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Saúde pública e Poder Judiciário:percepções de magistrados no estado do Maranhão

Public health and Judiciary: perceptions of some judges of the state of Maranhão

Resumo

O estudo analisa a percepção de magistrados do Maranhão sobre o tema judicialização da saúde pública. Investigou-se como o Poder Judiciário percebe sua atuação, quais parâmetros decisórios adota e quais alternativas de melhoria sugere. Trata-se de pesquisa qualitativa. Foram entrevistados dez magistrados, entre desembargadores e juízes do TJ-MA e juízes federais da Seção Judiciária do Maranhão, mediante roteiro de entrevista semiestruturado, aplicação de questionário sociodemográfico e análise de conteúdo na modalidade temática. Concluiu-se que a percepção dos magistrados é de descrédito nas capacidades gerenciais do Poder Executivo. A judicialização da saúde pública é tida como interferência benigna do Judiciário em outro Poder. A ideia de judicialização da saúde também abrange a saúde suplementar e o direito à saúde é percebido como direito social fundamental, de eficácia imediata. Nesse campo, a solução de conflitos é considerada emocionalmente difícil, com tendência ao deferimento de pedidos. Por outro lado, há possibilidade de diálogo entre Judiciário e Executivo.

Brasil; judicialização; saúde pública; recursos públicos; gestão da saúde; direito à saúde

Abstract

This article analyzes the perception of judges of Maranhão on judicialization of public health. This qualitative research study intends to investigate how judges perceive their performance, which decision-making parameters they adopt and what alternatives they suggest. Ten federal and state judges were interviewed, through a semi-structured interview, socio-demographic questionnaire and content analysis of data. The results show that some judges discredit the managerial skills of the government bodies. The judicial intervention in public health-related matters is considered a positive interference in the government. The right to health is conceived as a fundamental social right, and the decisions are classified as emotionally hard. There is a great tendency to defer orders. On the other hand, there is a possibility of dialogue with Public Administration.

Brazil; judicialization; public health; health care rationing; health services administration; right to health

Introdução

O tema judicialização da saúde tem sido debatido na atualidade por expressar uma suposta tensão entre a gestão de políticas públicas a cargo do Poder Executivo e decisões do Poder Judiciário que compelem o Estado a fornecer prestações de saúde.

Estabelecida nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.), a garantia do direito à saúde se tornou dever do Estado, mas sua concretização envolve questões políticas, econômicas, orçamentárias, tecnológicas, sociais, culturais e jurídicas que, conjugadas entre si, permitem vislumbrar seus desafios (VENTURA et al., 2010VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 77-100, 2010., p. 78).

Resta a questão de que o argumento da insuficiência de recursos financeiros possa satisfazer todas as necessidades sociais, bem como o de que a formulação de políticas públicas requer escolhas também políticas, pautadas por critérios de macrojustiça, como as “escolhas trágicas”, no estabelecimento de prioridades de gastos, e a “reserva do possível”, na busca do equilíbrio entre receitas e necessidade pública (NUNES; SCAFF, 2011NUNES, Antonio José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011., p. 133).

Por outro lado, há princípios e regras constitucionais ou infraconstitucionais que legitimam o Poder Judiciário, não sem parâmetros e critérios, a agir, inclusive com urgência, diante de qualquer conflito que lhe é submetido, conforme art. 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.).

No contexto de adversidades do sistema público de saúde brasileiro, a judicialização da saúde se traduziria em oportunidade disponível ao cidadão, via Poder Judiciário, a demandar prestações de saúde individuais ou coletivas em face da Administração Pública.

Sobre os gastos públicos envolvidos, dados divulgados pela Revista Medicina CFM – Humanidades Médicas, do Conselho Federal de Medicina, que tiveram como fonte a Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, revelam um crescimento dos gastos federais com judicialização da saúde da ordem de aproximadamente R$ 96 milhões em 2009 para quase R$ 356 milhões em 2012, realizados por ordem judicial para compras diretas de produtos, depósitos judiciais e repasses a governos locais (JUNIOR, 2013JUNIOR, Milton. Saúde sob o olhar clínico da justiça. Medicina CFM. Revista de humanidades médicas. Brasília-DF, p. 26-31, set./dez. 2013., p. 31).

Despesas do Ministério da Saúde com processos judiciais que obrigam o Sistema Único de Saúde (SUS) ao fornecimento de medicamentos cresceram exponencialmente nos últimos anos. Segundo dados da pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), observou-se crescimento real de 1006% das demandas judiciais atendidas por compra direta e depósito, partindo de R$ 103,8 milhões em 2008 para R$ 1,1 bilhão em 2015 (DAVID; ANDRELINO; BEGHIN, 2016DAVID, Grazielle; ANDRELINO, Alane; BEGHIN, Nathalie. Direito a medicamentos: avaliação das despesas com medicamentos no âmbito federal do sistema único de saúde entre 2008 e 2015. 1. ed. Brasília: Inesc, 2016., p. 24).

As discussões têm mobilizado academia, Poder Judiciário, Legislativo, Executivo, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades da sociedade civil organizada: como garantir direito à saúde e à vida? Como deve atuar o Poder Judiciário? Como garantir universalidade e integralidade do SUS, assegurando a sustentabilidade e o gerenciamento do sistema? Daí se retiram as questões norteadoras desta pesquisa: como o Poder Judiciário maranhense se coloca diante dessa discussão? Qual sua percepção sobre a judicialização da saúde? Quais as dificuldades enfrentadas e as possíveis alternativas de melhoria?

O objetivo geral foi pesquisar a percepção geral do Poder Judiciário maranhense sobre o fenômeno da judicialização da saúde. Os objetivos específicos foram assim delineados: 1) Investigar como o Judiciário percebe os impactos de suas decisões no âmbito de demandas que envolvem direito à saúde; 2) Pesquisar quais são os parâmetros adotados para a solução judicial de casos que envolvem direito à saúde; e 3) Identificar quais as alternativas que poderão ser apontadas como relevantes para minimizar eventuais dificuldades enfrentadas.

A justificativa do estudo gira em torno da atualidade do tema, de uma abordagem diferenciada ao analisar a percepção de um dos principais sujeitos da temática investigada e da real necessidade de dados empíricos para subsidiar debates, encaminhamentos e soluções práticas. Isso porque são muitos os desafios à efetivação do direito à saúde no Brasil.

A Constituição Federal de 1988 dispôs sobre a política de saúde brasileira sob a égide da máxima “Saúde: direito de todos, dever do Estado”. O direito à saúde foi reconhecido, então, como direito social, ou seja, as necessidades de saúde da população, independentemente da condição de ser ou não “trabalhador” formalizado, passaram a ser consideradas de interesse público e de caráter universal, com acesso igualitário aos serviços e custeio arcado com recursos públicos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (MENDES, 2013MENDES, Karyna Rocha. Curso de Direito da Saúde. São Paulo: Saraiva: 2013., p. 135).

Como direito social, subordinado a uma prestação positiva estatal, o direito à saúde poderia, em tese, ter esvaziada sua eficácia por argumentos comumente alegados no Brasil (burocracia, escassez de recursos etc.), que justificariam eventuais omissões.

Daí o fortalecimento da corrente de pensamento que pretende imprimir eficácia imediata aos “direitos fundamentais sociais”, permitindo-se a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a prover, realizar e garantir a efetividade do direito à saúde, com suporte no art. 5°, §1°, da Constituição Federal (MENDES; BRANCO, 2014MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 635).

Cabe, entretanto, indagar em que medida tais pretensões podem ser concedidas por imposição do Poder Judiciário e em quais bases, limites ou parâmetros ele deve se pautar para prolatar suas decisões. No contexto de recursos públicos escassos, as discussões envolvendo o direito à saúde – ou o direito a prestações de saúde – formam, provavelmente, um dos temas mais complexos no debate acerca da eficácia jurídica dos direitos fundamentais.

A busca pela definição desses critérios é reforçada pela constatação de que as necessidades de saúde seriam imensuráveis diante de rápidos avanços científicos e tecnológicos na área da medicina e farmacologia, ao mesmo tempo em que os recursos públicos são limitados (em crise, escassos), o que impõe a escolha de prioridades.

Por outro lado, o que seria de um direito se não fosse possível defendê-lo em juízo, mesmo que no âmbito de aspectos específicos da esfera individual de quem se entendeu lesado? A discussão é profícua e tem inspirado muitos estudos e pesquisas, bem como ações institucionais por parte dos poderes públicos para definição de limites e possibilidades de efetivação do direito à saúde.

1 Abordagem metodológica

O presente estudo é do tipo qualitativo, com análise de conteúdo na modalidade temática. Para a coleta de dados foi aplicada a técnica do roteiro de entrevista semiestruturada. Foi também aplicado um questionário sociodemográfico para conhecimento do perfil dos entrevistados em relação a idade, gênero, nível de escolaridade, cargo ocupado e tempo de magistratura. Segundo Maria Cecília de Souza Minayo (2014MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2014., p. 57), as abordagens qualitativas “se conformam melhor a investigações de grupos e segmentos delimitados e focalizados, de histórias sociais sob a ótica dos atores, de relações e para a análise de discursos e documentos”.

Os dados foram analisados e classificados após a transcrição das entrevistas semiestruturadas. Minayo (2014MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2014., p. 316) explica que: “Fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objeto analítico visado”.

O projeto de pesquisa foi aprovado por meio do Parecer n. 519.062, datado de 31 de janeiro de 2014, do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Ceuma, em atendimento às exigências da Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que norteia a pesquisa envolvendo seres humanos.

O critério de inclusão dos participantes da pesquisa foi estar em exercício do cargo de juiz federal nas varas cíveis da Seção Judiciária do Maranhão, de juiz estadual das Varas da Fazenda Pública ou da Vara de Direitos Difusos e Coletivos da comarca de São Luís ou de desembargador estadual do Tribunal de Justiça do Maranhão e ter competência para julgar ações que envolvem direito à saúde, cujo réu (parte adversa, parte requerida ou demandada) seja a União, o estado do Maranhão ou o município de São Luís.

Sendo assim, identificou-se um universo de 25 possíveis entrevistados que atendiam ao critério de inclusão. Porém houve recusa expressa de quatro juízes, sendo dois juízes estaduais e dois juízes federais, restando 21 possibilidades. Logrou-se entrevistar dez, pois os demais não responderam aos convites ou não foram contatados devido à riqueza do material coletado nas dez entrevistas realizadas (critério de saturação).

2 Discussão e resultados

Os dados obtidos permitiram traçar o perfil do público entrevistado: as idades variaram entre 35 e 63 anos, com uma média de 55 anos. O tempo de trabalho na magistratura variou entre dois e 32 anos, com média de 20 anos. Dos dez entrevistados, houve somente uma juíza do gênero feminino, os demais eram do gênero masculino. Sobre o nível de escolaridade, dois participantes informaram ter graduação, quatro, especialização, três, mestrado e um informou ser doutorando. Veja-se o resumo dos cargos, sistematizado no Quadro 1.

quadro 1
– Dados sobre os cargos dos participantes

Na fase de exploração do material, encontrou-se três unidades de análise: 1) Percepção geral do Poder Judiciário maranhense; 2) Parâmetros decisórios; e 3) Possibilidades de melhoria, que representam as categorias em função das quais o conteúdo das falas foi organizado e classificado (MINAYO, 2014MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2014., p. 317).

2.1 Percepção geral do Poder Judiciário maranhense

2.1.1 Descrédito nas capacidades gerenciais do Poder Executivo

Quando questionados sobre como percebiam a judicialização da saúde, todos os magistrados (10∕10) mencionaram problemas na execução das políticas públicas dessa área. Encontrou-se em todas as falas expressões que identificam omissão do Poder Executivo, ineficiência das políticas públicas e negação de direitos na área da saúde. Vejamos algumas falas:

Eu entendo que trazer isso, para o Judiciário, é meio que decorrente do fato de o Poder Executivo não ter conseguido solucionar sozinho essa questão (E-1).

A judicialização contribui para o assoberbamento do Poder Judiciário com questões que poderiam ser resolvidas no âmbito administrativo do Poder Executivo (E-4).

Em decorrência da deficiência do sistema de saúde, as pessoas vêm à justiça para tentar ter acesso a serviços que talvez se o sistema funcionasse normalmente não se teria tantas ações judiciais discutindo problemas de saúde (E-5).

É a apresentação de demandas ao Poder Judiciário as quais, aparentemente, caberiam ao Poder Executivo decidir (E-6).

Vejo a judicialização como uma forma de garantir essa política [de saúde] e esse acesso necessário. Mas, por outro lado, eu vejo como uma forma de tirar a responsabilidade do administrador que tem a sua equipe administrativa e esta, por sua vez, que tem que estar preparada e utilizando os recursos (E-7).

Ao serem perguntados sobre o porquê da judicialização da saúde, ou seja, a que eles atribuíam a existência das demandas, todos os entrevistados (10/10) referiram-se a omissões do Poder Público, defasagens das políticas públicas, má qualidade no atendimento, problemas na gestão pública, desorganização, não efetivação do direito à saúde. Apenas um magistrado (1/10) teceu críticas acerca do sistema criado após a Constituição Federal (o SUS), segundo o qual é “caro e abrangente” e que, através da judicialização, o Estado é compelido a cumprir o que está nas leis e na Constituição Federal:

Mas houve um grande erro, porque o sistema criado pela Constituição Federal, depois adotado e pormenorizado pela lei, é um sistema caro, muito abrangente e caro. Em outras palavras, houve uma legislação de país rico para aplicar em país pobre, sem dinheiro. E isso vem ocasionando uma série de entraves financeiros, burocráticos e problemas de toda ordem (E-5).

É possível concluir que o Poder Judiciário percebe o fenômeno da judicialização da saúde como decorrente de problemas gerenciais e não de supostas incongruências do SUS. Essa ideia de caos na saúde pública e de incapacidade gerencial do Poder Executivo, por certo, é um forte argumento de legitimação do controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário.

Isso se verifica nas lições de Maria Paula Dallari Bucci (2013BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013., p. 98), que tratam do exercício da jurisdição constitucional no controle da atividade política pelo Poder Judiciário. Ela admite que há diferenças de ênfase e legitimação para esse controle, “conforme se trate de democracias em que o Poder Legislativo funciona plenamente, ou aquelas em que há déficits evidentes de representação, como é o caso brasileiro”, ou seja, quanto pior a credibilidade de determinado Poder (Executivo ou Legislativo), maior seria a legitimidade do Poder Judiciário no controle de suas atividades ou omissões.

Nesse sentido, resta evidente uma descrença na atuação do Poder Executivo em gerenciar com qualidade políticas públicas com escopo de efetivar o direito à saúde, o que “legitimaria” o discurso da necessidade de intervenção do Poder Judiciário em omissões e violações desse direito, especialmente quando põe em risco a vida das pessoas.

2.1.2 Interferência benigna nas atribuições do Poder Executivo

Sete (7/10) magistrados apontaram uma inversão de papéis entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Um deles (E-1) afirma que a judicialização significa trazer a discussão de políticas públicas sobre saúde para o Poder Judiciário. Outro afirma ser uma “interferência benigna” (E-2) no Poder Executivo. Um terceiro (E-7) manifesta que a efetivação do direito à saúde é função do Poder Executivo “a quem caberia realmente a efetividade desse direito”. O magistrado E-4 afirma que “A judicialização contribui para o assoberbamento do Poder Judiciário com questões que poderiam ser resolvidas no âmbito administrativo do Poder Executivo”. Outro exemplo é o magistrado (E-6) que diz ser a judicialização a “apresentação de demandas ao Poder Judiciário as quais, aparentemente, caberiam ao Poder Executivo decidir”.

Dois magistrados (2/10) mencionaram a expressão “ativismo” ou “intervenção” judicial (Entrevistados 2 e 8), no sentido positivo de defesa das políticas públicas e garantia de direitos aos cidadãos. O Entrevistado 2 afirma que “hoje, o Judiciário, nessa atividade ativista, mostra que ele é um garantidor de esperanças”. Sobre o tema, o E-8 disse: “Então, a judicialização nada mais é que essa intervenção do poder judiciário no âmbito do serviço público da saúde”.

Conclui-se que o Judiciário tem percebido a judicialização de forma positiva, ou seja, como exercício legítimo do papel de assegurar direitos a quem sofre ameaça ou violações, ou seja, nada mais do que garantir a aplicação da lei. Porém não se pode perder de vista que essa noção não é unânime. Milton Augusto de Brito Nobre (2013NOBRE, Milton Augusto de Brito. Da denominada “judicialização da saúde”: pontos e contrapontos. In: NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Org.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013., p. 382) observa que a expressão “judicialização da saúde” tem sido empregada para circulação e propagação de uma versão negativa da atuação do Poder Judiciário.

A ideia pode estar associada à tensão entre os Poderes, provocada pelo desempenho, por alguns tido por exacerbado, da função jurisdicional do Poder Judiciário no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, bem como na omissão legislativa (RAMOS, 2010RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010., p. 129). Contudo os magistrados entrevistados percebem que sua atuação deve ser encarada como bom instrumento para se alcançar a efetividade das normas constitucionais.

2.1.3 Judicialização da saúde pode remeter à saúde suplementar

Observou-se que três magistrados (3/10) mencionaram, em algum momento da entrevista, violações de direitos por parte das operadoras de planos de saúde em relação aos seus usuários ou beneficiários (E-1, E-2 e E-9). Veja-se:

A judicialização da saúde significa o crescente aumento de demandas judiciais envolvendo questões relativas ao direito fundamental à saúde [...]. As ações são propostas tanto pelas partes individualmente contra os planos de saúde ou até mesmo pelo Ministério Público Estadual e pela Defensoria Pública [...] contra o ente público (E-9).

Isso significa que a expressão “judicialização da saúde”, se empregada sem uma contextualização prévia, pode remeter a todo e qualquer processo judicial em torno do tema saúde, inclusive demandas contra operadoras de planos de saúde, responsabilidade médica ou de estabelecimentos de saúde no âmbito particular. Nesse sentido, “o crescente número de ações que demandam a concretização individual do direito à saúde, seja junto ao setor público, seja junto a operadoras privadas, consagrou a nomenclatura ‘judicialização da saúde’” (MENDES, 2013MENDES, Karyna Rocha. Curso de Direito da Saúde. São Paulo: Saraiva: 2013., p. 667).

Sendo assim, quando informam, por exemplo, a sensação de haver um excesso de ações ou um crescente número de ações relativas ao direito à saúde, os magistrados podem estar se referindo ao conjunto ou à soma de casos da saúde pública, da saúde suplementar ou saúde particular, daí a importância de estudos que esclareçam e quantifiquem essas demandas separadamente e indiquem os montantes dispendidos em atendimento às decisões do Poder Judiciário, bem como suas causas.

2.1.4 Direito à saúde como direito social fundamental de eficácia imediata

Em relação ao papel do Judiciário, todos os magistrados (10/10) afirmaram ser sua atribuição garantir o direito à saúde. O E-2 destacou uma necessidade de “garantia de eficiência, concretude, ou não vale”, referindo-se ao direito à saúde e à vida. Quatro magistrados (E-1, E-3, E-5, E-9) referiram expressamente que nenhuma causa pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário e que seu papel é fazer justiça. Todos os demais afirmaram a mesma ideia de forma implícita.

Segundo o magistrado E-6, apesar de exercer um papel importante, o protagonismo não deve ser assumido pelo Poder Judiciário:

Todavia o Poder Judiciário não deve ter um papel protagonista na referida área. As demandas judiciais, via de regra, resolvem o problema em uma perspectiva micro, ou seja, resolve o problema apenas pontualmente (para determinado caso concreto), quando o tratamento demanda uma solução, na verdade, em perspectiva macro (E-6).

É recente na história do Judiciário brasileiro o exercício de papel ativo na concretização de direitos sociais fundamentais, mesmo aqueles que dependem de aporte de recursos públicos e de formatação da política pública específica. A ideia que prevalecia era de que não caberia ao Poder Judiciário intervir no mérito administrativo, isto é, não se deveria analisar a conveniência e oportunidade de uma decisão administrativa ou uma política pública definida pela Administração Pública ou pelo Poder Legislativo. Porém a tese da aplicabilidade imediata das normas constitucionais definidoras de direitos e garantias fundamentais (dentre elas o direito à saúde) gerou um protagonismo judicial na sua garantia (legitimado por omissões ou violações por quem deveria implementá-los). Vejamos o que diz um dos participantes da pesquisa:

Até pouco tempo, o Judiciário chancelava o posicionamento de que tais questões estavam no âmbito do mérito administrativo e não comportava sua interferência, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes. Atualmente o Poder Judiciário passou a compreender de outro modo a força normativa da Constituição e seu papel (E-9).

Essa posição é defendida por grande parte da doutrina brasileira, representada aqui por Sarlet e Figueiredo (2008SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, jul./dez. 2008., p. 186), que afirmam serem, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, fundamentais todos os direitos sociais, especialmente o direito à saúde, merecendo, portanto, eficácia imediata.

Porém Sarlet e Figueiredo (2008SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, jul./dez. 2008., p. 220) suavizam essa ideia, em respeito à sustentabilidade e ao gerenciamento do SUS, propondo, além dessa discussão sobre o papel do Poder Judiciário, limitações a sua gratuidade, referindo-se ao acesso ao sistema de saúde pública por pessoas que têm plano de saúde. Portanto, outros aspectos poderiam ser colacionados e avaliados, entre os quais o risco de morte, a urgência, a possibilidade de restrições à gratuidade das prestações materiais para toda e qualquer pessoa, estabelecendo-se parâmetros e cuidados para apurar se a demanda que está sendo requerida do Poder Público (medicação, tratamento etc.) é necessária ou se não há alternativas viáveis.

Sendo assim, é possível discutir técnicas, instrumentos ou parâmetros – e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já colocou a questão em pauta em recomendações expedidas aos tribunais e juízes brasileiros (BRASIL, 2010) – dos quais podem se valer os operadores do direito para o aperfeiçoamento da solução de demandas em torno da satisfação do direito à saúde, sem comprometer o equilíbrio do sistema.

Isso inclui proposições de canais de mediação de conflito e estabelecimento de consensos, além de cuidados na exigência de efetiva comprovação das necessidades de saúde que estão sendo levadas a juízo, com a busca de alternativas de tratamentos, inclusive eventualmente já previstos em políticas públicas disponíveis para a população.

2.1.5 Impacto das decisões: “a escolha de Sofia”

Ao falar sobre como percebem o impacto de suas decisões, a maioria dos magistrados (7/10) referiu alguma dificuldade enfrentada na apreciação de causas que envolvem vida e saúde das pessoas, demonstrado não ser uma decisão emocionalmente fácil. O Entrevistado 1 utilizou a expressão “a escolha de Sofia”, para referir-se à dificuldade das decisões nessa área:

Veja como fica cômodo para o Poder Público: o Poder Público tem [...] um hospital materno infantil que tenha, por exemplo, dez UTIs neonatal e tem dez crianças lá nessas UTIs e mais 20 crianças que precisam delas. Mas, não tem vaga. Vem o Poder Judiciário e diz: “tem uma criança aqui que tem que ir para uma dessas vagas”. Fica fácil para o Poder Executivo, porque ele não precisa fazer “a escolha de Sofia”, o Judiciário faz pra ele, e, com isso você acaba matando outras pessoas [...] o Judiciário não tem como saber se essa criança, para ser atendida, precisa matar outra (E-1).

Interessante a analogia feita pelo magistrado com a história, retratada em filme de 1982, dirigido e roteirizado por Alan J. Pakula e baseado no romance de 1979 de William Styron que trata do dilema de “Sofia”, uma mãe polonesa, filha de pai antissemita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher, ambos seriam mortos. O Entrevistado 8 também expõe bem os dilemas enfrentados na hora da decisão e como pesa sobremaneira o fator emocional:

Se o hospital dispõe de 20 leitos, não tem como uma decisão tirar alguém que está num leito de UTI, para colocar outra que está pretendendo [...] São demandas que causam um grande impacto emocional no magistrado, mas o magistrado tem que, evidentemente, sopesar isso com muito equilíbrio, não se deixando contaminar por esse viés emocional que, naturalmente, poderá contaminá-lo. [...] É algo que comove a gente, pois, antes de ser magistrado, nós somos seres humanos (E-8).

Os depoimentos expressam que há diversos fatores envolvidos na solução dessas demandas e deixam claro que o magistrado nem sempre está seguro sobre a correção ou efetividade prática de suas decisões. Vejam-se trechos de entrevistas que expõem as limitações e as dificuldades de ordem técnica e emocional:

Muitos juízes hesitam na liminar porque ficam com medo de, em caso de morte, nesta situação, dizer que foi a justiça que se omitiu (E-2).

Você fica naquele dilema se concede ou não concede uma liminar. Na dúvida, eu pensei: “Quer saber de uma coisa? Melhor conceder porque se esse cara morrer eu não vou ficar com esse peso na consciência”. São demandas difíceis, é importante dizer. Nós, do Judiciário, às vezes ficamos em uma situação delicada, de saber se estamos tomando a decisão correta, pois é uma demanda emocional, além de ser jurídica, tem todo um envolvimento emocional por envolver questões de saúde (E-5).

O juiz, no mais, ao se deparar com determinado tipo de demanda, não dispõe da informação técnica necessária para decidir a respeito do bem da vida em questão (E-6).

O Entrevistado 2 reconhece que também há prejuízos para hospitais privados, quando são instados a disponibilizar leitos, tratamentos, internações, sem imediata contraprestação financeira, em obediência a uma decisão judicial que identifica falhas ou carências no setor público. Os Entrevistados 2, 5 e 8 reforçam esse entendimento:

Os donos dos hospitais particulares que são as principais vítimas dessa atitude. Eles mostraram um prejuízo enorme que já estavam catalogando, milhões que, na eventualidade de se receber do Estado, – o que é muito difícil de receber, precatórias e tudo – então eles têm um prejuízo enorme (E-2).

Por outro lado, o Judiciário já ouviu de diretores de vários hospitais privados que a gente faz essa determinação, mas eles ficam sem receber o dinheiro. Não se pode perder de vista que o hospital privado é uma empresa e ele não pode arcar com ônus de um serviço que é do setor público (E-5).

Porque o hospital é um negócio particular, é uma empresa, portanto, não parece adequado que um hospital disponibilize um leito sem que a empresa tenha a percepção de que vai receber aquele valor (E-8).

Outro aspecto ressaltado pelo Entrevistado 2 foi o direcionamento de pedidos para atendimentos no setor privado, realizado por alguns advogados:

[...] alguns [advogados] exageram e já vão direto para o privado, o que deixa o juiz em uma situação dificílima, sem saber se dá [a liminar] [...] se são quatro horas da madrugada e o sujeito morrer, aí vai dizer que foi uma omissão da justiça, que não se sensibilizou (E-2).

A maioria dos magistrados (6/10) destacou preocupação com os limites orçamentários do Poder Público, afirmando que deve haver cautela. Veja-se um exemplo: “Nós, do Judiciário, não temos que pensar individualmente nessa questão da saúde, mas temos que pensar, como fazemos parte do Estado, pois o Judiciário é parte do Estado, é pensar coletivamente” (E-5).

As contribuições sobre como os magistrados percebem o impacto de suas decisões foram relevantes, restando evidente que a solução não é tida por simples, mas sujeita a uma série de fatores que tornam essa tarefa “difícil” e “tormentosa”, conforme expressões empregadas pelo Entrevistado 8. Sobre esse aspecto, Ana Paula de Barcellos aponta impressões parecidas com as relatadas pelos magistrados maranhenses. Senão vejamos:

É certamente penoso para um magistrado negar [...]. Um doente com rosto, identidade, presença física e história pessoal, solicitando ao Juízo uma prestação de saúde, é percebido de forma inteiramente diversa da abstração etérea do orçamento e das necessidades do restante da população, que não são visíveis naquele momento e têm sua percepção distorcida pela incredulidade do magistrado, ou ao menos pela fundada dúvida de que os recursos públicos estejam sendo efetivamente utilizados na promoção da saúde básica. (BARCELLOS, 2008BARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestações de saúde: complexidade, mínimo existencial e o valor das abordagens coletivas e abstratas. Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 133-160, jul./dez. 2008., p. 136).

É possível concluir que o Judiciário se percebe como Poder importante na solução dos conflitos, mas reconhece seus limites advindos especialmente do fato de não dominarem os conhecimentos médicos e técnicos discutidos, bem como da força de suas próprias impressões psicológicas e sociais no ato de julgar casos que envolvem a saúde e a vida de uma pessoa.

Os participantes apontam alguma preocupação com o erário e com eventuais prejuízos suportados por terceiros (em especial, estabelecimentos privados, que fazem as vezes do Poder Público), porém, isso não é determinante para a resolução do caso concreto, mas sim o atendimento das expectativas das pessoas que buscam o Judiciário com demandas pautadas no direito à saúde.

2.2 Parâmetros decisórios

2.2.1 Sensibilidade maior ao deferimento do pedido, mas com cautela

Sobre como procedem diante de demandas por direito à saúde, metade dos magistrados (5/10) demonstrou ser mais tendente ao deferimento do pedido do autor, com argumentos que giram em torno da urgência das demandas e do risco de morte ou agravamento da situação de saúde do requerente. O Entrevistado 1, por exemplo, afirma que decide favoravelmente ao demandante, bastando estar constatada a necessidade do atendimento. Por outro lado, reconhece que o Judiciário somente consegue enxergar o caso concreto do demandante, sem ter uma visão ampla da realidade de outros pacientes. Afirma que:

o Judiciário não tem como saber se essa criança, para ser atendida, precisa matar outra [...] O juiz não tem como fazer esse juízo de valor, ele tem é que avaliar o caso concreto: se essa pessoa precisa de atendimento, eu determino que ela seja atendida (E-1).

O Entrevistado 2 explica que os juízes lidam com urgências e pedidos de liminares, que precisam ser decididos com brevidade e análise superficial da demanda e que estão sujeitos a erros:

então, geralmente lidamos com liminares. E, nessas liminares, [...] se tem um juízo quase superficial, mas só que saúde é um caso exauriente porque é ou não é, se negar pode morrer. Ele tem que ser dado, mesmo que, na eventualidade esteja-se cometendo um erro, um exagero, uma precipitação diante do alarme do caso concreto. É melhor dar mais garantia para o cidadão [...], porque pode ser irreversível uma negação (E-2).

O Entrevistado 3 demonstra estar focado na satisfação e no atendimento imediato dos jurisdicionados (pacientes). Afirma que o Poder Judiciário tem que respeitar prazos e o rito processual, o que impediria um atendimento mais imediato das demandas e que geraria insatisfação:

Mas, de um modo geral, há uma satisfação da clientela, do jurisdicionado que vem aqui para ser atendido, que vem em busca dessa determinação de atendimento. [...] Já ocorreram aqui uns três casos em que o processo demorou mais do que as pessoas poderiam esperar (E-3).

O Entrevistado 4 afirmou ter em mente os fins sociais da lei e que soluciona esse tipo de demanda: “da forma mais favorável à vida e à dignidade da pessoa humana”. Na mesma linha, o Entrevistado 5: “quer saber de uma coisa, melhor conceder porque se esse cara morrer eu não vou ficar com esse peso na consciência”.

A outra metade dos entrevistados (5/10) foi mais clara em informar os parâmetros ou cautelas de que se revestem para a solução desse tipo de demanda. O Entrevistado 6, por exemplo, descreveu alguns parâmetros que adota para deferir ou não os pedidos:

É necessário que concorram as seguintes condições: 1) comprovação de que o tratamento em questão é de caráter urgente e imprescindível para o asseguramento da vida ou para evitar dano significativo à saúde do demandante; 2) comprovação de que não é fornecido tratamento similar igualmente eficaz pelo Poder Público (E-6).

Os Entrevistados 7 e 8 mostraram preocupação com a possibilidade de o Poder Judiciário ser usado em manobras para satisfazer interesses escusos:

onde há agilidade, começam a vir os espertos [...] O Judiciário está aqui para zelar, mas ele tem realmente que zelar pelo direito à saúde, ele tem que zelar sobretudo pelos recursos públicos, que não é de ninguém, mas é de todo mundo, não tem um proprietário, mas a sociedade maranhense e brasileira (E-7).

É preciso, então, que o magistrado se cerque de todas as cautelas possíveis [...], para que o magistrado não seja, em dado momento, utilizado como instrumento de uma demanda que possa não ter uma feição ética adequada como deve ser perante o Poder Judiciário (E-8).

Os Entrevistados E-3, E-7, E-8, E-9 e E-10 (5/10) citaram expressamente ou fizeram referência às recomendações ou iniciativas do CNJ na tentativa de dar maior eficiência à solução de demandas judiciais envolvendo a saúde, especialmente a Recomendação n. 31 (BRASIL, 2010BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n. 31, de 30 março de 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/recomendacoes/reccnj_31.pdf. Acesso em: mar. 2014.
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): “[...] tenho atendido a Recomendação n. 31/2010 do CNJ, que orienta que os julgadores acionem os gestores de saúde antes de conceder medidas liminares”, disse o Entrevistado 10.

Percebe-se que o Poder Judiciário adotou uma “tendência” a julgar favoravelmente o autor da ação, especialmente diante de causas que não comportam uma análise mais profunda em decorrência da urgência de que se reveste.

Porém há preocupação e iniciativas para melhorar a eficiência dessas soluções, com adoção de cuidados e parâmetros para analisar as nuances do caso concreto. São válidas aqui as contribuições de Ana Paula de Barcellos (2008BARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestações de saúde: complexidade, mínimo existencial e o valor das abordagens coletivas e abstratas. Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 133-160, jul./dez. 2008., p. 133), que diz ser complexo definir o sentido e o alcance do direito à saúde, pois a necessidade de evitar a morte, a dor ou sofrimento físico é critério muito amplo e impreciso para definir o que é exigível do Estado em matéria de prestações de saúde, sendo igualmente complexo definir quais prestações de saúde são constitucionalmente exigíveis e possivelmente indispensáveis para o restabelecimento ou a manutenção de sua saúde do indivíduo.

2.3 Possibilidades de melhoria

2.3.1 Abertura ao diálogo com o Poder Executivo

O Entrevistado 1 afirmou que o Judiciário tem “uma cultura” de priorizar o processamento de ações individuais, ou seja, a estrutura do Judiciário estaria voltada para resolver demandas do indivíduo que ajuizou a ação e não as da coletividade. O magistrado cita como exemplo o fato de a Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca de São Luís ter sido criada há pouco tempo e que, antes, esse tipo de demanda se misturava às demandas individuais nas demais varas, sem receber o devido tratamento. Além disso, afirma que o Judiciário deveria atuar com mais ênfase na prevenção e na responsabilização dos administradores públicos que deixam de cumprir suas obrigações. Segundo o entrevistado, nessa frente o Judiciário não está no nível adequado, pois “não é essa a cultura do Judiciário”. Para ele:

[...] nós não estamos atuando na responsabilização, nas ações, por exemplo, de improbidade administrativa contra o gestor que deixou de aplicar adequadamente o recurso público de tal forma que aquelas ações individuais não precisassem acontecer (E-1).

Essa discussão assume relevo, pois dentro de um processo individual, o Judiciário estaria instrumentalizado para realizar microjustiça (ou a justiça do caso concreto, justiça para as partes envolvidas no processo), carecendo de instrumentos que permitam uma visão global do problema, que contemple interesses extraprocessuais e de viés coletivo.

Reflete-se também sobre a dicotomia que cerca a questão: privilegiar o individual ou o coletivo?

De um lado a participação do Judiciário significa a fiscalização de eventuais violações por parte do Estado na atenção à saúde, mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos do Sistema Único de Saúde – SUS (MENDES, 2013MENDES, Karyna Rocha. Curso de Direito da Saúde. São Paulo: Saraiva: 2013., p. 669).

Sobre o aperfeiçoamento de soluções para as demandas por saúde pública, todos os magistrados (10/10) destacaram ser importante buscar medidas que reduzam os casos judicializados, isto é, ações de melhoria na gestão do SUS, medidas extrajudiciais de solução de conflitos e medidas que beneficiem a coletividade.

A maioria dos magistrados (8/10) apontou a necessidade de uma aproximação entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo para a solução das demandas. Um deles (Entrevistado 1) defendeu a realização de Audiências Públicas com o envolvimento da Sociedade na discussão de soluções mais amplas. Outro (Entrevistado 2) apontou a necessidade de reuniões entre os dois Poderes para discussão de soluções, bem como a criação de uma comissão de médicos à disposição do juiz para auxiliar nas decisões, em casos de dúvidas técnicas.

O Entrevistado 3 ressaltou a atuação do CNJ, que instituiu grupos de estudo e equipes multidisciplinares para viabilizar a aproximação entre os Poderes Executivo, Judiciário e organizações da sociedade para adoção de medidas para solução dos problemas nessa área.

O Entrevistado 4 foi bem sucinto ao resumir que o Estado (Administração Pública) deve conferir efetividade aos entendimentos judiciais reiterados sobre o direito à saúde e que resolva administrativamente as demandas. Também sugere que essa matéria seja sumulada no Supremo Tribunal Federal (STF), isto é, que a Suprema Corte condense e exponha a todos, em poucas palavras, seus entendimentos jurisprudenciais reiterados sobre casos dessa natureza.

O Entrevistado 5 ressalta a importância de um comitê que gere entendimento e compartilhe informações entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, em termos de vagas em leitos e execução de políticas públicas, mas afirma que a solução definitiva é a própria melhoria na qualidade dos serviços públicos de saúde.

Já o Entrevistado 6 aponta a necessidade de haver maior clareza dos relatórios médicos, indicando se o medicamento ou o tratamento deve ser ou não fornecido pelo SUS ou se há produto similar que atenda às necessidades do paciente. Mas a estratégia principal apontada seria maior eficiência na gestão de recursos públicos relacionados à saúde.

O Entrevistado 7 sugere que haja uma troca de experiência entre os gestores públicos e estabelecimentos já reconhecidos pela eficiência na gestão (citou a Rede Sarah). Sugere também que haja mais consciência da população na escolha dos seus representantes, que os Conselhos de Saúde tenham uma atuação “mais efetiva” e apontou a necessidade de uma “melhor” atuação da Defensoria Pública e Ministério Público no interior do Maranhão. Além disso, propôs a implantação de um núcleo (com profissionais da saúde) que ajude os magistrados na tomada de decisão, bem como que seja concretizada a regionalização da assistência, com a responsabilização civil e administrativa dos gestores que não a cumprirem.

Essa regionalização cumulada com a responsabilização civil dos gestores mencionada pelo Entrevistado 7 possivelmente refere-se ao Decreto n. 7.508/2011, que regulamentou aspectos da Lei do SUS (Lei n. 8.080/1990), no tocante ao planejamento da saúde, a assistência à saúde, a articulação interfederativa e a regionalização, dentre outros.

Os Entrevistados 9 e 10 também defendem a colaboração entre os agentes envolvidos e soluções alternativas ao processo. O Entrevistado 8 afirmou que tem construído um diálogo com a Administração Pública, médicos, gestores dos hospitais e com a parte envolvida na demanda, por meio de reuniões e tentativas de conciliação, e que essas medidas têm produzido resultados satisfatórios:

Isso é pelo fato de eu ter uma certa incredulidade em relação ao processo, no modelo em que nós estamos, ou seja, o processo não resolve mais satisfatoriamente essas demandas angustiantes do cidadão em relação à prestação do serviço público. Então, acho que o diálogo, a solução alternativa, a conciliação, a reunião, isso de uma maneira muito clara, com todos os atores envolvidos participando, têm dado um resultado mais satisfatório (E-8).

Pode-se concluir, portanto, que o Poder Judiciário se mostra aberto à discussão, ao diálogo e a soluções alternativas ao processo, o que inclui proposições de canais de mediação de conflito e aproximação com a sociedade e com os agentes envolvidos.

Para ilustrar, veja-se o Quadro 2, que sintetiza as sugestões expostas pelos magistrados participantes da pesquisa.

quadro 2
– Sugestões de melhoria

Considerações finais

Como resultado da pesquisa, foi possível compreender a percepção geral do Poder Judiciário maranhense sobre a judicialização da saúde. A partir da identificação das unidades de análise que emanaram das falas dos magistrados entrevistados, restou possível a sua classificação, categorização e interpretação, no esforço de retirar dessa matéria-prima o conteúdo da percepção dos participantes sobre o tema proposto, elucidação das questões norteadoras e dos objetivos traçados.

Identificou-se que a expressão “judicialização da saúde” pode remeter ao conjunto de demandas levadas ao Judiciário na área da saúde suplementar (contra operadoras de planos de saúde), na área da saúde pública ou em ambas, sendo necessário esclarecer aos interlocutores o contexto em que esse termo será empregado, para não gerar percepções e ideias equivocadas.

Resta evidente, ao final da análise, que as falas dos magistrados demonstram um descrédito nas capacidades gerenciais do Poder Executivo, o que reforça a percepção geral da pertinência e legitimidade da sua atuação (do Poder Judiciário) na área da saúde pública, mesmo considerando haver uma interferência nas atribuições do Poder Executivo, considerada benigna.

É possível concluir que o Poder Judiciário maranhense incorporou o conceito de direito à saúde como direito social fundamental, de eficácia imediata, com sensibilidade maior ao deferimento dos pedidos, mas com cautelas, especialmente quanto à utilização de cuidados e parâmetros para apuração a real necessidade da demanda judicializada e evitar interesses escusos.

A solução dessas demandas é considerada emocionalmente difícil, por terem os magistrados consciência da limitação do orçamento público, dos impactos para a coletividade, das suas próprias carências de conhecimento técnico, e sujeição à pesada carga emocional envolvida quando se trata de decidir sobre a vida e da saúde das pessoas.

Os dados apontam a possibilidade de diálogo entre o Judiciário e o Executivo, a fim de aperfeiçoar as soluções em torno da satisfação do direito à saúde, com a manutenção do equilíbrio do sistema. Nesse sentido, diversas ações foram sugeridas pelos participantes da pesquisa (Quadro 2).

Verifica-se que nesse campo ainda há muito a ser pesquisado, mas Maria Paula Dallari Bucci (2013BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013., p. 192), de forma acertada, ressalta que “a questão, conforme o amadurecimento do debate sobre o que o tema indica [...], não é se pode ou não haver controle judicial, mas qual seu conteúdo e quais os limites da decisão judicial”.

Por fim, o fenômeno da judicialização da saúde pode ter outras noções e percepções associadas, a depender de quem está com a palavra. Se por um lado há questionamentos acerca da legitimidade do Poder Judiciário, por outro se reconhecem as omissões e as carências enfrentadas pela população no âmbito da saúde pública e a necessidade de aproximação entre todos os agentes envolvidos, para diálogo, proposições de alternativas e entregas de melhorias dentro e fora dos processos judiciais.

Referências

  • BARCELLOS, Ana Paula de. O direito a prestações de saúde: complexidade, mínimo existencial e o valor das abordagens coletivas e abstratas. Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 133-160, jul./dez. 2008.
  • BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n. 31, de 30 março de 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/recomendacoes/reccnj_31.pdf Acesso em: mar. 2014.
    » http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/recomendacoes/reccnj_31.pdf
  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil Brasília, DF: Senado, 1988.
  • BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas São Paulo: Saraiva, 2013.
  • DAVID, Grazielle; ANDRELINO, Alane; BEGHIN, Nathalie. Direito a medicamentos: avaliação das despesas com medicamentos no âmbito federal do sistema único de saúde entre 2008 e 2015. 1. ed. Brasília: Inesc, 2016.
  • JUNIOR, Milton. Saúde sob o olhar clínico da justiça. Medicina CFM. Revista de humanidades médicas. Brasília-DF, p. 26-31, set./dez. 2013.
  • MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
  • MENDES, Karyna Rocha. Curso de Direito da Saúde São Paulo: Saraiva: 2013.
  • MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2014.
  • NOBRE, Milton Augusto de Brito. Da denominada “judicialização da saúde”: pontos e contrapontos. In: NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da (Org.). O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013.
  • NUNES, Antonio José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os tribunais e o direito à saúde Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
  • RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
  • SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública, São Paulo, v. 1, n. 1, jul./dez. 2008.
  • VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 77-100, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2016
  • Aceito
    26 Set 2017
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