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A Defensoria Pública e o reconhecimento das diferenças: potencialidades e desafios de suas práticas institucionais em São Paulo

The Public Defender’s office and the recognition of differences: potentialities and challenges of its institutional practices in São Paulo

Resumo

A análise visa identificar o papel da Defensoria Pública na promoção do reconhecimento às diferenças. Será apresentado o contexto normativo para a proteção de grupos estigmatizados pela instituição e, com base na formulação teórica de Nancy Fraser, uma proposta de caracterização desses grupos. Em seguida, serão analisados desafios e possibilidades de práticas institucionais da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que podem favorecer o reconhecimento das diferenças: os Núcleos Especializados, as ações afirmativas, a produção de dados e os mecanismos de participação popular. A partir dessa análise, será possível construir a hipótese de que apesar de o foco das atribuições da Defensoria Pública ser atender àqueles carentes de recursos econômicos, o não reconhecimento de diferenças produz obstáculos ao acesso à justiça e à paridade participativa, que devem ser enfrentados pela instituição. Há muitos desafios a serem enfrentados para o reconhecimento das diferenças nas práticas institucionais da Defensoria Pública. Uma reflexão profunda sobre o tema é necessária. A proposta deste artigo é apenas iniciá-la.

Defensoria Pública; reconhecimento; paridade participativa; grupos sociais estigmatizados; acesso à justiça; práticas institucionais

ABSTRACT

This essay intends to investigate the role of the Public Defender’s Office in promoting the recognition of difference. The normative context for the protection of stigmatized groups and a proposal for the characterization of these groups in accordance with Nancy Fraser’s theory will be presented. Subsequently, the challenges and Public Defender’s Office institutional practices that may be favorable to the recognition of differences such as Specialized Centers Offices, affirmative action, data production and the means for public participation will be analyzed. Based on this analysis, it will be possible to raise the hypothesis that although the aim of the Public Defender’s Office is to work for those who lack sufficient financial resources, the non-recognition creates obstacles to the access of justice and to participatory parity that must be overcome by the institution. There are many challenges to be faced in order to have the recognition of difference in the Public Defender’s Office institutional practices. An in-deep reflection over this subject is mandatory. The main objective of this article is to instigate it.

Public Defender’s Office; recognition; participatory parity; stigmatized social groups; access to justice; institutional practices

Introdução

Inicialmente, convém apontar, como premissa metodológica, dois pontos de partida para a reflexão realizada neste artigo: a experiência de uma das autoras como defensora pública e Coordenadora do Núcleo Especializado de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP), apresentada no Seminário “Gênero, raça e pobreza: a abordagem de múltiplas identidades pelo Direito”, ocorrido em São Paulo, de 12 a 14 de novembro de 2014; e a iniciação científica sobre a atuação do mesmo Núcleo, realizada pela outra autora, em 2013.1 1 O Núcleo de combate à Discriminação foi criado em 2008 a partir de reivindicações de movimentos sociais de São Paulo na I Conferência Estadual da Defensoria Pública, em 2007. Vanessa Alves Vieira, autora deste artigo, é Coordenadora do Núcleo desde 2011. Clio Nudel Radomysler, coautora, realizou em 2013 uma iniciação científica sobre a atuação do Núcleo que se encontra disponível, em formato de artigo, em: <http://diversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br/files/Clio%20Nudel.pdf>.

A criação e o fortalecimento do Núcleo de Combate a Discriminação da DPESP representam um importante reflexo do novo dimensionamento dado à Defensoria Pública nos últimos anos, fortalecido pela promulgação da Lei Complementar n. 132/2009, que trouxe contornos normativos inéditos à atuação do órgão.

Sem retirar o compromisso da instituição com a assistência jurídica de pessoas de baixa renda, a LC n. 132/2009 valoriza uma atuação preventiva e voltada para a promoção dos direitos humanos. Dentre as inovações, inclui-se o registro explícito do objetivo institucional de defesa dos direitos de pessoas vítimas de discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência (inciso XVIII do art. 4º da LC n. 80/94, alterado pela LC n. 132/2009).

O Núcleo de Combate a Discriminação tem como missão combater qualquer forma de discriminação, racismo e preconceito. Um de seus objetivos é propor medidas judiciais e extrajudiciais para a tutela de interesses individuais e coletivos de grupos sociais discriminados.

O surgimento do Núcleo de Combate a Discriminação também decorre de um contexto contemporâneo em que a afirmação das diferenças – étnicas, raciais, de gênero, orientação sexual, religiosas, entre outras – vem adquirindo cada vez mais visibilidade.

Conforme Nancy Fraser, “a ‘luta por reconhecimento’ está rapidamente se tornando a forma paradigmática de conflito político no final do século XX” (FRASER, 2006FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção integrada da justiça. In: FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas de justiça numa era “pós-socialista”. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de Campo, n. 14/15. São Paulo, p. 231-239, 2006., p. 231). A gramática dos direitos humanos, concebidos classicamente nos termos da proteção dos direitos individuais em face do poder abusivo dos Estados, passa a contemplar não só a dupla dimensão dos direitos civis e políticos, e sociais, econômicos e culturais, como também a envolver, de modo crescente, a proteção de grupos sociais específicos, como mulheres, negros e a população LGBT, reconhecendo as especificidades de suas demandas (VIANNA, 2012VIANNA, Adriana de Resende Barros. Direito a diferença: Introdução. In: LIMA, Antonio Carlos de (Org.). Antropologia & direito. Temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro/Blumenau: Nova Letra/LACED/Associação Brasileira de Antropologia, p. 202-212, 2012., p. 209).

Apesar da recente consolidação da Defensoria Pública como instituição responsável pela promoção dos direitos humanos e das crescentes demandas por reconhecimento que caracterizam o contexto atual, o Núcleo Especializado de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da DPESP encontra muitas vezes dificuldades e até mesmo resistências institucionais para a defesa dos interesses dos grupos discriminados socialmente. Além da dificuldade de compreensão da importância de políticas institucionais direcionadas a grupos específicos, há acentuada preocupação em se atrelar a defesa de grupos estigmatizados socialmente à insuficiência de recursos das pessoas integrantes desses grupos. A possibilidade de realizar ações judiciais e extrajudiciais em defesa de vítimas de discriminação ou de outras violências que não são carentes de recursos econômicos é, muitas vezes, questionada. Não há consenso sobre a necessidade de práticas institucionais destinadas ao enfrentamento da discriminação, como, por exemplo, a implementação de ações afirmativas no âmbito da Defensoria Pública e a inclusão do quesito raça/cor nas fichas de atendimento a presos provisórios.

Uma ampla articulação da sociedade civil foi necessária para que cotas raciais fossem aprovadas nos concursos de ingresso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A importância do quesito raça/cor nas fichas de atendimento a presos provisórios foi questionada por supostamente não contribuir para a defesa processual dos usuários.

Observa-se que ainda é incipiente a reflexão sobre o papel da Defensoria Pública na efetivação de demandas por reconhecimento das diferenças. Diante desse cenário, as indagações propostas neste artigo são: qual o contexto normativo que legitima a proteção de grupos estigmatizados socialmente pela Defensoria Pública? O que faz esses grupos terem necessidade de um olhar específico nas práticas institucionais? Devem eles ser protegidos independentemente da ausência de recursos econômicos? Quais possíveis práticas institucionais podem favorecer a efetivação do reconhecimento das diferenças pela Defensoria Pública?

Inicialmente, será descrito o contexto normativo para a proteção de grupos estigmatizados socialmente pela Defensoria Pública. Em seguida, a partir da concepção ampla de justiça de Nancy Fraser, será proposta uma forma de identificação dos grupos pelos quais o órgão deve atuar. Por fim, serão analisados desafios e possibilidades de práticas institucionais que podem favorecer o reconhecimento das diferenças, especialmente no âmbito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

1 Contexto normativo para a proteção de grupos sociais estigmatizados

A Defensoria Pública consiste no mecanismo estabelecido pela Constituição da República para a efetivação da “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV).

A Constituição não indica critérios para a definição do termoinsuficiência de recursos, utilizando apenas outro conceito, de necessitados, para definir o público-alvo da atuação da Defensoria Pública. No entanto, a perspectiva de acesso à justiça que acompanhou a criação da instituição é marcadamente voltada para o atendimento de demandas individuais de cidadãos de baixa renda.

Conforme a metáfora de “ondas” elaborada por Cappelletti e Garth, a criação da Defensoria Pública pode ser considerada uma reforma de acesso à justiça própria da “primeira onda”, de “ajuda legal para os pobres” (SANCHEZ FILHO, 2001SANCHEZ FILHO, Alvino Oliveira. Experiências institucionais de acesso à justiça no Estado da Bahia. In: SADEK, Maria Tereza (Org.).Acesso à justiça. São Paulo: Konrad-Adenauer Stiftung, p. 241-270, 2001., p. 243). As principais questões na época não eram a expansão do Estado Social e a necessidade de se tornarem efetivos os direitos conquistados principalmente a partir dos anos 1960 pelas “minorias” étnico-raciais e sexuais. O foco das políticas e estudos sobre acesso à justiça no Brasil nos anos 1980 era a necessidade de se expandirem para o conjunto da população direitos básicos aos quais a maioria não tinha acesso, em razão da histórica marginalização socioeconômica dos setores subalternizados e da exclusão político-jurídica provocada pelo regime pós-1964 (JUNQUEIRA, 1996JUNQUEIRA, Eliane B. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo.Revista Estudos Históricos, n. 18, p. 389-402, 1996., p. 390).

Nesse sentido, a definição constitucional de necessitados faz alusão ao critério econômico como elemento marcante dessa condição. A política pública de “assistência jurídica integral e gratuita” teria, assim, características essencialmente redistributivas, ou seja, visaria propiciar instrumentos de reivindicação de direitos àqueles carentes de recursos econômicos, para que atinjam patamar de proteção similar àqueles que possuem esses recursos.

A partir das reformas no Judiciário que se iniciaram com a Emenda Constitucional n. 45/2004, um novo dimensionamento foi dado à Defensoria Pública, mais alinhada a uma perspectiva inovadora de serviço legal.2 2 Para uma análise da tipologia que diferencia “serviços legais inovadores” de “serviços legais tradicionais”, ver Campilongo (1994). A instituição deve ainda realizar o trabalho do qual se originou: o atendimento às necessidades individuais do cidadão de baixa renda nos processos judiciais. No entanto, mudanças legislativas passam a priorizar uma atuação institucional pautada na promoção dos direitos humanos, na defesa de interesses coletivos, no atendimento multidisciplinar, na resolução extrajudicial de demandas, e na educação em direitos (BURGUER; BALBINOT, 2011BURGUER, Adriana Fagundes; BALBINOT, Christine. A nova dimensão da Defensoria Pública a partir das alterações introduzidas pela Lei Complementar n. 132 na Lei Complementar n. 80/94. In: SOUZA, José Augusto Garcia de (Coord.). Uma nova Defensoria Pública pede passagem: reflexões sobre a Lei Complementar n. 132/09. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 1-12, 2011.).

A EC n. 45/2004 assegurou autonomia funcional e financeira às Defensorias Estaduais, incluindo-se iniciativa de proposta orçamentária. A Lei n. 11.448/2007 legitimou a atuação da Defensoria na proteção de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos conferindo-lhe legitimidade para a propositura de ações civis públicas. A Lei Complementar n. 132/2009, por sua vez, alterou o art. 3º da Lei Complementar n. 80/94, para incluir como objetivos da Defensoria Pública “a primazia da dignidade humana e a redução das desigualdades sociais”; a “afirmação do Estado Democrático de Direito”; e a “prevalência e efetividade dos direitos humanos”. Recentemente, a Emenda Constitucional n. 80/2014 alterou o art. 134, tornando mais explícitas as atribuições da Defensoria Pública “como expressão e instrumento do regime democrático” e de “promoção de direitos humanos”.

A LC n. 132/2009 também estabeleceu como funções institucionais do órgão: “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado” (art. 4º, XI, da LC n. 80/94) e “atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas” (art. 4º, XVIII, da LC n. 80/94).

Após essas reformas legislativas, concretiza-se a inserção da Defensoria Pública em outro paradigma normativo que supera aquele atrelado ao conceito de necessitado por insuficiência de recursos financeiros e o exercício de serviços jurídicos atrelados a processos individuais.

Por um lado, a Defensoria deve exercer, sim, suas atribuições em favor dos pobres, especialmente em sua defesa, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, de modo individual e coletivo. Pode-se até identificar a redistribuição como objetivo primordial da Defensoria Pública e fundamento primário de sua existência e atuação. Afinal, ainda há muitos obstáculos de caráter econômico na sociedade brasileira para o acesso à justiça e as desigualdades socioeconômicas no país continuam gritantes.

Por outro lado, em conformidade com o novo paradigma institucional da Defensoria Pública de promoção de direitos humanos, inegável que está inserida a atuação em favor dos grupos estigmatizados socialmente e das pessoas vítimas de discriminação.

São tratados inclusive em incisos distintos, no art. 4º da LC n. 80/1994, a defesa dos necessitados, hipossuficientes econômicos, e a proteção de grupos especiais. A normativa analisada parece, assim, informar que a situação de vulnerabilidade afasta a necessidade de se perquirir sobre a necessidade econômica, o que deve ser, porém, analisado mais profundamente.

2 Caracterização dos grupos sociais estigmatizados atendidos pela Defensoria Pública

Nancy Fraser parece oferecer, com sua concepção ampla de justiça, subsídios válidos para a determinação dos grupos que devem ser alvo da atuação da Defensoria Pública e da forma que esse órgão deve atuar para a proteção de grupos subalternizados. Suas considerações sobre os remédios para as distintas formas de injustiça parece ser enquadramento teórico interessante para analisar a Defensoria Pública como política pública de assistência jurídica gratuita.

A autora diferencia, no âmbito das demandas legítimas por justiça social, as propostas fundadas na redistribuição daquelas baseadas no reconhecimento. O primeiro caso corresponde à dimensão econômica da justiça, relacionada à estrutura de classe da sociedade. No segundo caso, o problema é da ordem destatus, que corresponde à sua dimensão cultural3 3 Por ter como objetivo refletir sobre o dilema redistribuição/reconhecimento no âmbito da Defensoria Pública, não será abordada a incorporação, por Nancy Fraser, da representação política como uma terceira dimensão da justiça. Para uma explanação desta dimensão, fundamental para a concepção de justiça da autora, ver: Fraser, 2005, p. 69-88. (FRASER, 2007, p. 101-102).

Fraser afirma que “impor uma escolha disjuntiva entre a política de redistribuição e a política de reconhecimento é apresentar uma falsa antítese” (FRASER, 2008, p. 188). Para a autora, “o conceito de justiça deve incluir distribuição e reconhecimento como duas dimensões mutuamente irredutíveis” (FRASER, 2007, p. 120).

Ainda segundo Fraser, independentemente de ser uma questão de distribuição ou reconhecimento, o mesmo critério geral serve para distinguir reivindicações justificadas das não justificadas: a paridade participativa, ou seja, a possibilidade de participar na vida social em condição de igualdade com os outros (FRASER, 2007, p. 125). Os reivindicantes devem demonstrar que: “os arranjos econômicos existentes lhes negam as necessárias condições objetivas para a paridade participativa” ou ainda que “os padrões institucionalizados de valoração cultural lhes negam as condições intersubjetivas necessárias” (FRASER, 2007, p. 125).

O mesmo critério também auxilia na avaliação dos remédios propostos contra as injustiças: deve-se refletir se as mudanças sociais almejadas são aptas a promover, de forma efetiva, a paridade de participação, sem acentuar significativamente outras diferenças (FRASER, 2007, p. 126).

O conceito instrumental de Fraser pode explicar por que a demanda de grupos já hegemônicos na sociedade não passa pelo crivo da reivindicação justa. É o caso das recorrentes reivindicações pelo “Orgulho Hétero”, “Orgulho Branco”, “Dia da Consciência Branca”, “Dia do Homem” etc. Como esses grupos já possuem participação social plena, suas demandas não visam promover a paridade participativa, que já existe.

Raciocínio semelhante pode ser utilizado quando se analisam os critérios para enquadramento de uma pessoa como usuário dos serviços da Defensoria Pública.

No modelo atualmente vigente, a definição dos critérios de quem é o público usuário das Defensorias Públicas Estaduais cabe a cada instituição. No entanto, de acordo com o III Diagnóstico da Defensoria Pública, “está havendo uma tendência, a fixarem em até 3 salários mínimos o critério de renda para ser atendido pela Defensoria Pública” (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Justiça. III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, 2009., p. 181).

A utilização apenas do critério de renda, entretanto, não é capaz de incluir todas as demandas legítimas por justiça em termos de paridade participativa. Grupos estigmatizados socialmente enfrentam obstáculos ao acesso à justiça que não serão identificados nem enfrentados pela instituição se apenas esse critério for observado. Conforme Fraser, demandas por reconhecimento não são simplesmente uma questão de atitudes preconceituosas que resultam em danos psicológicos, mas uma questão de padrões institucionalizados de valor cultural que impedem a igual participação na vida social (FRASER, 2008, p. 179).

Um importante exemplo é o caso das mulheres vítimas de violência doméstica. A violência doméstica decorre de um não reconhecimento específico de gênero, que interpreta mulheres como “outras subordinadas”, que “não podem participar como iguais na vida social” (FRASER, 2006FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção integrada da justiça. In: FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas de justiça numa era “pós-socialista”. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de Campo, n. 14/15. São Paulo, p. 231-239, 2006., p. 233-234). A mulher vitimada pela violência doméstica, independentemente de seus recursos econômicos, encontra-se em situação de vulnerabilidade para exigir seus direitos.

Conforme proposta de revisão das hipóteses de denegação de atendimento pela Defensoria Pública, elaborada pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo4 4 A proposta de revisão das hipóteses de denegação de atendimento pela Defensoria Pública pode ser acessada em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/23/Documentos/2011%2011%2029_PropostaCSDP_AlteracaoDeliberacao89_ViolenciaMulher_FE.pdf>. :

Não obstante a atual necessidade de se delimitar o público-alvo destinatário dos serviços prestados pela Instituição, por meio de critérios que reflitam a insuficiência de recursos, é de se considerar que a mulher vitimada pela violência encontra-se em situação de patente vulnerabilidade, alcançando inclusive a suas possibilidades de gozo de quaisquer recursos que em condições normais estariam ao seu alcance, o que justifica o tratamento específico e humanizado para impedir a constrição de seus direitos e garantias fundamentais.

Outro exemplo é o caso de um jovem de classe média que é abordado de forma abusiva por policiais na volta da escola para sua casa. Conforme Fraser, a injustiça em torno do conceito de raça tem uma face cultural-valorativa e uma face econômico-política, e ambas se reforçam uma a outra (FRASER, 2006FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção integrada da justiça. In: FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas de justiça numa era “pós-socialista”. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de Campo, n. 14/15. São Paulo, p. 231-239, 2006., p. 236). A atuação da Defensoria poderia contribuir, por um lado, para enfrentar o padrão cultural que associa a população negra à criminalidade e impede a participação dos negros como iguais na vida social; por outro lado, o estereótipo que associa negritude à criminalidade dificulta a ascensão econômica da população negra e favorece a manutenção das desigualdades raciais contemporâneas. A atuação da Defensoria Pública, portanto, poderia promover a igualdade racial também em termos de redistribuição.

Nesse sentido, pode-se questionar: seria razoável e necessário exigir comprovação de hipossuficiência de recursos de vítimas de tortura, de discriminação, de violência doméstica, exigindo-se que elas buscassem, por si, a contratação de serviços privados? Não parece que essa seja a postura institucional que mais se coaduna com a efetivação ampla da justiça e com a promoção de direitos humanos exigida constitucionalmente como função da Defensoria Pública. Deve-se talvez incluir uma cláusula ampla, como vulnerabilidade social, que possibilite ao defensor uma análise mais aprofundada da situação daquele que busca a Defensoria Pública. Já há hipóteses, por exemplo, nas quais a análise da necessidade econômica é substituída pela análise da necessidade jurídica, como é o caso do curador especial (art. 9º, II, do Código de Processo Civil) e o defensor dativo no processo penal (art. 265 do Código de Processo Penal).

No entanto, em face do cenário brasileiro marcado por desigualdades e exclusões, a Defensoria Pública não conta com recursos humanos e materiais para dar conta de todas as demandas legítimas por justiça social (SANTOS, 2007SANTOS, B. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007., p. 34-35). Conforme a pesquisa “Mapa da Defensoria Pública no Brasil”: em 72% dos locais que possuem ao menos um juiz, a população acima de 10 anos com rendimento mensal até 3 salários mínimos não tem o seu direito de acesso gratuito à justiça garantido por um defensor público (MOURA, 2013MOURA, Tatiana Whately; CUSTÓDIO, Rosier Batista (Coord.).Mapa da Defensoria Pública no Brasil. Brasília: IPEA e ANADEP, 2013., p. 70).

Em um contexto de recursos escassos, é necessária a eleição de prioridades para assegurar o acesso à justiça da forma mais ampla possível. Nesse sentido, devemos pensar principalmente no equilíbrio entre rigidez/objetividade (renda) e flexibilidade/subjetividade (outras vulnerabilidades) para definir os critérios de enquadramento para o atendimento judicial ou extrajudicial das demandas individuais.

No caso das atuações coletivas, a comprovação da insuficiência de recursos parece ser menos preponderante, já que, nesses casos, a atuação é em prol de grupos, que podem conter pessoas economicamente hipossuficientes ou não.5 5 Não se desconhecem outros posicionamentos mais restritivos, como o que se verifica, por vezes, no Superior Tribunal de Justiça, tal como ocorreu no REsp 1.192.577/RS, no qual se entendeu que “em se tratando de interesses coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos, diante de grupos determinados de lesados, a legitimação deverá ser restrita às pessoas notadamente necessitadas” (cf. <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1192577&&b=ACOR&p=false&l=10&i=2>). Essas demandas têm um potencial maior de causar grande impacto na sociedade. Possibilidades das ações coletivas são evidenciadas no voto da Ministra Cármen Lúcia, relatora do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.943 em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu por unanimidade a constitucionalidade da atribuição da Defensoria Pública para propor ação civil pública:

A constatação de serem normalmente mais graves as lesões coletivas, aliada à circunstância de tender o tempo gasto em processos coletivos a ser menor, evidencia que a opção por ações coletivas racionaliza o trabalho pelo Poder Judiciário e aumenta a possibilidade de assegurar soluções uniformes e igualitárias para os diferentes titulares dos mesmos direitos, garantindo-se não apenas a eficiência da prestação jurisdicional, a duração razoável do processo e a justiça das decisões, que se igualam em seu conteúdo sem contradições jurisprudenciais não incomuns em demandas individuais. (STF, Tribunal Pleno, ADI 3.943, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 7/5/2015, acórdão eletrônico)

O STF, no julgamento da mesma ADI, adotou o conceito amplo de necessitados para o processo coletivo, incluindo os “socialmente vulneráveis” e “carentes organizacionais”.6 6 Para a formulação teórica do termo “carentes organizacionais”, ver: Grinover, 1996, p. 116-117. Conforme o voto da Min. Cármen Lúcia:

Condicionar a atuação da Defensoria Pública à comprovação prévia da pobreza do público-alvo diante de situação justificadora do ajuizamento de ação civil pública (conforme determina a Lei n. 7.347/1985) parece-me incondizente com princípios e regras norteadores dessa instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, menos ainda com a norma do art. 3º da Constituição da República. (STF, Tribunal Pleno, ADI 3.943, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 7/5/2015, acórdão eletrônico)

Um exemplo de atuação paradigmática nesse sentido foi o ingresso, pelo Núcleo de Combate a Discriminação da DPESP, de ação civil pública por danos morais coletivos contra Levy Fidelix e o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB). Fidelix proferiu declarações homofóbicas durante debate entre os candidatos à Presidência da República em 2014. Na sentença, a juíza Flávia Poyares Miranda, da 18ª Vara Cível do Foro Central da Capital, reconheceu a legitimidade da Defensoria Pública para a proposição da ação civil pública e condenou Fidelix e o seu partido ao pagamento de R$ 1 milhão por danos morais. Além disso, determinou a realização de um programa, com a mesma duração da declaração anterior do ex-candidato, que promovesse os direitos da população ofendida.

Dessa forma, a Defensoria Pública, numa atuação estratégica, talvez deva priorizar a forma coletiva de tutela dos direitos dos grupos que buscam paridade participativa, dispensando uma análise rígida quanto à insuficiência de recursos, como já autorizado pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

3 Práticas institucionais que favorecem o reconhecimento das diferenças

Afirmado o contexto normativo que legitima a proteção de grupos estigmatizados socialmente, e uma forma de identificá-los, este artigo buscará apontar práticas institucionais que criam condições favoráveis ao reconhecimento das diferenças, especialmente no âmbito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Não se quer, de modo algum, desconsiderar outras práticas institucionais da DPESP que podem ser importantes para o combate às diferentes injustiças sociais. No entanto, tendo em vista que historicamente a Defensoria Pública tem enfatizado sua função universalista, convém, no atual momento, de inúmeras reivindicações de grupos estigmatizados, refletir sobre suas práticas voltadas ao reconhecimento de diferenças.

Para Fraser, numa concepção pragmática, os remédios às diferentes injustiças devem ser concretizados, em conformidade com as injustiças a serem reparadas, ora sendo necessária a ênfase à igualdade, ora sendo imprescindível o destaque às diferenças (FRASER, 2007, p. 120). O objetivo, portanto, é apenas destacar determinadas práticas institucionais que possibilitam uma maior atenção às especificidades de determinados grupos e maior visibilidade às violações que sofrem, de modo particular. Grande parte das informações trazidas nesta parte do artigo decorre da vivência de uma das autoras como Coordenadora do Núcleo de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da DPESP. No entanto, houve a preocupação de se apresentar informações que podem também ser acessadas pelo público geral, seja por meio do site da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, seja pessoalmente, por meio de pedidos de informações aos órgãos respectivos.

3.1 Núcleos Especializados

A Lei Complementar n. 80/94 traz alusão superficial aos Núcleos Especializados. Sugere, utilizando o termo “poderá”, para a Defensoria Pública dos Estados, a atuação por intermédio dos Núcleos Especializados, que devem exercer suas funções, de modo prioritário, nas regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.

Coube às Defensorias Públicas a função de melhor explicitar os objetivos dos Núcleos Especializados em suas leis complementares fundadoras. No Estado de São Paulo, a Lei Complementar Estadual n. 988/2006, em seu art. 52, deu caráter permanente aos Núcleos Especializados e atribuiu-lhes a função de “suporte e auxílio no desempenho da atividade funcional dos membros da instituição”.

Inicialmente, foi apontada pela lei a organização dos Núcleos em torno dos seguintes temas, sem prejuízo de outros: “interesses difusos e coletivos”, “cidadania e direitos humanos”, “infância e juventude”, “consumidor e meio ambiente”, “habitação e urbanismo”, “situação carcerária”, “segunda instância e tribunais superiores”. Hoje, de fato, estão em operação todos os temas mencionados exceto o de “interesses difusos e coletivos”. Foram, ainda, criados, além dos legalmente indicados, os Núcleos de “promoção e defesa dos direitos da mulher”, “combate à discriminação, racismo e preconceito” e “direitos do idoso e da pessoa com deficiência”.

No Estado de São Paulo, o Regimento Interno dos Núcleos Especializados da Defensoria Pública Estadual (Deliberação n. 38/2007) amplia ainda mais as funções legalmente imputadas a esses órgãos. Em seu art. 3º, estabelece inúmeras atribuições: compilar e remeter informações técnico-jurídicas aos defensores públicos; propor medidas judiciais e extrajudiciais para tutela de interesses individuais, coletivos e difusos; realizar e estimular o intercâmbio com entidades públicas e privadas; coordenar o acionamento de Cortes Internacionais; contribuir para a definição das ações voltadas à implementação do Plano Anual de Atuação da Defensoria Pública; realizar educação em direitos, nas respectivas áreas de especialidade; contribuir no planejamento, elaboração e proposição de políticas públicas que visem reduzir as desigualdades sociais, no âmbito de suas áreas de especialidade; apresentar e acompanhar propostas legislativa, entre outras.

O fortalecimento dos Núcleos Especializados representa um importante reflexo do novo dimensionamento dado à Defensoria Pública. Os Núcleos, ao contrário dos demais órgãos da instituição, não são condicionados a prestar assistência judiciária para todas as demandas recebidas, pois têm como objetivo solucionar problemas sociais específicos. Por conta de seu fim último, a transformação social em determinadas áreas possui uma liberdade maior de trabalho, podendo selecionar seus casos e alocar recursos de acordo com seus objetivos. Além disso, a atuação dos Núcleos não se limita apenas aos órgãos judiciais, mas também envolve os formuladores de políticas públicas e de processos legislativos, os formadores de opinião e a sociedade em geral. Assim, devem utilizar diferentes técnicas legais, políticas e sociais (RADOMYSLER, 2015RADOMYSLER, Clio. A Defensoria Pública no combate à discriminação racial: sensibilidades, discursos e práticas. Revista Diversitas, ano 3, n. 4, São Paulo: FFLCH/USP, p. 276-309, mar.-set. 2015., p. 280).

O desenho institucional que conta com Núcleos Especializados para o suporte e auxílio aos demais órgãos da Defensoria Pública traz a possibilidade de que as diferenças dos grupos sociais estigmatizados sejam explicitadas e reconhecidas no âmbito da instituição. Por meio dos Núcleos Especializados, questões específicas a esses grupos, que poderiam ficar relegadas na atuação ordinária da Defensoria Pública, são postas em destaque. Além disso, os demais órgãos da Defensoria Pública, ao se depararem com questões próprias de determinados grupos, buscam o suporte dos Núcleos Especializados para a prestação de um atendimento efetivo, qualificado e atento às diferenças.

Exemplos dessa atuação dos Núcleos Especializados são as audiências públicas realizadas pelos Núcleos com o objetivo de aprimorar a atuação da instituição e dar visibilidade para demandas específicas. O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da DPESP realizou, no dia 19 de agosto de 2015, uma audiência pública para debater a política de atendimento à mulher em situação de violência familiar e doméstica. O evento contou com representantes do movimento feminista e da rede de acolhimento às mulheres vítimas de violência.7 7 Cf. em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=61288&idPagina=1&flaDestaque=V>. Em 4 de outubro de 2013, o Núcleo Especializado de Combate a Discriminação promoveu audiência pública sobre “Saúde de travestis, transexuais e transgêneros”.8 8 Cf. em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=48153&idPagina=3322>.

Os Núcleos cumprem, assim, um papel de facilitar a interlocução entre os grupos sociais organizados em torno de pautas relacionadas ao reconhecimento e a Defensoria Pública. Conforme a pesquisa “Advocacia de interesse público no Brasil”, para entidades de defesa de direitos, os Núcleos Especializados são um dos canais mais frequentes e efetivos de interação da instituição com a sociedade civil:

Os entrevistados assinalaram que a existência de núcleos e câmaras temáticas favorece muito a relação da entidade com a Defensoria Pública. Tais núcleos facilitam a interação na medida em que, ao se especializarem em certos temas, acabam se familiarizando com problemas mais relevantes naquela área, aperfeiçoam as melhores estratégias de atuação judicial e potencialmente ficam mais próximos dos atores sociais ligados àquela questão. (RODRIGUEZ, 2013RODRIGUEZ, José Rodrigo (Coord.). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, 2013., p. 98)

Pode também ser destacada a atribuição dos Núcleos em realizar educação em direitos como uma prática que favorece o reconhecimento das diferenças pela instituição. Por meio da produção de cartilhas e folders, da realização, em parceria com a sociedade civil, de eventos e capacitações, e do mapeamento da rede de serviços públicos, o Núcleo busca promover a democratização do conhecimento sobre o funcionamento do sistema de justiça, contribuindo para que grupos estigmatizados possam identificar situações de violações e lutar pela efetivação de direitos.

Os Núcleos são ainda um espaço privilegiado para que se busque uma atuação que leve em conta a interseccionalidade (articulação entre as categorias gênero, raça/etnia, classe, geração, entre outras), pois uma das suas atribuições é realizar ações conjuntas com diferentes Núcleos Especializados; a intersetorialidade, realizando ações integradas entre diferentes setores responsáveis por políticas públicas; e a interdisciplinaridade, contando com uma equipe técnica formada por assistentes sociais, defensores e psicólogos.

Como o objetivo dos Núcleos Especializados é combater problemas sociais marcados por especificidades, também podem ser os principais agentes da Defensoria responsáveis por uma atuação voltada para causas de grande impacto social e para a tutela coletiva de direitos.

O Núcleo de Combate a Discriminação da DPESP, em conjunto com a Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo e com a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, apresentou, por exemplo, ao Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP) uma proposta de inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares das instituições do sistema de ensino paulista. Após a atuação do Núcleo, o CEE-SP aprovou uma deliberação sobre o tema, que foi homologada pela Secretaria de Estado da Educação. A proposta apresentada foi realizada com base em estudos e atendimentos realizados pela equipe técnica do Núcleo desde 2012, que indicavam a evasão escolar de jovens travestis e transexuais em função das discriminações sofridas no ambiente escolar.

É importante ressaltar que a presença de psicólogos e assistentes sociais nos Núcleos possibilita o esclarecimento dos diversos pontos nodais da situação de vulnerabilidade dos assistidos durantes os atendimentos, bem como a constatação de falhas específicas por parte de políticas públicas.

Outro exemplo dessas possibilidades foi o envio de ofício a vereadores da cidade de São Paulo solicitando a permanência dos termos “gênero” e “diversidade sexual” no Plano Municipal de Educação. Essa estratégia foi elaborada em conjunto pelos Núcleos Especializados de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito e de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da DPESP, em parceria com o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) da Universidade de São Paulo.9 9 O ofício à Câmara Municipal de São Paulo realizado pelos Núcleos Especializados de Combate a Discriminação e de Defesa da Mulher pode ser acessado em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/Of%C3%ADcio%20pela%20igualdade%20de%20g%C3%AAnero%20na%20educa%C3%A7%C3%A3o.pdf>.

Por conta do amplo objetivo de transformação social em áreas específicas e de suas diferentes atribuições, os Núcleos se posicionam como órgãos que buscam a repressão de condutas discriminatória e a erradicação de estigmas, estereótipos e preconceitos do imaginário social, assegurando direitos e acesso a bens sociais. Todas essas características fazem com que os Núcleos sejam uma prática institucional que pode contribuir para o reconhecimento das diferenças na Defensoria Pública.

Com relação a dificuldades que podem ser apontadas sobre os Núcleos Especializados, conforme a pesquisa “Advocacia de interesse público no Brasil”:

Muitos entrevistados apontaram como uma mudança necessária na instituição o aumento do número de defensores e a ampliação e melhoria de sua estrutura de atendimento. Em alguns lugares, a deficiência de pessoal, a sobrecarga de trabalho e a falta de estrutura da Defensoria Pública é tão grande que chega a comprometer a relação da entidade com as entidades da sociedade civil. Alguns entrevistados relataram a impossibilidade de se relacionar com a instituição na medida em que ela não dava conta nem de atender os casos que chegavam a ela. (RODRIGUEZ, 2013RODRIGUEZ, José Rodrigo (Coord.). Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, 2013., p. 97)

Os Núcleos Especializados possuem inúmeras atribuições e recebem uma grande quantidade de demandas de difícil solução. Não possuem recursos materiais e humanos para realizar todas as suas atribuições institucionais.

Apesar de a maioria das Defensorias Públicas atuar em todas as áreas, as áreas de direitos humanos e direitos coletivos são as com o menor número de Defensorias atuantes (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Justiça. III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, 2009., p. 260). São ainda poucas as Defensorias que contam com um Núcleo Especializado em Combate à Discriminação (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Justiça. III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, 2009., p. 138).

Pode ser apontado, também, o risco de desresponsabilização da Defensoria Pública como um todo em relação às demandas de grupos estigmatizados, por meio do direcionamento dessas demandas apenas aos Núcleos Especializados.

3.2 AÇÕES AFIRMATIVAS

As políticas de ação afirmativa são medidas que visam promover a igualdade substancial em termos gerais, por meio de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos que estejam em situação desfavorável, e que sejam vítimas de estigma social. Podem ter diferentes focos e incidir em campos variados (SARMENTO, 2006SARMENTO, Daniel. Direito constitucional e igualdade étnico-racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas Martins de (Coord.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 59-108, 2006., p. 78).

Essas políticas encontram sua principal fundamentação constitucional nas normas que estabelecem a erradicação da marginalização social e a promoção do bem de todos. Os arts. 3º, III, 23, X, e 170, VIII, obrigam expressamente o Poder Público a estabelecer políticas positivas visando à redução das desigualdades e ao combate à discriminação.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 186, afirmou a constitucionalidade de políticas afirmativas, indicando que o combate às diferentes formas de discriminação requer a combinação de políticas públicas de caráter universal e de iniciativas governamentais direcionadas a grupos sociais específicos.

Conforme proposta assinada pelo Instituto Luiz Gama em conjunto com a Ouvidoria e com o Núcleo de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para a implementação de cotas raciais nos concursos da Defensoria, inúmeros são os aspectos positivos das ações afirmativas10 10 A proposta para implementação de cotas raciais na Defensoria Pública de São Paulo está disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/23/Documentos/2013%2007%2012_Peticao_CSDP_COTAS_ComAnexos_LZ.pdf>. :

Ao permitir que membros de grupos sociais historicamente discriminados participem de espaços onde decisões importantes são tomadas ou que venham a pertencer a instituições que gozam de prestígio, permite-se uma recomposição política e econômica do tecido social que se manifesta das seguintes formas: a) fortalecimento dos laços sociais, impedindo o isolamento de grupos e retirando a força de práticas discriminatórias; b) exercício da pluralidade de visões de mundo e a dedução de interesses aparentemente específicos do grupo, que agora, com voz ativa, poderá participar da produção de um “consenso”, dando legitimidade democrática às normas de organização social; c) redistribuição econômica, vez que a maior dificuldade de acesso ao mercado de trabalho é característica marcante em membros de grupos historicamente discriminados.

Especialmente na Defensoria Pública, cujos fins institucionais estão diretamente vinculados à luta contra todas as formas de exclusão, a adoção de ações afirmativas tem um impacto extremamente positivo e é uma prática institucional fundamental para a promoção do reconhecimento institucional das diferenças.

Grupos excluídos histórica e socialmente possuem um sentimento de desconfiança e distanciamento em relação às instituições públicas e especialmente ao sistema de justiça (SANTOS, 1997, p. 21). Nesse contexto, as ações afirmativas podem promover a aproximação da instituição com esses grupos e tornar a atuação da instituição mais apta à busca pela promoção de direitos humanos e da igualdade.

O documento encaminhado à Defensoria Pública do Estado de São Paulo pelo Instituto Práxis de Direitos Humanos, pela Pastoral Carcerária e pela Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (ACAT Brasil), em outubro de 2012, demonstra essa possibilidade11 11 O documento se encontra anexado à proposta realizada pelo Instituto Luiz Gama, pela Ouvidoria e pelo Núcleo Especializado de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública de São Paulo. :

Nesse espaço, onde uma multidão maciçamente negra aguarda por horas o atendimento prestado pelos Defensores Públicos, praticamente todos brancos, que cumprem seus deveres funcionais imbuídos, aos olhos de muitos Usuários, de uma enorme “autoridade” e “distinção social”, a casa grande e senzala é repetida diariamente e a vista de todos a exemplo do que há muito se consolidou em nosso sistema prisional. Nossas mulheres e homens, pretos e pardos, têm vivenciado, já há tempo demais, a condução de seus processos de aprisionamento por acusadores quase que exclusivamente brancos, assim como são os seus julgadores. Oxalá comecem a ver ao seu lado ao menos defensores que fujam deste esmagador perfil único e reprodutor da divisão posta em nosso país.

Além disso, o baixo percentual de representantes dos grupos discriminados na Defensoria Pública reproduz a ideia construída historicamente de que esses grupos são menos capazes para ocupar posições de destaque e participar da esfera política na sociedade em condições de igualdade (MANSBRIDGE, 1999MANSBRIDGE, Jane. Should Blacks Represent Blacks and Women Represent Women? A Contingent «Yes». Journal of Politics, 61 (3), p. 628-657, 1999.). A adoção de reserva de vagas nos concursos da Defensoria Pública combate, portanto, os estereótipos negativos enraizados no imaginário social e a naturalização da marginalização dos grupos sociais vulneráveis.

Em razão da experiência específica de discriminação, membros de grupos sociais vulneráveis muitas vezes têm entendimentos diferentes sobre as causas de problemas sociais e sobre as soluções propostas (MANSBRIDGE, 1999MANSBRIDGE, Jane. Should Blacks Represent Blacks and Women Represent Women? A Contingent «Yes». Journal of Politics, 61 (3), p. 628-657, 1999.). As mulheres, por exemplo, são mais propensas a sofrer violência doméstica ou a planejar suas vidas em torno do medo do assédio sexual. Assim, se as mulheres puderem participar e influenciar os processos de decisão institucional da Defensoria Pública em condições de igualdade, é menos provável que a instituição atue de forma imprudente ou de forma a reproduzir injustiças sociais.

Conforme o III Diagnóstico da Defensoria Pública, a maioria dos integrantes das Defensorias Públicas dos Estados é branca (77,3%). Os integrantes que se autoclassificam como negros são 2,2% e pardos, 18% (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Justiça. III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, 2009., p. 198).

O defensor Bruno Ricardo Miragaia de Souza, em seu voto12 12 O voto pode ser requerido junto à secretaria do Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo. no processo que tramitou no Conselho Superior da DPESP para a implementação de cotas nos concursos da instituição, destacou sobre o assunto:

[...] não há como se falar em redução da desigualdade, marginalidade e pobreza, inclusive dentro da instituição, senão encararmos de frente, de forma corajosa, propositiva e responsável a implementação de ações afirmativas capazes de distribuir e restaurar a justiça. Distribuir no sentido de garantir a diversidade e vantagens para todos, pois o convívio com diferentes visões só tende a fortalecer a democracia, já que somente com todos é que será possível a construção de uma sociedade verdadeiramente respeitosa e plural.

As ações afirmativas podem possibilitar, portanto, a consolidação de uma Defensoria Pública mais plural e democrática, promovendo a transformação da representação social em uma importante instituição do sistema de justiça, deixando de constituir como espaço essencialmente branco.

Com relação às dificuldades dessa prática institucional, podemos apontar as resistências encontradas para a implementação dessas medidas. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por exemplo, aprovou a política de cotas raciais para os concursos da instituição apenas em outubro de 2014, após muita persistência dos movimentos sociais, ao longo da história do órgão, e pelo placar apertado de seis votos a favor e quatro contra.

A efetividade da política depende da porcentagem das vagas estabelecidas e de medidas para promover o real acesso aos concursos. A exclusão social de negros e indígenas dificulta sua aprovação, mesmo com a adoção de política afirmativa. Para evitar que as cotas desempenhem papel meramente simbólico, é necessária a adoção de medidas que garantam a inserção desses grupos, além de práticas de monitoramento dos resultados da política.

O sucesso das ações afirmativas depende ainda da inserção dos candidatos selecionados de forma integral, e sem qualquer discriminação, nos quadros profissionais da instituição e, especialmente, nas posições decisórias.

3.3 Captação de dados

A discriminação não pode ser entendida apenas em sua forma clássica, ou seja, como discriminação direta, intencional e escancarada. Pode se apresentar sob formas veladas, decorrente da perpetuação de iniquidades ao longo do tempo ou da imposição de regras aparentemente neutras, mas que criam desigualdades. Manifesta-se muitas vezes de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada, do ponto de vista racial, de gênero, orientação sexual, idade, entre outros, na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população (LÓPEZ, 2012LÓPEZ, L. C. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 16, n. 40, p. 121-34, jan.-mar. 2012., p. 127).

Uma estratégia fundamental para combater esses tipos de discriminação é a inclusão de indicadores sociais, como raça/cor e gênero, nas práticas institucionais de coleta de dados da Defensoria Pública.

Nos recenseamentos e cadastros de instituições públicas e privadas, a ausência do quesito cor/raça ou gênero confere neutralidade aos dados coletados, como se esses marcadores da diferença fossem irrelevantes para o atendimento integral dos usuários, e como se experimentassem os direitos de cidadania da mesma forma. Já quando cor/raça e gênero são desagregados e estudados, podemos facilmente identificar desigualdades e discriminações no acesso a instituições e bens sociais.

Dessa forma, a captação de dados sobre indicadores sociais que demarcam as diferenças e especificidades dos grupos sociais vulneráveis é uma importante prática institucional da Defensoria Pública que pode favorecer o reconhecimento institucional dos grupos estigmatizados.

A utilização padronizada de indicadores sociais, como raça/cor, gênero, idade, renda e escolaridade, nos formulários de atendimento da Defensoria Pública, permitiria o conhecimento aprofundado do seu público e a realização de estudos comparativos entre diferentes regiões do estado.

Nesse sentido, a Declaração e Plano de Ação da Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, de 2001 “insta os Estados a coletarem, compilarem, analisarem, disseminarem e a publicarem dados estatísticos confiáveis em níveis local e nacional e a tomarem todas as outras medidas necessárias para avaliarem periodicamente a situação de indivíduos e grupos que são vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”.

Propostas aprovadas nas Conferências da Defensoria Pública do Estado de São Paulo demonstram o anseio social pela comprovação empírica, por meio de dados estatísticos, da realidade marcada pelas discriminações institucionais existente no Brasil. Uma das propostas apresentadas pelos movimentos sociais para o Núcleo, em 2009, na II Conferência Estadual da Defensoria Pública de São Paulo, foi a realização de levantamentos e avaliações do número de denúncias de racismo e discriminação levados à instituição. Na Conferência de 2011, essa demanda é evidenciada, por meio da aprovação das seguintes propostas13 13 As propostas das Conferências da Defensoria de São Paulo estão disponibilizadas no site institucional: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=2963>. :

Promover a superação do racismo, da homofobia e de outras discriminações institucionais na segurança pública por meio de: 1) elaboração de uma pesquisa cientifica para levantamento de dados acerca da violência policial com enfoque no racismo e discriminações institucionais dentro das polícias; 2) capacitação de agentes de segurança pública com objetivo da redução das práticas discriminatórias e de violência; 3) monitoramento da atuação dos agentes de segurança pública, através de uma Comissão de Monitoramento, formada por membros do NCDRP, sobre a letalidade da atuação policial, em especial nos casos de violência policial contra a juventude negra e LGBT do Estado de SP, com atenção aos casos classificados como resistência seguida de morte.

Com o objetivo de concretizar essas propostas, o Núcleo Especializado de Combate a Discriminação da DPESP defendeu, recentemente, a inserção do item raça/cor e etnia nos formulários de atendimento à população encarcerada nos Centros de Detenção Provisória. Há insuficiência de dados nessa seara, o que não permite a realização de um diagnóstico sobre a possível seletividade racial no âmbito do instituto das prisões provisórias, o que impossibilita o fomento de políticas públicas adequadas para lidar com o problema.

No entanto, houve resistência inicial do Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo a essa demanda do Núcleo. Esse posicionamento do Conselho indica a dificuldade de percepção do papel da instituição no reconhecimento das diferenças, priorizando uma atuação universalista.

A resistência à coleta de dados está também relacionada à baixa incorporação do conceito de discriminação indireta nos processos de trabalho das organizações governamentais e sociais e à ausência ou insuficiência de experiências prévias de políticas e estratégias de erradicação da discriminação institucional (GELEDÉS, 2013GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra; CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria. Guia de enfrentamento ao racismo institucional. 2013. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Guia-de-enfrentamento-ao-racismo-institucional.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2015.
http://www.onumulheres.org.br/wp-content...
, p. 7).

É possível identificar dificuldades com relação à coleta, à sistematização e à análise de dados de forma contínua no tempo. Inúmeros estudos têm apontado ora para a inexistência, ora para a falta de sistematicidade, ora ainda para a inexatidão de registros que deveriam ser mantidos por parte das instituições da justiça (MOURA, 2013MOURA, Tatiana Whately; CUSTÓDIO, Rosier Batista (Coord.).Mapa da Defensoria Pública no Brasil. Brasília: IPEA e ANADEP, 2013., p. 17).

É preciso vontade e esforço institucional para compor parcerias com instituições de pesquisa, sensibilizar membros sobre a importância das informações, desenvolver e aperfeiçoar instrumentos de coleta de dados, solucionar problemas metodológicos conceituais, oferecer treinamento especializado para coleta de dados e realizar a divulgação periódica das informações adquiridas (MADEIRA, 2003MADEIRA, Felícia Reicher; BIANCARDI, Miriam Ribeiro. O desafio das estatísticas do terceiro setor. São Paulo Perspec., São Paulo, v. 17, n. 3-4, p. 177-184, dez. 2003., p. 183).

3.4 Mecanismos de participação: Ciclo de Conferências e Ouvidoria

Para a Defensoria Pública tornar-se um espaço de acolhimento de reivindicações fundadas no reconhecimento, é necessária a criação de canais permanentes de diálogo com os grupos sociais estigmatizados.

Conforme Luciana Gross Cunha, o Poder Judiciário é historicamente o mais fechado à participação dos cidadãos, entre os três poderes:

o público-alvo da prestação jurisdicional, que legalmente deve ser atendido pelas Defensorias, nunca contou com espaço de intervenção nos modos de operação do Poder Judiciário, assim como não contou com espaços de diálogo ou possibilidades de fiscalização das funções exercidas pelo Estado neste universo, diferentemente do que ocorreu com os Poderes Executivo e Legislativo. (CUNHA, 2010, p. 26)

A autora afirma que esse cenário foi modificado pelas inovações advindas da criação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A DPESP criou mecanismos de controle e participação social que constituem um novo referencial para as Defensorias e para o Sistema de Justiça, promovendo maior legitimidade democrática e representatividade (CUNHA, 2010, p. 241).

De acordo com a Lei Complementar Estadual n. 988/2006, a DPESP criou os seguintes mecanismos: Ciclos de Conferências Públicas; Ouvidoria Externa e Momento Aberto.14 14 Refere-se à oportunidade conferida a pessoas e entidades populares para manifestação durante as sessões realizadas pelo Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Analisando essas medidas, é possível identificar duas práticas institucionais que possibilitam o reconhecimento das diferenças pela Defensoria Pública: (i) a divisão das propostas e dos grupos de trabalho dos Ciclos de Conferências em eixos temáticos; e (ii) a seleção de 11 Conselheiros, em sua maioria representantes de grupos vulneráveis específicos, para compor o Conselho Consultivo da Ouvidoria da Defensoria Pública.

O Ciclo de Conferências ocorre a cada dois anos e inicia-se com as Pré-Conferências Regionais, que identificam demandas da sociedade civil de cada região do Estado. Os delegados eleitos nesses encontros regionais levam as propostas aprovadas para a Conferência Estadual. Nesse momento, todas as demandas são analisadas por área temática, em função de sua viabilidade e a prioridade de implantação. A Conferência conclui seus trabalhos com a aprovação dos parâmetros de atuação da Defensoria, que são levados ao Conselho Superior da instituição e permitirão a revisão do Plano Anual de Atuação.

A principal metodologia utilizada para a elaboração das propostas é a discussão em grupos de trabalhos por eixos temáticos. Na IV Conferência da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, as propostas e os grupos de trabalho foram organizados nas seguintes temáticas: “cidadania, direitos humanos e meio ambiente”; “combate à discriminação, racismo e preconceito”; “direitos do consumidor”; “direitos do idoso e da pessoa com deficiência”; “habitação, urbanismo e conflito agrário”; “infância e juventude”; “política institucional e educação em direitos”; “promoção e defesa dos direitos da mulher”; e “situação carcerária”.15 15 Os eixos temáticos do IV Ciclo de Conferências da Defensoria do Estado de São Paulo encontram-se disponíveis em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=5331>.

Compete à Defensoria Pública do Estado o monitoramento contínuo das ações voltadas à implementação dos enunciados constantes no Plano Anual de Atuação. Os Núcleos Especializados, antes do início de um novo Ciclo de Conferências, devem apresentar um relatório que aponte quais propostas foram cumpridas, quais ainda não foram implementadas e por quais motivos.

A divisão das propostas e da metodologia de trabalho das Conferências em eixos temáticos é uma importante prática institucional que pode favorecer o reconhecimento das diferenças no âmbito da Defensoria Pública. Por meio dessa metodologia de participação social, a sociedade civil e os movimentos sociais, organizados em torno de pautas relacionadas ao reconhecimento, apresentam demandas que são incluídas no Plano Anual de Atuação da instituição.

É uma oportunidade para aprofundar a reflexão sobre as práticas da Defensoria Pública nas temáticas relacionadas ao racismo, às discriminações e aos direitos de grupos específicos, e para os participantes revisarem, confirmarem e reformularem as prioridades institucionais. Por meio desse canal de comunicação entre a Defensoria e a população, os temas especialmente relacionados a situações específicas de violações de direitos são reconhecidos e ganham espaço na formulação de diretrizes e objetivos da instituição.

Podem, porém, ser citados alguns desafios para a efetividade dessa prática institucional. Muitas propostas aprovadas pela sociedade civil apresentam dificuldades para serem implementadas, se repetem ou fogem ao alcance das possibilidades de atuação da Defensoria Pública. O esvaziamento de algumas conferências e a forma de monitoramento da realização das propostas são também importantes limitações e desafios. Conforme nota pública da Pastoral Carcerária, diante do início do V Ciclo de Conferências da DPESP, em agosto de 201516 16 Para ver a nota pública realizada pela Pastoral Carcerária, acessar: <http://carceraria.org.br/nota-publica-da-pastoral-carceraria-sobre-as-conferencias-da-defensoria-publica-de-sao-paulo.html#sthash.R3Zoinph.dpuf>. :

A não implementação da maior parte das propostas aprovadas ao longo dos anos faz com que a Conferência e as Pré-Conferências percam o sentido tão caro que lhes foi atribuído: de garantir a participação social nas decisões da Defensoria. É por esse motivo que, nos últimos anos, nota-se um processo de esvaziamento de tais espaços supostamente democráticos. A realização de um novo ciclo de debates traz à tona o necessário questionamento a respeito da importância que esses espaços realmente têm. Faz sentido seguir adiante na criação e elaboração de novas propostas, quando as já criadas e elaboradas ainda aguardam implementação?

A Ouvidoria-Externa, por sua vez, é composta do ouvidor-geral e do Conselho Consultivo, nos termos da Lei Complementar Estadual n. 988/2006. A Ouvidoria é um órgão superior da DPESP, devendo participar da gestão e fiscalização da instituição e de seus membros e servidores.

O ouvidor-geral é escolhido pelo Conselho Superior da Defensoria Pública com base em lista elaborada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). Após a escolha, o ouvidor tem mandato de 2 anos. O Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral é composto de 11 membros designados pelo defensor público-geral do Estado, com base em indicação feita pelo ouvidor-geral, para mandato de 2 anos, permitida uma recondução.

É possível verificar na atual composição do Conselho Consultivo da DPESP a representação de organizações da sociedade civil que tem como objetivo lutar por direitos de grupos sociais discriminados e vulneráveis. Os membros escolhidos constituem canal permanente de comunicação da Defensoria com os movimentos sociais negros, feministas, LGBTs, de pessoas com deficiência, entre outros.17 17 A composição do Conselho Consultivo pode ser analisada em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=2946>. Dessa forma, constitui uma prática institucional que pode favorecer o reconhecimento das diferenças.

Conforme Raquel Cruz Lima, representando os novos conselheiros do biênio 2015-2017, em 13 de maio de 2015, no dia da posse do Conselho Consultivo18 18 Ver notícia sobre a posse do novo Conselho Consultivo da DPESP em 2015: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=59028&idPagina=308>. :

O DNA de produto da sociedade civil tem que se manter em tudo que a Defensoria faz, não só fazendo atendimento jurídico, mas também pautando sua atuação pelo que a sociedade civil coloca. Nosso trabalho no Conselho Consultivo é de sempre lembrar em absolutamente todos os momentos que a Defensoria deve se pautar por transparência, por inclusão e por diversidade.

Por fim, algumas dificuldades desse mecanismo de participação devem ser apontadas: garantir a participação social por meio da Ouvidoria nas unidades mais afastadas da capital, garantir a representação de todos os diferentes grupos sociais vulneráveis, o tempo disponível e o compromisso dos membros da Ouvidoria em realizar as atividades, a ausência de mecanismos para assegurar o cumprimento das recomendações propostas pelo órgão.

Além disso, conforme o III Diagnóstico da Defensoria Pública, entre os defensores públicos da União e dos Estados, as medidas menos favoráveis são: “a participação da sociedade civil na definição das prioridades de atuação”, “ouvidor não integrante dos quadros de carreira”, e “controle externo da Defensoria Pública” (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Justiça. III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, 2009., p. 244). Esses dados demonstram que não há um consenso entre os defensores públicos sobre a importância das práticas institucionais que promovem a participação popular e o controle externo do órgão.

Conclusão

A análise empreendida permite identificar o contexto normativo de proteção dos grupos socialmente minoritários e estigmatizados pela Defensoria Pública.

Após mudanças legislativas desde 2004, a instituição é inserida em outro paradigma normativo de serviço legal e de política de acesso à justiça, voltado para a promoção dos direitos humanos e para a tutela de demandas coletivas. Nessa nova perspectiva, é inegável que se inclui a atuação institucional em favor dos grupos estigmatizados socialmente e das pessoas vítimas de discriminação.

Em seguida, para nortear a atuação da Defensoria Pública, foi proposta uma forma de delimitação dos grupos que ensejam a proteção institucional. Essa proposta foi formulada com base na teoria de Nancy Fraser de uma concepção ampla de justiça, em que redistribuição e reconhecimento são duas dimensões irredutíveis.

Constatou-se que a utilização apenas do critério de renda não é capaz de incluir todas as demandas legítimas por justiça em termos de paridade participativa. O não reconhecimento, a partir de padrões sedimentados de (des)valoração cultural, produz obstáculos ao acesso à justiça, impondo dificuldades ao exercício dos direitos pelos grupos vulneráveis. Esses desafios dificultam o contato até mesmo com a Defensoria Pública, principalmente se ela não estiver atenta às especificidades desses grupos.

Por fim, foram analisadas quatro importantes práticas institucionais, especialmente no âmbito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que favorecem o reconhecimento das diferenças: os Núcleos Especializados, as ações afirmativas, a coleta, análise e divulgação de dados e os mecanismos de participação popular. Procurou-se identificar as principais possibilidades e os desafios que elas contemplam.

Ainda há muito que avançar para a promoção do reconhecimento das diferenças pela Defensoria Pública. Neste artigo, dois primeiros passos foram dados: a identificação dos grupos a serem protegidos, que devem ser destinatários de políticas específicas, bem como de práticas institucionais que podem integrar a arquitetura da Defensoria para permitir o acesso à justiça de grupos estigmatizados. Esses passos marcam o início de um importante caminho para uma sociedade mais justa e para a reflexão institucional sobre o tema.

Muitas questões, porém, ainda exigem reflexão e respostas: como promover o reconhecimento de diferenças sem descuidar da finalidade principal de enfrentamento das injustiças econômicas e da desigualdade material de classes? Como avaliar, concretamente, se as práticas institucionais apontadas contribuem efetivamente para o reconhecimento das diferenças? De que forma as políticas institucionais de reconhecimento no âmbito da Defensoria Pública relacionam-se com as mudanças sociais e políticas do paradigma de atuação das Defensorias Públicas? Quais são os obstáculos à realização desse novo paradigma? Como esses temas relacionam-se com o desenvolvimento da gramática dos direitos humanos ao longo do tempo e como a Defensoria Pública insere-se nesse debate?

Essas reflexões extravasam os estreitos limites deste artigo, que se pretende melhor desenvolver no futuro, ou, ainda, demandam trabalhos empíricos aprofundados para que alcance uma adequada visão do debate que se trava.

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NOTAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2015
  • Aceito
    04 Nov 2015
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