Acessibilidade / Reportar erro

Homoafetividade e direito: um estudo dos argumentos utilizados pelos ministros do STF ao reconhecerem a união homoafetiva no Brasil

SAME-SEX RELATIONSHIPS AND LAW: A STUDY ON ARGUMENTS USED BY STF'S MINISTERS WHEN RECOGNIZING SAME-SEX UNIONS IN BRAZIL

Resumo

Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, imprimindo novos rumos à causa dos movimentos homossexuais no Brasil. Contudo, apesar de esse marco institucional indicar uma mudança de paradigma, verifica-se que as concepções desfavoráveis sobre a homoafetividade e os direitos das minorias sexuais continuam sendo difundidas discursivamente pela sociedade. Objetivando delinear como o direito e as instituições jurídicas estão influenciando a vida social das pessoas, este artigo apresenta um estudo empírico acerca dos argumentos utilizados pelos ministros do STF em sua decisão. Tomando por base as premissas da análise crítica do dis-curso, realizou-se uma avaliação das justificativas dadas aos votos. Os resultados indicaram a existência de argumentos que variaram desde o reconhecimento da igualdade até a ênfase na diferença, mostrando que, apesar da unanimidade na decisão, ainda há muito o que conquistar para a efetivação da diversidade.

Palavras-chave
União homoafetiva; decisão do STF; argumentos; análise crítica do discurso; estudo empírico

Abstract

In May 2011, the Brazilian Supreme Court (STF) recognized same-sex unions as a family entity, what sets new directions to the homosexual movements in Brazil. However, even though this institutional milestone indicates a paradigm shift, it is noticeable that unfavorable notions on same-sex relationships and the rights of sexual minorities are still being spread throughout society. Aiming to outline how law and legal institutions have influenced people's social life, this paper presents an empirical study on the discourses used by STF ministers in their decisions. Based upon the assumptions of critical discourse analysis, an evaluation has been made on the justifications given to the votes. The results indicated the existence of arguments that varied from the recognition of equality to the emphasis on difference, proving that, even though the decision was unanimous, there is still much to be conquered towards the accomplishment of equality.

Keywords
Same-sex unions; STF's decision; arguments; critical discourse analysis; empirical study

Introdução

Nos últimos tempos, a sociedade vem passando por uma mudança profunda na compreensão das relações amorosas, levando a uma reestruturação de valores e, consequentemente, a uma transformação das relações sociais e jurídicas. Paulatinamente, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBTs) estão deixando seu lugar de sujeitos patologizados para se tornarem sujeitos políticos que reivindicam equivalência de direitos, o que implica a desconstrução de padrões já estabelecidos e a construção de novos direitos sociais.

Os dados do Censo 2010 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -IBGE (BRASIL, 2010BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2012.
http://www.ibge.gov.br...
) indicam que, nos últimos anos, a família tradicional deixou de ser maioria, o que conduz alguns autores a não mais falar sobre a família cujo modelo normativo era o da família nuclear burguesa, e sim sobre uma diversidade de tipos de família: monoparental, pluriparental, socioafetiva, homoafetiva, dentre outras (DIAS, 2007DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.). Essa pluralidade leva à necessidade de debater sobre uma das estruturas mais difundidas na sociedade: a família como união heterossexual cuja função é gerar filhos (GOUVEIA; CAMINO, 2009GOUVEIA, Raimundo; CAMINO, Leoncio. Análise psicossocial das visões de ativistas LGBTs sobre família e conjugalidade. Psicologia Política, v. 9, n. 17, 2009, p. 47-65.).

No entanto, os novos debates não estão trazendo a aceitação unânime de novos paradigmas, como proposto pela militância LGBT. Pelo contrário, a visibilidade das minorias sexuais, assim como a conquista de direitos, trouxe efeitos contraditórios. Se, por um lado, alguns setores sociais passaram a demonstrar mais aceitação da diversidade sexual; por outro lado, setores mais conservadores recrudesceram seus ataques, com manifestações que vão desde a ostentação de valores tradicionais da família até o uso de agressão e violência (LOURO, 2001LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, p. 541-553.).

Na tentativa de desconstruir o estigma criado sobre a homoafetividade,1 1 O termo homoafetividade foi criado com o intuito de defender o afeto, e não a prática sexual, como base formadora dos relacionamentos, heterossexuais ou não (DIAS, 2006). as minorias sexuais foram se organizando, em vários países, em defesa da isonomia de direitos entre homossexuais e heterossexuais, os chamados direitos homoafetivos. Praticamente em todo o mundo ocidental, os homossexuais têm lutado pela implementação de políticas de inserção social através dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

No Brasil, o Executivo vem criando, nas últimas décadas, políticas que visam a promoção da diversidade sexual e o combate à violência e à discriminaçã o. Têm-se, como exemplos, o programa Brasil sem Homofobia e a criação da Coordenadoria Nacional de Promoção dos Direitos de LGBT, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos (MELLO; BRITO; MAROJA, 2012MELLO, Luiz; BRITO, Walderes; MAROJA, Daniela. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos Pagu, n. 39, 2012, p. 403-429.). Tais ações do Executivo são particularmente importantes em um cenário em que o Legislativo, por sua vez, ainda não aprovou nenhuma lei que assegure amplamente direitos civis e sociais à população LGBT.

De acordo com Prado e Machado (2008)PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008., um levantamento acerca da legislação brasileira mostrou que aos homossexuais eram negados, pelo menos, 37 direitos a menos que aos heterossexuais. Essa situação indica que o Brasil ainda não se afastou totalmente do modelo repressor dos países fundamentalistas, claramente cerceadores de direitos aos homossexuais (UZIEL; MELLO; GROSSI, 2006UZIEL, Anna Paula; MELLO, Luiz; GROSSI, Miriam. Conjugalidades e parentalidades de gays, lés-bicas e transgêneros no Brasil. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, 2006, p. 481-487.).

Todavia, enquanto o Legislativo tem dificuldades em avançar, principalmente pelo envolvimento e pelas interferências das bancadas religiosas (MUSSKOPF, 2013MUSSKOPF, André S. Relação entre diversidade religiosa e diversidade sexual: um desafio para os direitos humanos e o Estado laico. Estudos de Religião, v. 27, n. 1, 2013, p. 157-176.), o Judiciário, institucionalmente menos afetado por determinadas pressões moralizantes, tem procurado responder aos apelos das minorias sexuais, constituindo, com o Executivo, uma importante ferramenta para assegurar aos homossexuais o exercício da cidadania.

Há algumas décadas, o Poder Judiciário, ao apreciar demandas de litígios abrangendo relações entre pessoas do mesmo sexo, vem fomentando alguns avanços na promoção dos direitos dessa minoria (OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues. (In)visíveis casais: conjugalidades homoeróticas e discursos de magistrados brasileiros sobre seu reconhecimento jurídico. Revista de Antropologia, v. 53, n. 2, 2010, p. 527-563.). Além dos Tribunais estaduais, as mais altas cortes judiciais do país – Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF) – têm deliberado sobre recursos judiciais que envolvem a garantia de direitos aos homossexuais.

Em maio de 2011, em uma decisão inédita, o STF reconheceu, mesmo que tardiamente,2 2 Antes do Brasil, vários países já haviam reconhecido a união entre pessoas do mesmo sexo e até mesmo legalizado o casamento entre homossexuais. a união homoafetiva como entidade familiar. A decisão consagrou a proibição de discriminar as pessoas em razão do sexo e a vedação ao preconceito, o que evidenciou o pluralismo como valor e a liberdade como direito fundamental, materializando a proteção do Estado e o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi mais adiante e aprovou proposta proibindo os Cartórios de Registro Civil de recusar a realização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

Sem dúvida, essas decisões significaram uma grande conquista para os homossexuais, estabelecendo importantes marcos institucionais. Porém, deve-se ter em conta que a decisão do STF, apesar de seu caráter de proteção normativa jurisprudencial com efeito vinculante, não traz as mesmas conquistas que seriam alcançadas se uma lei fosse promulgada. Por outro lado, o fato de o STF ter impetrado certa proteção jurídica e de o CNJ vedar determinadas omissões não significa, como já dito, que existe um consenso social. De acordo com Scardua e Souza Filho (2006)SCARDUA, Anderson; SOUZA FILHO, Edson Alves de. O debate sobre a homossexualidade mediado por representações sociais: perspectivas homossexuais e heterossexuais. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 19, n. 3, 2006, p. 482-490., apesar da proliferação do discurso da igualdade em nossas sociedades, discursos em defesa da heteronormatividade3 3 De acordo com Miskolci (2009, p. 156), a heteronormatividade “expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade”. continuam sendo difundidos.

Os discursos, como meios de atuação sobre o mundo, refletem uma série de estratégias ideológicas (BILLIG, 1991BILLIG, Michael. Ideology and Opinions: Studies in Rhetorical Psychology. London: Sage, 1991.) produzidas pelas instituições, visando tanto a modificação de determinada ordem social como sua manutenção (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2006.). Considerados historicamente como mecanismos importantes para o exercício do controle social, o direito e as instituições jurídicas, amparados em determinados discursos de cientificidade, contribuem, implícita e explicitamente, para ditar normas de comportamento social, inclusive na esfera afetiva e sexual (FOUCAULT, 2003FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.).

De fato, as decisões judiciais, através de uma série de estratégias discursivas pautadas, inclusive, em outras áreas de conhecimento, vêm definindo posições sociais a serem ocupadas pelos indivíduos, contribuindo fortemente seja para a manutenção, seja para a mudança de determinada ordem social, evidenciando o caráter político do direito produzido pelos tribunais (PERUCCHI; TONELI, 2008PERUCCHI, Juliana; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Aspectos políticos da normalização da paternidade pelo discurso jurídico brasileiro. Psicologia Política, v. 8, n. 15, 2008, p. 139-156.). Nesse panorama, pode-se dizer que os discursos utilizados pelos ministros nos complexos debates travados no âmbito do STF para justificar sua decisão sobre as uniões homoafetivas não foram apenas legitimadores de uma situação jurídica, mas trouxeram efeitos concretos na vida política e social das pessoas.

Evidentemente, a decisão tomada pelo STF representa uma mudança valorativa que traz novas construções discursivas, propiciando avanços na efetivação dos direitos das minorias sexuais. Não obstante, ao mesmo tempo, outras instituições e segmentos sociais, a exemplo da bancada evangélica do Poder Legislativo, reiteram discursos que promovem a patologização da homossexualidade, defendendo valores fortemente tradicionais (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Revista Latinoamericana Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 2, 2009, p. 121-161.) que servem de justificação para promover a desigualdade através do aparato da sexualidade.

Diante desse quadro de confronto entre as diversas visões sobre os padrões de normalidade da sexualidade que perpassam a sociedade brasileira, verifica-se uma série de estratégias ideológicas construídas pelos grupos e externadas através dos discursos sociais (BILLIG, 1991BILLIG, Michael. Ideology and Opinions: Studies in Rhetorical Psychology. London: Sage, 1991.; FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.; VAN DIJK, 2012VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2012.). De acordo com Potter e Wetherell (1987)POTTER, Jonathan; WETHERELL, Margaret. Discourse and Social Psychology: Beyound Attitudes and Behaviour. London: SAGE, 1987., os discursos trazem consigo, em forma de debates e argumentações, um arcabouço ideológico, representando formas de lidar com os fenômenos sociais. Sendo assim, a utilização de novos discursos reflete e produz uma nova realidade social (NOGUEIRA, 2001NOGUEIRA, Conceição. Análise do discurso. In: ALMEIDA, Leandro S.; FERNANDES, Eugénia M. Métodos e técnicas de avaliação: novos contributos para a prática e investigação. Braga: CEEP, 2001.), fazendo com que os estudos do discurso (VAN DIJK, 2004VAN DIJK, Teun A. O giro discursivo. In: IÑIGUEZ, L. Manual de análise do discurso em ciências sociais. Petrópolis: Vozes, 2004.; 2007VAN DIJK, Teun A. The Study of Discourse: An Introduction. In: VAN DIJK, T. A. Discourse Studies. London: SAGE, 2007.; 2012VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2012.) sejam essenciais para a compreensão da estrutura social (CAMINO et al., 2013CAMINO, Leoncio. et al. Repertórios discursivos contemporâneos sobre as desigualdades raciais no Brasil: um estudo com estudantes paraibanos de pós-graduação. Psicologia & Sociedade, v. 25, n. 1, 2013, p. 113-122.).

1 Discurso e realidade social

A expressão estudos do discurso é usada para designar um conjunto de teorias e métodos de investigação acerca do uso da linguagem como fator de estruturação da sociedade (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2008.). Largamente adotadas desde a década de 1960 em diferentes disciplinas das ciências humanas e sociais, essas diversas teorias e métodos sugerem uma inovação na forma de descrever o conhecimento e interpretar a realidade social, a exemplo da análise crítica do discurso.

Partindo da interação entre teoria, métodos de observação, descrição ou análise e suas aplicações, a análise crítica do discurso é um tipo de investigação analítica que destaca, como aspecto central de sua avaliação, os processos e estruturas sociais que levam à produção de um texto, falado ou escrito (VAN DIJK, 2012VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2012.). Nesta abordagem, fortemente influenciada por características da teoria crítica, procura-se identificar padrões discursivos contextualizados utilizados pelos indivíduos para construir representações dos fenômenos sociais, na tentativa de entender as complexas relações existentes entre os discursos e as questões sociais do mundo contemporâneo, tais como as relações de poder, o controle social e os processos de inclusão/exclusão (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.; WODAK, 2003WODAK, Ruth. De Qué Trata el Análisis Crítico del Discurso (ACD). Resumen de su Historia, sus Conceptos Fundamentales y sus Desarrollos. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michael. Métodos de Análisis Crítico del Discurso. Barcelona: Gedisa, 2003.; VAN DIJK, 2007VAN DIJK, Teun A. The Study of Discourse: An Introduction. In: VAN DIJK, T. A. Discourse Studies. London: SAGE, 2007.).

Em função do papel que a sexualidade tem adquirido na construção e no controle dos sujeitos (FOUCAULT, 1993FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.) e do papel que a jurisprudência tem assumido, no Brasil, como norma definidora de certas posições sociais (PERUCCHI; TONELI, 2008PERUCCHI, Juliana; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Aspectos políticos da normalização da paternidade pelo discurso jurídico brasileiro. Psicologia Política, v. 8, n. 15, 2008, p. 139-156.; OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues. (In)visíveis casais: conjugalidades homoeróticas e discursos de magistrados brasileiros sobre seu reconhecimento jurídico. Revista de Antropologia, v. 53, n. 2, 2010, p. 527-563.; LOBO, 2012LOBO, Lilia Ferreira. A expansão dos poderes judiciários. Psicologia & Sociedade, v. 24, n. esp., 2012, p. 25-30.), decidiu-se realizar um estudo acerca dos argumentos utilizados pelos ministros do STF ao reconhecerem a união homoafetiva.

Acreditando que os discursos podem carregar consigo mensagens tanto de igualdade como de desigualdade de grupos sociais (VAN DIJK, 2012VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2012.), buscou-se, neste estudo, identificar variações e contradições presentes nos votos dos ministros do STF, na tentativa de compreender se suas justificativas contribuíram ou não para a emancipação das minorias sexuais.

2 Aspectos metodológicos

2.1 Material de análise

Em face de duas ações impetradas junto ao STF – a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 –, os ministros discutiram a inconstitucionalidade do art. 1.723 do Código Civil brasileiro, que reza: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Portal da Legislação. Brasília, jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 26 out. 2016.
http://www.planalto.gov.br...
, grifos nossos).

Na época do julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132 – julgadas conjuntamente, sendo a ADPF recepcionada como Ação Direta de Inconstitucionalidade –, faziam parte do STF, órgão composto de onze membros, os seguintes ministros, elencados em ordem alfabética: Ayres Britto (vice-presidente e relator dos processos), Cármen Lúcia, Celso de Mello, Cezar Peluso (presidente), Dias Toffoli, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski. O ministro Dias Toffoli não participou da votação, pois o STF proclamou seu impedimento para julgar, em função de sua atuação anterior no processo, quando era advogado-geral da União. Por conseguinte, nessa votação específica, apenas dez ministros participaram da decisão.

Após o julgamento, o STF divulgou, na íntegra, os votos4 4 O documento está disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 5 jul. 2014. de nove dos dez ministros. Por algum motivo de ordem técnica, o voto da ministra Ellen Gracie não está contido na publicação do acórdão do julgamento. Mesmo assim, como os pronunciamentos dos ministros foram transmitidos pelos meios de comunicação, as declarações da ministra – que não correspondem ao inteiro teor de seu voto, mas sinalizam seu conteúdo – foram transcritas. Por conseguinte, suas declarações foram consideradas nos procedimentos de análise, lembrando que cada voto traz sua justificativa em um número de páginas variável: há votos com cinco páginas e outros com mais de cinquenta páginas.

2.2 Procedimentos de análise

Tomando por base as premissas da análise crítica do discurso, na qual cada pesquisador usa métodos de análise particulares, dependendo de seus objetivos, interesses e qualificações, bem como da natureza dos dados (VAN DIJK, 2012VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2012.), optou-se por empregar dois métodos para explorar os argumentos utilizados pelos ministros do STF. Com auxílio do software ALCESTE, efetuou-se uma análise lexical, de caráter quantitativo, que foi complementada por uma interpretação textual, de caráter qualitativo.

O software ALCESTE (Analyse Lexicale par Context d'un Ensemble de Segments de Texte) é um programa estatístico computadorizado, criado por Max Reinert, na França, na década de 1970. O uso do programa, introduzido no Brasil em 1998, é muito vantajoso, pois permite analisar dados textuais oriundos de fontes escritas diversas, especialmente textos grandes (KRONBERGER; WAGNER, 2002KRONBERGER, Nicole; WAGNER, Wolfgang. Palavras-chave em contexto: análise estatística de textos. In: BAUER, Martin. W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.; CAMARGO, 2005CAMARGO, Brígido Vizeu. ALCESTE: um programa informático de análise quantitativa de dados textuais. In: MOREIRA, Antonia Silva Paredes; JESUÍNO, Jorge Correia. Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais. João Pessoa: Editora Universitária, 2005.; NASCIMENTO; MENANDRO, 2006NASCIMENTO, Adriano Roberto Afonso; MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Análise lexical e análise de conteúdo: uma proposta de utilização conjugada. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 6, n. 2, 2006, p. 72-88.). Como ferramenta de análise, o ALCESTE, principalmente através de duas técnicas estatísticas (classificação hierárquica descendente e análise fatorial de correspondência), busca a regularidade e a evidência lexical dos vocábulos de um texto, agrupando diversos fragmentos (trechos dos votos) significativamente associados em classes e categorias. No entanto, o ALCESTE não dá nome a essas classes e categorias – de modo que cabe ao pesquisador encontrar seu significado teórico –, tampouco permite verificar diferenças e contradições existentes dentro dos próprios agrupamentos discursivos (KRONBERGER; WAGNER, 2002KRONBERGER, Nicole; WAGNER, Wolfgang. Palavras-chave em contexto: análise estatística de textos. In: BAUER, Martin. W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.), preconizando o uso de outros procedimentos de análise.

A interpretação textual, por sua vez, consistiu em uma avaliação mais aprofundada dos argumentos contidos nos votos dos ministros. Realizada por dois árbitros com experiência em estudos do discurso, sendo apenas um deles da área jurídica, sua execução se deu com base nos passos descritos por Nogueira (2001)NOGUEIRA, Conceição. Análise do discurso. In: ALMEIDA, Leandro S.; FERNANDES, Eugénia M. Métodos e técnicas de avaliação: novos contributos para a prática e investigação. Braga: CEEP, 2001., ao citar um estudo realizado por ela sobre mulheres em posições de poder. Assim, o primeiro passo consistiu em cada árbitro fazer uma leitura individual dos votos dos ministros do STF. Em seguida, os árbitros fizeram reuniões para realizar, em conjunto, uma (re)leitura do material, na tentativa de estabelecer uma linha de pensamento presente no voto que cada ministro emitiu. As leituras implicaram fazer pausas e reler trechos para detectar os significados contidos no material.

Durante essa fase de leituras contínuas, procuram-se temas repetitivos, frases que pareçam representar situações de forma mais ou menos coerente e de significado similar, metáforas que possam implicar imagens específicas ou mesmo palavras com significados particulares. Isto implica sublinhar e passar para outro papel essas frases, de forma a facilitar a sua organização posterior. Procuram-se, como já se referiu, semelhanças, diferenças, pensando-se em simultâneo que tipo de efeitos discursivos poderão estar implicados. (NOGUEIRA, 2001NOGUEIRA, Conceição. Análise do discurso. In: ALMEIDA, Leandro S.; FERNANDES, Eugénia M. Métodos e técnicas de avaliação: novos contributos para a prática e investigação. Braga: CEEP, 2001., p. 40)

Com base no que ia sendo lido em conjunto, cada árbitro intervinha na leitura, de forma espontânea e não controlada, fazendo interrupções para discussões. Através dessas leituras, buscou-se identificar extratos de texto que permitissem atribuir um sentido discursivo para os argumentos de cada ministro. Essa pareceu ser a forma mais adequada para a interpretação, já que, como afirma Nogueira (2001)NOGUEIRA, Conceição. Análise do discurso. In: ALMEIDA, Leandro S.; FERNANDES, Eugénia M. Métodos e técnicas de avaliação: novos contributos para a prática e investigação. Braga: CEEP, 2001., os extratos de texto representam muito claramente o conteúdo que parece caracterizar cada discurso.

3 Resultados e discussão

Na análise dos argumentos e das justificativas presentes nos votos proferidos pelos ministros do STF ao julgar a ADI 4277 e a ADPF 13 2, que versavam sobre a possibilidade de considerar o art. 1.723 do Código Civil inconstitucional por não garantir isonomia de direitos entre homossexuais e heterossexuais, o ALCESTE identificou quatro classes diferentes (Figura 1). A classe 1, constituída por 37% das unidades do texto; a classe 2, com 18%; a classe 3, constituída por 11%; e a classe 4, com 34% do conteúdo total do texto analisado.

FIGURA 1
As classes discursivas

A classe 1, denominada Em proteção das minorias, é composta de palavras e expressões como Supremo Tribunal Federal, lacuna, legislador, grupos minoritários, jurisdição, política, legitimidade e problema. Nos segmentos de texto que compõem essa classe discursiva, admite-se que o reconhecimento das uniões homoafetivas carece de regulamentação legal específica (lacuna legal), bem como que o STF tem legitimidade para solucionar problemas que envolvem tema de jurisdição constitucional.

Há um entendimento convergente de que a função do Poder Judiciário não é a de substituir o legislador, mas a de resguardar a participação de todos os indivíduos no regime democrático, garantindo uma ordem jurídica e política justa. O STF, ao suprir as omissões dos órgãos e dos poderes públicos, resguarda a democracia, protegendo as minorias dos excessos e injustiças dos grupos majoritários.

No entanto, embora haja certa convergência temática, percebe-se, através da interpretação textual, certas contradições nas alegações utilizadas pelos ministros. Enquanto algumas das justificativas ressaltam a utilização dos princípios constitucionais como ferramentas hermenêuticas que devem ser adotadas para interpretar a realidade social e oferecer soluções no plano fático, preenchendo a lacuna legal; outras destacam a aplicação da técnica da analogia (ou outras formas de extensão de sentido) para dar reconhecimento à união homoafetiva.

Como exemplos de argumentos presentes na classe 1, podem ser citados os seguintes trechos dos votos:

Com efeito, a necessidade de assegurar-se, em nosso sistema jurídico, proteção às minorias e aos grupos vulneráveis qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito, havendo merecido tutela efetiva, por parte desta Suprema Corte, quando grupos majoritários, por exemplo, atuando no âmbito do Congresso Nacional, ensaiaram medidas arbitrárias destinadas a frustrar o exercício, por organizações minoritárias, de direitos assegurados pela ordem constitucional […]. (Celso de Mello).5 5 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277CM.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode - ou deve - provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. (Luiz Fux).6 6 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277LF.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

[…] este é o meu fundamento, a cujo respeito eu peço vênia para divergir da posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam nesse passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa de ser preenchida. E se deve preenchê-la, segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da similitude – não da igualdade –, da similitude factual entre ambas as entidades de que cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo. (Cezar Peluso).7 7 Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1090_ADI_4.277_-_Voto_Peluso.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Observe-se que, embora os discursos que fazem parte dessa classe tenham enfatizado a necessidade de preencher uma lacuna legal presente no ordenamento jurídico, as declarações dos ministros carregam argumentos distintos que revelam diferentes concepções do Poder Judiciário acerca das minorias sexuais. Enquanto alguns ministros se posicionam, através de seus argumentos, de forma mais tradicional e legalista, defendendo o uso de técnicas normativas como a analogia; outros parecem adotar uma visão mais contemporânea, defendendo um maior ativismo judicial através da aplicação dos princípios constitucionais.

Por sua vez, a classe 2, chamada de Dignidade da pessoa humana, aglutina palavras e expressões como liberdade, dignidade da pessoa humana, igualdade, intimidade, sexualidade, felicidade, cidadania, privacidade e orientação sexual. Os discursos dessa classe representam a ideia de que as pessoas têm direito à intimidade e à vida privada e de que são livres para exercer sua sexualidade, considerada dimensão natural da personalidade dos indivíduos, de modo que ninguém pode ser privado de seus direitos ou sofrer restrições jurídicas por parte do Estado por motivo de sua orientação sexual. Em adição, salientam que existem princípios fundamentais ao sistema jurídico, como aqueles que resguardam a dignidade da pessoa humana, que não podem ser feridos com base em argumentos que privilegiam a desigualdade, o preconceito e a discriminação.

Como exemplos dos discursos presentes na classe 2, podem ser citados os seguintes trechos dos votos:

[…] a homossexualidade é um fato da vida. […] é uma orientação e não uma opção sexual. […] não constitui doença, desvio ou distúrbio mental, mas uma característica da personalidade do indivíduo. (Luiz Fux).8 8 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277LF.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

[…] não se pode excluir do direito à intimidade e à vida privada dos indivíduos a dimensão sexual do seu telúrico existir. Dimensão que, de tão natural e até mesmo instintiva, só pode vir a lume assim por modo predominantemente natural e instintivo mesmo, respeitada a mencionada liberdade do concreto uso da sexualidade alheia. (Ayres Britto).9 9 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Entendo, pois, que o reconhecimento dos direitos oriundos de uniões homoafetivas encontra fundamento em todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos fundamentais, no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio da igualdade e da não discriminação. (Joaquim Barbosa).10 10 Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>, p. 723-727. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

[…] a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade […]. (Celso de Mello).11 11 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277CM.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Há, isso sim, a obrigação constitucional de não discriminação e de respeito à dignidade humana, às diferenças, à liberdade de orientação sexual, o que impõe o tratamento equânime entre homossexuais e heterossexuais. (Marco Aurélio).12 12 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277MA.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Já a classe 3, chamada de Descumprimento de preceito constitucional, exprime o mérito da ação, ou seja, a questão fundamental da discussão travada no âmbito do STF, que seria a alegação de que, ao não reconhecer a união homoafetiva, o Estado brasileiro estaria descumprindo preceitos constitucionais fundamentais. Assim, nela encontram-se palavras e expressões como ação, inconstitucionalidade, pedido, mérito, dentre outras.

E, desde logo, verbalizo que merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família. (Ayres Britto).13 13 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277revisado.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Por isso, Senhor Presidente, julgo procedente o pedido formulado para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, veiculado pela Lei n. 10.406/2002, a fim de declarar a aplicabilidade do regime da união estável às uniões entre pessoas de sexo igual. (Marco Aurélio).14 14 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277MA.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Por fim, a classe 4, que recebeu o nome de Entidade familiar, aglutina palavras e expressões como união estável, mulher, casamento, homem e entidade familiar. Os discursos dessa classe representam as qualificações legislativas de uma união estável, reconhecida pela Constituição Federal, em seu art. 226, §3°, como entidade familiar, e descrita pelo Código Civil, em seu art. 1.723, como uma união configurada pela convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher.

Também nessa classe, a interpretação textual mostra a existência de argumentos diferentes nas justificativas utilizadas pelos ministros, argumentos que podem ser classificados com base em dois parâmetros distintos: um que realça a necessidade de regulamentação legislativa das uniões homoafetivas, por não se enquadrarem no critério normativo descrito no art. 1.723; e outro que defende sua existência com base nos princípios constitucionais.

Mais especificamente, ao defender a impossibilidade do enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família reconhecidas pelo ordenamento legal, indicando que ela deve ser aceita através do uso da analogia ou de outras técnicas de interpretação, os argumentos acabam por ressaltar as diferenças entre homossexuais e heterossexuais. Em contrapartida, ao defender sua existência com base nos princípios constitucionais, os argumentos destacam uma efetiva igualdade de direitos.

Isso significa que a qualificação da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que presentes, quanto a ela, os mesmos requisitos inerentes à união estável constituída por pessoas de gêneros distintos, representará o reconhecimento de que as conjugalidades homoafetivas, por repousarem a sua existência nos vínculos de solidariedade, de amor e de projetos de vida em comum, hão de merecer o integral amparo do Estado, que lhes deve dispensar, por tal razão, o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais. (Celso de Mello).15 15 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277CM.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

[…] este é o meu fundamento, a cujo respeito eu peço vênia para divergir da posição do ilustre Relator e de outros que o acompanharam nesse passo – que há uma lacuna normativa, a qual precisa de ser preenchida. E se deve preenchê-la, segundo as regras tradicionais, pela aplicação da analogia, diante, basicamente, da similitude – não da igualdade –, da similitude factual entre ambas as entidades de que cogitamos: a união estável entre o homem e a mulher e a união entre pessoas do mesmo sexo. (Cezar Peluso).16 16 Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1090_ADI_4.277_-_Voto_Peluso.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Creio que se está, repito, diante de outra entidade familiar, distinta daquela que caracteriza as uniões estáveis heterossexuais. A diferença, embora sutil, reside no fato de que, apesar de semelhante em muitos aspectos à união estável entre pessoas de sexo distinto, especialmente no que tange ao vínculo afetivo, à publicidade e à duração no tempo, a união homossexual não se confunde com aquela, eis que, por definição legal, abarca, exclusivamente, casais de gênero diverso. (Ricardo Lewandowski).17 17 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277RL.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016. (BRASIL, 2011BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.)

Em continuidade, o ALCESTE, além de agrupar palavras e expressões semelhantes, dividindo o texto em classes, agrupa essas classes em categorias mais amplas, por meio de uma classificação hierárquica descendente (CHD), representada através de um dendrograma (Figura 2).

FIGURA 2
Dendrograma da classificação hierárquica descendente

De acordo com o que se pode ver na Figura 2, o ALCESTE congrega as classes em duas categorias. Uma delas, que abarca 11% dos segmentos de texto analisados e foi chamada de Ação de inconstitucionalidade, está representada apenas pela classe 3, que trata da essência do julgamento proferido pelo STF: a inconstitucionalidade do art. 1.723 do Código Civil.

A outra categoria, denominada de Reconhecimento de direitos, aglutina as classes 1, 2 e 4, totalizando 89% dos segmentos de texto analisados. As classes que compõem essa categoria podem ser entendidas como classes que revelam diversos conjuntos de argumentos utilizados pelos ministros do STF para fundamentar a decisão pela inconstitucionalidade do artigo 1.723 do Código Civil.

A classe 1 traz um conjunto de argumentos que defendem a atividade jurisdicional como uma importante ferramenta para proteção dos direitos das minorias sexuais, suprimindo uma lacuna legislativa que não os contempla. Os argumentos presentes na classe 2 tratam do respeito que o Estado deve ter à intimidade, privacidade e busca pela felicidade, de acordo com qualquer orientação sexual, como forma de resguardar a dignidade da pessoa humana. Na classe 4, os argumentos abarcam o debate sobre a natureza da entidade familiar e sua histórica configuração heterossexual.

Dessa forma, pode-se dizer que, embora os argumentos utilizados para o reconhecimento das uniões homoafetivas tenham sido caracterizados pela diversidade de conteúdos, houve também uma convergência norteadora desses conteúdos que pode ser traduzida pela decisão unânime dos ministros em declarar a inconstitucionalidade do art. 1.723 do Código Civil. Ao que parece, isso explica o fato de as classes 1, 2 e 4 aparecerem juntas, mas diferenciadas da classe 3, mostrando uma contraposição clássica no direito: o pedido versus a solução.

Ainda analisando os procedimentos do ALCESTE, pode-se observar que os resultados obtidos através da CHD (Figura 2) são confirmados pela análise fatorial de correspondência (Figura 3). Esse procedimento estatístico demonstra as relações entre as quatro classes encontradas, situando-as graficamente em um sistema cartesiano que indica como as diversas categorias discursivas sobre o reconhecimento das uniões homoafetivas se contrapõem e/ou se justapõem em função de suas similitudes e/ou diferenças.

FIGURA 3
Análise fatorial de correspondência

Constata-se, no eixo horizontal X, que a classe 3 está situada do lado direito, separando-se claramente das outras três classes, situadas ao redor do ponto central do sistema cartesiano. Assim, percebe-se que, nessa dimensão (indicada pelo eixo horizontal X), uma das categorias (classe 3) se separa das outras na medida em que ela indica a decisão do STF, enquanto as outras (classes 1, 2 e 4) indicam os argumentos utilizados para a tomada dessa decisão.

Pode-se ainda observar, no que se refere ao eixo vertical Y, que as classes 1 e 2 se situam na parte superior, enquanto as classes 3 e 4 estão situadas na parte inferior. Nessa dimensão (indicada pelo eixo vertical Y), os diversos discursos se diferenciam. Acima, encontram-se os argumentos que se apoiam na garantia de direitos aos cidadãos, através da proteção das minorias (classe 1) e da dignidade da pessoa humana (classe 2); abaixo, aparecem os argumentos que tratam da natureza da entidade familiar e sua histórica configuração heterossexual (classe 4).

Considerações finais

Os dois métodos de análise utilizados simultaneamente no presente estudo permitiram constatar tanto as semelhanças existentes entre os discursos dos ministros (agrupamentos realizados pela análise lexical - ALCESTE) como as diferenças e contradições presentes, inclusive, dentro das próprias classes discursivas (interpretação textual). Essas similitudes e variabilidades já eram esperadas, uma vez que a atividade discursiva é caracterizada por congruências e incongruências carregadas de subjetivações historicamente contextualizadas. Desse modo, ao proporcionar o reconhecimento dessas concordâncias e variações, os procedimentos adotados forneceram uma visão mais detalhada dos padrões de linguagem usados pelos ministros do STF ao proferirem a decisão de reconhecimento da união homoafetiva, assim como dos processos de luta e resistência travados através do debate discursivo que envolveram a construção de uma norma jurisprudencial.

Ademais, segundo Lobo (2012)LOBO, Lilia Ferreira. A expansão dos poderes judiciários. Psicologia & Sociedade, v. 24, n. esp., 2012, p. 25-30., parece estar havendo, atualmente, um maior crescimento da atuação das instituições jurídicas, em detrimento de outras instituições de controle social. Através da proliferação dos objetos judiciáveis e do alargamento das atribuições judiciárias, verifica-se uma multiplicação da função jurídica no corpo social, resultando em uma influência cada vez mais forte do Poder Judiciário na regulamentação jurídica de vários comportamentos sociais.

Em consonância, pode-se dizer que os debates travados pelos ministros do STF não apenas representam suas opiniões acerca da união homoafetiva, mas, principalmente, afetam as formas como a sociedade percebe a diversidade sexual e a natureza das relações homoafetivas. Sendo assim, ante o crescimento atual da influência que exercem as instituições jurídicas no desenvolvimento das relações que ocorrem no interior de sociedade, faz-se oportuno perguntar se a existência de diferentes estratégias discursivas utilizadas nos debates travados pelos ministros pode ajudar a promover maior inclusão ou exclusão das minorias sexuais.

Evidentemente, o julgamento ocorrido no âmbito do STF criou uma jurisprudência com efeito vinculante, unificando decisões judiciais e administrativas sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo e consolidando a garantia de direitos. Entretanto, o fato de a decisão, assim como todo processo discursivo, ter sido construída de forma multifacetada, com variações que representam as lutas retóricas travadas através de argumentação e contra-argumentação, mostra que existem diferentes versões do mesmo fenômeno social.

Constatar essas diferenças não é um problema. Afinal, vive-se em uma sociedade plural e diversa, sob vários aspectos. A questão é: no caso dos direitos homoafetivos, o discurso da diferença propagado através dos argumentos de determinados ministros aviva a diversidade ou realça a desigualdade? No que se refere à utilização de argumentos embasados no uso de técnicas normativas como a analogia, fica evidente que o discurso da diferença destaca a desigualdade, descortinando as tensões e os desafios que a consolidação dos direitos humanos ainda enfrenta, principalmente no que se refere ao pleno reconhecimento da diversidade sexual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BILLIG, Michael. Ideology and Opinions: Studies in Rhetorical Psychology London: Sage, 1991.
  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Portal da Legislação Brasília, jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 26 out. 2016.
    » http://www.planalto.gov.br
  • BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censo demográfico 2010 Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2012.
    » http://www.ibge.gov.br
  • BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, maio 2011.
  • CAMARGO, Brígido Vizeu. ALCESTE: um programa informático de análise quantitativa de dados textuais. In: MOREIRA, Antonia Silva Paredes; JESUÍNO, Jorge Correia. Perspectivas teórico-metodológicas em representações sociais João Pessoa: Editora Universitária, 2005.
  • CAMINO, Leoncio. et al. Repertórios discursivos contemporâneos sobre as desigualdades raciais no Brasil: um estudo com estudantes paraibanos de pós-graduação. Psicologia & Sociedade, v. 25, n. 1, 2013, p. 113-122.
  • CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso São Paulo: Contexto, 2008.
  • DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
  • FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
  • FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro: NAU, 2003.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso São Paulo: Loyola, 2006.
  • GOUVEIA, Raimundo; CAMINO, Leoncio. Análise psicossocial das visões de ativistas LGBTs sobre família e conjugalidade. Psicologia Política, v. 9, n. 17, 2009, p. 47-65.
  • KRONBERGER, Nicole; WAGNER, Wolfgang. Palavras-chave em contexto: análise estatística de textos. In: BAUER, Martin. W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • LOBO, Lilia Ferreira. A expansão dos poderes judiciários. Psicologia & Sociedade, v. 24, n. esp., 2012, p. 25-30.
  • LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, 2001, p. 541-553.
  • MELLO, Luiz; BRITO, Walderes; MAROJA, Daniela. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos Pagu, n. 39, 2012, p. 403-429.
  • MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, v. 21, 2009, p. 150-182.
  • MUSSKOPF, André S. Relação entre diversidade religiosa e diversidade sexual: um desafio para os direitos humanos e o Estado laico. Estudos de Religião, v. 27, n. 1, 2013, p. 157-176.
  • NASCIMENTO, Adriano Roberto Afonso; MENANDRO, Paulo Rogério Meira. Análise lexical e análise de conteúdo: uma proposta de utilização conjugada. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 6, n. 2, 2006, p. 72-88.
  • NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Revista Latinoamericana Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 2, 2009, p. 121-161.
  • NOGUEIRA, Conceição. Análise do discurso. In: ALMEIDA, Leandro S.; FERNANDES, Eugénia M. Métodos e técnicas de avaliação: novos contributos para a prática e investigação. Braga: CEEP, 2001.
  • OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues. (In)visíveis casais: conjugalidades homoeróticas e discursos de magistrados brasileiros sobre seu reconhecimento jurídico. Revista de Antropologia, v. 53, n. 2, 2010, p. 527-563.
  • PERUCCHI, Juliana; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Aspectos políticos da normalização da paternidade pelo discurso jurídico brasileiro. Psicologia Política, v. 8, n. 15, 2008, p. 139-156.
  • POTTER, Jonathan; WETHERELL, Margaret. Discourse and Social Psychology: Beyound Attitudes and Behaviour. London: SAGE, 1987.
  • PRADO, Marco Aurélio Máximo; MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.
  • SCARDUA, Anderson; SOUZA FILHO, Edson Alves de. O debate sobre a homossexualidade mediado por representações sociais: perspectivas homossexuais e heterossexuais. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 19, n. 3, 2006, p. 482-490.
  • UZIEL, Anna Paula; MELLO, Luiz; GROSSI, Miriam. Conjugalidades e parentalidades de gays, lés-bicas e transgêneros no Brasil. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, 2006, p. 481-487.
  • VAN DIJK, Teun A. O giro discursivo. In: IÑIGUEZ, L. Manual de análise do discurso em ciências sociais Petrópolis: Vozes, 2004.
  • VAN DIJK, Teun A. The Study of Discourse: An Introduction. In: VAN DIJK, T. A. Discourse Studies London: SAGE, 2007.
  • VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder São Paulo: Contexto, 2012.
  • WODAK, Ruth. De Qué Trata el Análisis Crítico del Discurso (ACD). Resumen de su Historia, sus Conceptos Fundamentales y sus Desarrollos. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michael. Métodos de Análisis Crítico del Discurso Barcelona: Gedisa, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2014
  • Aceito
    22 Ago 2016
Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo Rua Rocha, 233, 11º andar, 01330-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799 2172 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistadireitogv@fgv.br