Acessibilidade / Reportar erro

Difícil hierarquia: a avaliação do Supremo Tribunal Federal pelos magistrados da base do Poder Judiciário no Brasil

Difficult hierarchy: the Supreme Federal Tribunal's evaluation by the lower judges of the Brazilian Judiciary

Resumos

O artigo discute a imagem freqüentemente negativa do Supremo Federal Tribunal junto a parte significativa dos magistrados de primeira e segunda instâncias do Poder Judiciário no Brasil contemporâneo. O trabalho insere-se no debate sobre a sociologia das instituições judiciais brasileiras e integra, portanto, o quadro mais amplo das discussões que envolvem a sociologia do campo jurídico. Partindo de dados coletados em surveys e previamente apresentados em outros estudos, o artigo confere nova sistematização e interpretação voltada a debater o tema proposto. Como resultado, observa-se que as diferenças nas formas de recrutamento dos magistrados dos diferentes níveis hierárquicos conduzem a visões díspares com relação ao exercício da função judicial e a uma visão aparentemente estereotipada que os magistrados da base do Poder Judiciário apresentam da Suprema Corte brasileira.

Hierarquia judicial; Poder Judiciário; Supremo Tribunal Federal; Comportamento judicial; Magistratura


The article discusses the supreme federal tribunal's overall disapproval by significant parcel of the lower ranking judges in contemporary brazil. This work inserts itself into the sociological debate over Brazilian judicial institutions and integrates, therefore, the main field of law's sociology. To that end, the article takes data previously collected and published in other studies, conferring them new systematization and interpretation directly turned to address the inquiry of interest. As result, it founds that the differences in the rules of recruitment of magistrates from the distinct hierarchical levels lead to distinct understandings as for the exercise of the judicial function and, particularly, to an essentially stereotypical perspective that Brazilian judges exhibit concerning their Supreme Court.

Judicial hierarchy; Judicial branch; Supreme Federal Tribunal; Judicial behavior; Courts


ARTIGOS

Difícil hierarquia: a avaliação do Supremo Tribunal Federal pelos magistrados da base do Poder Judiciário no Brasil

Difficult hierarchy: the Supreme Federal Tribunal's evaluation by the lower judges of the Brazilian Judiciary

Luciano Da Ros

Doutorando em Ciência Política pela University of Illinois at Chicago (UIC), bolsista CAPES/Fulbright

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Luciano Da Ros University of Illinois at Chicago Department of Political Science Behavioral Sciences Building 1007 West Harrison Street M/C 276 Chicago - Illinois - EUA 60610 ldaros2@uic.edu

RESUMO

O artigo discute a imagem freqüentemente negativa do Supremo Federal Tribunal junto a parte significativa dos magistrados de primeira e segunda instâncias do Poder Judiciário no Brasil contemporâneo. O trabalho insere-se no debate sobre a sociologia das instituições judiciais brasileiras e integra, portanto, o quadro mais amplo das discussões que envolvem a sociologia do campo jurídico. Partindo de dados coletados em surveys e previamente apresentados em outros estudos, o artigo confere nova sistematização e interpretação voltada a debater o tema proposto. Como resultado, observa-se que as diferenças nas formas de recrutamento dos magistrados dos diferentes níveis hierárquicos conduzem a visões díspares com relação ao exercício da função judicial e a uma visão aparentemente estereotipada que os magistrados da base do Poder Judiciário apresentam da Suprema Corte brasileira.

Palavras-chave: Hierarquia judicial; Poder Judiciário; Supremo Tribunal Federal; Comportamento judicial; Magistratura.

ABSTRACT

The article discusses the supreme federal tribunal's overall disapproval by significant parcel of the lower ranking judges in contemporary brazil. This work inserts itself into the sociological debate over Brazilian judicial institutions and integrates, therefore, the main field of law's sociology. To that end, the article takes data previously collected and published in other studies, conferring them new systematization and interpretation directly turned to address the inquiry of interest. As result, it founds that the differences in the rules of recruitment of magistrates from the distinct hierarchical levels lead to distinct understandings as for the exercise of the judicial function and, particularly, to an essentially stereotypical perspective that Brazilian judges exhibit concerning their Supreme Court.

Keywords: Judicial hierarchy; Judicial branch, Supreme Federal Tribunal; Judicial behavior; Courts.

INTRODUÇÃO

Ainda que seus respectivos integrantes não sejam eleitos e que lhes careça qualquer mecanismo de controle popular direto, Cortes Supremas e Tribunais Constitucionais são geralmente vistos com bons olhos por parte considerável da população dos respectivos países em que operam, em se tratando de contextos democráticos. Os estudos existentes atestam que instituições como o Tribunal Constitucional Federal alemão ou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, para ficar com dois exemplos bastante conhecidos, gozam de significativo apoio popular em seus países, especialmente se comparados aos demais Poderes do Estado.1 1 O estudo de Caldeira, Gibson e Baird (1998) é bastante conclusivo neste sentido, comparando dezoito países. Outros trabalhos como os de Cadeira (1986; 1991), Vanberg (2001), Volcansek (2001) e aquele de Caldeira e Gibson (1995) sobre realidades específicas — Estados Unidos, Alemanha, Itália e sobre a Corte de Justiça da União Europeia, respectivamente — também atestam esta mesma legitimidade popular de Tribunais Constitucionais e Cortes Supremas nos diferentes contextos democráticos pesquisados.

Em contrapartida, observa-se que os Poderes Executivo e Legislativo são geralmente menos prestigiados junto à opinião pública em função das acusações de corrupção que invariavelmente ocupam a agenda midiática na grande maioria dos países. Por causa dessa aprovação popular, inclusive já foi sugerido que tais instituições judiciais desfrutariam de grande influência sobre os destinos políticos daquelas nações. De acordo com tal leitura, a legitimidade obtida do apoio difuso da população habilitaria estes órgãos a influir politicamente e a assegurar sua independência ante o conjunto de forças políticas existentes. Em muitos casos, essa mesma simpatia popular seria conquistada justamente às expensas das instituições representativas e de governo, visto que os magistrados afirmariam atuar em defesa da "população" ou da "lei" ante os outros Poderes do Estado, tidos como impopulares e/ou pouco dignos de confiança pelos motivos já alegados.2 2 Neste sentido, veja-se o interessante estudo de Della Porta (2001) sobre a realidade italiana e o jogo de forças que envolve a participação do Poder Judiciário daquele país (e não apenas sua Corte Constitucional) na apuração dos escândalos de corrupção durante as décadas de 1980 e 1990.

Há razões para crer que juízo semelhante exista também no Brasil com relação ao Supremo Tribunal Federal (STF). Pesquisa recente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) demonstrou que o órgão merece a confiança de 58,8% dos indivíduos que emitiram opinião no levantamento, índice bastante mais elevado do que aquele obtido por instituições políticas representativas, como a Câmara dos Deputados (13,1%), o Senado Federal (15,3%) e, mais amplamente, o Governo Federal (41,9%). Em meio à desconfiança geral da população nas instituições políticas brasileiras contemporâneas, a confiabilidade popular no mais alto tribunal do país na realidade o coloca entre as instituições mais bem avaliadas pela população, com índices próximos ao conquistado pela imprensa (64,4%) e menor apenas do que a confiabilidade declarada a instituições tradicionalmente coercitivas, como a Polícia Federal (80%) e as Forças Armadas (80,7%).3 3 Trata-se da pesquisa A imagem das instituições públicas brasileiras, realizada com cerca de 2.000 indivíduos maiores de 16 anos residentes no Brasil pela Opinião Consultoria em setembro de 2007, a pedido da entidade dos magistrados brasileiros. A pesquisa encontra-se disponível no sítio mantido pela AMB na internet (disponível em: < www.amb.com.br/portal/docs/noticias/pesquisa_opiniao.pdf>), conforme acesso em 16 de março de 2008. Vale frisar ainda que o Supremo Tribunal Federal é a mais bem avaliada instituição do Poder Judiciário pelos empresários brasileiros. Frente à Justiça Comum Estadual, à Justiça Federal, ao Ministério Público, aos cartórios judiciais e especialmente à Justiça do Trabalho, o STF é o mais bem avaliado órgão pelo setor privado do país, recebendo avaliação de regular a ótima de 68,4% deste segmento (LAMOUNIER; SADEK; PINHEIRO, 2000, p. 78). Ademais, os dados apresentados são apenas exemplificativos e se encontram em sintonia com outras pesquisas sobre o mesmo tema (BAQUERO, 2001; 2008).

Todavia, e por curioso que isso possa parecer, parcela significativa das opiniões mais reticentes com relação ao STF não parte das ruas, mas sim de integrantes do próprio Poder Judiciário. Pesquisas indicam, um tanto paradoxalmente, que o Supremo Tribunal Federal é negativamente avaliado por grande parte dos magistrados brasileiros de primeira e segunda instâncias. Juízes e desembargadores, mas especialmente os primeiros, são bastante críticos com relação à instituição, muito embora, ao menos em tese, estejam a ela vinculados e subordinados — vinculados ao Supremo Tribunal Federal por integrarem todos o Poder Judiciário, e subordinados a ele por se tratar do órgão de cúpula do mesmo Poder do Estado em que atuam. Um episódio relativamente recente em que mais de quatrocentos magistrados do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região e diversas associações da categoria manifestaram publicamente apoio a um colega e criticaram decisões tomadas pelo presidente do STF na época, Gilmar Mendes, exemplificam esta tensão e constituem apenas mais um capítulo de uma série de críticas que os integrantes do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro recebem de diversos magistrados país afora.4 4 O episódio em questão foi ocasionado pela prisão de uma série de acusados de corrupção e lavagem de dinheiro, entre eles o banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, em decorrência da Operação Satiagraha deflagrada da Polícia Federal em julho de 2008. Em sua decorrência, o juiz de primeira instância encaminhou por duas ocasiões as prisões temporária e preventiva dos acusados, tendo, em ambas as ocasiões, suas decisões sido revogadas pela concessão de habeas corpus pelo presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes. O impasse gerado produziu acusações de parte a parte, ocasionando a referida manifestação dos magistrados, na qual inclusive se suscitou formular pedido de impeachment do presidente do STF.

Desta constatação, uma importante questão emerge, qual seja aquela referente às razões desta desaprovação dos primeiros, juízes e desembargadores, em relação ao último, o STF. É lícito indagar: por que a mais alta corte de Justiça do país é negativamente avaliada por significativa parcela dos magistrados brasileiros? O presente artigo busca responder a esta pergunta, fornecendo uma explicação sobre as razões pelas quais os juízes e desembargadores são tão críticos em seu juízo sobre o mais alto tribunal do país.

Com o objetivo de responder a esta indagação, o artigo está organizado da seguinte forma: primeiramente, busca-se acessar dados já coletados em outras pesquisas realizadas junto aos magistrados brasileiros que deram conta de apreender as atitudes dos julgadores brasileiros frente ao órgão de cúpula da instituição que integram; em seguida, pretende-se apresentar considerações de ordem institucional, ligadas aos diferentes modelos de recrutamento dos magistrados nas distintas posições hierárquicas existentes, atentando-se para os diferentes perfis de carreira observados nos distintos níveis de atuação jurisdicional; em terceiro lugar, e como complemento ao anterior, passar-se-á a analisar dois modelos básicos de decisão adotados pelos magistrados nos diferentes níveis da hierarquia judicial. A partir da combinação dessas duas estratégias — variações nas regras de recrutamento e diferentes tipos de perfil decisório —, pretende-se chegar a uma proposta explicativa capaz de compreender a dinâmica entre o topo e a base da hierarquia judicial brasileira, explicando a desaprovação da última em relação à primeira. Em tempo, cumpre observar que a matriz teórica empregada neste trabalho enfatiza o juízo analítico em detrimento daquele dito normativo, ou prescritivo, e prioriza a abordagem interdisciplinar, estabelecendo interfaces entre a Ciência Jurídica e as Ciências Sociais, notadamente os campos da Sociologia e da Ciência Política.

OS ASPECTOS CRÍTICOS

Antes de se passar à busca por respostas à questão proposta, cumpre apresentar de forma mais aprofundada o que foi afirmado anteriormente. O que se segue adiante, portanto, é uma compilação sintética de achados em surveys realizados junto a número significativo de magistrados brasileiros em outras pesquisas que deram tratamento ao tema. Mais do que apresentar dados novos referentes a esta realidade, portanto, o que se pretende é explorar com um pouco mais de detalhe e refinamento as informações já coletadas por aqueles trabalhos, abordando-os sob prisma não adotado naquelas pesquisas. Semelhantemente, em vez de apresentar todos os achados daqueles pesquisadores, que são muitos e naturalmente diversos, pretende-se restringir estes dados àqueles diretamente relevantes ao tema aqui discutido. Neste sentido, as abrangentes e detalhadas pesquisas de Vianna et alii (1997) e Sadek (2006), que incluem levantamentos nacionais de larga escala sobre as atitudes dos magistrados brasileiros com relação a vários temas, são diretamente importantes e úteis.

Como se constata especialmente no último destes trabalhos, a afirmação de que juízes e desembargadores veem a atuação do STF com ressalvas é amplamente corroborada. Os dados desta pesquisa sobre as visões dos magistrados em face dos Ministros do STF são claros em atestar a crítica daqueles em relação a estes, especialmente no que se refere ao grau de autonomia que o mais alto tribunal do Brasil desfrutaria frente ao conjunto de forças políticas existentes no país. A tabela a seguir, extraída daquele trabalho, busca apresentar os pontos críticos destacados por juízes e desembargadores nas diferentes relações travadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Como se percebe, a avaliação do STF é negativa com relação a praticamente todos os quesitos. O grau de independência da instituição ante o conjunto de principais forças políticas existentes — Presidência da República, Congresso Nacional e interesses econômicos privados — merece nota média que não passa de 4,7 quando analisadas em conjunto tais avaliações. Em especial, merece ser destacada a baixíssima nota recebida pela instituição em sua relação com a chefia do Poder Executivo. Tal juízo dá a entender que os magistrados brasileiros encaram semelhante relacionamento com importantes ressalvas, a ponto de considerar ameaçada a independência da instituição máxima do Poder Judiciário do país nas suas relações com a Presidência da República. Em mesmo sentido apontam os dados referentes à avaliação que juízes e desembargadores fazem da relação estabelecida entre o mais alto tribunal brasileiro e a comunidade jurídica nacional. Se, por um lado, a nota razoável recebida no caso da relação dos tribunais superiores com o STF pode ser explicada em função da proximidade da atribuição institucional destas instituições — uniformização jurisprudencial e nacionalização do Direito —, por outro lado, percebe-se claramente que os juízos se tornam mais críticos quanto mais em direção "às bases" se relacionam as atitudes, mais críticos se afigurando as visões dos magistrados no que tange à avaliação das relações que o STF estabelece com as instâncias inferiores da magistratura e com suas respectivas associações de classe. O relacionamento que o tribunal estabelece com os demais integrantes do Poder Judiciário, excluídos os tribunais superiores, merece avaliação que vai de regular a baixa entre os magistrados do país, confirmando o juízo negativo que estes têm em relação à Suprema Corte brasileira. Em termos de imparcialidade das decisões, a avaliação recebida pelo STF acompanha esta tendência geral de suspeição com relação à corte e a afasta do juízo que os magistrados brasileiros têm de outras instituições judiciais do país, como as Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, por exemplo. E o que se observa na seguinte tabela, extraída da mesma obra.

Como corretamente sumariza a autora do trabalho em sua leitura dos dados apresentados acima: "As maiores proporções de notas 'muito ruim' e 'ruim' foram dadas para o STF [...] que, neste aspecto, se encontra em posição muito distante de todas as demais instituições" (SADEK, 2006, p. 42). No entanto, e como não poderia ser diferente, tal juízo se reflete sobre a produção jurisprudencial dos níveis inferiores da magistratura nacional em relação ao seu ápice hierárquico. Como se observa na próxima tabela, que sintetiza dados previamente expostos em outra pesquisa, a crítica que juízes e desembargadores dirigem à suposta falta de independência e imparcialidade do STF ante os demais Poderes constituídos parece resultar em suspeição quanto às decisões realizadas por aquela corte, a ponto de verem também com reticência controles jurisprudenciais instituídos a partir desta.

Os dados — coletados previamente à promulgação da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, que instituiu a possibilidade de edição de súmulas com caráter vinculante por parte do STF — dão conta de apresentar a suspeição que os magistrados de instâncias inferiores têm com relação a estas diretivas. Mais do que simplesmente representarem uma recusa à submissão a um controle externo, as informações parecem reproduzir novamente a desconfiança de juízes e desembargadores em face do mais alto tribunal do país. No caso, e com o cuidado de lembrar que esta é apenas uma interpretação possível destes dados, não se trataria de uma recusa pura e simples a mecanismos de padronização jurisprudencial, o que também parece existir, mas de uma censura ao papel que o STF exerceria nesse contexto. Grosso modo, ao que aparenta, do ponto de vista dos magistrados, é como se a alegada falta de autonomia em relação especialmente ao Poder Executivo não habilitasse a mais alta corte brasileira a exercer essas funções com a imparcialidade supostamente exigida. Do ponto de vista dos magistrados da base do Poder Judiciário brasileiro, ao que parece, a instituição de tais mecanismos de padronização jurisprudencial simbolizaria, portanto, uma espécie de controle que os demais Poderes do Estado realizariam — isto é, um controle de caráter "político" — em relação aos juízes e desembargadores, que ocorreria justamente por meio da ação do STF, supostamente entendida como instrumento de efetivação da vontade daqueles outros Poderes.

Este juízo de suspeição que os magistrados lançam sobre a Suprema Corte brasileira sugere que o STF é visto mais como um órgão de caráter político (quiçá político-partidária) do que como parte do Poder Judiciário, como se fosse uma instituição estranha ao próprio Poder do Estado que encabeça. Compreender esse aparente descompasso é a tarefa que se coloca nas seções subsequentes. Neste sentido, dois cursos complementares de ação foram adotados: o primeiro enfatiza o exame do tipo de recrutamento e a forma investidura no cargo de magistrado das instâncias inferiores da hierarquia judicial e os compara com aquele para o cargo de Ministro do STF, ao passo que o último diz respeito ao tipo de padrão decisório que se afirma existir nestas duas esferas de atuação jurisdicional. Expor a primeira destas abordagens é o que se passa a fazer a seguir.

VARIAÇÕES INSTITUCIONAIS NO RECRUTAMENTO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS

Como parece claro, a configuração institucional de acesso aos cargos nos diversos níveis da hierarquia judicial brasileira é bastante distinta. Se, por um lado, juízes e desembargadores chegam aos seus postos por um caminho praticamente único que valoriza sobremaneira os sentimentos de mérito e esforço pessoais, por outro lado, o acesso ao posto de Ministro do STF parece ser encarado pelos primeiros como resultado de apadrinhamento político, justamente em função dos critérios menos restritivos de acesso.5 5 A única forma de se chegar ao posto de desembargador (mas não ao de juiz) diferente daquela que enfatiza a ascensão interna à carreira de magistrado é a indicação pelo quinto constitucional destinado aos integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Talvez em razão disso se observe também o apoio de mais de 70% dos magistrados à extinção dessa forma de preenchimento dos cargos (SADEK, 2006, p. 57).

Isso significa afirmar que juízes e desembargadores geralmente chegam aos seus respectivos postos por meio de carreiras de Estado, nas quais o padrão de recrutamento pode ser enquadrado naquilo que Hirschman (1973) designou ser iniciação severa (hard iniciation). Neste sentido, em virtude de o acesso à carreira da magistratura ser geralmente bastante seletivo, ele auxiliaria na reprodução da lealdade à organização entre seus membros. Concursos públicos de forte caráter meritocrático fariam com que juízes ingressassem em uma corporação profissionalizada que prezaria pelo esforço e pela excelência individuais, o que lhes sedimentaria os vínculos entre seus pares, isto é, em meio àqueles que também teriam passado por este mesmo processo árduo e restritivo de seleção e ascensão profissionais.6 6 Vale ressaltar que este padrão de iniciação severa observa-se também em outras carreiras públicas e mesmo entre aquelas de caráter eletivo. Deputados de determinados partidos políticos, como aqueles vinculados à esquerda no espectro ideológico em países como o Brasil, Chile e Uruguai apresentam esse perfil (MARENCO DOS SANTOS; SERNA, 2007).

Esta ideia de mérito pessoal, que contribui para o sentimento de pertencimento à corporação, é possivelmente reforçada pela tendência apresentada no perfil de grande parte dos magistrados de não serem oriundos de estratos sociais privilegiados da população, mas sim de camadas médias e mesmo baixas, verificando-se inclusive não raramente casos de mobilidade social intergeneracional (veja-se VIANNA et alii, 1997, p. 88-135; SADEK, 2006, p. 22-26; PERISSINOTO, 2008).

Este perfil de recrutamento possivelmente se encontra associado à promoção da ideia de profissionalismo de que fala Bonelli (2002; 2006) e à sua retórica de separação em relação ao universo político por meio do qual busca criar um ethos comum ao grupo de modo a diferenciá-lo dos outros conjuntos de atividades públicas. De acordo com a autora, a ideologia do profissionalismo enfatiza que o conhecimento especializado de determinado rol de atividades por um grupo o habilitaria a deter jurisdição exclusiva sobre este conjunto particular de práticas na divisão social do trabalho. No caso dos magistrados, a função de interpretação do conjunto de normas jurídicas com o propósito de decidir controvérsias concretas decorrentes de sua aplicação a casos específicos passaria a ser considerada atribuição exclusiva daqueles que se prepararam adequadamente para exercê-la, dedicando muitas vezes anos em treinamento para os concursos públicos e nas escolas da magistratura para o posterior ingresso na carreira judicial.

Em face dessas características que distinguem este grupo de profissionais, parece razoável supor que estes encarem os integrantes do mais alto tribunal brasileiro como inaptos e/ou não necessariamente dignos de ocupar seus respectivos postos justamente porque o tipo de acesso aos seus cargos não os habilitaria para tanto, contrariamente do que ocorreria com eles.

Sabe-se justamente que o topo da cadeia hierárquica do Poder Judiciário brasileiro é composto de membros cujo acesso ao cargo — de Ministro do STF — não depende, ao menos em princípio, dos mesmos critérios rígidos e corporativos que existem entre juízes e desembargadores. No caso, de acordo com o artigo 101 e seu respectivo parágrafo único da Constituição de 1988 e a exemplo de praticamente todas as anteriores desde 1891, a indicação pelo Poder Executivo, com ulterior aprovação pelo Senado Federal, de um indivíduo com mais de 35 anos de idade e diploma em qualquer faculdade de Direito credenciada junto ao Ministério da Educação parece bastar.7 7 A Constituição exige "notável saber jurídico" e "ilibada reputação" dos indicados, todavia inexistem parâmetros objetivos para identificação de tais quesitos, ficando sua apreciação a critério do Presidente da República e do Senado. Os únicos casos de indicações de Ministros ao STF rejeitadas pela Câmara alta brasileira ocorreram durante a República Velha, quando o presidente Floriano Peixoto indicou Barata Ribeiro, Innocêncio Queiroz, Ewerton Quadros, Antonio Sève Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo para o cargo, que foram rejeitados em grande parte por não possuírem diploma superior em Direito (KOERNER, 1998; MARENCO DOS SANTOS; DA ROS, 2008). A exemplo do que ocorre com a maioria das nomeações presidenciais para outros cargos, os interesses do Poder Executivo raramente são contrariados pelo Senado neste particular (LEMOS; LLANOS, 2007; 2013; MARENCO DOS SANTOS e DA ROS, 2008; DA ROS, 2010).

Não há, portanto, necessariamente nenhuma espécie de vínculo entre a forma de ascensão ao cargo de Ministro do STF, por um lado, e a carreira dos demais magistrados na primeira e segunda instâncias do Poder Judiciário, por outro. Em vista disso, do ponto de vista de juízes e desembargadores, gerar-se-ia uma situação que pode ser descrita como um desequilíbrio: na base do Poder Judiciário brasileiro, o que existiria seriam profissionais pertencentes a uma corporação de difícil acesso fundamentada nas ideias de mérito e esforço individuais; no topo, seriam indivíduos cujo toque de Midas do Presidente da República os concederia, praticamente sem esforço, o cargo mais elevado na hierarquia judicial. Esta situação é provavelmente reforçada pelo fato de que muitos Ministros do STF não são extraídos dos círculos inferiores da magistratura, mas sim de outras carreiras do mundo jurídico, como a advocacia e o Ministério Público, para não falar em casos de integrantes do mais alto tribunal brasileiro que circularam pelas arenas burocrática e político-partidária, assumindo postos juntos aos Poderes Executivo e Legislativo, inclusive de caráter eletivo.

Conforme estudos recentes demonstraram, a tendência geral do perfil de carreira dos Ministros indicados ao STF e ao seu órgão predecessor, o Supremo Tribunal de Justiça do Império (STJi), é que estes apresentem alguma experiência política prévia à investidura no cargo, embora semelhante tendência venha se abrandando ao longo do tempo (MARENCO DOS SANTOS; DA ROS, 2008; DA ROS, 2010; BRINKS, 2011; OLIVEIRA, 2011; 2012).8 8 Esta tendência à maior endogeneização do recrutamento dos Ministros do STF às carreiras políticas, todavia, não é consensual na literatura especializada. O estudo recente de Kapiszewski (2010, p. 55), por exemplo, sugere que teria ocorrido um incremento na indicação de indivíduos com vinculação ao Partido dos Trabalhadores após a ascensão de Lula à Presidência da República, em 2003. Trata-se, portanto, de indivíduos que, ao menos em tese, não teriam passado pelo mesmo treinamento rigoroso a que foram submetidos os demais para o exercício de funções semelhantes e, obviamente, de maior repercussão. Tal descompasso, que provavelmente contribui para que muitos juízes e desembargadores vejam mesmo como ilegítimos alguns posicionamentos firmados pelos Ministros do STF, é também agravado pelas posições hierárquicas ocupadas pelos dois grupos.

Do ponto de vista dos magistrados das instâncias inferiores, portanto, o fato de que a interpretação da Constituição, documento fundamental da ordem política e jurídica do país, seja exercida não por "verdadeiros juízes" (isto é, aqueles que passaram por todo o processo de seleção e ascensão interna à carreira de magistrado), mas sim por "políticos investidos na função de magistrados" (quer dizer, indivíduos cujas trajetórias não são, em princípio, encaradas com a mesma seriedade que a dos primeiros), contribuiria para a constante dificuldade na aceitação de mecanismos hierárquicos de controle da produção jurisprudencial por parte de juízes e desembargadores, como visto em relação à súmula vinculante, por exemplo. No limite, pode-se afirmar que o problema identificado pelos magistrados integrantes dos círculos inferiores da hierarquia judicial em relação ao STF seria a partidarização deste órgão — quer pela forma de preenchimento dos cargos, quer pelos próprios indivíduos que lá seriam colocados em razão deste procedimento —, o que macularia os pressupostos básicos sobre os quais alegadamente se assentaria toda a atuação do Poder Judiciário, as ideias de independência e imparcialidade. A origem político-partidária dos Ministros do STF, seja por suas carreiras prévias ou forma de investidura, contribuiria decisivamente para a carência de legitimidade do órgão junto à base da magistratura, fazendo eco de uma crítica que não é comum apenas ao caso brasileiro, mas a muitos países latino-americanos (veja-se VALDÉS, 2003; ZAFFARONI, 1995) e que ocorreria também em países de longeva tradição democrática, como mostra Bork, ele próprio indicado justice para a Suprema Corte dos Estados Unidos, mas rejeitado pelo Senado em 1987, em seu comentário a respeito do processo de indicação dos integrantes da mais alta corte daquele país: "When the [Supreme] Court is perceived as a political rather than a legal institution [...] nominees will be treated like political candidates" (BORK, 1990, p. 348).9 9 Trata-se, ademais, de uma crítica que não se verifica somente entre os magistrados brasileiros, mas que se encontra presente em vários segmentos da opinião pública, inclusive com diversas manifestações nos veículos de comunicação de massa (OLIVEIRA, 2006a, p. 84-89).

Ao que parece, trata-se de uma visão sobre as cortes que tende a ocorrer nos contextos em que estas passam a exercer funções de elevada saliência política, situação que as coloca em permanente contato com a dinâmica político-partidária. Em vista das salientes funções atribuídas pela Constituição de 1988, particularmente em relação ao controle abstrato de constitucionalidade das leis, sabe-se que o STF ganhou ampla proeminência política, exatamente neste sentido, como diversos estudos vem demonstrando (ARANTES, 1997; VIANNA et alii, 1999; TAYLOR, 2008; OLIVEIRA, 2012).

Convém observar, contudo, que se afastar dessa lógica não é uma tarefa fácil para o STF, eis que esta em grande medida independe de decisão própria do tribunal. Não apenas o desenho institucional do órgão, mas também seus usos pelos diversos proponentes (especialmente partidos políticos), acabam obrigando o tribunal a ter de analisar a constitucionalidade de praticamente todo tipo de legislação e política pública adotada em âmbito nacional e mesmo estadual, aproximando mais do que afastando o STF de temas com imediatos reflexos político-partidários (veja-se, por exemplo, TAYLOR; DA ROS, 2008).

Não é de se estranhar, portanto, que uma das propostas que geralmente ganha mais apoio entre juízes e desembargadores é aquela que prevê a indicação para os cargos do STF somente dentro dos quadros da própria magistratura. Há forte apoio dos magistrados de primeira e segunda instância a esta forma de indicação à Corte Suprema no Brasil. Os dados existentes apontam que a nota média dada por estes magistrados a este modelo alternativo de recrutamento de integrantes do STF é mais de seis pontos superior àquela concedida ao modelo atual, como se observa na tabela a seguir.

Em tempo, é válido ressaltar que a forma de investidura no cargo de Ministro do STF também é apontada por parte da literatura especializada como uma das razões pelas quais este órgão seria, com frequência acima da esperada de uma instituição judicial, conivente com relação a determinadas práticas políticas no Brasil, contrariando apenas ocasionalmente as medidas legislativas adotadas pelo Governo Federal e pelo Poder Executivo em particular (CARVALHO NETO, 2000; 2004; CASTRO; RIBEIRO, 2006). Embora estes trabalhos apenas sugiram esta relação de causalidade e não a testem empiricamente, é importante ressaltar que seu argumento possui como fundamento exatamente as mesmas premissas que norteiam as críticas dirigidas ao STF por juízes e desembargadores. No caso, como o Poder Executivo possuiria ampla liberalidade na indicação dos Ministros do STF, este apontaria para o cargo ou indivíduos coniventes com relação àquelas práticas políticas, sendo, por vezes, mesmo seus partidários, que reproduziriam junto à instituição máxima da Justiça no Brasil a lealdade que supostamente os caracterizaria na vida política.10 10 Uma das primeiras manifestações deste argumento encontra-se em famoso artigo publicado há mais de cinquenta anos por Dahl (1957). Em sua visão, a forma de investidura no cargo dos justices da Suprema Corte dos Estados Unidos (praticamente idêntica à brasileira) asseguraria a pequena relevância política do órgão por permitir ao Presidente da República indicar indivíduos que não destoassem de suas próprias preferências. Um aprofundamento deste argumento, realizado por Segal e Spaeth (1993; 2002) em famosos estudos sobre o tema, aponta que estes mesmos magistrados votariam exatamente de acordo com as linhas partidárias dos presidentes que os nomearam, sendo preponderantemente conservadores aqueles indicados por republicanos e majoritariamente liberais os apontados por chefes de Estado do filiados ao Partido Democrata. De uma forma ou de outra, carecer-lhes-ia a lisura e imparcialidade consideradas necessárias para desempenhar a função judicial, razão pela qual as críticas dos demais magistrados seriam frequentes.

VISÕES SOBRE AS DECISÕES DOS MAGISTRADOS NOS DIFERENTES NÍVEIS HIERÁRQUICOS

Os fatores que conduziriam o STF e seus integrantes a serem negativamente avaliados pelos demais magistrados do país, todavia, não se esgotam na diferença com relação ao tipo de acesso aos seus postos, mas se desdobraria em direção à maneira pela qual juízes e desembargadores veem como decidem os integrantes do órgão de cúpula do Poder Judiciário no Brasil. Em complemento ao argumento recém-exposto, portanto, pode-se aventar outra hipótese, até certo ponto derivada da primeira. Trata-se de observar que, ao lado das diferentes formas de recrutamento — concurso e carreira, por um lado, e indicação presidencial, por outro —, haveria também duas formas distintas de interpretar o Direito e, portanto, duas formas diferentes de se exercer basicamente a mesma função, a de julgar e dirimir controvérsias em meio à aplicação concreta das regras jurídicas abstratas.

Ao passo que os magistrados ocupantes de postos junto às primeira e segunda instâncias seriam adeptos de uma postura jurídica fundamentalmente ligada à interpretação da lei — seja por meio do rígido e tradicional formalismo, seja pela adesão a uma visão mais hermenêutica, ligada à interpretação de princípios constitucionais ou mesmo supraconstitucionais —, os Ministros do STF seriam vistos como magistrados que tendem a julgar com base em critérios extrajurídicos, dando vazão a argumentos que levariam em consideração não apenas as consequências propriamente jurídicas do que é decidido, mas também, e sobretudo, os efeitos políticos e econômicos com relação ao que se julga.

Trata-se, portanto, de outro aspecto que contribui para a visão frequente que indica ser o STF um órgão omisso em relação às práticas políticas levadas a cabo pelos poderes representativos, e em particular pela Presidência da República. Ao passo que praticamente 90% dos juízes e desembargadores afirmam decidir tendo em vista estritamente os parâmetros legais (SADEK, 2006, p. 47-50), estes parecem ver exatamente o oposto ocorrer no STF, como se viu anteriormente em relação às notas médias concedidas por juízes e desembargadores à independência do STF frente às instituições representativas e principais interesses econômicos. Esta alegada carência de independência do tribunal não seria, portanto, apenas resultado da forma de investidura ao cargo de Ministro do STF, mas se verificaria também durante a operação cotidiana do tribunal, dando vazão às críticas que muitos desses magistrados realizariam em relação ao órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro.

Embora este seja um argumento semelhante ao anterior, ele não lhe é idêntico. No primeiro caso, o tribunal seria negativamente avaliado porque a forma de preenchimento dos cargos asseguraria a "partidarização" da corte. Neste caso, o tribunal, provavelmente por se sentir pressionado ao decidir, julgaria com base em critérios extrajurídicos, não necessariamente partidários, o que também geraria avaliação negativa por parte dos demais magistrados brasileiros. A distinção que se aplica aqui frisa que o tribunal não seria necessariamente um órgão político-partidário, como o argumento anterior parece presumir, mas sim que ao tribunal careceria a devida independência para que julgasse, de forma que este precisaria recorrer a uma argumentação pouco convencional para poder e enquadrar em parâmetros juridicamente justificáveis suas decisões, especialmente em temas controversos e de ampla saliência pública.

A fonte dessa falta de independência, portanto, não seria apenas a forma de investidura dos cargos, mas provavelmente os riscos que recairiam sobre o tribunal em ver suas decisões não respeitadas ou de ter suas prerrogativas institucionais redefinidas. O argumento de que os Ministros do STF seriam prioritariamente consequencialistas, portanto, parece encontrar eco não apenas entre os magistrados, mas também entre juristas de diversas posições, de que é exemplo a fala de Vieira (2002):

Nesse aspecto, o que se pode constatar pelas decisões analisadas é o fato de que em algumas circunstâncias Ministros do Supremo deram mais peso a critérios como eficiência, utilidade, conveniência, oportunidade, segurança ou governabilidade, do que à própria normatividade, agindo, assim, de forma mais consequencialista do que principista. [...] Nestes casos temos considerações extraconstitucionais [... ] prevalecendo sobre direitos e princípios estabelecidos expressamente na Constituição (VIEIRA, 2002, p. 230-231, grifos no original).

Este é o caso de muitas críticas que a instituição sofreu em relação a diversas decisões suas, especialmente em relação à interpretação conferida pelo STF ao instituto das medidas provisórias e o controle dos pressupostos para sua edição e reedição, ou aos critérios para reajuste do salário mínimo e de aposentadorias, ou mesmo as controvérsias que envolvem decisões relativas a planos econômicos no início da década de 1990.

Em todas essas e em diversas outras ocasiões, as críticas direcionadas ao STF seriam de que o tribunal não teria decidido com base em critérios jurídicos estritos, mas sim teria desenvolvido uma jurisprudência no mínimo questionável de acordo com a visão de muitos juristas e magistrados.

DISCUSSÃO

À guisa de conclusão, é importante destacar ao menos quatro aspectos em relação aos quais este estudo espera ter contribuído. Em primeiro lugar e por óbvio que isso possa parecer, deve-se ter em mente que o Poder Judiciário não é um órgão monolítico, que apresenta indivíduos idênticos em todos os seus níveis e âmbitos de atuação, mas antes uma instituição múltipla, especializada, que é muito diversa regional, histórica e hierarquicamente (FALCÃO, 2006). A comunidade jurídica, cuja homogeneidade auxiliou a sedimentar as bases para a constituição de uma elite política uniforme na criação do estado-nação brasileiro (CARVALHO, 1980; ADORNO, 1988), hoje, ao que parece, se caracteriza pelo exato oposto.11 11 O estudo de Almeida (2010) sugere que esta mesma diversificação da comunidade jurídica, todavia, não haveria chegado aos tribunais superiores, que apresentariam elevada dose de homogeneidade em seus quadros ainda hoje. Estudos recentes demonstram que no interior das profissões jurídicas brasileiras existe uma crescente diversidade, alicerçada no associativismo e na promoção de teorias críticas do Direito que não raramente dão vazão a fundamentos extrajurídicos para as decisões judiciais, como no caso dos magistrados alternativos no Rio Grande do Sul, por exemplo (ENGELMAN, 2007; 2009). O presente estudo contribui para demonstrar que existe não apenas tal diversidade, mas também conflito no interior das profissões jurídicas e que esse conflito existe mesmo diante de uma hierarquia clara no interior das instituições políticas, como é o caso do Poder Judiciário.

Em segundo lugar, faz-se importante observar que a retórica é um instrumento do processo político (HIRSCHMAN, 1995), sendo interessante identificar a maneira pela qual ela se articula com os interesses em disputa. Nesse sentido, a crítica à origem político-partidária dos Ministros do STF por parte dos magistrados da base do Poder Judiciário no Brasil pode ser interpretada como uma espécie de jogo oculto do embate existente entre o topo e a base da hierarquia judicial, especialmente no que se refere à criação e à efetivação de mecanismos de controle da produção jurisprudencial da base (primeira e segunda instância) pelo topo (STF), adquirindo, neste caso, um nítido contorno corporativista. Convém observar que historicamente a crítica baseada na ideia de partidarismo dos magistrados de Corte Supremas tem servido como uma ferramenta discursiva importante por meio da qual se desprestigiam tais órgãos, minando os fundamentos da sua legitimidade e dando vazão à propositura de alterações sobre sua forma de funcionamento. Este foi o caso, por exemplo, do embate entre o STF e o Poder Executivo durante o período imediatamente anterior ao Ato Institucional n. 2, de 1965, que elevou o número de Ministros, buscando a aquiescência da corte às políticas então em curso (VALE, 1976), o mesmo se verificando em outras realidades, como no Argentina recente, por exemplo (HELMKE, 2004).

Em terceiro lugar, se tal conflito no interior da hierarquia judicial brasileira de fato existe, ele produziria incentivos para que os agentes políticos se preocupem com construção de mecanismos de legitimação da atuação do STF frente ao conjunto de outras instâncias do Poder Judiciário. Este parece ser o caso, por exemplo, da preponderante nomeação de juristas de carreira ao STF em tempos recentes (MARENCO DOS SANTOS; DA ROS, 2008; DA ROS, 2010; OLIVEIRA, 2011). Este conflito hierárquico, por sua vez, acaba reverberando também sobre a própria atuação do STF, que provavelmente acaba se sentindo pressionado a atuar mais de acordo com as expectativas da comunidade jurídica. Se isso não ocorre em diversos casos de maior envergadura política, conforme já discutido, isso talvez contribua para explicar o elevando sucesso de entidades de classe claramente associadas com as profissões jurídicas junto ao STF no uso de ações diretas de inconstitucionalidade propostas contra a legislação federal, como a literatura especializada vem demonstrando com relativa clareza (TAYLOR, 2008; CARVALHO NETO, 2009). Isso sugere que este conflito vertical, hierárquico, interno ao Poder Judiciário pode estar articulado com uma questão horizontal, externa ao Poder Judiciário, relativa ao controle de constitucionalidade das leis e ao comportamento dos ministros integrantes do órgão de cúpula do Poder Judiciário do país nessas situações.

Por fim, um aspecto comparativo no mínimo interessante merece ser frisado. Se no Brasil uma crítica frequente dirigida ao STF é sua alegada excessiva presença de indivíduos não provenientes de profissões tradicionalmente jurídicas,12 12 Embora esta retórica seja bastante frequente no Brasil, especialmente no círculos jurídicos como se viu acima, é importante frisar que a literatura especializada vem sobejamente demonstrando que a maioria dos Ministros do STF de fato apresentam elevada experiência no campo jurídico (veja-se, por exemplo, MARENCO DOS SANTOS; DA ROS, 2008; DA ROS, 2010; KAPISZEWSKI, 2010; OLIVEIRA, 2011). O autor agradece a um dos pareceristas anônimos da Revista Direito GV por esta observação pertinente. em outras realidades não raramente a crítica opera no sentido oposto. Nos Estados Unidos, por exemplo, em face do incremento expressivo de indivíduos indicados para a Suprema Corte provenientes exclusivamente do Poder Judiciário federal, uma crítica comum tem sido justamente a alegada falta de experiência política dos magistrados, que seria essencial ao cargo (PERETTI, 1999), ou a redução na diversidade entre os justices da U.S. Supreme Court que essa regra informal de recrutamento endógeno à magistratura estaria causando (EPSTEIN; KNIGHT; MARTIN, 2003). Isso sugere, por fim, que talvez a função exercida por tais órgãos não possa ser compreendida dentro dos marcos de um formalismo jurídico estrito, e sim no contexto de diálogo com outras instituições políticas, que conjuntamente contribuem para o estabelecimento do significado da constituição, de acordo com as ideias de diálogo ou construção constitucional, como alguns autores vem sugerindo (FISHER, 1988; WHITTINGTON, 2001).

NOTAS

Artigo aprovado (15/05/2013)

Recebido em 23/03/2012

  • ADORNO, Sérgio. Aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
  • ALMEIDA, Frederico de. Inherited capital and acquired capital: the socio-political dynamics of producing legal elites. Brazilian Political Science Review, v. 4, n. 2, p. 32-59, 2010.
  • ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário e política no Brasil. São Paulo: Sumaré, 1997.
  • ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. A imagem das instituições públicas brasileiras. Brasília, setembro, 2007. Disponível em: <www.amb.com.br/portal/docs/noticias/pesquisa_opiniao.pdf> Acesso em: 16 mar. 2008.
  • BAQUERO, Cesar Marcelo. Cultura política participativa e desconsolidação democrática: reflexões sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 98-104, 2001.
  • ______. Democracia formal, cultura política informal e capital social no Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 2, p. 380-413, 2008.
  • BONELLI, Maria da Glória. Profissionalismo e política no mundo do direito: as relações dos advogados, desembargadores, procuradores de justiça e delegados de polícia com o estado. São Paulo: Ed. UFSCar/FAPESP/Sumaré, 2002.
  • ______. Pluralismo das formas identitárias e profissionalismo na magistratura paulista. In: BONELLI, Maria da Glória; OLIVEIRA, Fabiana Luci de; MARTINS, Rennê. Profissões jurídicas, identidades e imagens públicas. São Carlos: Ed. UFSCar, 2006.
  • BORK, Robert. The tempting of America: the political seduction of the law. New York: Touchstone, 1990.
  • BRINKS, Daniel M. "Faithful servants of the regime:" the Brazilian Constitutional Court's role under the 1988 constitution. In: Gretchen Helmke and Julio Ríos-Figueroa (Eds.) Courts in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2011.
  • CALDEIRA, Gregory. Neither the purse nor the sword: dynamics of public confidence in the U.S. Supreme Court. American Political Science Review, v. 80, p. 1209-1226, 1986.
  • ______. Courts and public opinion. In: GATES, John; JOHNSON, Charles (Eds.). The American courts: a critical assessment. Washington, D.C.: Congressional Quarterly Press, 1991.
  • ______; GIBSON, James. The legitimacy of the Court of Justice in the European Union: models of institutional support. American Political Science Review, v. 89, p. 356-376, 1995.
  • ______; GIBSON, James; BAIRD, Vanessa. On the legitimacy of national high courts. American Political Science Review, v. 92, n. 2, p. 343-358, 1998.
  • CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
  • CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de. Sua Majestade o Presidente da República: estudo de caso do controle de constitucionalidade dos atos do Executivo (1995-1998). Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2000.
  • ______. Em busca da judicialização da política: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 12, n. 23, p. 115-124, 2004.
  • ______. Judicialização da política no Brasil: controle de constitucionalidade e racionalidade política. Análise Social, v. 44, n. 191, p. 315-335, 2009.
  • CASTRO, Marcus Faro de; RIBEIRO, Rochelle Pastana. Tribunais e políticas públicas: um estudo comparado. Trabalho apresentado no III Congresso Latino-Americano de Ciência Política, Campinas, 2006.
  • DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker. Journal of Public Law, v. 6, n. 2, p. 279-295, 1957.
  • DA ROS, Luciano. Judges in the formation of the nation-state: professional experiences, academic background, and geographic circulation of members of the Supreme Courts of Brazil and the United States. Brazilian Political Science Review, v. 4, n. 1, p. 102-130, 2010.
  • DELLA PORTA, Donatella. A judges' revolution? Political corruption ant the Judiciary in Italy. European Journal of Political Research, v. 39, n. 1, p. 1-21, 2001.
  • ENGELMANN, Fabiano. Tradition and diversification in the uses and definitions of the law: a proposed analysis. Brazilian Political Science Review, v. 1, n. 1, p. 53-70, 2007.
  • ______. Associativismo e engajamento político dos juristas após 1988. Política Hoje, v. 18, n. 2, p. 184-205, 2009.
  • EPSTEIN, Lee; KNIGHT, Jack; SHVETSOVA, Olga. Comparing judicial selection systems. William & Mary Bill of Rights Journal, v. 10, n. 1, p. 7-36, 2001.
  • EPSTEIN, Lee; KNIGHT, Jack; MARTIN, Andrew. The norm of prior judicial experience and its consequences for career experience diversity on the U.S. Supreme Court. California Law Review, v. 91, n. 4, p. 903-966, july, 2003.
  • FALCÃO, Joaquim. O múltiplo Judiciário. In: SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
  • FISHER, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton: Princeton University Press, 1988.
  • HELMKE, Gretchen. Courts under constraints: judges, generals, and presidents in Argentina. New York: Cambridge University Press, 2004.
  • HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. São Paulo: Perspectiva, 1973.
  • ______. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • KAPISZEWSKI, Diana. How Courts work: culture, institutions, and the brazilian Supremo Tribunal Federal. In: COUSO, Javier; HUNEEUS, Alexandra; SIEDER, Rachel (Eds.). Cultures of legality: judicialization and political activism in contemporary Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
  • KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República brasileira. São Paulo: Hucitec, 1998.
  • LAMOUNIER, Bolivar; SADEK, Maria Tereza; PINHEIRO, Armando Castelar. O Judiciário brasileiro: a avaliação das empresas. In: PINHEIRO, Armando Castelar (Org.). Judiciário e economia no Brasil. São Paulo: Sumaré, 2000.
  • LEMOS, Leany Barreiro; LLANOS, Mariana. O Senado e as aprovações de autoridades: um estudo comparativo entre Argentina e Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 64, p. 115-138, junho, 2007.
  • ______. Presidential preferences? The Supreme Federal Tribunal nominations in democratic Brazil. Latin American Politics and Society, vol. 55, n. 2, p. 77-105, 2013.
  • MARAVALL, José María. The rule of law as a political weapon. In: PRZEWORSKI, Adam; MARAVALL, José Maria (Eds.). Democracy and the rule of law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
  • MARENCO DOS SANTOS, André; DA ROS, Luciano. Caminhos que levam à Corte: carreiras e padrões de recrutamento dos ministros dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário brasileiro (1829-2006). Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 16, n. 30, p. 131-149, 2008.
  • MARENCO DOS SANTOS, André; SERNA, Miguel. Por que carreiras políticas na esquerda e na direita não são iguais? Recrutamento legislativo no Brasil, Chile e Uruguai. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 22, n. 64, p. 93-113, 2007.
  • OLIVEIRA, Fabiana Luci de. O Supremo Tribunal Federal: discurso interno versus imagem pública. In: BONELLI, Maria da Glória; OLIVEIRA, Fabiana Luci de; MARTINS, Rennê. Profissões jurídicas, identidades e imagem pública. São Carlos: UFSCar, 2006a.
  • ______. Justiça, profissionalismo, e política: O STF e o controle de constitucionalidade das leis no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011.
  • ______. STF: Do autoritarismo à democracia. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2012.
  • PERETTI, Terri. In defense of a political court. Princeton: Princeton University Press, 1999.
  • PERISSINOTO, Renato Monseff. "Vocação inata" e recursos socioculturais: o caso dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, p. 175-199, 2008.
  • SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
  • SEGAL, Jeffrey; SPAETH, Harold*. The Supreme Court and the attitudinal model. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
  • SEGAL, Jeffrey; SPAETH, Harold. The Supreme Court and the attitudinal model revisited. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
  • TAYLOR, Matthew MacLeod. Judging policy: courts and policy reform in democratic Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2008.
  • TAYLOR, Matthew MacLeod; DA ROS, Luciano. Os partidos dentro e fora do poder: a judicialização como resultado contingente da estrategia política. Dados, Rio de Janeiro, v. 51, n. 4, p. 825-864, 2008.
  • VALDÉS, Ernesto Garzón. El poder judicial en la transición a la democracia. In: MALEM, Jorge; OROZCO, Jesús; VÁSQUEZ, Rodolfo (Eds.). La función judicial: ética y democracia. Barcelona: Gedisa, 2003.
  • VALE, Osvaldo Trigueiro do. O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
  • VANBERG, Georg. Legislative-judicial relations: a game-theoretical approach to constitutional review. American Journal of Political Science, v. 45, n. 2, p. 346-361, April, 2001.
  • VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios; BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
  • VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
  • VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
  • VOLCANSEK, Mary. Constitutional courts as veto players: divorce and decrees in Italy. European Journal of Political Research, v. 39, v. 3, p. 347-372, 2001.
  • WHITTINGTON, Keith. Constitutional Construction: divided powers and constitutional meaning. Cambridge: Harvard University Press, 2001.
  • ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
  • 1
    O estudo de Caldeira, Gibson e Baird (1998) é bastante conclusivo neste sentido, comparando dezoito países. Outros trabalhos como os de Cadeira (1986; 1991), Vanberg (2001), Volcansek (2001) e aquele de Caldeira e Gibson (1995) sobre realidades específicas — Estados Unidos, Alemanha, Itália e sobre a Corte de Justiça da União Europeia, respectivamente — também atestam esta mesma legitimidade popular de Tribunais Constitucionais e Cortes Supremas nos diferentes contextos democráticos pesquisados.
  • 2
    Neste sentido, veja-se o interessante estudo de Della Porta (2001) sobre a realidade italiana e o jogo de forças que envolve a participação do Poder Judiciário daquele país (e não apenas sua Corte Constitucional) na apuração dos escândalos de corrupção durante as décadas de 1980 e 1990.
  • 3
    Trata-se da pesquisa
    A imagem das instituições públicas brasileiras, realizada com cerca de 2.000 indivíduos maiores de 16 anos residentes no Brasil pela Opinião Consultoria em setembro de 2007, a pedido da entidade dos magistrados brasileiros. A pesquisa encontra-se disponível no sítio mantido pela AMB na internet (disponível em: <
    www.amb.com.br/portal/docs/noticias/pesquisa_opiniao.pdf>), conforme acesso em 16 de março de 2008. Vale frisar ainda que o Supremo Tribunal Federal é a mais bem avaliada instituição do Poder Judiciário pelos empresários brasileiros. Frente à Justiça Comum Estadual, à Justiça Federal, ao Ministério Público, aos cartórios judiciais e especialmente à Justiça do Trabalho, o STF é o mais bem avaliado órgão pelo setor privado do país, recebendo avaliação de regular a ótima de 68,4% deste segmento (LAMOUNIER; SADEK; PINHEIRO, 2000, p. 78). Ademais, os dados apresentados são apenas exemplificativos e se encontram em sintonia com outras pesquisas sobre o mesmo tema (BAQUERO, 2001; 2008).
  • 4
    O episódio em questão foi ocasionado pela prisão de uma série de acusados de corrupção e lavagem de dinheiro, entre eles o banqueiro Daniel Dantas e o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, em decorrência da
    Operação Satiagraha deflagrada da Polícia Federal em julho de 2008. Em sua decorrência, o juiz de primeira instância encaminhou por duas ocasiões as prisões temporária e preventiva dos acusados, tendo, em ambas as ocasiões, suas decisões sido revogadas pela concessão de
    habeas corpus pelo presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes. O impasse gerado produziu acusações de parte a parte, ocasionando a referida manifestação dos magistrados, na qual inclusive se suscitou formular pedido de
    impeachment do presidente do STF.
  • 5
    A única forma de se chegar ao posto de desembargador (mas não ao de juiz) diferente daquela que enfatiza a ascensão interna à carreira de magistrado é a indicação pelo quinto constitucional destinado aos integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Talvez em razão disso se observe também o apoio de mais de 70% dos magistrados à extinção dessa forma de preenchimento dos cargos (SADEK, 2006, p. 57).
  • 6
    Vale ressaltar que este padrão de
    iniciação severa observa-se também em outras carreiras públicas e mesmo entre aquelas de caráter eletivo. Deputados de determinados partidos políticos, como aqueles vinculados à esquerda no espectro ideológico em países como o Brasil, Chile e Uruguai apresentam esse perfil (MARENCO DOS SANTOS; SERNA, 2007).
  • 7
    A Constituição exige "notável saber jurídico" e "ilibada reputação" dos indicados, todavia inexistem parâmetros objetivos para identificação de tais quesitos, ficando sua apreciação a critério do Presidente da República e do Senado. Os únicos casos de indicações de Ministros ao STF rejeitadas pela Câmara alta brasileira ocorreram durante a República Velha, quando o presidente Floriano Peixoto indicou Barata Ribeiro, Innocêncio Queiroz, Ewerton Quadros, Antonio Sève Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo para o cargo, que foram rejeitados em grande parte por não possuírem diploma superior em Direito (KOERNER, 1998; MARENCO DOS SANTOS; DA ROS, 2008). A exemplo do que ocorre com a maioria das nomeações presidenciais para outros cargos, os interesses do Poder Executivo raramente são contrariados pelo Senado neste particular (LEMOS; LLANOS, 2007; 2013; MARENCO DOS SANTOS e DA ROS, 2008; DA ROS, 2010).
  • 8
    Esta tendência à maior endogeneização do recrutamento dos Ministros do STF às carreiras políticas, todavia, não é consensual na literatura especializada. O estudo recente de Kapiszewski (2010, p. 55), por exemplo, sugere que teria ocorrido um incremento na indicação de indivíduos com vinculação ao Partido dos Trabalhadores após a ascensão de Lula à Presidência da República, em 2003.
  • 9
    Trata-se, ademais, de uma crítica que não se verifica somente entre os magistrados brasileiros, mas que se encontra presente em vários segmentos da opinião pública, inclusive com diversas manifestações nos veículos de comunicação de massa (OLIVEIRA, 2006a, p. 84-89).
  • 10
    Uma das primeiras manifestações deste argumento encontra-se em famoso artigo publicado há mais de cinquenta anos por Dahl (1957). Em sua visão, a forma de investidura no cargo dos
    justices da Suprema Corte dos Estados Unidos (praticamente idêntica à brasileira) asseguraria a pequena relevância política do órgão por permitir ao Presidente da República indicar indivíduos que não destoassem de suas próprias preferências. Um aprofundamento deste argumento, realizado por Segal e Spaeth (1993; 2002) em famosos estudos sobre o tema, aponta que estes mesmos magistrados votariam exatamente de acordo com as linhas partidárias dos presidentes que os nomearam, sendo preponderantemente conservadores aqueles indicados por republicanos e majoritariamente liberais os apontados por chefes de Estado do filiados ao Partido Democrata.
  • 11
    O estudo de Almeida (2010) sugere que esta mesma diversificação da comunidade jurídica, todavia, não haveria chegado aos tribunais superiores, que apresentariam elevada dose de homogeneidade em seus quadros ainda hoje.
  • 12
    Embora esta retórica seja bastante frequente no Brasil, especialmente no círculos jurídicos como se viu acima, é importante frisar que a literatura especializada vem sobejamente demonstrando que a maioria dos Ministros do STF de fato apresentam elevada experiência no campo jurídico (veja-se, por exemplo, MARENCO DOS SANTOS; DA ROS, 2008; DA ROS, 2010; KAPISZEWSKI, 2010; OLIVEIRA, 2011). O autor agradece a um dos pareceristas anônimos da Revista Direito GV por esta observação pertinente.
  • Endereço para correspondência:

    Luciano Da Ros
    University of Illinois at Chicago
    Department of Political Science Behavioral Sciences Building
    1007 West Harrison Street M/C 276
    Chicago - Illinois - EUA 60610
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      23 Mar 2012
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo Rua Rocha, 233, 11º andar, 01330-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799 2172 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revistadireitogv@fgv.br