havia uma ambição constitucional adicional. Estas constituições não representam apenas marcos de transição para a democracia, mas explicitamente foram incumbidas de liderar o processo de mudança social. Talvez o texto da Constituição Indiana e o texto original da Constituição portuguesa de 1976 sejam os mais ambiciosos neste aspecto. No caso português era missão constitucional levar a sociedade portuguesa ao socialismo.Também poderia ser inserido nesta onda de constitucionalismo socialmente transformador o texto colombiano de 1991. Uma das características marcantes destes novos regimes foi a institucionalização de robustas jurisdições constitucionais, voltadas a assegurar pactos de transição, plasmados em ambiciosos textos constitucionais.16 16 Gargarella (2006). Só que agora os juízes passariam a ter responsabilidades não apenas de legisladores negativos, na formulação de Kelsen, mas também por zelar pelo cumprimento das promessas positivas feitas pela Constituição17 17 Kelsen (2003). .

A hipótese fundamental deste texto é de que este perceptível processo de expansão da autoridade dos tribunais ao redor do mundo ganhou, no Brasil, contornos ainda mais acentuados.A enorme ambição do texto constitucional de 1988, somada à paulatina concentração de poderes na esfera de jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ocorrida ao longo dos últimos vinte anos, aponta para uma mudança no equilíbrio do sistema de separação de poderes no Brasil. O Supremo, que a partir de 1988, já havia passado a acumular as funções de tribunal constitucional, órgão de cúpula do poder judiciário e foro especializado, no contexto de uma Constituição normativamente ambiciosa, teve o seu papel político ainda mais reforçado pelas emendas de no. 3/93, e no. 45/05, bem como pelas leis no. 9.868/99 e no. 9.882/99, tornando-se uma instituição singular em termos comparativos, seja com sua própria história, seja com a história de cortes existentes em outras democracias, mesmo as mais proeminentes. Supremocracia é como denomino, de maneira certamente impressionista, esta singularidade do arranjo institucional brasileiro. Supremocracia tem aqui um duplo sentido.

Em um primeiro sentido, o termo supremocracia refere-se à autoridade do Supremo em relação às demais instâncias do judiciário. Criado há mais de um século (1891), o Supremo Tribunal Federal sempre teve uma enorme dificuldade em impor suas decisões, tomadas no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, sobre as instâncias judiciais inferiores. A falta de uma doutrina como a do stare decisis do common law, que vinculasse os demais membros do Poder Judiciário às decisões do Supremo, gerou uma persistente fragilidade de nossa Corte Suprema. Apenas em 2005, com a adoção de da súmula vinculante, completou-se um ciclo de concentração de poderes nas mãos do Supremo, voltado a sanar sua incapacidade de enquadrar juízes e tribunais resistentes às suas decisões. Assim, supremocracia diz respeito, em primeiro lugar, à autoridade recentemente adquirida pelo Supremo de governar jurisdicionalmente (rule) o Poder Judiciário no Brasil. Neste sentido, finalmente o Supremo Tribunal Federal tornou-se supremo. No caso específico, o "s" minúsculo do adjetivo vale mais que o "S" maiúsculo que convencionalmente reservamos aos órgãos máximos da República.

Em um segundo sentido, o termo supremocracia refere-se à expansão da autoridade do Supremo em detrimento dos demais poderes.A idéia de colocar uma corte no centro de nosso sistema político não é nova. Como lembra Leda Boechat Rodrigues, o próprio Pedro II, no final de seu reinado, indagava se a solução para os impasses institucionais do Império não estaria na substituição do Poder Moderador por uma Corte Suprema como a de Washington. A epígrafe deste texto, escrita por Rui Barbosa, em 1914, também advoga por uma centralidade política do Supremo, como um órgão de conciliação entre os poderes. A história institucional da República, no entanto, seguiu rumos mais acidentados. O papel de árbitro último dos grandes conflitos institucionais que, no Império, coube ao Poder Moderador, foi exercido, sobretudo, pelo Exército, como reivindica Alfred Stepan, e apenas subsidiariamente pelo Supremo, como propõem José Reinaldo Lima Lopes e eu mesmo.18 18 Lopes (2006, p. 30);Vieira (1994a, conclusão). Foi apenas com a Constituição de 1988 que o Supremo deslocou-se para o centro de nosso arranjo político. Esta posição institucional vem sendo paulatinamente ocupada de forma substantiva, em face a enorme tarefa de guardar tão extensa constituição. A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição constitucional tem levado o Supremo não apenas a exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos órgãos representativos, outras vezes substituindo as escolhas majoritárias. Se esta é uma atribuição comum a outros tribunais constitucionais ao redor do mundo, a distinção do Supremo é de escala e de natureza. Escala pela quantidade de temas que, no Brasil, têm natureza constitucional e são reconhecidas pela doutrina como passíveis de judicialização; de natureza, pelo fato de não haver qualquer obstáculo para que o Supremo aprecie atos do poder constituinte reformador. Neste sentido, a Suprema Corte indiana talvez seja a única que partilhe o status supremocrático do Tribunal brasileiro, muito embora tenha deixado para trás uma posição mais ativista.

No exercício destas funções que lhe vem sendo atribuídas pelos distintos textos constitucionais ao longo da história republicana, ousaria dizer, emprestando a linguagem de Garapon, que, nos últimos anos, o Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão de "proteção de regras" constitucionais, face aos potenciais ataques do sistema político, como também vem exercendo, ainda que subsidiariamente, a função de "criação de regras"19 19 Garapon (1996). ; logo, o Supremo estaria acumulando exercício de autoridade, inerente a qualquer interprete constitucional20 20 O Tribunal estaria em algumas circunstâncias indo além do papel construtivo inerente a interpretação de cláusulas abertas do texto constitucional, como reconhecido por Doworkin (1985). , com exercício de poder. Esta última atribuição, dentro de um sistema democrático, deveria ficar reservada a órgãos representativos, pois quem exerce poder em uma república deve sempre estar submetido a controles de natureza democrática21 21 Dahl (1989, pp. 65 et seq.). .

Neste sentido, é sintomático que um dos mais astutos representantes da classe política brasileira, que já exerceu as funções de Presidente da República e Presidente do Senado, sobrevivendo a todas as mudanças de nosso sistema político nos últimos cinqüenta anos, tenha afirmado recentemente que "nenhuma instituição é mais importante e necessária ao Brasil do que o STF"22 22 Sarney (2008). , em uma espécie de substabelecimento, por insuficiência, dos poderes inerentes ao sistema político brasileiro para o Supremo Tribunal Federal. No mesmo sentido, é emblemática a resposta do Presidente Lula, que, quando indagado sobre a lei de anistia, teria dito: "este é um problema da justiça".

Nas páginas seguintes, pretendo, em primeiro lugar, discutir as razões de ordem institucional que, a meu ver, têm favorecido a expansão dos poderes do Supremo no sistema político brasileiro. Em seguida, buscarei apresentar alguns indícios de que o Supremo vem, de fato, por intermédio de suas decisões, exercendo ativamente as funções que lhe foram atribuídas. Por fim, a título de conclusão, buscarei lançar algumas idéias práticas que, a meu ver, poderiam contribuir para a redução das tensões geradas pela supremocracia. Desnecessário dizer que este ensaio tem por objetivo essencial provocar o debate.

1 A CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL DA SUPREMOCRACIA

Múltiplas são as razões de ordem política e histórica que levaram o constituinte de 1987/8 a optar pela elaboração de uma constituição tão ampla, minudente, ambiciosa, ou ubíqua, na precisa definição de Daniel Sarmento.23 23 Sarmento (2006). Irei, aqui, apenas analisar qual o impacto de algumas destas escolhas institucionais sobre a atuação do Supremo.

1.1 A AMBIÇÃO CONSTITUCIONAL

A primeira destas decisões diz respeito ao próprio ethos ambicioso da Constituição de 1988 que, segundo Seabra Fagundes, corretamente desconfiada do legislador, deveria sobre tudo legislar. Assim, a Constituição transcendeu os temas propriamente constitucionais e regulamentou pormenorizada e obsessivamente24 24 Empresto a expressão "obsessão regulatória" do Professor Humberto Ávila, que a empregou no Colóquio Vinte anos da Constituição, realizado em Petrópolis, entre os dias 14 de 17 de Agosto. um amplo campo das relações sociais, econômicas e públicas, em uma espécie de compromisso maximizador25 25 Vieira (1999). . Este processo, chamado por muitos colegas de constitucionalização do direito26 26 Ver em especial Virgílio Afonso da Silva e Gustavo Binenbojm. , liderado pelo Texto de 1988, criou, no entanto, uma enorme esfera de tensão constitucional e, conseqüentemente, gerou uma explosão da litigiosidade constitucional. A equação é simples: se tudo é matéria constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político é muito pequeno. Qualquer movimento mais brusco dos administradores ou dos legisladores gera um incidente de inconstitucionalidade, que, por regra, deságua no Supremo. Os dados são eloqüentes. Em 1940, o Supremo recebeu 2.419 processos; este número chegará a 6.376 em 1970. Com a adoção da Constituição de 1988, saltamos para 18.564 processos recebidos em 1990, 105.307 em 2000 e 160.453 em 2002, ano em que o Supremo recebeu o maior número de processos em toda sua história. Em 2007, foram 119.324 processos recebidos. Este crescimento é resultado imediato da ampliação de temas entrincheirados na Constituição, mas também de um defeito congênito do sistema recursal brasileiro, que até a Emenda 45 encontrava-se destituído de mecanismo que conferisse discricionariedade ao Tribunal para escolher os casos que quisesse julgar, bem como de mecanismo eficiente pelo qual pudesse impor suas decisões às demais esferas do judiciário.

1.2 COMPETÊNCIAS SUPERLATIVAS

A segunda razão que pode nos ajudar a compreender a expansão de autoridade do Supremo refere-se a sua própria arquitetura institucional. A Constituição de 1988, mais uma vez preocupada em preservar a sua obra contra os ataques do corpo político, conferiu ao Supremo Tribunal Federal amplos poderes de guardião constitucional. Ao Supremo Tribunal Federal foram atribuídas funções que, na maioria das democracias contemporâneas, estão divididas em pelo menos três tipos de instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados (ou simplesmente competências difusas pelo sistema judiciário) e tribunais de recursos de última instância.

Na função de tribunal constitucional, o Supremo tem por obrigação julgar, por via de ação direta, a constitucionalidade de leis e atos normativos produzidos tanto em âmbito federal, como estadual. Deve-se destacar, no caso brasileiro, a competência para apreciar a constitucionalidade de emendas à Constituição, quando estas ameaçarem a integridade do amplo rol de cláusulas pétreas, estabelecido por força do artigo 60, § 4º, da Constituição. Esta atribuição conferiu ao Supremo a autoridade para emitir a última palavra sobre temas constitucionais em nosso sistema político, reduzindo a possibilidade de que o Tribunal venha a ser circundado pelo Congresso Nacional, caso este discorde de um dos seus julgados, como acontece em muitos países. Também foi atribuída ao Tribunal a competência para julgar as omissões inconstitucionais do legislador e do executivo, e, por meio do mandado de injunção, de assegurar imediata e direta implementação de direitos fundamentais.

A politização desta esfera de jurisdição do Tribunal foi expandida em relação ao período constitucional anterior, na medida em que a legitimidade para a proposição de ações diretas foi conferida a novos atores políticos e sociais, conforme disposto pelo artigo 103 da Constituição Federal27 27 Para uma análise pormenorizada das conseqüências da expansão dos atores legitimados a propor ações diretas de inconstitucionalidade ver Vianna et alli (1999). , superando a fase em que as chaves de acesso ao controle direto de constitucionalidade pelo Supremo só eram conferidas ao Procurador Geral da República. Essa abertura do Supremo a outros atores políticos tem transformado o Tribunal, em muitas circunstâncias, em uma câmara de revisão de decisões majoritárias, a partir da reclamação daqueles que foram derrotados na arena representativa. Neste aspecto, é curioso notar que o partido político que mais trazia casos ao Supremo no período Fernando Henrique Cardoso era o Partido dos Trabalhadores (PT) e, agora, na gestão Lula, o Partido dos Democratas (DEM) passou a ocupar a primeira posição entre os usuários do Tribunal, seguido de perto pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Da mesma forma, os governadores de Estado se apresentam de forma extremamente ativa no emprego do Supremo, como uma segunda arena política, em que buscam bloquear medidas aprovadas pelos seus antecessores, bem como pelas respectivas Assembléias Legislativas Estaduais.

Outro evento de extrema importância na valorização da jurisdição do Tribunal, enquanto arena de embate político, foi o estabelecimento da possibilidade de que organizações da sociedade civil e outros grupos de interesse pudessem interpor amici curiae em casos de interesses supra-individuais. Como bem demonstra Eloísa Machado, em sua precisa dissertação de mestrado, o legislador ordinário contribuiu para "democratizar" o acesso ao Supremo28 28 Almeida (2006). . Com isso, novas vozes passaram a ecoar no Tribunal, aumentando seu caráter pluralista, bem como sua voltagem política, enquanto palco de solução de conflitos anteriormente mediados pelo corpo político. Somado a isso, surgiram as audiências públicas, em casos de grande relevância, que trazem ao Tribunal especialistas, militantes e acadêmicos, que não se reportam ao Tribunal em termos necessariamente jurídicos, mas, sim, técnico-políticos, agregando uma enorme quantidade de argumentos consequencialistas ao processo decisório do Tribunal. Os casos das células-tronco e dos anencéfalos são uma demonstração do potencial politizador deste mecanismo. Essas novidades certamente ampliaram o acesso ao Tribunal, mas também expõem sua autoridade mais diretamente.

A Constituição de 1988 conferiu também ao Supremo a espinhosa missão de foro especializado. Em primeiro lugar, cumpre-lhe julgar criminalmente altas autoridades. Em conseqüência da excêntrica taxa de criminalidade no escalão superior de nossa República, o Supremo passou a agir como juízo de primeira instância, como vimos no caso da recém aceitação da denúncia contra os mensaleiros. Só para ter uma dimensão do problema, há mais de 250 denúncias contra parlamentares aguardando manifestação do Supremo. O Tribunal não está equipado para analisar pormenorizadamente fatos e, mesmo que ampliasse sua capacidade institucional para fazê-lo, seu escasso tempo seria consumido em intermináveis instruções criminais, desviando-o de suas responsabilidades mais propriamente constitucionais.

A segunda pedra no caminho do Supremo é ter que apreciar originariamente atos secundários do parlamento ou do executivo, muitas vezes diretamente ligados à governância interna destes dois poderes. Pior ocorre quando é instado a resolver tais contendas em caráter emergencial, como no caso da sessão secreta do Senado Federal, voltada a apreciar a cassação do mandato do Senador Renan Calheiros29 29 RENAN (2007). . O Supremo serve, nessas circunstâncias, como um tribunal de pequenas causas políticas. Desconheço outro tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar quizílias, que os parlamentares não são capazes de resolver por si mesmos. O mesmo acontece em relação à impugnação, por via de mandado de segurança, de atos muitas vezes banais do Presidente da República, como demissão de um servidor público. A sua competência de foro especializado tem um enorme custo gerencial, bem como pode gerar um desgaste de sua autoridade, por excesso de envolvimento em questões que poderiam e deveriam estar sendo resolvidas em outros âmbitos. Por outro lado, é inadmissível que um tribunal supremo se veja obrigado a julgar originariamente processos de extradição, homologação de sentenças estrangeira, um enorme número de habeas corpus, mandados de segurança e outras ações cíveis em face do status do réu. Na linguagem da imprensa, parte dessas atribuições transformou o Supremo em um foro privilegiado.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal serve como tribunal de apelação ou última instância judicial, revisando centenas de milhares de casos resolvidos pelos tribunais inferiores todos os anos, o que se explica pela coexistência de um sistema difuso de controle de constitucionalidade e um sistema concentrado de controle de constitucionalidade, na ausência de uma cultura jurídica que valorize o caráter vinculante das decisões judiciais, inclusive aquelas proferidas por tribunais superiores. De 1988 para cá, foram mais de um milhão de recursos extraordinários e agravos de instrumento apreciados por onze juízes, o que significa 95,10% dos casos distribuídos e 94,13% dos casos julgados pelo Tribunal.30 30 Veríssimo (2008). Isto sem falar nos milhares de habeas corpus, muitos deles com arriscada supressão de instâncias, pedidos de extradição e outros processos que chegam ao protocolo do Tribunal todos os dias. Além de desumano com os ministros, é absolutamente irracional fazer com que milhões de jurisdicionados fiquem aguardando uma decisão do Tribunal, enquanto seus devedores se beneficiam da demora na solução desses casos. Desnecessário dizer que o maior beneficiário deste sistema irracional é o próprio Estado brasileiro. Importante destacar aqui, no entanto, que estes números absurdos, que normalmente causam certo aperreio cognitivo aos analistas estrangeiros, não retratam a verdadeira rotina do Tribunal. O fato de que as tabelas encontradas no sitio do Supremo demonstrem que o Tribunal julga mais de cem mil casos por ano, em média, não significa que a Corte efetivamente aprecie tantos casos. Como demonstra Marcos Paulo Veríssimo, em refinada análise publicada neste número da Revista DIREITO GV, a somatória das decisões tomadas pelas duas turmas, mais as decisões proferidas em plenário, pouco ultrapassam a 10% do total de casos julgados pelo Supremo, sendo que os casos julgados pelo plenário do Tribunal, em 2006, consistem em apenas 0,5% do total de casos julgados, ou seja: 565 casos. A imensa maioria dos casos, portanto, refere-se a decisões monocráticas, em que o "relator tem poderes conferidos pela lei para julgar o mérito ou as condições de admissibilidade da ação ou do recurso, ordinário ou extraordinário".31 31 Idem. O mesmo autor conclui que, por trás destas decisões monocráticas, pode estar escondida uma "espécie de certiorary informal". Isto apenas demonstra que o Tribunal vem utilizando um alto grau de discricionariedade para decidir o que vai para os distintos colegiados e o que pode ser abatido monocraticamente. Em política, o controle sobre a agenda temática, bem como sobre a agenda temporal, tem um enorme significado; e este poder se encontra nas mãos de cada um dos ministros, decidindo monocraticamente. Esse poder e os critérios para a sua utilização, como não são expressos, fogem a possíveis tentativa de compreensão, quanto mais de controles públicos sobre essa atividade. Cria-se, assim, uma sensação de enorme seletividade em relação aquilo que entra e o que fica de fora da pauta do Tribunal.

A inclusão da argüição de repercussão geral, pela qual o Supremo poderá de iure, e não apenas de facto, exercer sua discricionariedade, barrando a subida de milhares de processos todos os anos, e da súmula vinculante, que reforça a sua autoridade, permitindo a imposição erga omnes de suas decisões, foi uma reação à enorme fragmentação de nosso sistema de controle de constitucionalidade. Essas ferramentas, por sua vez, concentraram ainda mais poderes nas mãos do Supremo, como já foi possível verificar pela edição de súmula vinculante regulamentando emprego das algemas, a partir de uma pequena série de casos individuais, entre os quais a exposição pública de banqueiros e políticos algemados antes do julgamento. O risco aqui é o tribunal ver-se obrigado a se transformar em xerife de suas próprias decisões.

2 EXEMPLOS DE ATUAÇÃO SUPREMOCRÁTICAS

Tem se avolumado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal os sinais de que o Tribunal, respondendo aos incentivos institucionais acima descritos, subiu uma nota na escala de poder de nosso sistema político. A primeira evidência disso é o impressionante número de casos de máxima relevância presentes na agenda do Supremo. Após uma breve enumeração desses casos, concentrarei minha atenção em algumas decisões que podem nos ajudar a compreender de que forma os próprios ministros do Supremo estão metabolizando a ampliação dos poderes do Tribunal. Em primeiro lugar, será analisado o caso das células-tronco, ADI 3.510-0, emblemático da atual etapa de expansão da autoridade do Supremo Tribunal Federal, como arena de discussão pública de temas de natureza político moral.32 32 Os casos do ProUni, relativo a ação afirmativa, Raposa Serra do Sol, referente à demarcação de terras indígenas ou aborto de fetos anencéfalus também se encontram nesta esfera da jurisdição do Supremo, que se coloca como arena de discussão pública, que se substitui ao parlamento/executivo na adoção da última palavra em temas de alta relevância político-moral. Em um segundo momento, a partir da análise do caso da fidelidade partidária, Mandado de Segurança n. 26.603/DF, e dos crimes hediondos, Reclamação 4.335-5/Acre, buscarei demonstrar como o Supremo vem expandido sua atividade legiferante, com ênfase naquela de impacto constitucional, ou seja, passando do campo do exercício da autoridade para o exercício do poder.

2.1 UMA AGENDA DESAFIADORA

Muitos poderiam ser os exemplos da expansão da autoridade do Supremo nestes últimos vinte anos. Afinal, é difícil pensar um tema relevante da vida política contemporânea que não tenha reclamado ou venha a exigir a intervenção do Supremo Tribunal Federal.

No campo dos direito fundamentais, já foram decididas, ou encontram-se na agenda do Tribunal, questões como: pesquisa com células-tronco, quotas nas universidades, desarmamento, aborto (anencéfalos), demarcação de terras indígenas, reforma agrária, distribuição de medicamentos, lei de imprensa, lei de crimes hediondos, poder da polícia de algemar, direito de greve, etc.

Na esfera da representação política, temas como sub-representação na Câmara dos Deputados, cláusula de barreira, fidelidade partidária, número de vereadores nas Câmaras Municipais, vêm fazendo do Tribunal um co-autor do constituinte originário na arquitetura da representação política brasileira.

No âmbito da delimitação de atribuições das demais esferas do Estado, vem discutindo questões como: restrição à atuação das CPIs; limitação do poder de edição de medidas provisórias pelo Presidente da República; restrição aos poderes de investigação do Ministério Público; garantia dos direitos das minorias parlamentares em face das mesas da Câmara e do Senado; delimitação do campo de autonomia das agências reguladoras; aferição da legitimidade da instituição de controle externo da magistratura; a restrição às sessões secretas do Senado, entre outras questões quentes.

Com direto impacto sobre o balanço federativo e também sobre a economia, o Tribunal vê na sua agenda assuntos como guerra fiscal, Cofins e FGTS, além de toda uma linha de decisões relativas aos ajustes econômicos, que marcaram a vida brasileira até o plano real.

Tudo isto sem falar em milhares de habeas corpus, mandados de segurança, alguns de altíssima voltagem política e muitos milhares de recursos extraordinários, que demandam do Supremo decidir sobre uma infinidade de temas constitucionais mais ou menos relevantes. Na esfera político-criminal, por exemplo, temos assistido o julgamento de altas autoridades, como o ex-presidente Collor e os integrantes do escândalo do mensalão.

O Supremo, por outro lado, também não viu nenhuma dificuldade em discutir a validade de emendas à Constituição, como nas reformas administrativa, previdenciária e do próprio judiciário, chegando, sem qualquer hesitação, a declarar algumas emendas contrárias às cláusulas pétreas, como no caso da extinta CPMF.

Em resumo, tudo no Brasil parece exigir uma "última palavra"33 33 Ver Vieira (1994b). Para uma contestação da tese da última palavra ver excelente trabalho de Conrado Hubner, por ocasião de sua tese de Doutoramento na FFLCH-USP, 2008. do Supremo Tribunal Federal.

2.2 A NOVA ÁGORA: O EXEMPLO DO DEBATE EM TORNO DA PESQUISA COM CÉLULAS-TRONCO

O julgamento da lei de biossegurança, que autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias congeladas, é significativo deste novo patamar de visibilidade pública que vem sendo alcançado pelo Supremo. Para além da própria importância do tema, que tinha como pano de fundo a questão sobre a proteção jurídico-constitucional das etapas de desenvolvimento da vida34 34 De acordo com o Ministro Celso de Mello este seria o mais importante julgamento da história do Supremo Tribunal Federal , da vasta cobertura da mídia e da intensa romaria de diversos grupos contrários e favoráveis à liberação da pesquisa com células-tronco para apresentar seus argumentos aos membros do Tribunal, quatro fatos parecem indicar que o Supremo passou a ocupar um novo papel no sistema político brasileiro.

O primeiro fato a ser destacado aqui se refere à naturalidade com que o Supremo se colocou para avaliar a escolha política substantiva, no caso, com ampla repercussão moral, previamente realizada pelo legislador ordinário. Esta questão foi suscitada da tribuna, de forma expressa, por Luiz Roberto Barroso, advogado em um dos amici. Para o ilustre professor, o Tribunal deveria levar em consideração o fato de que a lei havia sido aprovada por uma esmagadora maioria do Congresso Nacional, após um amplo processo de consultas e debates, inclusive com a realização de audiências públicas, em que foram ouvidas as diversas posições da sociedade brasileira. Não havendo inconstitucionalidade flagrante, mas apenas ponderação legislativa legítima, o Tribunal deveria abster-se de substituir a decisão do legislador pela sua. Antes de iniciar o seu voto, a Ministra Carmem Lúcia afastou com veemência este argumento, sendo explicitamente acompanhada pelo Ministro Marco Aurélio. Logo, não se abriu qualquer espaço para uma discussão sobre deferência, muito comum em outros tribunais constitucionais ao redor do mundo. Entendida por deferência a postura respeitosa que muitos tribunais demonstram em relação ao legislador, democraticamente eleito. O que não significa omissão, mas, sim, o estabelecimento de claros parâmetros de separação de poderes, em que o judiciário sabe que a ele não foi conferido um poder de inovar na ordem jurídica. Embora o Supremo tenha desde muito cedo em sua história tido uma postura de se permitir substituir decisões do legislador35 35 Barbosa (1999, p. 179). , especialmente quando estas afrontam direitos, o fato é que não costumava eliminar de forma tão radical argumentos que tomassem em consideração a necessidade de uma conduta deferente. O que ficou claro é que o Supremo não se vê apenas como uma instituição que pode vetar decisões parlamentares claramente inconstitucionais, mas que pode comparar a qualidade constitucional das decisões parlamentares com as soluções que a própria Corte venha a imaginar, substituindo as decisões do parlamento caso entenda que as suas são melhores.

O segundo ponto emblemático que se pode destacar no processo de julgamento da constitucionalidade da lei de biossegurança refere-se à importância que os amici curiae passaram a ter na condução dos debates no Supremo. A presença de organizações da sociedade civil, expressando a polaridade de opiniões difusas entre os diversos segmentos da sociedade brasileira definitivamente politizou o debate jurídico levado a cabo na Corte. Mais do que isso, a liberalidade na aceitação dos amici por parte dos Ministros indica que o Supremo está voluntariamente se democratizando e conseqüentemente abrindo-se de forma mais clara para a política. Ao permitir que organizações da sociedade civil, possam, a um custo organizacional e político muito menor, lutar pelos valores que defendem no âmbito do Supremo, cria-se uma nova arena discursiva e de decisão político-jurídica. Desta forma, o Supremo, os atores da sociedade civil e as regras de interpretação constitucional passam a funcionar, em algumas situações, como substitutos do parlamento, dos partidos políticos e da regra da maioria.36 36 Para este câmbio de legitimidade, ver Offe; Preuss (1990).

Um terceiro aspecto do julgamento que parece relevante refere-se à convocação da primeira audiência pública, a pedido de uma das organizações da sociedade civil, para a oitiva de cientistas. Por mais técnica que tenha sido a audiência, controlada rigorosamente pelo Ministro Carlos Brito, relator do processo, as audiências públicas impõem ao Supremo debruçar-se sobre argumentos que não são de natureza estritamente jurídicas. Um dos reflexos disso durante o julgamento da lei de biossegurança foi que alguns dos Ministros empenharam-se mais em disputar a qualidade dos argumentos científicos e de "seus cientistas" do que propriamente esgrimar argumentos de natureza constitucional, sobre a vida extra-uterina. No voto do Ministro Carlos Alberto Direito, mais páginas foram utilizadas para discutir filosofia, religião e especialmente ciência do que propriamente direito constitucional.

Esta abertura à sociedade civil, bem como uma deliberada exposição a discursos de natureza científica, religiosa, econômica, etc., não podem ser vistos como algo necessariamente negativo. Ao contrário, demonstram a necessidade do Supremo em buscar ampliar a sua base de legitimidade, em face dos desafios de tomar decisões com impacto fortemente político, como foi exposto pelo próprio Ministro Carlos Aires Brito, ao abrir a primeira audiência pública da história do Supremo. Este passo, no entanto, demanda que o Tribunal tenha clareza de seus novos desafios. Uma corte ativista, com enorme exposição pública e responsabilidade por tomar decisões de grande magnitude, fica submetida a distintos padrões de escrutínio, que já vêm expondo suas tensões internas e potenciais fragilidades. Ao tomar decisões de natureza política, e não apenas exercer a autoridade de preservar regras, o Supremo passará a ser cobrado pelas conseqüências de seus atos, sem que haja mecanismos institucionais para que essas cobranças sejam feitas.

O último aspecto deste julgamento a ser destacado pode não parecer diretamente associado à questão da superexposição do Tribunal, mas, a meu ver, está a esta conectada. Uma das maiores idiossincrasias deste julgamento foi o fato de que a minoria no plenário, já derrotada por aqueles que entendiam que a lei era constitucional em sua totalidade, obstinadamente buscou que fossem incluídas na sentença medidas de caráter legislativo, que restringiriam enormemente a eficácia da legislação. Conforme proposição dos Ministros Carlos Alberto Direito e Antonio Carlos Peluso, invocando a doutrina da interpretação conforme a constituição, propunham a criação de mecanismos mais rigorosos para a fiscalização das pesquisas com células-tronco.As proposições de cunho legislativo que se buscava inserir na decisão, barradas energeticamente pelos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, sugerem duas coisas: em primeiro lugar, uma óbvia ambição legislativa, por parte da minoria; em segundo lugar, uma exploração da tele-audiência como espaço para realização de um discurso, que apenas poderia ter conseqüências políticas, posto que a sorte jurídica do caso já se encontrava selada. O fato de que o Supremo delibera em público, com televisionamento de suas audiências, também diferencia o Tribunal da quase totalidade das cortes constitucionais ao redor do mundo. Até o presente momento, não surgiu, salvo melhor juízo, nenhum estudo buscando compreender o impacto da publicidade sobre a atuação dos Ministros.

2.3 DE LEGISLADOR NEGATIVO A PODER CONSTITUINTE REFORMADOR

Além da proeminência do Supremo, enquanto arena de deliberação pública, é importante buscar demonstrar o quanto o Supremo tem se afastado do modelo tradicional de legislador negativo, imaginado por Kelsen, quando justificou a necessidade de cortes constitucionais no continente europeu, nas primeiras décadas do Século XX.37 37 Kelsen (2003). Gostaria de destacar aqui dois casos que demonstram que o Supremo vem não apenas conferindo efeito legiferante a algumas de suas decisões, mas que esta atuação legislativa eventualmente tem hierarquia constitucional. Tanto no caso da fidelidade partidária, MS 26.603/DF, como no caso da Reclamação 4.335-5/Acre, referente à constitucionalidade da lei de crimes hediondos, o Supremo parece ter dado um passo na direção do exercício do poder constituinte reformador. Comecemos pelo caso da fidelidade partidária.

A ampla liberdade para a formação de partidos conjugada com a representação proporcional, que inspira a eleição para a Câmara dos Deputados, gerou uma grande proliferação de partidos políticos no Brasil. Atualmente, são vinte e nove os partidos devidamente registrados no Tribunal Superior Eleitoral. A falta de regras específicas ou de uma cultura política relativa à fidelidade partidária, por sua vez, permite uma intensa mobilidade de parlamentares, que ficam livres para aderir à base de sustentação do governo, após terem sido eleitos por partidos de oposição. Como reação a essas características do sistema representativo brasileiro, muitas vezes responsabilizadas pela fragilização da representação parlamentar, o parlamento e o próprio judiciário vêm tomando decisões voltadas a reorientar o sistema representativo. Comentarei abaixo apenas a decisão tomada no MS 26.603/DF que cuida da questão da perda de mandato por infidelidade partidária, deixando para outra ocasião a análise dos casos da verticalização das coligações partidárias e das cláusulas de barreira.

O Superior Tribunal Eleitoral, respondendo à Consulta 1398, que lhe foi formulada pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), reconheceu que os partidos e coligações partidárias têm o direito de manter as cadeiras parlamentares que tenham obtido no processo eleitoral, decorrente de eleição pelo sistema proporcional, quando o deputado, após o pleito, decide mudar de agremiação política. A decisão do TSE, no entanto, não foi acatada pela Presidência da Câmara dos Deputados, motivando o acima mencionado mandado de segurança, impetrado pelo PSDB. A discussão de fundo refere-se à possibilidade de o Tribunal Superior Eleitoral interpretar a Constituição, de forma a determinar a perda de mandado por parte daquele deputado que, injustificadamente, muda de partido, após o pleito eleitoral, devendo a vaga no parlamento ser preenchida por suplente que se encontra na lista do partido ou coligação de origem.

Não entrarei aqui no mérito político da decisão. Se esta beneficiou ou não a organização do sistema político-partidário brasileiro. Mas apenas destacar o fato jurídico de que a decisão dos tribunais (TSE e STF) criou uma nova categoria de perda de mandado parlamentar, distinta daquelas hipóteses previstas no artigo 55, da Constituição Federal, que, como o próprio Ministro Celso de Mello reconheceu, constituem "numerus clausus". O fato de se estar estabelecendo mais uma hipótese de perda de mandado parlamentar, evidentemente, cria um problema institucional sério: a decisão tomada pelos dois tribunais é decorrência de um processo de interpretação constitucional ou tem ela caráter legislativo (no caso específico: de natureza constitucional)? O próprio Ministro Celso de Mello enfrentou esta questão ao dizer que a Constituição conferiu ao Supremo "o monopólio da última palavra em temas de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental", o que pode ser interpretado como uma leitura fiel do artigo 102 da Constituição. O ministro, no entanto, foi além ao adotar em seu voto as seguintes palavras de Francisco Campos: "A Constituição está em elaboração permanente nos tribunais incumbidos de aplicá-la [...]. Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituição, funciona, igualmente, o poder constituinte".38 38 MS 26.603/DF, voto do Ministro Celso de Mello, p50; agradeço ao meu querido amigo Daniel Sarmento por ter me chamado a atenção para esta passagem. Este certamente é um passo muito grande, no sentido de conferir poderes legislativos, eventualmente de reforma constitucional, ao Tribunal.

No julgamento da Reclamação 4.335-5/Acre, relatado pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, o Supremo Tribunal Federal deixou mais uma vez claro que no processo de interpretação e aplicação da Constituição o seu conteúdo, e eventualmente a sua letra, pode sofrer alterações.

Depois de muitos anos sustentando a constitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos, o Supremo Tribunal Federal, em decisão relatada pelo Ministro Marco Aurélio, no HC 82.956, afastou a incidência do artigo que vedava a progressão de regime aos que houvessem sido condenados pela lei de crimes hediondos, por entender que esta regra violava o princípio da dignidade humana e da individualização da pena.

Com base nesta decisão do Supremo Tribunal Federal, inúmeros condenados, com base na Lei de Crimes Hediondos, solicitaram a progressão de regime. O juiz da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco entendeu, no entanto, que não deveria autorizar a progressão de regime, pois o referido HC produziu efeitos apenas 'inter partes'. Neste sentido, aplicou o disposto no artigo 52, X, da Constituição Federal, ao determinar que "compete privativamente ao Senado Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal". Logo, enquanto o Senado não suspendesse a execução da lei, o juiz de primeira instância não estaria obrigado a submeter-se a decisão do Supremo Tribunal Federal. Fez inclusive que essa informação fosse afixada em diversos pontos do Fórum de Rio Branco.

Contra a denegação do pedido de progressão insurgem-se inúmeros condenados, vindo o Supremo a apreciar a Reclamação 4335. Após uma detalhada e sofisticada argumentação, o Ministro relator buscou demonstrar que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade vem passando por um longo processo de mutação, marcado pela ampliação da importância do sistema de controle concentrado em detrimento do controle difuso. Neste sentido, especialmente após a introdução do efeito vinculante em nosso sistema jurídico, a regra do artigo 52, X, ficou destituída de maior significado prático, tendo, portanto, ocorrido "uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto".39 39 Reclamação 4335-5/Acre, voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, p. 52. Esta mutação, evidentemente, consubstancia-se em novo direito constitucional, na medida em que é avalizada pelo Supremo Tribunal Federal.

É evidente aqui que a referida mutação afetou, ainda que minimamente, a relação entre os poderes, suprimindo uma competência privativa do Senado Federal e transferindo-a para o próprio Supremo Tribunal Federal. Não se trata, assim, de qualquer mudança constitucional, mas, sim, de uma alteração de dispositivo, a princípio, protegido pelo artigo 60, § 4º., inciso III, da Constituição Federal. Isso, evidentemente, se levarmos em consideração os precedentes do Supremo Tribunal Federal ao julgar casos de ofensa às cláusulas pétreas. Basta lembrar o caso da CPMF, em que o Supremo julgou inconstitucional a incidência do imposto sobre Estados e municípios, baseado no princípio da imunidade recíproca, por entender que era uma parte fundamental do princípio federativo.

Independentemente de nossa posição sobre o acerto ou erro do Supremo Tribunal Federal no julgamento desses casos, o que parece claro é que o Tribunal passou a se enxergar como dotado de poder constituinte reformador, ainda que a promoção das mudanças constitucionais não se dê com a alteração explícita do texto da Constituição.

CONCLUSÃO

Difícil julgar se o fenômeno da supremocracia é positivo ou negativo, ainda mais quando o discutimos no contexto de inúmeras decisões importantíssimas do Supremo. Busquei, neste ensaio, concentrar a análise apenas sobre o aspecto institucional destas decisões, não discutindo o mérito das mesmas. Em um curto ensaio como este, meu objetivo foi apenas chamar atenção para o processo de expansão dos poderes do Supremo. O ponto aqui não é, portanto, avaliar se as decisões tem sido progressistas ou não, mas, sim, verificar a posição que vem ocupando o Supremo em nosso sistema político.

Sob esta perspectiva, seria adequado afirmar que, se, por um lado, a liberdade com que o Supremo vem resolvendo sobre matérias tão relevantes demonstra a grande fortaleza que esta instituição adquiriu nas duas últimas décadas, contribuindo para o fortalecimento do Estado de Direito e do próprio constitucionalismo, por outro, é sintoma da fragilidade do sistema representativo em responder as expectativas sobre ele colocadas40 40 Neste ponto poderia ser contestado por Figueiredo e Limongi (1999), ao buscarem desmistificar a idéia de que o sistema representativo não tem sido capaz de corresponder às suas atribuições. . Em um sistema em que os "poderes políticos parecem ter perdido a cerimônia com a Constituição"41 41 Entrevista a mim concedida, por ocasião da reedição de Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política, 1997. , nada pode parecer mais positivo do que o seu legítimo guardião exercer a sua função precípua de preservá-la. Porém, ainda que isso possa a ser visto como desejável, sabemos todos que esta é uma tarefa cheia de percalços. Não há consenso entre os juristas sobre como melhor interpretar a Constituição, nem tampouco em como solucionar as inúmeras colisões entre seus princípios. O que não significa que a tarefa não deva ser feita da forma mais racional e controlável possível, como nos sugere Hesse42 42 Konrad Hesse, Escritos de Derecho Constitucional, Centro de Estúdios Constitucionales, Madri, 1983. . Há, no entanto, dificuldades que transcendem os problemas estritamente hermenêuticos derivados da aplicação de uma Constituição. Estas dificuldades referem-se à própria dimensão da autoridade que se entende adequada a ser exercida por um tribunal dentro de um regime que se pretenda democrático. Como aponta o próprio Ministro Celso de Mello, em uma república, nenhuma esfera de poder pode ficar imune a controles. Assim, há que se lutar pela "[...] progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder [...]"43 43 ADI no. 239-7/600, referente a reedição das medidas provisórias. . Evidente que não pretendo aqui propor controle de ordem eleitoral para o Supremo, mas, sim, uma racionalização de sua jurisdição e uma lapidação de seu processo deliberativo, de forma a restringir as tensões políticas inerentes ao exercício de uma jurisdição constitucional como a brasileira.

Entendo que algumas mudanças de natureza institucional são indispensáveis para que possamos reduzir o mal-estar supremocrático detectado neste texto. Em primeiro lugar, seria a redistribuição das competências do Supremo. Este não pode continuar atuando como corte constitucional, tribunal de última instância e foro especializado. Este acúmulo de tarefas, que, na prática, apenas se tornou factível graças à crescente ampliação das decisões monocráticas, coloca o Supremo e seus Ministros em uma posição muito vulnerável. Falsas denúncias e gravações ilegais são apenas uma demonstração de como a autoridade do tribunal pode ser ameaçada. É fundamental que o Supremo seja liberado de um grande número de tarefas secundárias, para exercer a sua função precípua de jurisdição constitucional. Isto não significa adotar o modelo europeu de controle de constitucionalidade, mas, sim, dar seguimento a nossa experimentação institucional, que compõe o sistema difuso com o concentrado. Com a argüição de repercussão geral, o efeito vinculante e a súmula vinculante, o Supremo terá condição de redefinir a sua própria agenda e passar a utilizar do sistema difuso como instrumento de construção da integridade do sistema judiciário e promoção do interesse público.44 44 Teria sido mais adequado que a utilização da expressão "argüição de relevância", pois os casos individuais podem muito bem trazer questões de máxima importância pública. Definitivamente, não é necessário analisar cada recurso extraordinário e, muito menos, cada agravo de instrumento que chega ao Tribunal todos os dias. Ao restringir a sua própria jurisdição, ao se autoconter, o Supremo estaria, ao mesmo tempo, reforçando a sua autoridade remanescente e, indiretamente, fortalecendo as instâncias inferiores, que passariam, com o tempo, a ser últimas instâncias nas suas respectivas jurisdições. É preocupante a posição de subalternidade a que os tribunais de segunda instância foram relegados no Brasil, a partir de 1988, quando as suas decisões passaram a ser invariavelmente objeto de reapreciação.

Com uma agenda bastante mais restrita de casos, o Supremo poderia melhorar a qualidade de seu processo deliberativo45 45 Muito do que penso sobre qualificar o processo deliberativo do STF devo a Conrado Hübner, que está realizando seu doutorado sobre este tema na Universidade de Edimburgo. A ele sou grato pelo longo e frutífero diálogo. . Em primeiríssimo lugar, deveriam ser restringidas, ao máximo, as competências de natureza monocráticas. A autoridade do Tribunal não pode ser exercida de forma fragmentada por cada um de seus Ministros. O fato de este ser um tribunal irrecorrível, e, portanto, aquele que corre o risco de errar em último lugar, impõe que as suas decisões sejam majoritariamente de natureza coletiva, o que somente será possível se o número de casos julgados cair de mais de cem mil por ano para menos de mil por ano.

Com a concentração de suas atividades no campo da jurisdição constitucional, com forte componente discricionário, o Tribunal, além de passar a decidir de forma apenas colegiada, também pode qualificar melhor o seu processo deliberativo. Hoje, o que temos é a somatória de 11 votos (que, em um grande número de casos, já se encontram redigidos antes da discussão em plenário) e não uma decisão da Corte, decorrente de uma robusta discussão entre os Ministros. Isto seria muito importante para que a integridade do Supremo, enquanto instituição colegiada, fosse mantida. Quando nos perguntamos qual a decisão do Supremo no caso das células-tronco, fica evidente que há uma multiplicidade de opiniões. Mesmo se pegarmos o voto do relator, que foi muito além da questio iuris submetida ao Tribunal, o que dali foi aceito pela maioria e o que não foi aceito? Quais são os efeitos precisos da decisão? Assim, as decisões precisam deixar de ser vistas como uma somatória aritmética de votos díspares. Na realidade, o que o sistema jurídico necessita são decisões que correspondam a um maior consenso decorrente de um intenso processo de discussão e deliberação da Corte. Evidente que sempre deverá haver espaço para votos discordantes e opiniões complementares, mas a maioria deveria ser capaz de produzir uma decisão acordada, um acórdão, que representasse a opinião do Tribunal. Isto daria mais consistência a decisões judiciais de grande impacto político. Ainda no quesito deliberação, talvez fosse positivo que o Tribunal começasse a deliberar em pelo menos três etapas. Em um primeiro momento, deveriam ser selecionados os casos da jurisdição difusa a serem julgados no ano judiciário; os de jurisdição concentrada dariam entrada pela ordem de chegada. A transparência na construção da agenda é urgente. Em um segundo momento, seria aberto espaço, seja para as audiências públicas, seja para as sustentações orais, com a presença obrigatória dos Ministros. Posteriormente, teríamos as sessões de discussão e julgamento. Depois de tomada a decisão, aquele que liderou a maioria deveria ser incumbido de redigir o acórdão. Desnecessário que haja 11 votos apostados, muitos deles pouco acrescentando, quando não confundindo os jurisdicionados. Com um processo de deliberação mais consistente, o Supremo poderia ter tempo para o estabelecimento de estândares interpretativos mais claros, o que permitiria estabilizar sua própria jurisprudência, bem como a jurisprudência dos tribunais e juízes de primeiro grau.

Certamente, a redução das competências e a qualificação do processo de deliberação não irão, por si, resolver as dificuldade contra-majoritárias do Supremo, mas poderão dar mais integridade às suas decisões, reduzindo arestas que, em última instância, vulnerabilizam a própria autoridade do Supremo.

NOTAS

Artigo aprovado (04/11/2008)

Recebido em 30/07/2008

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  • SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito Edição do autor, 2004.
  • TATE, C. Neial; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power New York: New York University Press, 1995.
  • VERÍSSIMO, Marcos Paulo. A Constituição de 1988, vinte anos depois: suprema corte e 'ativismo judicial à brasileira'. Revista DIREITO GV, volume 4, número 2, jul.-dez. 2008.
  • VIANNA, Luiz Wernek. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil Rio de Janeiro: Revan, 1999.
  • VIEIRA, Oscar Vilhena. O Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
  • ______. Império da Lei ou da Corte? Revista da USP, Dossiê Judiciário, 21, Mar-Mai, 1994b, pp. 70-77.
  • ______. A Constituição e sua Reserva de Justiça São Paulo: Malheiros, 1999.
  • *
    A formulação do argumento que agora apresento neste texto, deu-se por ocasião da aula inaugural do curso de pós-graduação em Direito do Ibemec-SP (2008), que honrosamente proferi a convite do Professor e amigo Jairo Saddi; também apresentei este trabalho no saboroso "Colóquio Vinte Anos da Constituição", realizado em Petrópolis, entre os dias 14 de 17 de Agosto, ao convite dos também queridos amigos Daniel Sarmento, Cláudio Pereira Souza Neto e Gustavo Binenbojm. Se não fosse o meu atraso este texto deveria constar da publicação resultante daquele colóquio.Agradeço, por fim, à DIREITO GV, por ter assegurado as condições para que o presente ensaio pudesse ser realizado.
  • **
    Oscar Vilhena Vieira é Professor de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde coordena o Programa de Mestrado em Direito e Desenvolvimento, Professor licenciado da Faculdade de Direito da PUC/SP, diretor jurídico da organização não-governamental Conectas Direitos Humanos, mestre em direito (LLM) pela Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, Nova York, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, tendo realizado seus estudos de Pós-Doutoramento, no
    Center for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, onde foi
    Sergio Vieira de Mello Human Rights Fellow, em 2007.
  • 1
    Barroso (1994); Rothenburg (1999); Vieira (1999); Sarmento (2000); Binenbjom (2001); Barcellos (2002); Ávila (2003); Sarlet (2004); Silva (2004). :
  • 2
    Vieira (1994a); Sadek (1995);Vianna (1999); Costa (2001); Almeida (2006); Mendes (2008).
  • 3
    Arida; Bacha; Lara-Resende (2003); Pinheiro (2005).
  • 4
    Período brilhantemente capturado por Leda Boechat Rodrigues, precursora dos estudos sobre o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, publicou entre outros:
    História do Supremo Tribunal Federal, em quatro volumes, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira;
    Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1958;
    Direito e Política, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977.
  • 5
    Ver Vieira (1994a).
  • 6
    Tate;Vallinder (1995); Shapiro; Sweet (2002).
  • 7
    Esta é a tese central de Hirschal (2004); Cooter (1996) também apresenta o argumento sobre porque a democracia se torna uma ameaça à logica de mercado.
  • 8
    Garapon (1996); ver também resenha do livro de Garapon realizada por Recoeur (2008).
  • 9
    Canotilho (2001).
  • 10
    Frank (1963).
  • 11
    Ver em especial voto do Justice Holmes em Lochner v. New York, 1905, pelo qual critica a maioria da corte por tomar uma posição ativista de proteção dos valores do liberalismo econômico.
  • 12
    Importante notar aqui a forte influência da ocupação americana na reconstitucionalização de países como a Alemanha e o Japão, ver Henkin (1994).
  • 13
    Cappelletti (1993).
  • 14
    Schwartz (2000).
  • 15
    Ver Baxi (1980) e Sathe (2007).
  • 16
    Gargarella (2006).
  • 17
    Kelsen (2003).
  • 18
    Lopes (2006, p. 30);Vieira (1994a, conclusão).
  • 19
    Garapon (1996).
  • 20
    O Tribunal estaria em algumas circunstâncias indo além do papel construtivo inerente a interpretação de cláusulas abertas do texto constitucional, como reconhecido por Doworkin (1985).
  • 21
    Dahl (1989, pp. 65 et seq.).
  • 22
    Sarney (2008).
  • 23
    Sarmento (2006).
  • 24
    Empresto a expressão "obsessão regulatória" do Professor Humberto Ávila, que a empregou no Colóquio Vinte anos da Constituição, realizado em Petrópolis, entre os dias 14 de 17 de Agosto.
  • 25
    Vieira (1999).
  • 26
    Ver em especial Virgílio Afonso da Silva e Gustavo Binenbojm.
  • 27
    Para uma análise pormenorizada das conseqüências da expansão dos atores legitimados a propor ações diretas de inconstitucionalidade ver Vianna et alli (1999).
  • 28
    Almeida (2006).
  • 29
    RENAN (2007).
  • 30
    Veríssimo (2008).
  • 31
    Idem.
  • 32
    Os casos do ProUni, relativo a ação afirmativa, Raposa Serra do Sol, referente à demarcação de terras indígenas ou aborto de fetos anencéfalus também se encontram nesta esfera da jurisdição do Supremo, que se coloca como arena de discussão pública, que se substitui ao parlamento/executivo na adoção da última palavra em temas de alta relevância político-moral.
  • 33
    Ver Vieira (1994b). Para uma contestação da tese da última palavra ver excelente trabalho de Conrado Hubner, por ocasião de sua tese de Doutoramento na FFLCH-USP, 2008.
  • 34
    De acordo com o Ministro Celso de Mello este seria o mais importante julgamento da história do Supremo Tribunal Federal
  • 35
    Barbosa (1999, p. 179).
  • 36
    Para este câmbio de legitimidade, ver Offe; Preuss (1990).
  • 37
    Kelsen (2003).
  • 38
    MS 26.603/DF, voto do Ministro Celso de Mello, p50; agradeço ao meu querido amigo Daniel Sarmento por ter me chamado a atenção para esta passagem.
  • 39
    Reclamação 4335-5/Acre, voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, p. 52.
  • 40
    Neste ponto poderia ser contestado por Figueiredo e Limongi (1999), ao buscarem desmistificar a idéia de que o sistema representativo não tem sido capaz de corresponder às suas atribuições.
  • 41
    Entrevista a mim concedida, por ocasião da reedição de
    Supremo Tribunal Federal: Jurisprudência Política, 1997.
  • 42
    Konrad Hesse,
    Escritos de Derecho Constitucional, Centro de Estúdios Constitucionales, Madri, 1983.
  • 43
    ADI no. 239-7/600, referente a reedição das medidas provisórias.
  • 44
    Teria sido mais adequado que a utilização da expressão "argüição de relevância", pois os casos individuais podem muito bem trazer questões de máxima importância pública.
  • 45
    Muito do que penso sobre qualificar o processo deliberativo do STF devo a Conrado Hübner, que está realizando seu doutorado sobre este tema na Universidade de Edimburgo. A ele sou grato pelo longo e frutífero diálogo.
  • Endereço para correspondência:
    Oscar Vilhena Vieira
    Rua Rocha, 233 - 11º andar
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      30 Jul 2008
    • Aceito
      11 Abr 2008
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