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Tendências da análise antropológica do direito: algumas questões a partir da perspectiva francófona

Trends in anthropological analysis of law: some questions in the francophone perspective

RESENHAS

Tendências da análise antropológica do direito: algumas questões a partir da perspectiva francófona

Trends in anthropological analysis of law: some questions in the francophone perspective

Orlando Villas Bôas Filho

Mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Orlando Villas Bôas Filho Largo São Francisco, 95 Centro - 01005-010 São Paulo - SP - Brasil villasboas.orlando@gmail.com

RUDE-ANTOINE, EDWIGE; CHRÉTIEN-VERNICOS, GENEVIÈVE (COORDS.). ANTHROPOLOGIES ET DROITS: ÉTAT DES SAVIORS ET ORIENTATIONS CONTEMPORAINES. PARIS: DALLOZ, 2009.

O livro Anthropologies et droits: état des savoirs et orientations contemporaines consiste na primeira síntese coletiva da antropologia jurídica francófona em língua francesa e visa organizar e sistematizar o estado da pesquisa dessa área no âmbito francófono. Trata-se de uma publicação realizada sob a égide da Association Francophone d´Anthropologie du Droit (AFAD) e que agrega importantes pesquisadores da disciplina, tais como as próprias coordenadoras do trabalho e teóricos como Étienne Le Roy, Jacques Vanderlinden, Alain Rochegude, Moustapha Diop, Chantal Kourilsky-Augeven e Christoph Eberhard.

A obra, que surge em um contexto editorial cada vez mais interessado pela abordagem antropológica do direito,1 1 Entre as obras publicadas recentemente na França destacam-se, sobretudo, as seguintes: EBERHARD, Christoph; VERNICOS, Geneviève (Eds.). La quête anthropologique du droit: autour de la démarche d´Étienne Le Roy (Paris: Karthala, 2006); NICOLAU, Gilda et. al. Ethnologie juridique: autour de trois exercices (Paris: Dalloz, 2007); SACCO, Rodolfo. Anthropologie juridique: apport à une macro-histoire du droit (Paris: Dalloz, 2008). procura definir claramente as especificidades de seu contorno. Enfatiza, nesse sentido, que pretende se distanciar das feições de um reader, comum no âmbito da antropologia anglófona,2 2 Ver, por exemplo: MOORE, Sally Falk (Ed.). Law and anthropology: a reader (Massachusetts: Blackwell, 2005). uma vez que, segundo suas coordenadoras, ela não consiste numa compilação de artigos ou extratos de obras articulados com vistas a permitir uma abordagem introdutória a determinados assuntos. Por outro lado, também não se trata de um manual, já que consiste na sistematização dos resultados das pesquisas dos membros da AFAD, nem de um tratado, pois renuncia expressamente a qualquer pretensão de exaustividade em relação às temáticas abordadas.

Assim, na tentativa de ordenar as pesquisas existentes, a obra enfrenta várias questões importantes, articuladas a partir de um enfoque metadisciplinar. Entre essas questões, primeiramente está a relativa à própria qualificação da abordagem antropológica acerca do direito. Desse modo, a obra se inicia com a observação de que, embora, no contexto francófono, o sintagma mais corrente para designar a disciplina seja "antropologia do direito", isso evidentemente não exclui outras possibilidades de qualificação, tais como "antropologia da juridicidade" e, sobretudo, "antropologia jurídica". Contudo, é enfatizada a necessidade de se estar atento às nuances dessas expressões, que, apesar de geralmente serem empregadas de forma indistinta, não são totalmente intercambiáveis.

A expressão "antropologia jurídica" teria como finalidade delimitar, por razões essencialmente didáticas, o campo particular de estudo de uma disciplina que, tal como a antropologia, é essencialmente holística. Nesse sentido, o qualificativo "jurídico", justaposto ao enfoque antropológico, permitiria a definição dos fenômenos por ele qualificados como pertencentes ao campo do direito. Assim, a "antropologia jurídica" não se confundiria com a antropologia do direito, aquela concebida em termos de uma etapa essencial no processo de desfiliação (désaffiliation) da pesquisa antropológica em relação às "ciências jurídicas" e, portanto, de negação de uma atitude ancilar a qual a tornava uma espécie de "satélite" de uma ciência principal denominada genericamente "direito" (le Droit).

Por outro lado, o uso do sintagma "antropologia da juridicidade", em razão de sua maior amplitude, serviria para qualificar a abordagem dos fenômenos de regulação que são tidos pelos membros das diversas sociedades como obrigatórios e, justamente por isso, sancionados - logo, jurídicos. Nesse sentido, essa expressão pretenderia estar mais desatrelada das representações ocidentais acerca do fenômeno jurídico, aceitando como direito tanto as práticas de regulação mais próximas da tradição ocidental moderna como aquelas mais distantes.

A alusão a essa pluralidade de referências visa sublinhar a riqueza das potencialidades que a análise antropológica pode proporcionar ao direito e permite, ademais, que se compreenda o motivo pelo qual o pluralismo jurídico constitui o tema essencial desse enfoque e uma questão transversal que anima as análises as quais compõem a obra em questão. Entretanto, o pluralismo constitui apenas uma das diversas temáticas que se enfeixam na obra. Como de costume, ela assume um papel de destaque (constitui, aliás, o objeto do primeiro capítulo, de autoria de Jacques Vanderlinden), o que se explica em razão da ênfase dada pela antropologia aos processos de juridicização (processus de juridicisation) que a conduzem a um distanciamento da noção de uma ordem jurídica de caráter monista.

Assim, a obra procura assumir uma perspectiva pluralista e plural, pois não supõe que todos seus autores partilhem as mesmas análises e justificações, mas admite, ao contrário, que eles sustentam pontos de vista significativamente diferentes acerca da aplicação do enfoque antropológico do direito. Portanto, o livro visa apartar-se de abordagens que pretendem ser "cientificamente corretas" ou uniformizadoras.

Sua estruturação se dá a partir de uma abordagem que, por ser antropológica, privilegia um conhecimento global e generalizante acerca do homem. No entanto, baseando-se na comparação entre sociedades, sublinha a diversidade e, por essa razão, a importância da percepção acerca da singularidade e da arbitrariedade das escolhas que sustentam o direito ocidental as quais, justamente por esse motivo, não podem pretender ser expressão da racionalidade e ter validade universal. É por isso que a obra privilegia o enfoque pluralista, pois, opondo-se ao etnocentrismo e ao "ocidentalcentrismo" (occidentalcentrisme) que perpassam as obras dos fundadores da antropologia jurídica (tais como Morgan, Maine e Bachofen), rejeita a suposta superioridade do direito ocidental em relação ao das demais sociedades, outrora desqualificadas como "selvagens", "primitivas" ou "subdesenvolvidas".

É justamente esta refutação de uma visão estereotipada e etnocêntrica do direito que acaba por reforçar naturalmente o enfoque pluralista, direcionando a abordagem antropológica tanto às situações que expressam uma pluralidade de soluções jurídicas aplicáveis a uma mesma questão no interior de uma ordem jurídica estatal, como, a partir de uma perspectiva mais radical, às relações entre ordens jurídicas estatais e não estatais,3 3 Para uma preocupação semelhante a partir de outros pressupostos, ver: NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo (São Paulo: Martins Fontes, 2009). chegando mesmo a rejeitar, em alguns casos, a própria noção de "ordem jurídica" em prol de concepções articuladas ao redor da noção de "multijuridismo" (multijuridisme), para as quais o direito seria apenas um folk system entre outros.

Os oito capítulos que compõem a obra são, desse modo, descritos como "canteiros" indicativos do work in progress de uma antropologia compreensiva aplicada ao direito. Nesse sentido, em virtude da riqueza de temas e da multiplicidade de pontos de vista nela consignados, a presente resenha terá um caráter essencialmente descritivo, cuja finalidade é permitir ao leitor brasileiro algum contato com um campo de pesquisa que ainda é pouco ou mal explorado no país. Apesar de haver pesquisas de muito boa qualidade entre nós, tais como as de Roberto Kant de Lima (Universidade Federal Fluminense), Luís Roberto Cardoso de Oliveira (Universidade de Brasília) e Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (Universidade de São Paulo), a produção da antropologia jurídica no Brasil ainda é tímida e, em alguns casos, bastante precária, motivo pelo qual as temáticas esboçadas a seguir podem fornecer um panorama inspirador para futuras análises.

O primeiro capítulo de Anthropologies et droits, intitulado "Pluralismes jurídiques", de autoria de Jacques Vanderlinden, procura mapear o conjunto de transformações fundamentais experimentadas por essa temática, considerada o paradigma central da análise antropológica do direito. Vanderlinden, autor de um ensaio seminal sobre o tema, publicado no início da década de 1970, estrutura o capítulo em três seções. Na primeira seção (Acquis anthropologique ou "état de lieux"), ele aborda a situação da concepção pluralista, centrando-se, sobretudo, em autores como M. B. Hooker, N. Rouland e J. G. Belley, sendo esses dois últimos abordados essencialmente a partir de suas contribuições para o Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito, dirigido por André-Jean Arnaud. Na segunda seção (Interrogations contemporaines), Vanderlinden analisa a variação considerável das diversas concepções de pluralismo após o último decênio do século XX, observando que as mesmas seriam, basicamente, de três ordens: (1) aquelas que se consideram específicas do pluralismo e que se articulariam ao redor de três eixos fundamentais, quais sejam: o "lugar referente ao funcionamento das ordens jurídicas", a "autonomia das ordens jurídicas" e o "centro de gravidade de produção dos mecanismos jurídicos"; (2) aquelas que rejeitam ser caracterizadas como pertencentes ao pluralismo jurídico e que se expressariam, essencialmente, no "multijurismo" (associado a É. Le Roy), no "pluralismo diatópico ou dialogal" (proposto por R. Vanchon) e nas diferentes concepções do "policentrismo jurídico" (sobretudo, S. P. Sinha); (3) as interrogações relativas à pertinência do pluralismo (sobretudo a partir do posicionamento de S. Roberts). Por fim, na terceira seção (Retour au droit), o autor centra-se especificamente na concepção do pluralismo jurídico, concluindo que a mesma seria, em si mesma, plural.

O segundo capítulo, intitulado "Norme, normativité, juridicité", redigido por Edwige Rude-Antoine, Carole Younès e Eric Millard, procura indicar, a partir de uma análise crítica de posicionamentos de diversos juristas e, em particular, das abordagens positivistas, que os antropólogos buscam transpor as concepções tradicionais do direito, visando à constituição de um saber original que preserve sua especificidade tanto em relação ao ensino jurídico clássico como em relação à antropologia geral. Nesse sentido, enfatiza-se que a concepção de normatividade seria um elemento-chave na reivindicação de tal especificidade. Assim, a partir de uma abordagem pluridimensional, a normatividade jurídica é examinada desde a distinção entre sistema prescritivo (système de prescription) e sistema preferencial (système préférentiel). Com isso, a definição de norma jurídica se tornaria mais flexível, de modo a incluir fenômenos normativos mais difusos, baseados mais na orientação das condutas que em sua prescrição. Em tal contexto, discute-se se o direito pode ser reduzido à norma ou se, ao contrário, não seria mais adequado substituir o conceito de normatividade (considerado restritivo) pelo de juridicidade (que permitiria integrar a dimensão processual e dialógica do direito).

O terceiro capítulo, intitulado "Visions du monde, théorie des pouvoirs et représentations du droit: fondements structuraux d´une anthropologie politique du juridique", de autoria de Christoph Eberhard e Étienne Le Roy, ilustra uma leitura de tipo estrutural, sincrônica, que sublinha a ordem simbólica da sociedade. Ele é composto de duas seções. A primeira tem por objeto uma teoria do poder que visa explicar a diversidade de soluções adotadas pelas várias sociedades humanas em domínios considerados vitais e, portanto, submetidos à regulação jurídica. Trata-se de uma análise baseada essencialmente em M. Alliot, G. Balandier e P. Clastres. A segunda seção, em que se analisam os fundamentos antropológicos das representações do direito, baseia-se mais diretamente no pensamento de M. Alliot. Nessa seção, os autores também postulam uma perspectiva que se insere no âmbito de um pluralismo jurídico radical, para o qual decorreria, da diversidade de visões de mundos, uma diversidade de direitos. Assim, são enfocadas cinco visões cosmológicas, as quais engendram diferentes representações acerca do direito: as cristãs, as confucianas, as animistas, as dharmicas e a racionalidade moderna.

O quarto capítulo, intitulado "Pouvoirs, sociétés et droits", também escrito por C. Eberhard e É. Le Roy, consiste essencialmente em uma contribuição à antropologia política do direito. Trata-se de um capítulo que mantém ligação lógica com o precedente e que, sob a forma de uma análise dinâmica (tal como proposta por Le Roy na obra Le jeu des lois, de 1999), procura examinar a relação entre poder, sociedade e direito. Numa primeira seção, os autores, a partir de um modelo processualista, procuram romper com a ideia comum de uma antropologia direcionada apenas para os "selvagens" ou para as pequenas comunidades. Assim, é proposta uma análise a qual procura abordar os novos desafios que emergem na sociedade contemporânea, a partir de um enfoque que abrange desde formas de dominação existentes entre os Nhambiquaras, no Brasil Central, às problemáticas da globalização, passando por questões postas, por exemplo, por uma sociedade tradicional "proto-estatal", por um conselho municipal no Senegal, por uma usina na Nova Guiné pela reforma da justiça na França. A segunda seção aborda alguns dos debates centrais da teoria contemporânea dos poderes, tais como: sobre a governança, a querela entre universalismo e relativismo, os desafios da democratização em nossas sociedades etc. Esses debates evidenciam a vivacidade das lutas em domínios vitais que, por essa razão, são considerados jurídicos e também a fragilidade dos consensos que os sustentam. Tal situação impõe maior dose de responsabilidade aos cidadãos, a qual vincula-se, entretanto, a culturas jurídicas e políticas enraizadas em diferentes visões de mundo que podem ou não favorecer a mobilização dos atores.

O quinto capítulo, intitulado "Les cultures juridiques", redigido por Akuavi Adonon, Caroline Plançon e Christoph Eberhard, enfatiza que todas as sociedades humanas necessitam organizar suas relações sociais, para assegurar senão sua harmonia, ao menos sua reprodução e seu prosseguimento. Nesse contexto, analisa-se como o direito pode funcionar, em diferentes sociedades, como mecanismo essencial à tessitura da "trama da vida social". As diferentes maneiras de abordar a juridicidade refletem distintas maneiras de conceber o mundo, de estar nele e de esclarecer as relações entre direito e culturas. Assim, as noções de direito e de "jurídico" tal como compreendidas pelo ocidente não podem ser vistas como universais. Ao contrário, convém distinguir "cultura jurídica" no sentido da juridicidade ocidental e "culturas jurídicas homomorfas" (homéomorphes), nas quais a reprodução social não está atrelada à noção de direito e que, por vezes, inclusive, ignoram esse termo, de modo que nelas não se pode procurar senão equivalentes funcionais. Isso conduz a uma reflexão sobre a própria noção de cultura e obriga a que se enfrente o desafio posto pelo diálogo intercultural que, segundo os autores, apresenta uma dimensão antropológica e outra jurídica. O artigo, nesse sentido, é atravessado por uma análise relativa aos desafios impostos pela "aculturação jurídica", pelo diálogo intercultural e pelos debates antropológicos sobre os aportes possíveis de uma releitura das culturas jurídicas nos domínios do direito comparado, da história, da filosofia e da teoria do direito.

O sexto capítulo, intitulado "Socialisation, socialisation juridique et conscicence du droit", de autoria de Chantal Kourilsky-Augeven, procura analisar como uma "civilização" jurídica particular, no caso o Ocidente moderno, trata os modos de aprendizagem das condutas, dos conhecimentos e dos comportamentos que interferem no campo do direito. Nesse contexto, dois objetos são privilegiados. Em primeiro lugar, os fenômenos de socialização jurídica dos indivíduos no curso da infância e, em segundo lugar, os fenômenos de consciência acerca do direito, na chave do que as pesquisas norte-americanas denominam legal consciousness. Uma questão fundamental, entretanto, perpassa essas pesquisas: o déficit deficit de efetividade do direito na população. Em seu âmbito, duas hipóteses de leitura se delineiam: a primeira, que é própria ao domínio da sociologia, enfatiza a existência de uma dupla concepção do direito: de um lado, o direito encarnado na lei, considerado visível, posto que institucionalizado (Law), e, de outro, o direito tal como elaborado pelos indivíduos em suas práticas quotidianas (legality). A segunda hipótese, mais familiar aos antropólogos do direito, acentua os direitos subjetivos (rights) legalmente reconhecidos aos indivíduos e sua pertinência para os mesmos, em particular mediante a análise de como o indivíduo integra "o direito" em sua visão pessoal do mundo.

O sétimo capítulo, intitulado "Parenté, famille, mariage, filiation", de autoria de Geneviève Chrétien-Vernicos e Edwige Rude-Antoine, enfatiza que os juristas e os antropólogos não abordam as questões do parentesco e da família da mesma maneira, uma vez que os primeiros enfocam a família pelo ângulo do casamento e, secundariamente, pela filiação, ao passo que os antropólogos se interessam, sobretudo, pela família, em seguida, pelo casamento e, finalmente, pela filiação em termos de um sistema. Para os juristas ocidentais, o ato de fundação da família é o casamento, muito embora os autores mais recentes enfatizem o papel substancial desempenhado pelo casal "não institucional", ou seja, caracterizado pela união livre e pelo concubinato. Assim, o direito se interessa pelo casamento essencialmente pela ótica de direitos e deveres, a qual é mais restrita que a perspectiva da antropologia. Entretanto, se os juristas enfocam a filiação em termos de um laço jurídico que liga os filhos aos seus pais, os antropólogos focalizam o parentesco como uma disciplina de base em seu campo de análise, motivo pelo qual as autoras do capítulo propõem uma reconstrução das aquisições teóricas da antropologia acerca dessa temática ao longo dos séculos XIX e XX, procurando também analisar as transformações que o processo de globalização engendra nas práticas, mentalidades e instituições relativas às relações de parentesco; transformações essas que são por elas definidas como arcanes de la parenté postmoderne. O pressuposto fundamental dessa análise é o de que o jurista não é capaz de responder, exclusivamente a partir de seu campo, às novas tendências que remodelam as relações de parentesco e que demandam, para sua adequada compreensão, a combinação de diversas abordagens e métodos das ciências sociais, em particular da antropologia.

O oitavo capítulo, intitulado "L´homme et l´espace au regard du Droit: rapports fonciers et dynamiques territoriales" e organizado por É. Le Roy, ressalta que, tanto para os antropólogos como para os juristas, a inscrição espacial do homem e as relações que dela decorrem sempre foram fundamentais. Para isso, indica-se a existência de dois grandes registros em que se situam os debates privilegiados acerca dessa temática. O primeiro, clássico, conduz ao direito. Trata-se da relação jurídica que funda a propriedade e a territorialidade. Nesse âmbito, a refutação ao etnocentrismo que é própria da antropologia acarreta um duplo efeito. De um lado, proíbe que se considerem como gerais as representações e os procedimentos tidos, no Ocidente, como "direito" e, de outro lado, obriga a conceber, experimentar e aplicar um novo instrumental (outillage) conceitual que esteja à altura dos problemas atuais, tal como a questão do desenvolvimento sustentável. O segundo registro de pesquisa concerne à extrema dificuldade de lidar com os novos desafios sociais tanto no que se refere à dinâmica dos conflitos quanto no que tange às pressões por sua resolução. Assim, a regulação das práticas humanas deve ser apreendida numa perspectiva que integre de forma indissociável o aspecto espacial assim como o temporal, com vistas à obtenção do distanciamento indispensável à reformulação de explicações tidas como universais, tanto no que concerne ao direito de propriedade quanto no que concerne à territorialidade estatal. A inscrição espacial das práticas sociais em estruturas temporais permitiria enfocar, particularmente nas sociedades ocidentais, o entrecruzamento de representações espaciais que têm suas origens na hominização (hominisation)4 4 Ver SERRES, Michel. Hominescence (Paris: Le Pommier, 2001). ou na Revolução Neolítica, mas também sua superação na época contemporânea, sobretudo em virtude do que Bertrand Badie denomina "fim dos territórios".

Nota-se, assim, que a abordagem antropológica do direito pode oferecer uma importante contribuição para captá-lo desde múltiplas facetas que se enfeixam no âmbito de um novo contorno, decorrente das mudanças radicais experimentadas pela humanidade na passagem para sociedade atual, as quais são descritas por Michel Serres a partir do instigante neologismo hominescência.

NOTAS

  • 1
    Entre as obras publicadas recentemente na França destacam-se, sobretudo, as seguintes: EBERHARD, Christoph; VERNICOS, Geneviève (Eds.).
    La quête anthropologique du droit: autour de la démarche d´Étienne Le Roy (Paris: Karthala, 2006); NICOLAU, Gilda et. al.
    Ethnologie juridique: autour de trois exercices (Paris: Dalloz, 2007); SACCO, Rodolfo.
    Anthropologie juridique: apport à une macro-histoire du droit (Paris: Dalloz, 2008).
  • 2
    Ver, por exemplo: MOORE, Sally Falk (Ed.).
    Law and anthropology: a reader (Massachusetts: Blackwell, 2005).
  • 3
    Para uma preocupação semelhante a partir de outros pressupostos, ver: NEVES, Marcelo.
    Transconstitucionalismo (São Paulo: Martins Fontes, 2009).
  • 4
    Ver SERRES, Michel.
    Hominescence (Paris: Le Pommier, 2001).
  • Endereço para correspondência:

    Orlando Villas Bôas Filho
    Largo São Francisco, 95
    Centro - 01005-010
    São Paulo - SP - Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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