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Indícios de descolonialidade na Análise Crítica do Discurso na ADPF 186/DF

Decolonial signs through Critical Discourse Analysis at the judgment of ADPF 186/DF

Resumo

Este artigo analisa o discurso de fundamentação, na ADPF 186/DF, acerca dos direitos das minorias negras. A Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ), com ênfase nos efeitos ideológicos e políticos do discurso, revela, no corpus desta análise, indícios das matrizes teóricas pós-colonial e descolonial dos direitos humanos. Assim, como resultado, desaloja-se aquilo que se oculta ideologicamente no plano do posto, do pressuposto, do implícito ou do subentendido nessa decisão do STF. A partir daí, construímos um roteiro de indicadores, no discurso, do giro descolonial, com os seguintes conceitos-chave, a saber: alteridade, exterioridade, interculturalidade, pluriversalidade e empoderamento.

Teorias pós-colonial e descolonial; Análise Crítica do Discurso Jurídico; Direitos Humanos; afrodescendentes; Supremo Tribunal Federal

Abstract

This paper analyzes the reasoning discourse at the judgment of ADPF 186/DF that ruled separate quotas for Afro-Brazilian students constitutionally valid. The Critical Legal Discourse Analysis (ACDJ), that emphasizes the ideological and political effects of any discourse, reveals in the corpus of the judgment, evidences of post-colonial and decolonial theoretical frameworks of human rights. As a result, the analysis unveils what is ideologically hidden in the realm of the plan, the assumption, the implicit, or the implied on this decision of the Supreme Court. For doing so, we set up a framework of decolonial turning key concepts as following: otherness, externality, interculturality, pluriversality and empowerment.

Postcolonial and decolonial theories; Critical Analysis of the Legal Discourse; Human Rights; afrodescendants; Brazilian Supreme Court

Introdução

Este artigo apresenta os resultados parciais de projeto de pesquisa Direitos das minorias e grupos vulneráveis: uma análise do discurso de fundamentação nas decisões do STF, cujo objetivo consiste em verificar, na formação discursiva das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) referentes à proteção e garantia dos direitos das minorias e de grupos vulneráveis, indícios textuais e discursivos da existência de fundamentos teóricos, históricos e jurídicos relacionados à matriz (des)colonial do conhecimento. O problema da pesquisa apresentada no presente artigo é: Existem pistas textuais de descolonialidade no discurso de fundamentação do voto do ministro relator do STF na ADPF 186/DF? Nossa hipótese: Se a fundamentação de decisão judicial favorável a demandas de grupos minoritários desconstruir o discurso de subordinação dos mesmos, então emergem pistas textuais na superfície da decisão judicial de um discurso descolonial. Assim, o objetivo geral é verificar, com base na análise crítica do discurso, pistas textuais na superfície da decisão judicial que indiquem a existência de um discurso descolonial em favor dos afrodescendentes.

Afrodescendentes compõem um grupo minoritário no sentido de ausência ou debilidade de poder, decorrentes de estratégias sociais de depreciação de sua identidade. Demandas de grupos considerados minoritários envolvem, à primeira vista, a superação da condição de subordinação em que são colocados. Tanto os estudos de matriz pós-colonial como descolonial partem da premissa de que a condição de subordinação que afeta determinadas identidades é produzida por meio do discurso colonial, isto é, um discurso que representa o outro como degenerado, utilizando estratégias de inferiorização, subalternização e desumanização, às quais Frantz Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. se refere como o tratamento da “não existência”.

O giro descolonial situa-se na dimensão prescritiva do pensamento descolonial, que busca romper com o discurso gerador da chamada colonialidade do ser, a fim de ressignificar as relações assimétricas de dominação que determinam, entre outras coisas, as posições subalternas de sujeitos e grupos humanos. Daí a pertinência de se propor a discussão sobre demandas judiciais de grupos minoritários a partir da ótica da descolonialidade.

Os textos jurídicos e judiciais, na perspectiva da Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ),1 1 “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é o nome da disciplina oferecida por Virgínia Colares, no Curso de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório de pesquisa, apresentado por essa pesquisadora em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; Protocolo n. 2546463711149023. Trata-se de uma agenda de pesquisa para analisar o discurso a partir do tratamento textual dado às unidades pragmáticas nos eventos de fala e de escrita na instituição jurídica. decorrem de processos sociocognitivos, historicamente constituídos, nos quais, inevitavelmente, são investidas políticas e ideologias na prática cotidiana dos sujeitos, produzindo resultados e efeitos sobre as estruturas sociais. Assim, a integridade da produção, da distribuição, da circulação, da interpretação e do consumo de textos se encontra encaixada em uma situação social específica, numa configuração contextual. O contexto situacional determina as condições pragmáticas durante a interação verbal, consistindo na construção cognitiva (ou quadro) que o locutor faz da situação comunicativa, acionando os demais contextos: cultural, biográfico, individual e os conhecimentos de mundo. A análise das decisões judiciais evidencia a forma como os juristas conduzem o texto, manifestando na materialidade linguística o quadro de relevâncias e modos de operação da ideologia acionados na situação enunciativa. Portanto, na perspectiva da ACDJ, todo discurso é uma construção social, não individual, e somente pode ser analisado ao se considerar o seu contexto histórico-social.

Desde a Constituição de 1988 e, mais especificamente, desde a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, quando os tratados internacionais de Direitos Humanos adquiriram status diferenciado no ordenamento jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado de forma mais favorável às demandas das minorias e dos grupos vulneráveis. O objetivo deste artigo é, utilizando a análise crítica do discurso jurídico, verificar se, na fundamentação da decisão, o ministro relator da ADPF 186/DF rompe com o discurso colonial e assume categorias descoloniais para reconhecer a demanda por tratamento diferenciado dos grupos afrodescendentes no Brasil. O tratamento diferenciado pleiteado consiste na reserva de vagas em universidades públicas brasileiras, levando-se em conta o critério étnico-racial, que é fato gerador de preconceito e consequente tratamento discriminatório no que se refere ao acesso igualitário de inúmeros direitos em princípio acessíveis a todos.

1 A agenda da abordagem: aspectos teórico-metodológicos

A Análise Crítica do Discurso Jurídico tem como fulcro a abordagem das relações (internas e recíprocas) entre linguagem, direito e sociedade (COLARES, 2014COLARES, Virgínia. Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ): o caso Genelva e a (im)procedência da mudança de nome.ReVEL, v. 12, n. 23, 2014. [www.revel.inf.br].
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, p. 124), ancorada na Teoria Social do Discurso, paradigma funcionalista da linguagem, proposta por Norman Fairclough (2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. UNB, 2001., 2003FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. London; New York: Routledge, 2003.), que também foi o idealizador da Análise Crítica do Discurso. Norman Fairclough (1992FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992., 1995FAIRCLOUGH, Norman. Critical discourse analysis. London: Longman, 1995.) caracteriza o discurso como prática política e ideológica. Como prática política, o discurso estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas em que existem tais relações. Como prática ideológica, o discurso constitui, naturaliza, mantém e também transforma os significados de mundo nas mais diversas posições das relações de poder.

As abordagens críticas assumem a ideologia como instância subjetiva do discurso que se materializa na superfície textual. Nessa perspectiva, não há transparência no dizer. Ao posto no discurso acumulam-se camadas do pressuposto, do implícito ou do subentendido. As ideologias do cotidiano renovam a ideologia oficial de uma comunidade e são por ela também renovadas. Para Bakhtin (1992BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992., p. 36), a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade de toda palavra é absorvida por sua função de signo. “É precisamente na palavra, no ato de enunciação, que melhor se revelam as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica” (BAKHTIN, 1992BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992., p. 36).

Os textos produzidos socialmente em eventos autênticos do Judiciário são resultantes da estruturação social da linguagem que os consome e os faz circular. A ACDJ aborda a interação na justiça de um ponto de vista dialético, como um processo aberto a mudanças, no qual as relações e identidades sociais podem emergir e gerar novas representações. Para Correas (1995CORREAS, Óscar. Crítica da ideologia jurídica. Ensaio sócio-semiológico. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995., p. 121), que centrou seu trabalho no estudo da ideologia jurídica relacionada com as consequências da atuação do poder em uma dada sociedade, “a ideologia jurídica também existe no discurso dos funcionários e juízes quando fundamentam as normas que produzem”. Assim, a prolação de decisões judiciais pode ser considerada uma prática discursiva mediadora que ocorre entre um texto e uma prática social e, como tal, pode tanto promover justiça e igualdade como justificar e naturalizar opressões.

Como um programa ou agenda de pesquisa, a Análise Crítica do Discurso é conhecida por sua posição abertamente política e se preocupa com a análise de várias formas de desigualdade social e injustiça. A análise do discurso que mostra o funcionamento do poder que sustenta estruturas e relações sociais opressivas contribui para lutas contínuas de contestação e mudança mediante o que se pode chamar de “ativismo analítico”. Portanto, o interesse por este tipo de análise não é meramente acadêmico no sentido de desconstruir os textos e as falas, mas vem da assunção de que esses temas lidam com consequências materiais e fenomenológicas para determinados grupos de pessoas (LAZAR, 2007LAZAR, Michelle M. Feminist critical discourse analysis: articulating a feminist discourse praxis. Critical Discourse Studies, v. 4, n. 2, p. 141-164, 2007. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17405900701464816. Acesso em: 16 ago. 2016.
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).

A Análise Crítica do Discurso pode entrar em diálogo com outras abordagens que partam do mesmo pressuposto de que as várias formas de desigualdade e injustiça são produzidas no âmbito do discurso. Nesse sentido, a dimensão crítica da análise do discurso, fortemente baseada na sua concepção de ideologia, aproxima-se das abordagens descoloniais. Há uma coincidência entre os interesses de um e outro.

Se o interesse da Análise Crítica do Discurso reside em explicitar a forma como a ideologia e as relações de poder se produzem, reproduzem, negociam e contestam nas representações das práticas sociais, nas relações sociais entre as pessoas e nas identidades sociais e pessoais em textos e conversas, a descolonialidade está interessada em mostrar como a ideologia dominante e as relações de poder são perpassadas pela noção de colonialidade e em que medida a sua superação pode ser possibilitada pela incorporação de elementos descoloniais. As relações de poder assimétricas acabam se refletindo na posição de subordinação de diversos grupos que são, assim, chamados de minoritários, não necessariamente por seu tamanho, mas por sua debilidade de poder dentro de determinado contexto social.

Com a emergência dos estudos pós-coloniais nos anos 1980, o colonialismo deixou de ser compreendido como mero processo de ocupação e controle político-econômico de territórios para assumir, como prática hegemônica, a dimensão de um discurso sobre a representação do outro. A dimensão discursiva do colonialismo é destacada na obra seminal de Edward Said, Orientalismo (1990), isto é, mais que ocupação territorial, o colonialismo produziu modos de ser e de existir por meio do discurso. O conteúdo representacional desse discurso é explicitado por Frantz Fanon em Os condenados da terra (1968) e Pele negra, máscaras brancas (2008), nos quais o outro é representado como degenerado e habita a zona da não existência.

Partindo da contribuição desses autores, Homi Bhabha apresenta como características do discurso colonial a estereotipação, a ambivalência e a mímica e aponta que “o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 1998, p. 111).

Segundo Bhabha (1998)BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998., o estereótipo é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma de representação presa, fixa, que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. O estereótipo decorreria da relação de dependência existente entre a fixidez e a construção ideológica da alteridade no discurso colonial, na medida em que se constitui como estratégia discursiva principal e é personificado e validado pelo processo de ambivalência. A ambivalência possibilita a repetibilidade ansiosa e compulsiva de algo que é tomado como fato dado, inequívoco e que dispensaria prova – muito embora seja uma falsa representação de uma realidade –, embasando as estratégias de individuação e marginalização, e produzindo o efeito de verdade probabilística, que deve sempre exceder o que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente.

No discurso colonial, segundo Bhabha (1998)BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998., a ambivalência comportaria uma complexa mistura de atração e repulsão que caracteriza a relação entre colonizado e colonizador – relação tipicamente ambivalente –, ao passo que o sujeito colonizado nunca simples e completamente se opõe ao colonizador. A ambivalência, nesse passo, sugere que a cumplicidade e a resistência existem numa relação de flutuação que o discurso colonial relaciona ao sujeito colonizado, a fim de que seja explorado e nutrido, ou representado como uma nutrição, como um próprio molde do colonizador, personificando-se através da mímica colonial, na medida em que o discurso da mímica é construído em torno da ambivalência. A mímica, por si, representa o desejo por um outro reformado e reconhecível, como sujeito da diferença que “é quase o mesmo, mas não exatamente”, emergindo a representação de uma diferença que é ela mesma um processo de recusa. É o signo de uma articulação dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina que se “apropria” do outro ao visualizar o poder, se constituindo também como uma estratégia, mas adjetivada, nas palavras de Bhabha (1998)BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998., como ardilosa e eficaz do poder e saber colonial.

Apesar das diferenças disciplinares e geográficas que distinguem a investigação pós- -colonial da descolonial,2 2 Para um panorama sobre as principais diferenças e aproximações entre a crítica pós e descolonial, ver Bhambra (2014). ambas se aproximam em sua crítica ao caráter paroquial dos argumentos sobre as origens endógenas europeias da modernidade e defendem que se considere o surgimento do mundo moderno nas histórias mais amplas do colonialismo, do império e da escravidão (BHAMBRA, 2014BHAMBRA, Gurminder K. Postcolonial and decolonial dialogues. Postcolonial Studies, v. 17, n. 2, p. 115-121, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/13688790.2014.966414. Acesso em: 16 ago. 2016.
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, p. 115). Os teóricos da descolonialidade, unidos em torno do grupo de investigação Modernidade-Colonialidade,3 3 Sobre a constituição do grupo de investigação latino-americano Modernidade-Colonialidade, ver os trabalhos de Escobar (2003) e Castro-Gómez e Grosfoguel (2007). têm desenvolvido não apenas uma perspectiva crítico-analítica, mas também uma agenda propositiva que visa à transformação das formas de se produzir e aderir ao conhecimento. Essa transformação seria resultado do próprio giro epistemológico descolonial que, desde o pensamento de fronteira, assume uma atitude de desobediência epistêmica. A ideia de desobediência epistêmica, proposta central do pensamento descolonial, tem a ver com a necessidade de descolonizar o conhecimento e decorre da constatação de que existe uma face oculta e encoberta da modernidade: a colonialidade (MIGNOLO, 2010MIGNOLO, Walter D. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2010.). O encobrimento dessa face oculta tem relação direta com a leitura eurocêntrica da modernidade.

Porém, esse não é o único significado de colonialidade; trata-se também da permanência conflitiva da relação e do domínio colonial – que se iniciou em 1492 – e evidencia uma estrutura ou matriz de poder colonial ainda vigente e baseada em dois pressupostos. Segundo Quijano (2005QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, setembro 2005. (Colección Sur Sur, p. 227-278)., p. 227), de um lado, esta matriz define-se a partir da “codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de ‘raça’, uma estrutura biológica supostamente diferente que colocou alguns em uma situação natural de inferioridade em relação aos outros”. Esta ideia foi assumida pelos conquistadores como uma premissa básica de suas relações com os nativos americanos. De outro lado, colonialidade define-se pela “constituição de uma nova estrutura de controle do trabalho e dos seus recursos, da escravidão, da servidão, da pequena produção mercantil independente, em conjunto e sobre a base do capital e do mercado mundial” (QUIJANO, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, setembro 2005. (Colección Sur Sur, p. 227-278)., p. 227).

Maldonado-Torres (2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (Eds.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. p.127-167., p. 244) aponta que o padrão de poder colonial se tornou a base da identidade moderna no quadro do capitalismo mundial e de um sistema de dominação estruturado em torno da ideia de raça. A relação entre colonialidade e a depreciação de certos seres humanos encontra-se claramente estabelecida em Anibal Quijano, que a situa nas primeiras discussões sobre se os índios tinham ou não alma. Novas identidades e um novo tipo de classificação social foram criados no contexto da colonização europeia. Como algumas identidades foram consideradas superiores em relação a outras, as relações entre os sujeitos foram consequentemente verticalizadas. Para ser possível pensar em tal hierarquização, o valor da humanidade teve que ser graduado (MALDONADO-TORRES, 2007MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (Eds.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. p.127-167., p. 244). O conceito de colonialidade nos ajuda a compreender como foi possível construir um discurso abstrato de humanidade fundado na razão e, ao mesmo tempo, excluir da categoria de humanidade a maior parte dos indivíduos humanos, a partir da sua estereotipação (BRAGATO, 2014BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: Contribuições da descolonialidade. Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, v. 19, n. 1, p. 201-230, jan.-abr. 2014.).

A concentração de poder requer formas de dominação e a colonial tem se mostrado especialmente eficaz, porque articula um discurso de inferiorização, depreciação e desumanização que produz sujeitos assujeitados, e esse assujeitamento está ligado a determinadas identidades produzidas pelos estereótipos do discurso colonial.

Para romper esse ciclo, o giro descolonial abre-se para a consideração de formas outras de vida e para o desprendimento da retórica da modernidade (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (Eds.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-47.). Assim como o discurso colonial serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, por meio da estereotipação, ambivalência e mímica, o giro descolonial pretende ser a ruptura, assumindo alguns conceitos-chave, a saber: alteridade, exterioridade, interculturalidade, pluriversalidade e empoderamento.

Esses conceitos-chave refletem discursos que pretendem romper com as estruturas de poder colonial e que se materializam na superfície dos textos. No caso do objeto de estudo deste artigo – a ADPF 186/DF – trata-se de uma decisão judicial (evento social – o fazer concreto dos agentes sociais materializado em forma de texto) advinda da prática social do Judiciário, que reflete a estrutura social à qual pertence, a justiça, na perspectiva da agenda da Análise Crítica do Discurso que busca explicitar as relações de poder naturalizadas e (ou) neutralizadas.

Sobre os conceitos-chave descoloniais, propriamente ditos, Enrique Dussel apresenta-se como umas das principais influências. Em relação ao primeiro deles, Dussel (1996) explica que a alteridade se refere à exterioridade da constituição real humana. A alteridade é o oposto da totalidade. Enquanto a totalidade é a alienação e a coisificação do outro, que conduz à dominação, a alteridade é o outro na sua própria liberdade e livre determinação, não como uma sistematização da exterioridade. O outro é a alteridade de todo sistema possível, além do mesmo que a totalidade sempre é. Na totalização há a aniquilação da alteridade do outro, para incluí-lo em seu âmbito controlado, no qual o diferente, o plural, não é aceito, mas incorporado ao todo.

Ao contrário da lógica da totalidade, cujo discurso parte do fundamento para a diferença, a lógica da exterioridade respalda o seu discurso partindo do “abismo da liberdade do outro”. Trata-se da principal categoria fenomenológica da filosofia da libertação, concebida por Enrique Dussel (1996)DUSSEL, Enrique. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América, 1996. como um prisma para a percepção do horizonte do mundo mediante um aparato interpretativo capaz de formular um discurso filosófico no qual os espaços de protagonismo sejam ocupados por sujeitos oprimidos pela lógica totalizante da modernidade. Exterioridade, nesse sentido, significa transcendentalidade interior. Desse modo, todas as pessoas, inclusive aquelas que fazem parte de determinada classe opressora, possuem determinada transcendentalidade em relação ao sistema, possibilitando que se pense o mundo desde a exterioridade alterativa do outro.

A interculturalidade, no sentido crítico, consiste, segundo Walsh (2008WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 131-152, 2008., p. 140), em “processo e projeto sociopolítico dirigido à construção de sociedades, relações e condições de vidas novas e distintas”, mas que não se resume apenas às condições econômicas, abarcando “a cosmologia da vida em geral, incluindo os conhecimentos e saberes da memória ancestral e a relação com a mãe natureza e a espiritualidade”. Constitui-se como uma proposta político-educacional, destinada à superação de visões excludentes e integração entre culturas. O ideal intercultural é desenvolver ao máximo a capacidade de diversas identidades e culturas para que possam relacionar-se entre si de maneira positiva e criativa (ALBÓ, 2010ALBÓ, Xavier. Inclusión y la construcción de actitudes interculturales en tiempos de transformación. Ministerio de Educación Viceministerio de Educación Alternativa y Especial. La Paz, 2010.). Um “projeto” intercultural é um projeto de convivência em paz, em nível social, político, ético e epistêmico, pois luta por respeito às diferentes culturas e enfrenta a todas as formas de desprezo e marginalização presentes na vida cotidiana (ANSION, 2007ANSION, Juan. La interculturalidad y los desafíos de una nueva forma de ciudadanía In: ALFARO, Santiago et al. Educar en ciudadanía intercultural: Experiencias y retos en la formación de estudiantes universitarios indígenas. Lima, 2007.). O objetivo do projeto intercultural é abrir caminhos onde estão presentes traços do colonialismo a fim de criar posturas de alteridade.

Pluriversalidade surge como um conceito que se opõe à ideia de universalidade excludente. Evidencia o equívoco que é reconhecer apenas um conhecimento específico e que parte da razão dominante, como sendo este universal. Pluriversalidade é o reconhecimento de várias perspectivas válidas e possíveis (RAMOSE, 2009RAMOSE, Mogobe B. Globalização e ubuntu. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul . Coimbra: Almedina, 2009. p.159-200.), entretanto sem cair no relativismo cultural, visto que aquela é um conjunto de cosmologias conectadas que busca, sobretudo, uma polirracionalidade. Para Mignolo (2002)MIGNOLO, Walter D. The Zapatistas’s theoretical revolution: its historical, ethical, and political consequences. Review (Fernand Braudel Center) v. 25, n. 3, p. 245-275, 2002. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40241550. Acesso em: 16 ago. 2016.
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, o universal só é possível através do pluriversal sintetizado na ideia de um “mundo em que vários mundos possam coexistir”.

Empoderamento, por fim, constitui um processo social e político de tomada de consciência por parte dos oprimidos, impulsionado por uma práxis de reflexão e inserção crítica, em que, na medida em que problematizam de forma crítica a realidade na qual estão presentes, por meio do desenvolvimento de suas potencialidades criativas, atingem uma consciência capaz de fazer o sujeito oprimido buscar caminhos que o levem a transformar as relações sociais de dominação, podendo assim alcançar a libertação (FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. São Paulo: Paz e Terra, 1986., p. 64-77).

A relação entre as abordagens descoloniais e a Análise Crítica do Discurso torna-se profícua porque as relações de poder são disputas sobre interesses que são exercidas, refletidas, mantidas e resistidas de formas muito variadas e em diferentes graus de explicitação, podendo ser sutis e implícitas. Manifestam-se por meio de discursos cuja formação é estudada pela Análise Crítica do Discurso no sentido de desencobrir a ideologia e as relações de poder hegemônicas frequentemente assumidas. Porém, discursos que assumam os conceitos-chave do giro descolonial são discursos que, ao invés de produzir e sustentar as relações hegemônicas de poder, as desafiam e as contestam. É como fazem os discursos feministas, antirraciais etc. Assim, a adoção do conceito de ideologia, neste projeto, não implica a sua utilização como uma construção da realidade que oculta a verdade ou serve para produzir e reproduzir relações de dominação, necessariamente, mas que serve também para transformá-las, no sentido de Fairclough (1992)FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992.. Todo discurso é ideológico, em maior ou menor grau, seja para reafirmar ou para romper com as relações de dominação ou, em palavras apropriadas a este estudo, pode ser colonial ou descolonial.

2 Análise do voto condutor do acórdão da ADPF 186/DF

A decisão judicial – a ADPF 186/DF – que nos toca analisar é um texto que, à semelhança dos demais, é voz que dialoga com outros textos. As relações inter (trans) textuais funcionam como eco de vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças. Afirma Julia Kristeva (1974, p. 64) que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. O termo intertextualidade, proposto pela autora, derivado do latim “intertexto”, evoca o dialogismo bakhtiniano. Bakhtin assinala que cada discurso se constrói sobre e em diálogo com outros discursos, passados ou futuros, reais ou imaginários, de outros locutores, sendo a polifonia constitutiva de qualquer enunciação.

Norman Fairclough (2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. UNB, 2001., p. 133-174) resgata essa noção e propõe, na agenda da Análise Crítica do Discurso, na análise das práticas discursivas, a distinção entre intertextualidade (heterogeneidade mostrada) e interdiscursividade (heterogeneidade constitutiva). Para a Análise Crítica do Discurso, a intertextualidade estabelece o diálogo de um texto com outro(s) texto(s), os intertextos presentes na superfície textual. Enquanto a interdiscursividade remete a outras vozes e convenções sociais, nem sempre de localização efetiva na superfície do texto, os intertextos remetem ao funcionamento das relações em contextos culturais e históricos, matrizes sociais do discurso. A análise, a seguir, evidencia esses dois modos de produção do texto (ou modos de heterogeneidade enunciativa).

O ministro Ricardo Lewandowski tece o texto de seu voto com vários outros (inter) textos, assim como evoca essa memória discursiva na qual se situa o racismo no Brasil. Tanto intertextualidade (heterogeneidade mostrada) como interdiscursividade (heterogeneidade constitutiva) – evidências da dialogicidade – aparecem na ADPF 186/DF. Assinala Fairclough (2003FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. London; New York: Routledge, 2003., p. 41) que existem diferentes graus de dialogicidade, a seguir: (a) uma abertura para a diferença, ou aceitação ou, ainda, reconhecimento dessa diferença; uma exploração da diferença, no sentido mais rico do termo “diálogo”; (b) uma acentuação da diferença, do conflito, da polêmica; uma luta entre os significados, normas e poder; (c) uma tentativa de resolver ou de superar a diferença; (d) uma suspensão da diferença, um foco na igualdade e na solidariedade e (e) um consenso, uma normalização e aceitação das diferenças de poder que suspende ou suprime as diferenças de significado e normas.

Para investigar a existência de um discurso descolonial em favor dos afrodescendentes, adota-se a agenda da ACDJ porque essa abordagem procura encontrar, na superfície dos textos jurídicos analisados, evidências de como as estruturas e práticas sociais afetam e determinam a escolha dos elementos linguísticos utilizados num texto, e que efeitos essas escolhas linguísticas podem ter sobre as estruturas e práticas sociais como um todo. Assim, será possível identificar e caracterizar os indícios de um discurso descolonial a partir das pistas na superfície textual, conforme Quadro 1.

quadro 1
– Indícios de descolonialidade no discurso

O material coletado no site do STF4 4 Disponível em: http://www.stf.jus.br/. Acesso em: 16 ago. 2016. Documento assinado digitalmente conforme MP n. 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 2167846. recebeu tratamento metodológico para facilitar a análise e necessitou ser transcrito. Transcrever é transformar o material auditivo e/ou visual em dados graficamente representados, tarefa complexa que envolve decisões teóricas e metodológicas. No caso deste trabalho, desloca-se a ADPF 186/DF do espaço digital para um documento em Microsoft Word. As peças autênticas do STF são documentos públicos disponíveis na íntegra no site, e as sessões, na maioria das vezes, são transmitidas por emissora de TV da casa e por essa razão não necessitam o procedimento de anonimização dado a decisões de primeiro grau. Os dados do STF já receberam transformações e foram manipulados até chegar ao site. São provenientes de reuniões colegiadas nas quais os ministros discutem e deliberam sobre as demandas que lá chegam. Como são dados verbais já transcritos com muitas laudas, adota-se o procedimento de numerar todas as linhas de 01~ n; assim o analista do discurso poderá remeter a cada parte do texto durante a análise sem necessitar reproduzir cada um dos fragmentos.

O ministro relator Ricardo Lewandowski organiza seu texto (voto condutor do acórdão da ADPF 186/DF) em 14 tópicos discursivos da ADPF, a seguir: (1) Questões preliminares; (2) Abrangência do tema em discussão; (3) Igualdade formal versus material; (4) Justiça distributiva; (5) Políticas de ação afirmativa; (6) Critérios para ingresso no ensino superior; (7) Adoção do critério étnico-racial; (8) Consciência étnico-racial como fator de exclusão; (9) O papel integrador da universidade; (10) As ações afirmativas nos Estados Unidos da América; (11) Hetero e autoidentificação; (12) Reserva de vagas ou estabelecimento de cotas; (13) Transitoriedade das políticas de ação afirmativa; (14) Proporcionalidade entre meios e fins. Para este artigo, a análise incide sobre os dois tópicos discursivos (7) e (8) que discutem explicitamente como se constituem as relações de poder que determinam a posição de subordinação dos afrodescendentes na sociedade brasileira.5 5 O recorte da amostra da análise decorre da limitação de espaço deste periódico.

Fragmento 1

26/04/2012 PLENÁRIO

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 186

DISTRITO FEDERAL

V O T O _ MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

DATA DE PUBLICAÇÃO DJE 20/10/2014 - ATA Nº 153/2014. DJE nº 205, divulgado em 17/10/2014

O fragmento 1 identifica o objeto de estudo desta análise. O corpus recortado está nas linhas 497-858 do inteiro teor do voto do ministro Ricardo Lewandowski. Nesta análise destacamos tópicos discursivos (7) e (8) e alguns fragmentos foram suprimidos. O trecho das linhas 645-748, por exemplo, foi suprimido porque o ministro apresenta dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita pelo IBGE.

2.1 Análise do tópico discursivo (7) Adoção do critério étnico-racial

Fragmento 2

497. ADOÇÃO DO CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL

498. Outra importante questão a ser enfrentada neste debate consiste em

499. saber se a inexistência, cientificamente comprovada, do conceito biológico ou

500. genético de raça no concernente à espécie humana impede a utilização do

501. critério étnico-racial para os fins de qualquer espécie seleção de pessoas.

O tópico discursivo (7) Adoção do critério étnico-racial inicia na linha 497 e segue até a linha 573. Ao introduzi-lo, o ministro usa a expressão “Outra importante questão” em relação às demais 14 questões.

A metáfora de guerra da expressão “ser enfrentada” (linha 498) remete à alegação da parte autora de que é inadequada a utilização do conceito biológico ou genético de raça no concernente à espécie humana. Neste fragmento, o ministro dialoga com a peça inicial do processo, movimentando-se no grau de dialogicidade (c) – uma tentativa de resolver ou de superar a diferença (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. London; New York: Routledge, 2003., p. 41). O conteúdo do argumento sinaliza uma cadeia de raciocínio – outra importante questão (linha 498) – no concernente à (linha 500) – para os fins de (linha 501) – que procura justificar um conjunto de relações evidenciando o modo de operação da ideologia de legitimação pela racionalização.

Fragmento 3

502. Relembro que o Supremo Tribunal Federal enfrentou essa questão

503. no HC 82.424-QO/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa, conhecido como “Caso

504. Ellwanger”.

505. Em setembro de 2003, o Plenário desta Suprema Corte confirmou,

506. por maioria de votos, a condenação de Siegfried Ellwanger, autor de

507. livros de conteúdo anti-semita, pelo crime de racismo.

508. Nesse precedente, o STF debateu o significado jurídico do termo

509. “racismo” abrigado no art. 5°, XLII, da Constituição.

510. De acordo com o Relator do feito, Min. Maurício Corrêa:

511. “Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico,

512. qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto

513. fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças

514. decorre da mera concepção histórica, política e social e é ela que deve

515. ser considerada na aplicação do direito”.

516. Essa também foi a conclusão do Min. Gilmar Mendes, que assim se

517. pronunciou:

518. “Parece ser pacífico hoje o entendimento segundo o qual a

519. concepção a respeito da existência de raças assentava-se em reflexões

520. pseudo-científicas (...). É certo, por outro lado, que, historicamente, o

521. racismo prescindiu até mesmo daquele conceito pseudo-científico para

522. estabelecer suas bases, desenvolvendo uma ideologia lastreada em

523. critérios outros”.

No fragmento 3, o enunciador incorpora intertextos nas vozes dos ministros Maurício Corrêa e Gilmar Mendes como precedentes sobre o significado jurídico do termo “racismo”. A argumentação do voto vai sendo tecida no sentido de concordar com a parte autora no que concerne à desconstrução do conceito biológico ou genético de raça, entretanto afirma Maurício Corrêa que “o racismo persiste enquanto fenômeno social” e Gilmar Mendes que “o racismo [...] estabelece suas bases, desenvolvendo uma ideologia lastreada em critérios outros”. Esse fragmento evidencia um grau de dialogicidade de tipo (b), em que a diferença, o conflito e a polêmica são acentuados, estabelecendo-se uma luta entre os significados jurídicos dos termos.

Nas linhas 513-514 e 521-523, o voto sinaliza que o racismo se ancora numa representação do outro e não na existência de diferenças concretas e materiais. A inserção desse intertexto evidencia marcas do discurso descolonial, na medida em que identifica o processo de exclusão social dos afrodescendentes como resultado de uma representação em que o “outro” é desumanizado por meio da atribuição de características que lhe identificam a algo que é degenerado, de acordo com um padrão de superioridade moral assumido previamente pelo grupo dominante.

Fragmento 4

524. Tal ideia foi desenvolvida, em sede acadêmica, por António Manuel

525. Hespanha, da seguinte maneira:

526. “(...) a questão étnica apresenta analogias muito fortes com a

527. questão de gênero. Em ambos os casos, o argumento relativamente ao

528. direito (ocidental) é o mesmo. Ele está pensado por brancos (...),

529. fundado na sua cultura (na sua visão do mundo, na sua racionalidade,

530. na sua sensibilidade, nos seus ritmos de trabalho, nos seus mapas do

531. espaço, nos seus conceitos de ordem, de belo, de apropriado, etc.) e

532. prosseguindo, portanto, os seus interesses. Conceitos jurídicos

533. formados na tradição cultural e jurídica ocidental (...) foram

534. exportados como se fossem categorias universais e aplicadas a povos a

535. que eles eram completamente estranhos, desagregando as suas

536. instituições e modos de vida e aplicando-lhes os modelos de convívio

537. jurídico e político do ocidente. Isto não teria a ver apenas com as

538. diferenças culturais originais, mas também com a conformação da

539. mentalidade ocidental e nativa por séculos de experiência colonial

540. europeia. Esta teria começado por ‘construir’ os conceitos de raça

541. (como a história prova que aconteceu) e, depois, teria

542. habituado a cultura ocidental a relações desiguais com as

543. outras culturas, consideradas como culturas inferiores, sujeitas

544. à tutela educadora dos europeus” (grifos meus). 11 11 (HESPANHA, António Manuel. O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007. pp. 238-239.)

O voto, caracterizado pelo diálogo entre várias vozes, introduz o intertexto acima que sinaliza um discurso descolonial. Nas linhas 528-533, o relator explicita o conjunto de concepções homogêneas e unilaterais que sustentam o direito ocidental e que refletem exclusivamente a visão de mundo da cultura europeia. A seguir, nas linhas 532-537, o relator refere o processo de transplante dos conceitos jurídicos a contextos socioculturais diversos, fenômeno típico da expansão e do controle colonial europeu, e os seus efeitos de desagregação social (ESQUIROL, 2008ESQUIROL, Jorge L. The failed law of Latin America. The American Journal of Comparative Law, Arbour/USA, v. 56, Winter, 2008.; TWINING, 2009TWINING, William. General jurisprudence: understanding law from a global perspective. New York: Cambridge University Press, 2009.). Esse fragmento sinaliza a característica da hibridização do discurso colonial (BHABHA, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.).

Nas linhas 537-544, Hespanha detalha esses efeitos no que se refere às relações assimétricas de poder estabelecidas nos contextos de recepção dos conceitos jurídicos estrangeiros e produzidas pela construção do conceito de raça. Como observa Quijano, o conceito de raça foi fundamental para o estabelecimento da matriz colonial de poder, em que as diferenças fenotípicas foram utilizadas como estratégias de desumanização e forma de controle e subordinação das populações ao redor do mundo em prol da organização do modo capitalista de produção (QUIJANO, 2005). Essas evidências expostas por Hespanha evocam a memória discursiva, caracterizando o diálogo do relator com a fala reportada como um consenso entre os dois.

Fragmento 5

545. Cumpre afastar, para os fins dessa discussão, o conceito biológico de

546. raça para enfrentar a discriminação social baseada nesse critério,

547. porquanto se trata de um conceito histórico-cultural, artificialmente

548. construído, para justificar a discriminação ou, até mesmo, a dominação

549. exercida por alguns indivíduos sobre certos grupos sociais,

550. maliciosamente reputados inferiores.

551. Ora, tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o

552. crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de

553. determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato

554. biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível

555. empregar essa mesma lógica para autorizar a utilização, pelo Estado, da

556. discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de grupos

557. tradicionalmente excluídos.

O ministro relator, pelas evidências apresentadas anteriormente na sua argumentação, divide o conceito de raça em biológico e histórico-cultural e relaciona a discriminação ao segundo, que se trata de um conceito artificialmente construído. À artificialidade dessa construção, o relator associa objetivos correlatos: a discriminação e a dominação de uns sobre outros. Discriminados e dominados são os grupos sociais reputados inferiores de forma maliciosa. Neste ponto, o relator traz ao texto a leitura pós-colonial dos processos de subordinação, evocando, mais uma vez, o caráter da representação do outro como degenerado para fins de dominação.

Na linha 551, o relator introduz, por meio do operador argumentativo “ora”, a conclusão de que o Estado pode utilizar a categoria histórico-social de raça para discriminar positivamente. A essa conclusão chega porque o mesmo conceito, segundo suas palavras, fora utilizado pelo constituinte para qualificar de inafiançável o racismo e proibir a discriminação negativa. Ao utilizar o operador argumentativo “com vistas a” (linha 556), o relator indica a finalidade da discriminação positiva como sendo a de “estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos”. Nesse caso, a inclusão pressupõe quem está do lado de fora. Nas palavras de Dussel (1996)DUSSEL, Enrique. Filosofía de la liberación. Bogotá: Nueva América, 1996., a exterioridade é, nesse caso, reconhecida pela institucionalidade como não participante do espaço social.

Fragmento 6

558. É o que afirma a já citada Daniela Ikawa:

559. “O uso do termo raça é justificável nas políticas afirmativas (...)

560. por ser o mesmo instrumento de categorização utilizado para a

561. construção de hierarquias morais convencionais não condizentes com

562. o conceito de ser humano dotado de valor intrínseco ou com o

563. princípio de igualdade de respeito (...). Se a raça foi utilizada para

564. construir hierarquias, deverá também ser utilizada para

565. desconstruí-las. Trata-se de um processo de três diferentes fases: i. a

566. construção histórica de hierarquias convencionais que inferiorizaram

567. o indivíduo quanto ao status econômico e de reconhecimento pela

568. mera pertença a determinada raça (...); ii. a reestruturação dessas

569. hierarquias com base em políticas afirmativas que considerem a raça,

570. voltando-se agora à consolidação do princípio de dignidade; iii. A

571. descaracterização do critério raça como critério de inferiorização e o

572. estabelecimento de políticas universalistas materiais apenas” (grifos

573. meus). 12 12 (IKAWA, Daniela. Ações Afirmativas em Universidades, cit. pp. 105-106.)

Ao reportar-se à fala de Daniela Ikawa, a argumentação é construída no movimento “Se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser utilizada para desconstruí-las”, uma inferência lógica do tipo condicional, corroborando o afirmado no fragmento 4. Nas linhas 565-573, a tessitura textual sinaliza uma racionalização, estratégia de construção simbólica que constrói uma cadeia de raciocínio para justificar as relações entre raça, políticas afirmativas e políticas universalistas.

O relator traz a fala de Ikawa para corroborar seu entendimento de que o critério raça pode ser justificável nas chamadas políticas afirmativas. A autora entende que raça tem o duplo potencial de construir e de desconstruir hierarquias em um processo de três fases. Na primeira fase, raça é uma hierarquia convencional que serve para inferiorizar indivíduos; na segunda fase, o mesmo critério de inferiorização é usado para visibilizar indivíduos e selecioná-los a determinada política púbica; na terceira fase, esse critério deixa de ser tomado como fator de inferiorização, o que permitiria que os indivíduos identificados com determinadas raças pudessem usufruir tratamentos universais. Embora o trecho citado não explicite como o critério raça possa ser ressignificado a ponto de se desvincular de sua acepção depreciativa, resulta do intertexto a projeção de um movimento de transformação nas relações sociais baseadas em assimetrias em direção a uma equidade na qual convivam realidades plurais, indicando que o discurso assume o conceito de interculturalidade.

2.2 Análise do tópico discursivo (8) Consciência étnico-racial como fator de exclusão

Fragmento 7

574. CONSCIÊNCIA ÉTNICO-RACIAL COMO FATOR DE

575. EXCLUSÃO

576. Outro aspecto da questão consiste em que os programas de ação

577. afirmativa tomam como ponto de partida a consciência de raça existente

578. nas sociedades com o escopo final de eliminá-la. Em outras palavras, a

579. finalidade última desses programas é colocar um fim àquilo que foi seu

580. termo inicial, ou seja, o sentimento subjetivo de pertencer a determinada

581. raça ou de sofrer discriminação por integrá-la.

582. Para as sociedades contemporâneas que passaram pela experiência

583. da escravidão, repressão e preconceito, ensejadora de uma percepção

584. depreciativa de raça com relação aos grupos tradicionalmente

585. subjugados, a garantia jurídica de uma igualdade meramente formal

586. sublima as diferenças entre as pessoas, contribuindo para perpetuar as

587. desigualdades de fato existentes entre elas.

588. Como é de conhecimento geral, o reduzido número de negros e

589. pardos que exercem cargos ou funções de relevo em nossa sociedade, seja na

590. esfera pública, seja na privada, resulta da discriminação histórica que as

591. sucessivas gerações de pessoas pertencentes a esses grupos têm sofrido,

592. ainda que na maior parte das vezes de forma camuflada ou

593. implícita.

594. Os programas de ação afirmativa em sociedades em que isso ocorre,

595. entre as quais a nossa, são uma forma de compensar essa discriminação,

596. culturalmente arraigada, não raro, praticada de forma inconsciente e à sombra

597. de um Estado complacente.

Neste fragmento, o ministro relator utiliza o termo “consciência” como questão central para sua argumentação que se desenvolve no sentido de justificar a adoção de ações afirmativas. O trecho aponta que as ações afirmativas a tomam como seu “ponto de partida” (linha 577) ou “termo inicial” (linha 580). A consciência étnico-racial é definida como um “sentimento subjetivo” decorrente de uma pertença que provoca discriminação (linhas 580-581) e como “uma percepção depreciativa” (linha 583-584) para os grupos tradicionalmente subjugados. Este trecho assume a presença da ambivalência do discurso colonial (Bhabha, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.) na constituição das relações étnico-raciais no Brasil, em que a representação do outro como degenerado permeia a forma como o próprio representado passa a enxergar a si próprio, construindo a consciência negativa sobre sua identidade. Esse fenômeno foi descrito por Du Bois (1994)DU BOIS, William Edward Burghardt. The souls of black folk. New York: Dover Publications, 1994. como “dupla consciência” e descrito, mais tarde, por Martin Luther King Jr. (1963)KING Jr., Martin Luther. Carta de uma prisão em Birmingham. 1963. Disponível em: http://www.reparacao.salvador.ba.gov.br/. Acesso em: 16 ago. 2016.
http://www.reparacao.salvador.ba.gov.br/...
como “ameaçadoras nuvens de inferioridade começando a se formar no pequeno céu mental” de crianças negras que passavam, nos Estados Unidos, pela experiência da segregação.

Em seguida (linhas 586-591), o relator indica uma relação de causa e efeito, ancorada unicamente no apelo popular, entre discriminação histórica e reduzida participação de negros e pardos em posições de relevo social. Sobre a discriminação, o relator indica quatro qualificativos, a saber: (a) histórica; (b) camuflada ou implícita; (c) culturalmente arraigada; (d) praticada inconscientemente à sombra de um Estado complacente.

O paralelismo na argumentação sinaliza as pluriversalidades, um indício de descolonialidade que reconhece o conjunto de cosmologias conectadas que busca, sobretudo, o universal e só é possível através da polirracionalidade – “mundo em que vários mundos possam coexistir”. Ao assumir a existência de um discurso colonial subjacente à condição de subordinação dos afrodescendentes no Brasil (linhas 580-581), o relator evidencia a ambivalência e representação do outro como degenerado (linhas 583-584), que é um traço do discurso colonial.

A linha 587 – “desigualdades de fato existentes entre elas” – exibe a abertura para a diferença ou aceitação ou, ainda, reconhecimento dessa diferença; uma exploração da diferença, no sentido mais rico do termo “diálogo”, descrito por Fairclough (2003FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. London; New York: Routledge, 2003., p. 41) como graus de dialogicidade.

Fragmento 8

598. A necessidade de superar essa atitude de abstenção estatal foi

599. enfatizada pelo Min. Marco Aurélio, em sede doutrinária, da forma

600. abaixo:

601. “Pode-se afirmar, sem receio de equívoco, que se passou de uma

602. Igualização estática, meramente negativa, no que se proíbe a

603. discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos

604. ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si,

605. mudança de ótica, ao denotar ‘ação’. Não basta não discriminar. É

606. preciso viabilizar – e encontrar, na Carta como página virada o

607. sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de

608. tudo, afirmativa. E é necessário que essa seja a posição adotada pelos

609. nossos legisladores. (...). É preciso buscar-se a ação afirmativa. A

610. neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é

611. necessário fomentar-se o acesso à educação (...). Deve-se reafirmar:

612. toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da

613. Constituição Federal não pode ser acusada de inconstitucionalidade.

614. (...)

615. A prática comprova que, diante de currículos idênticos, prefere-se

616. a arregimentação do branco e que, sendo discutida uma relação

617. locatícia, dá-se preferência - em que pese a igualdade de situações, a

618. não ser pela cor - aos brancos. Revelam-nos também, no cotidiano, as

619. visitas aos shoppings centers que, nas lojas de produtos sofisticados,

620. raros são os negros que se colocam como vendedores, o que se dirá

621. como gerentes. Em restaurantes, serviços que impliquem contato

622. direto com o cliente geralmente não são feitos por negros”. 13 13 (MELLO, Marco Aurélio. Ótica Constitucional – a igualdade e as ações afirmativas. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. As vertentes do direito constitucional contemporâneo: estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 41.)

No fragmento 8, o relator traz a fala do ministro Marco Aurélio que, neste caso, não se trata de um precedente judicial, mas de um trecho de artigo científico de sua autoria, como demonstra a nota de rodapé nº 13. Neste intertexto, o relator propõe-se a afirmar a necessidade de superar a atitude de abstenção do Estado em relação à discriminação dos afrodescendentes.

A fala reportada (linhas 601-622) reflete a estratégia discursiva de empoderamento – indício de descolonialidade – que sinaliza o processo social e político de tomada de consciência por parte dos oprimidos de sua condição de inferioridade da qual se rebelam de forma crítica. No dizer do ministro: “[...] já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si, mudança de ótica, ao denotar ‘ação’ [...]”.

Nas linhas 615-622, o autor sinaliza fragilidade da argumentação por não trazer as evidências que fundamentam uma série de asserções acerca da “arregimentação do branco”. A seguir aponta situações de trabalho para as quais não é requerido diploma superior (lojas em shoppings centers, restaurantes etc.) e que, segundo o ministro, a “prática comprova”, dá-se preferência aos brancos.

Neste fragmento 8, o relator não deixa claro os argumentos para basear a prescrição de uma atitude proativa do Estado em relação aos afrodescendentes. As linhas 601-602 constroem uma dicotomia entre “igualização estática” e “igualização eficaz, dinâmica”, evocando o desgastado maniqueísmo binário entre estático e dinâmico.

Fragmento 9

623. Thomas Skidmore, a propósito, baseado em estudo histórico sobre o

624. tema, lembra o seguinte:

625. “(...) tornava-se evidente que quanto mais escura fosse a pele de

626. um brasileiro, mais probabilidades ele teria de estar no limite inferior

627. da escala socioeconômica, e isso de acordo com todos os indicadores –

628. renda, ocupação, educação. Os jornalistas não tardaram em aderir,

629. dando provas circunstanciais de um modelo de discriminação sutil

630. mas indisfarçável nas relações sociais. Já não era possível afirmar que

631. o Brasil escapara da discriminação racial, embora ela nunca tenha sido

632. oficializada, desde o período colonial. O peso cada vez maior das

633. evidências demonstrava justamente o contrário, mesmo sendo um tipo

634. de discriminação muito mais complexo do que o existente na sociedade

635. birracial americana.

636. As novas conclusões levaram alguns cientistas sociais a atacar a

637. ‘mitologia’ que predominava na elite brasileira a respeito das relações

638. raciais em sua sociedade. Florestan Fernandes acusava seus

639. compatriotas de ‘ter o preconceito de não ter preconceito’ e de se

640. aferrar ao ‘mito da democracia racial’. Ao acreditar que a cor da pele

641. nunca fora barreira para a ascensão social e econômica dos não

642. brancos pudesse ser atribuída a qualquer outra coisa além do relativo

643. subdesenvolvimento da sociedade ou da falta de iniciativa

644. individual”14 14 (SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 296.)

Seguindo a estratégia de utilizar intertextos, o relator dialoga com uma voz acadêmica do campo da história para corroborar seu argumento sobre a existência de uma relação entre cor da pele e posição social subordinada. Nesse ponto a dialogicidade movimenta-se numa tentativa de resolver ou de superar a diferença (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. London; New York: Routledge, 2003., p. 41). O trecho citado recorre três vezes à existência de evidências/provas em algum momento da história (linhas 625, 628 e 612) – embora não as demonstre e não precise a que momento se refere – da existência de discriminação racial no Brasil, à qual o autor atribui as seguintes características: sutil, mas indisfarçável; não oficializada; mais complexa do que a existente na sociedade birracial norte-americana. Aqui, a descolonialidade no discurso evoca a exterioridade para explicar as relações de dominação em relação ao sistema social brasileiro. Estas evidências, segundo Skidmore, levaram os cientistas sociais, dentre os quais Florestan Fernandes, a identificar a existência de uma mitologia ou mito no interior da sociedade brasileira, aqui usada no sentido metafórico de ilusão ou mentira, segundo as quais a cor da pele não seria percebida como barreira para ascensão social e econômica dos não brancos, mas atribuída a questões socioestruturais ou de inaptidão pessoal.

Este fragmento sugere que, em dado momento da história brasileira, começaram a surgir provas ou evidências da relação entre a subordinação social dos negros em função de sua cor de pele, ao mesmo tempo em que existia uma negação por parte da sociedade brasileira desse tipo de discriminação.

Nas linhas 645-748 são apresentados dados estatísticos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. A pesquisa identifica a situação de desvantagem dos afrodescendentes decorrente da falta de poder que é característica dos grupos minoritários. Com essa estratégia retórica do jogo de números, o ministro relator constrói sua argumentação em favor do grupo minoritário dos negros para reforçar a credibilidade em movimentos que enfatizam a objetividade.6 6 As linhas 645-748 foram suprimidas deste artigo.

Fragmento 10

749. Nessa mesma linha de raciocínio é possível destacar outro resultado

750. importante no que concerne às políticas de ação afirmativa, qual seja: a

751. criação de lideranças dentre esses grupos discriminados, capazes de lutar pela

752. defesa de seus direitos, além de servirem como paradigmas de

753. integração e ascensão social.

754. Tais programas trazem, pois, como um bônus adicional a aceleração

755. de uma mudança na atitude subjetiva dos integrantes desses grupos,

756. aumentando a autoestima que prepara o terreno para a sua progressiva e plena

757. integração social.

758. Ainda sob essa ótica, há que se registrar uma drástica transformação

759. na própria compreensão do conceito de justiça social, nos últimos tempos. Com

760. efeito, para além das políticas meramente redistributivas surgem, agora, as

761. políticas de reconhecimento e valorização de grupos étnicos e culturais.

762. De acordo com Nancy Fraser e Axel Honneth:

763. “Atualmente, as reivindicações por justiça social parecem, cada

764. vez mais, divididas entre dois tipos. A primeira, e a mais comum, é a

765. reivindicação redistributiva, que almeja uma maior distribuição de

766. recursos e riqueza. Exemplos incluem reivindicações por

767. redistribuição de recursos do Norte para o Sul, do rico para o pobre, e

768. (não há muito tempo atrás) do empregador para o empregado.

769. Certamente, o recente ressurgimento do pensamento do livre-mercado

770. pôs os proponentes da redistribuição na defensiva. Contudo,

771. reivindicações redistribuitivas igualitárias forneceram o caso

772. paradigmático para a maioria das teorias de justiça social nos últimos

773. 150 anos.

774. Hoje, entretanto, estamos orientados cada vez mais a encontrar

775. um segundo tipo de reivindicação por justiça social nas ‘políticas de

776. reconhecimento’. Aqui o objetivo, na sua forma mais plausível, é um

777. mundo diversificado, onde a assimilação da maioria ou das normas

778. culturais dominantes não é mais o preço do respeito mútuo. Exemplos

779. incluem reivindicações por reconhecimento de perspectivas distintas

780. das minorias étnicas, ‘raciais’ e sexuais, assim como de diferença de

781. gênero. Esse tipo de reivindicação tem atraído recentemente o interesse

782. de filósofos políticos, aliás, alguns deles estão procurando desenvolver

783. um novo paradigma de justiça social que coloca o reconhecimento no

784. centro da discussão.

785. De modo geral, então, estamos sendo confrontados com uma

786. nova constelação. O discurso sobre justiça social, uma vez centrado na

787. distribuição, está agora cada vez mais dividido entre reivindicações

788. por redistribuição, de um lado, e reivindicações por reconhecimento do

789. outro. Cada vez mais, as reivindicações por reconhecimento tendem a

790. predominar”16 16 (FRASER, Nancy and HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange. London/New York: Verso, 2003. pp. 7-8.)

Neste fragmento, apesar do uso da expressão “nesta mesma linha de raciocínio”, o relator introduz, em sua fundamentação, duas novas questões sobre as políticas de ação afirmativa: os resultados e a transformação na compreensão do conceito de justiça. Em relação à primeira questão, tanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto a Corte Europeia de Direitos Humanos estabeleceram critérios segundos os quais uma distinção não discriminatória deve: “(a) ter uma justificação objetiva e razoável, isto é, deve perseguir uma finalidade legítima; e (b) deve existir uma relação razoável de proporcionalidade entre a finalidade e o meio empregado para lográ-la” (BAYEFSKI, 1990, p. 12). Logo, o relator introduz ao debate um tema relevante para a discussão das políticas afirmativas que é a sua finalidade (denominada por ele de resultado) identificada com a criação de lideranças que poderão: (a) lutar na defesa dos direitos do grupo em questão; (b) servir como paradigma de inserção social; (c) mudar a atitude subjetiva dos integrantes desses grupos, aumentando a autoestima. A finalidade apontada pelo relator para as políticas de ação afirmativa é compatível com uma leitura descolonial no sentido de não apenas romper com o discurso de inferiorização da raça mas porque, ao projetar a criação de lideranças, reconhece a necessidade de inclusão social paritária do grupo nos termos do conceito de empoderamento.

Nas linhas 758-759, o relator introduz discussão diversa, agora sobre o conceito de justiça, ainda que lance mão da expressão “ainda sob essa ótica”. Para isso, evoca Honneth e Fraser em seu intertexto, autores de destaque na doutrina internacional sobre a expansão da discussão da justiça social do campo da redistribuição de recursos em direção ao do reconhecimento (BUNCHAFT, 2014BUNCHAFT, Maria Eugenia. O julgamento da ADPF n. 186: uma reflexão à luz do debate Honneth-Fraser. Pensar, v. 19, p. 453-490, 2014.). O trecho trazido ao texto ainda não contemplava a terceira escala de justiça que é a participação política paritária e que Fraser desenvolvera em obras posteriores à citada (FRASER, 2009). De qualquer forma, o relator incorpora ao seu discurso a noção de que reivindicações por reconhecimento de perspectivas distintas das minorias étnicas, “raciais” e sexuais e de diferenças de gênero são reivindicações por justiça. O tema do reconhecimento é transversal em diversos conceitos da crítica descolonial, especialmente no de alteridade, na medida em que ele pressupõe o rompimento da estereotipação e da ambivalência, características do discurso colonial que reforçam a posição de subordinação dos grupos afetados pela estigmatização.

Fragmento 11

791. Dito de outro modo, justiça social, hoje, mais do que simplesmente

792. redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir,

793. reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais

794. diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados

795. dominantes.

796. Esse modo de pensar revela a insuficiência da utilização exclusiva do

797. critério social ou de baixa renda para promover a integração social de

798. grupos excluídos mediante ações afirmativas, demonstrando a

799. necessidade de incorporar-se nelas considerações de ordem étnica e

800. racial.

Neste fragmento 11, o relator assume o discurso da justiça social ampliado à esfera do reconhecimento – nas palavras de Fraser – ao invocar, em sua própria fala, o vocábulo “significa” para conectar justiça social com “distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes”. A atitude ante aquilo que o relator diz é epistêmica, pois representa um grau de certeza ou de plausibilidade (modalização epistêmica). Percebe-se, no fragmento 11, pistas mais claras do discurso descolonial em dois sentidos: percepção da exclusão como produto da colonialidade que subordina determinados grupos por meio da inferiorização promovida pelos grupos dominantes e a necessidade de participação social equitativa em termos interculturais.

Fragmento 12

801. É o que pensa, por exemplo, Zygmunt Bauman, ao afirmar que

802. “(...) a identificação é também um fator poderoso na

803. estratificação, uma de suas dimensões mais divisivas e fortemente

804. diferenciadoras. Num dos pólos da hierarquia global emergente estão

805. aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou

806. menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas

807. extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro polo

808. se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da

809. identidade, que não tem o direito de manifestar as suas preferências e

810. que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas

811. por outros – identidades de que eles próprios se ressentem, mas não

812. tem permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar.

813. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam,

814. estigmatizam”.17 17 (BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 44.)

A voz de autoridade Zigmunt Bauman, introduzida com a expressão “é o que pensa”, é usada para corroborar a própria concepção de justiça social do relator (introduzida no fragmento 10) ampliada a demandas de reconhecimento. O trecho não revela a posição de Bauman sobre o significado de justiça, mas o seu entendimento sobre o papel da identificação na estratificação e na polaridade que ele atribui à hierarquia global. Bauman divide essa hierarquia em dois polos compostos, de um lado, pelos que são livres em relação à escolha de suas próprias identidades e, de outro, por aqueles a quem essa escolha é negada porque é imposta. As identidades impostas produzem, segundo Bauman, estereotipação, humilhação, desumanização e estigmatização, o que evidencia uma proximidade com a leitura pós-colonial sobre as características do discurso colonial (BHABHA, 1998BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.) e com a leitura descolonial no que se refere à relação entre a criação de hierarquias sociais e atribuição de identidades em prol da assimetria de poder na ordem global (QUIJANO, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, setembro 2005. (Colección Sur Sur, p. 227-278).).

Fragmento 13

815. As ações afirmativas, portanto, encerram também um relevante

816. papel simbólico. Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de

817. evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de

818. possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente

819. psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.

820. A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida,

821. revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a

822. sua convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma

823. consciência de conformidade com a falta de

824. perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no

825. trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma

826. avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes

827. desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como

828. naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua

829. exclusão.

Na linha 815, o julgador insere o indicador de conclusão “portanto” para encadear o papel simbólico das ações afirmativas a seguir descrito com a argumentação exposta anteriormente. Este papel simbólico é a projeção de uma criança negra em um semelhante que ocupa lugar de evidência na sociedade. O operador argumentativo “e” na linha 817 indica que a essa projeção se agrega o alargamento das possibilidades dos planos de vida das crianças negras. “Assim”, na linha 818, indica a forma como as ações afirmativas ocorrerão, ou seja, como “importante componente psicológico multiplicador da inclusão social” (linhas 818-819). Na linha 820, o relator traz o operador “em contrapartida” para introduzir um contraste no resultado que se observa no também efeito multiplicador (operador “igualmente” – linha 821) da discriminação histórica dos negros e pardos. Esse efeito é a “consciência de conformidade com a falta de perspectiva” que Lewandowski entende tratar-se da “avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos” e que é perpetuada pela convivência com a exclusão social. O tema da consciência é retomado pelo julgador que já o havia tratado no fragmento 7. O problema da consciência da inferioridade produzida nos grupos subordinados é uma das características do discurso colonial e que, segundo o conceito de colonialidade, continua operando nas lógicas de exclusão contemporâneas. De modo que não há descolonialidade sem romper com o discurso que hierarquiza identidades e encerra indivíduos e grupos em posições de inferioridade a elas ligadas e sem assumir a necessidade de empoderamento desses grupos, claramente identificado como resultado do papel simbólico das quotas em universidades públicas.

Fragmento 14

830. Valho-me novamente de um texto de Bauman, segundo o qual:

831. “Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uniforme

832. – na companhia de outras ‘como elas’ com as quais podem ter

833. superficialmente uma ‘vida social’ praticamente sem correrem o risco

834. da incompreensão e sem enfrentarem a perturbadora necessidade de

835. traduzir diferentes universos de significado -, mais é provável que

836. ‘desaprendam’ a arte de negociar significados compartilhados e um

837. modus operandi agradável. Uma vez que esqueceram ou não se

838. preocuparam em adquirir as habilidades para uma vida satisfatória em

839. meio à diferença, não é de esperar que os indivíduos que buscam e

840. praticam a terapia da fuga encarem com horror cada vez maior a

841. perspectiva de se confrontarem cara a cara com estranhos. Estes

842. tendem a parecer mais e mais assustadores à medida que se tornam

843. cada vez mais exóticos, desconhecidos e incompreensíveis, e conforme

844. o diálogo e a interação que poderiam acabar assimilando sua

845. ‘alteridade’ ao mundo de alguém se, desvanecem ou sequer conseguem

846. ter início. A tendência a um ambiente homogêneo, territorialmente

847. isolado, pode ser deflagrada pela mixofobia. Mas praticar a separação

848. territorial é colete salva-vidas e o abastecedor da mixofobia; e se torna

849. gradualmente seu principal reforço.

850. (...)

851. A ‘fusão’ exigida pela compreensão mútua só pode resultar da

852. experiência compartilhada. E compartilhar a experiência é

853. inconcebível sem um espaço comum.”18 18 (BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. pp. 94-97.)

O ministro Lewandowski chama novamente ao texto a voz do teórico Zigmunt Bauman, sem justificar a presença ou a pertinência desta fala. Não se verifica que tipo de relação o julgador estabelece entre o texto citado e seus argumentos ou de que forma ela contribui para a construção de seus argumentos em prol da demanda dos afrodescendentes. Entretanto, na linha 851, ao se referir à “fusão”, Bauman traz, implicitamente, um indício de descolonialidade que é a pluriversalidade, pois aponta para a necessidade de superação da mixofobia, negadora da alteridade, e para a construção de experiências compartilhadas e vidas satisfatórias em meio à diferença.

Fragmento 15

854. Eis, aqui, demonstrada a importância da aplicação das políticas de

855. ação afirmativa nas universidades e no ensino superior de modo geral.

856. Tais espaços não são apenas ambientes de formação profissional, mas

857. constituem também locais privilegiados de criação dos futuros líderes e

858. dirigentes sociais.

No fragmento 15, a utilização do operador argumentativo “eis”, com função explicativa para justificar sua decisão, seguido do “aqui”, uma dêixis discursiva pois indica o texto presente como espaço para demonstrar seus argumentos em favor das políticas de ação afirmativa. Ao introduzir o verbo demonstrar no particípio passado “demonstrada”, o relator indica que considera encerrada sua argumentação, à maneira deste gênero textual, tradicionalmente ancorado no silogismo. Porém, o relator não anuncia simplesmente o encerramento da discussão, mas agrega derradeiramente seu entendimento sobre o que constituem esses espaços, remetendo à questão de poder: locais privilegiados de criação dos futuros líderes e dirigentes sociais. Faz, com isso, uma costura com argumentos anteriormente tecidos sobre os resultados das políticas de ações afirmativas e evidencia a presença de fundamentos descoloniais em sua decisão, neste último trecho, identificado ao conceito de empoderamento.

Considerações finais

A ADPF, introduzida no ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional n. 03/1993, prevista no § 1º, do art. 102, da Constituição Federal (1988), é uma das formas de exercício do controle concentrado de constitucionalidade. A ADPF 186/DF traz uma típica demanda de direitos humanos de grupo minoritário – afrodescendentes – identificada a partir de um discurso que reconhece as relações de dominação subjacentes à negação histórica dos direitos desse grupo e da necessária transformação dessas relações para a plena efetividade de direitos de grupos estigmatizados.

A análise crítica do discurso do relator da ADPF 186/DF permitiu-nos, neste caso, confirmar a hipótese segundo a qual o reconhecimento de demandas do grupo afrodescendente em relação à reserva de cotas para ingresso no ensino público superior brasileiro passa pela desconstrução do discurso de inferiorização que atribui a esses grupos uma posição social de subordinação. A decisão evidencia um discurso segundo o qual a reivindicação em si (reserva de cotas) tem o potencial de romper com esses discursos e reverter os efeitos negativos da discriminação, promovendo o que o relator chama de inclusão, leitura compatível, em muitos pontos, com o conceito de empoderamento.

É possível verificar, além do empoderamento, a existência de pistas de descolonialidade na superfície do texto já que diversos argumentos usados pelo relator para reconhecer a demanda dos afrodescendentes correspondem às propostas do giro descolonial. Os argumentos são usados como estratégias para afirmar a alteridade de grupos historicamente depreciados, a sua legitimidade como plenos participantes em condições de paridade em sociedades plurais e o reconhecimento como forma de construção de espaços pluriversais.

A análise crítica do discurso de fundamentação do voto do relator da ADPF 186/DF, ao desalojar aquilo que se oculta ideologicamente no plano do posto, identificou pistas textuais de descolonialidade nesse discurso judicial. Identifica-se ambivalência na representação do outro como “degenerado” (do discurso hegemônico) a partir de: (a) construção simbólica que evoca a presença do outro minoritário numa construção textual que sinaliza sua própria liberdade e livre determinação; (b) explicitação de relações de dominação em relação ao sistema social pelo reconhecimento da existência de uma classe opressora que possui determinada transcendentalidade sobre as minorias; (c) pistas de superação de visões excludentes na busca de integração entre culturas diversas do sistema social; (d) reconhecimento do conjunto de cosmologias conectadas que busca, sobretudo, o universal e só é possível através da polirracionalidade – “mundo em que vários mundos possam coexistir”; (e) estratégias discursivas que sinalizam o processo social e político de tomada de consciência por parte dos oprimidos de sua condição de inferioridade da qual se rebelam de forma crítica.

A partir daí, construímos um roteiro de indicadores, no discurso, do giro descolonial, com os seguintes conceitos-chave, a saber: (a) alteridade; (b) exterioridade; (c) interculturalidade; (d) pluriversalidade; e (e) empoderamento (ver Quadro 1).

nota de agradecimento

Este artigo apresenta os resultados parciais do projeto de pesquisa aprovado no âmbito do Edital Universal CNPq n. 479137/2013-7, intitulado “Direitos das minorias e grupos vulneráveis: uma análise do discurso de fundamentação nas decisões do STF”, integrado pelas autoras.

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  • 1
    “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é o nome da disciplina oferecida por Virgínia Colares, no Curso de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório de pesquisa, apresentado por essa pesquisadora em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; Protocolo n. 2546463711149023. Trata-se de uma agenda de pesquisa para analisar o discurso a partir do tratamento textual dado às unidades pragmáticas nos eventos de fala e de escrita na instituição jurídica.
  • 2
    Para um panorama sobre as principais diferenças e aproximações entre a crítica pós e descolonial, ver Bhambra (2014)BHAMBRA, Gurminder K. Postcolonial and decolonial dialogues. Postcolonial Studies, v. 17, n. 2, p. 115-121, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/13688790.2014.966414. Acesso em: 16 ago. 2016.
    http://dx.doi.org/10.1080/13688790.2014....
    .
  • 3
    Sobre a constituição do grupo de investigação latino-americano Modernidade-Colonialidade, ver os trabalhos de Escobar (2003)ESCOBAR, Arturo. Mundos y conocimientos de otro modo: El programa de investigación de modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa. Bogotá, n. 1, p. 51-86, enero-diciembre de 2003. e Castro-Gómez e Grosfoguel (2007)CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 25-47..
  • 4
    Disponível em: http://www.stf.jus.br/. Acesso em: 16 ago. 2016. Documento assinado digitalmente conforme MP n. 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 2167846.
  • 5
    O recorte da amostra da análise decorre da limitação de espaço deste periódico.
  • 6
    As linhas 645-748 foram suprimidas deste artigo.
  • 11
    (HESPANHA, António Manuel. O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007. pp. 238-239.)
  • 12
    (IKAWA, Daniela. Ações Afirmativas em Universidades, cit. pp. 105-106.)
  • 13
    (MELLO, Marco Aurélio. Ótica Constitucional – a igualdade e as ações afirmativas. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. As vertentes do direito constitucional contemporâneo: estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 41.)
  • 14
    (SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 296.)
  • 16
    (FRASER, Nancy and HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange. London/New York: Verso, 2003. pp. 7-8.)
  • 17
    (BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 44.)
  • 18
    (BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. pp. 94-97.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2016
  • Aceito
    05 Set 2017
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