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A “empresa-campo” e a produção da “vida nua”: direitos humanos e o trabalho escravo contemporâneo sob a perspectiva biopolítica

The “company-camp” and the production of “naked life”: human rights and contemporary labor slave under the biopolitical perspective

Resumo

O artigo perspectiva a questão do trabalho escravo no Brasil contemporâneo a partir do marco teórico da biopolítica – descortinado pela obra de Michel Foucault e revisitado pelo projeto filosófico de Giorgio Agamben – e da metodologia do estudo de caso. Busca-se responder ao seguinte problema de pesquisa: em que medida a empresa que se utiliza de mão de obra escrava pode ser compreendida como um espaço passível de subsunção ao conceito de campo delineado pela obra agambeniana? O texto encontra-se dividido em duas partes: na primeira, apresenta-se a questão relacionada ao transbordamento do estado de exceção na contemporaneidade, relacionando-a ao tema central do artigo; na segunda, a partir do conceito de “campo” elaborado pela filosofia agambeniana, procura-se evidenciar a figura da “empresa-campo” como espaço por excelência da produção da exceção em relação ao sujeito reduzido à condição de escravo (“vida nua”). O “Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, julgado recentemente pela CorteIDH, é então apresentado como exemplo privilegiado para a análise empreendida.

Sistema Interamericano de Direitos Humanos; biopolítica; trabalho escravo; empresa; campo

Abstract

The article focuses on the issue of slave labor in contemporary Brazilian reality from the theoretical framework of biopolitics – unveiled by Michel Foucault’s work and revisited by Giorgio Agamben’ s philosophical project – and the methodology of the case study. The following research problem is sought: could a company that uses slave labor be considered a space subsumed to the concept of the camp, as outlined by the Agambenian work? If so, to what extent? The article is composed in two parts: in the first one, the question is to the overflowing of the state of exception in contemporaneity, relating it to the central theme of the article; in the second, from the concept of “camp” elaborated by the Agambenian philosophy, we try to reveal the figure of the “firm-camp” as the space par excellence of the production of the exception in relation to the subject reduced to the condition of slave (“naked life”). The “Fazenda Brasil Verde v Brazil Case”, recently judged by the Inter-American Court of Human Rights, is then presented as a prime example for the undertaken analysis.

Inter-American Human Rights System; biopolitics; slavery; company; camp

Introdução

Em outubro de 2016 o Brasil, mais uma vez, foi reconhecido no cenário internacional como um país violador de Direitos Humanos. Depois dos emblemáticos casos envolvendo violência doméstica (Caso Maria da Penha), violência manicomial (Caso Damião Ximenes Lopes) e prisional (Casos Presídio Central de Porto Alegre e Complexo Penitenciário de Pedrinhas), o país foi protagonista do primeiro julgado sobre o tema da escravidão e do tráfico de pessoas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) – órgão jurisdicional do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos (SIDH).

Em sentença datada de 20 de outubro de 2016, a CorteIDH, ao jugar o caso “Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, condenou o Estado brasileiro a indenizar os trabalhadores resgatados na fazenda pertencente Grupo Irmãos Quagliato, situada no estado do Pará. Na sentença, foi declarada a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelas violações aos direitos estabelecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos (notadamente aqueles relacionados à proibição da escravidão e da servidão, à liberdade pessoal e à integridade física, psíquica e moral da pessoa), fixando-se a soma de US$ 30.000 a título de indenização por dados imateriais para cada um dos 43 trabalhadores que foram resgatados em fiscalização ocorrida no ano de 1997 e a soma de US$ 40.000 a título de indenização para os 85 trabalhadores da fazenda resgatados em 2000.

A referida empresa – que opera no setor da criação de gado – já havia passado por mais de 12 fiscalizações do Ministério do Trabalho até ser denunciada ao SIDH. Haviam sido reconhecidas irregularidades e violações de direitos dos trabalhadores em todas as fiscalizações. Além da falta de alojamentos adequados, foi detectada ausência de energia elétrica, alimentação de péssima qualidade e insuficiente – condições que implicavam constantes problemas de saúde aos quais não era dada a devida atenção – e trabalho em jornadas muito acima das estabelecidas em lei. Também ficou evidenciado nessas fiscalizações que o material de trabalho utilizado pelos trabalhadores era descontado de seus rendimentos, o que era utilizado como mote para mantê-los atrelados à Fazenda em condições degradantes diante da dívida que se avolumava cada vez mais.

Mesmo tendo ciência dessas violações, o Estado brasileiro nada fez de concreto para cessá-las ou preveni-las. No máximo, por meio da Justiça do Trabalho, a empresa foi condenada a pagar verbas rescisórias aos trabalhadores resgatados. Nenhuma outra medida no sentido de evitar a prática reiterada de violações de direitos foi tomada, o que levou a Comissão Pastoral da Terra e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, dentre outras entidades – a partir do levantamento de documentos e da busca de trabalhadores prejudicados –, a encaminharem o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que ocorreu em 1998.

Uma vez no âmbito do SIDH, o caso foi encaminhado pela CIDH à CorteIDH no ano de 2015, que reconheceu, como salientado, a responsabilidade do Estado brasileiro em relação à violação sistemática de direitos dos trabalhadores resgatados nas fiscalizações ocorridas na empresa.

Este caso, que, pela sua dramaticidade, representa um importante paradigma acerca do assunto, será analisado no presente artigo – a partir da metodologia do estudo de caso (LLEWELLYN; NORTHCOTT, 2007LLEWELLYN, Sue; NORTHCOTT, Deryl. The “singular view” in management case studies qualitative research in organizations and management. An International Journal, v. 2, n. 3, p. 194-207, 2007.; YIN, 2005YIN. Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.) – para ilustrar que a temática do trabalho escravo no Brasil, antes de notícia histórica, é uma realidade ainda presente – em que pese a legislação trabalhista e penal nacional e internacional buscarem com veemência coibir tal prática.

Diante do exposto, a partir do marco teórico descortinado pela biopolítica, busca-se com o presente estudo responder ao seguinte problema de pesquisa: em que medida a empresa que se utiliza de mão de obra escrava ou em condições de trabalho análogas à do escravo pode ser compreendida como um espaço passível de subsunção ao conceito de campo delineado pela obra do filósofo italiano Giorgio Agamben? E mais: de que maneira esses espaços – campos – se apresentam enquanto evidência da fissura que torna indiscernível o direito da violência, demonstrando que o direito, em vez de um contraponto civilizatório em relação à barbárie, nada mais representa, quando articulado às relações de exploração/dominação que articulam sua aplicação/suspensão, do que um instrumento de produção da vida nua?

Para responder à objeção, o texto encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, busca-se estabelecer conceitos fundamentais da obra agambeniana, principalmente no que se refere à (re)apropriação do conceito de biopolítica cunhado por Michel Foucault para analisar a questão relacionada ao transbordamento do estado de exceção na contemporaneidade. Entende-se, aqui, que essas duas categorias se apresentam como ferramentas conceituais relevantes para a compreensão da temática do trabalho escravo na sociedade brasileira atual, em primeiro lugar pela discriminação estrutural que o assunto revela e, em segundo, pelo fato de que, uma vez na empresa que explora o trabalho escravo, o trabalhador vê-se completamente abandonado ao poder do “soberano-empregador”, na medida em que seus direitos são sonegados diuturnamente, mesmo sob o “manto jurídico”, evidenciando a indiscernibilidade entre direito e violência descortinada pela filosofia agambeniana.

Na sequência, o artigo pretende, a partir do conceito de “campo” elaborado pela filosofia agambeniana, evidenciar a figura da “empresa-campo” como espaço por excelência da produção da exceção em relação ao sujeito reduzido à condição de escravo (“vida nua”). Para tanto, utiliza-se o “Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, julgado pela CorteIDH, como exemplo privilegiado, principalmente pelo fato de que foi reconhecido, neste caso, o alcance da discriminação estrutural histórica no caso dos trabalhadores. Com efeito, trata-se da primeira vez em que a CorteIDH reconhece a existência de uma discriminação estrutural histórica, em razão do contexto no qual ocorreram as violações de direitos humanos das vítimas da Fazenda Brasil Verde.

1 A biopolítica e o estado de exceção agambenianos como (possíveis) ferramentas conceituais para a compreensão do trabalho escravo no Brasil contemporâneo

A contemporaneidade assiste a uma implicação cada vez maior da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do poder, fenômeno ao qual Michel Foucault (2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.; 2012) atribuiu o nome de “biopolítica”. Esta categoria foucaultiana assume o papel de importante ferramenta conceitual para o diagnóstico e também para a compreensão das crises políticas da contemporaneidade, bem como do fenômeno da manutenção das mais diversas formas de opressão, como aquela que se constitui no tema central do presente estudo: o trabalho escravo.

Para o filósofo italiano Giorgio Agamben (2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 118), o irromper da biopolítica representa a culminância de um processo: “antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século [século XX], o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contínuo”. Seu reflexo mais contundente é, segundo o autor, a transformação do estado de exceção em regra, de modo que ele tende a se apresentar como o paradigma dominante na política contemporânea. Tal situação ameaça transformar radicalmente “a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição”, dado que o estado de exceção se apresenta “como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004., p. 13). Pode-se afirmar, portanto, que a exceção é uma espécie de exclusão singular no que se refere à norma geral: “aquilo que é excluído não permanece, em razão disso, fora de relação com a norma, mas mantém esse relacionamento sob a forma da suspensão” (WERMUTH, 2015WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Por que a guerra? De Einstein e Freud à atualidade. Santa Cruz do Sul: Essere nel mondo, 2015., p. 66).

Em relação à temática sob análise isso fica bastante evidente quando se constata que, embora haja uma série de legislações e esforços sendo construídos a fim de abordar a temática e supostamente combater a trabalho escravo contemporâneo – seja em âmbito doméstico, seja em âmbito internacional (Convenções 29, 105 e 182 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, especialmente) –, estas não têm efetividade. Estão suspensas a partir da exceção, de modo que a prática permanece uma constante, sob os olhos das instituições públicas e da sociedade.

Nesse sentido, cumpre salientar que, no Brasil, quem reduz alguém à condição análoga à de escravo pratica crime tipificado pelo art. 149 do Código Penal – na redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.803/2003 –, que comina uma pena privativa de liberdade de dois a oito anos, mais multa e pena correspondente à violência, a quem submete o trabalhador: a) à realização de trabalhos forçados; b) à jornada exaustiva; c) a condições degradantes de trabalho. Também incide nas penas quem: a) restringe, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; b) cerceia o uso de meios de transporte pelo trabalhador a fim de retê-lo no local de trabalho; c) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou, ainda, se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Ainda, quando o crime é cometido contra criança ou adolescente, ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, a sobredita pena é aumentada pela metade.

Mesmo assim, verifica-se que, no país, empresas de grande porte tem reiteradamente sonegado direitos trabalhistas legalmente assegurados, no intento de, assim, aumentar seus lucros, em um movimento denominado por Martins e Kempfer (2013)MARTINS, Lara Caxico; KEMPFER, Marlene. Trabalho escravo urbano contemporâneo: o trabalho de bolivianos nas oficinas de costura em São Paulo. Revista do Direito Público, Londrina, v. 8, n. 3, p. 77-102, set./dez. 2013.dumping social”. Nesse movimento, o trabalhador é reduzido a um “objeto” nas mãos do empregador, na medida em que a necessidade de garantir um meio de sustento próprio e da sua família faz com que se submeta a condições de trabalho desumanas e degradantes, que ferem a dignidade da pessoa humana, e que, obviamente, justamente por se configurarem como uma das modalidades de trabalho em condições análogas à de escravo, afrontam a legislação trabalhista consolidada no país a partir da década de 1940 do século passado. Em relação à escravidão rural, Figueira (2007)FIGUEIRA, Ricardo Rezende. O trabalho escravo e a promiscuidade de autoridades. Direitos Humanos no Brasil 2007: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2007, p. 53-58. salienta que existe uma relação de promiscuidade entre os escravagistas e as autoridades públicas, ou porque estas últimas se encontram diretamente envolvidas com o “negócio” da escravidão, ou porque são coniventes com a sua prática, o que permite afirmar que, a partir de ambas as formas, a perpetração da escravidão passa a ser endógena ao Estado.

Em que pese o tema ser (ainda) recorrente em dias atuais no país, o trabalho em condições análogas a de escravos no Brasil está historicamente relacionado ao tráfico interno de pessoas: trabalhadores sempre foram e continuam sendo aliciados nas regiões Norte e Nordeste do país e levados para as grandes metrópoles – notadamente São Paulo. Esse movimento, contemporaneamente, também tem sido observado em relação aos imigrantes de outros países da América Latina que, uma vez no Brasil, são aliciados para o trabalho em fábricas – especialmente na confecção de roupas (MARTINS; KEMPFER, 2013MARTINS, Lara Caxico; KEMPFER, Marlene. Trabalho escravo urbano contemporâneo: o trabalho de bolivianos nas oficinas de costura em São Paulo. Revista do Direito Público, Londrina, v. 8, n. 3, p. 77-102, set./dez. 2013.). Essa conduta também é tipificada como crime pelo Código Penal – que estabelece pena de detenção de um a 3 três anos e multa a quem “aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional” (art. 207) –, mas, em termos práticos, não tem obstaculizado a sua prática.

De acordo com o Manual do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), intitulado “Trabalho Escravo no Brasil em Retrospectiva”,

nas oficinas de costura são encontrados diversos trabalhadores migrantes, em sua maioria vindos de países como Paraguai, Bolívia e Peru, que trabalham por mais de 14 horas diárias para ganhar valores próximos ao salário mínimo, ou mesmo abaixo deste, e sem as mais básicas condições de segurança e saúde. Na maioria das vezes, para chegar ao Brasil, esses trabalhadores acabam contraindo dívidas que são descontadas dos salários já baixos, acarretando situações de servidão e de restrição da liberdade de locomoção, por dívida. Essa situação se agrava em virtude do desconhecimento das leis nacionais e da falta dos documentos brasileiros, já que a maior parte dessa migração se dá informalmente, sem o controle das autoridades de fronteira. Não é raro acontecerem agressões físicas e morais, ameaças e outras vulnerações de direitos humanos (BRASIL, 2012BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tradução: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).

A vedação legal e a prática reiterada dessas ações permitem uma aproximação à teoria da exceção agambeniana, segundo a qual “a norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta”, de modo que o estado de exceção não representa “o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão”. Em outras palavras, “não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente deste modo se constitui com regra, mantendo-se em relação com aquela” (AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 24-25).

Se o estado de exceção se refere a um “estado da lei” caracterizado pelo vigor da norma que não se aplica, porque não tem “força”, atos – no caso, regulamentos e determinações internas das empresas que violam a legislação trabalhista e penal – que não possuem valor de lei adquirem essa sua “força”. Nesse sentido, pode-se afirmar, com Agamben (2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004., p. 61), que “o estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei”, no âmbito do qual, “para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção”. No campo do trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil contemporâneo, o estado de exceção “marca um patamar no qual lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004., p. 63).

Neste sentido, Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016. acentua que transformar o estado de exceção em uma técnica de governo ou de gerenciamento significa que a governabilidade dos nossos governos nacionais, ainda que imersos na aura dos ideais republicanos ou democráticos, depende do respeito às regras que determinam o seu funcionamento, mas depende também da sua transgressão quando necessário, exigindo a adoção de medidas que contrariem o direito vigente na normalidade, a fim de conservar o sistema. Deste modo, constitui-se em um recurso sempre disponível, superando os obstáculos de limitação do poder instituído, descerrando as vias para todo tipo de violência ao permitir a suspensão de direitos e garantias, e “com a vantagem de fazê-lo com escólio em um instituto do próprio direito, mantendo-se sempre a imagem de um estado jurídico pleno” (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016., p. 21).

Portanto, a alçada da exceção ao patamar de uma técnica de governo ou gerenciamento comum dá a ela um caráter cada vez maior de normalidade, e não de uma medida excepcional, deixando emergir sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica. Enquanto dispositivo original, desde sempre se constituiu em elemento presente às constituições políticas e jurídicas, somente sendo possível ao direito constituir-se com a pretensão de ser definitivo, acompanhado desta, enquanto um dispositivo1 1 Como dispositivo, “compreende uma rede, que pode ser composta de elementos heterogêneos articulados, que envolve uma disposição estratégica inscrita em um jogo de poder, destinada a capturar e controlar todo gesto e toda palavra dos viventes” (NASCIMENTO, 2016, p. 21). Dispositivo é, portanto, uma armadilha que visa à captura, gerando atração e podendo assumir diferentes aspectos a depender da conjuntura na qual está inserido; uma vez estabelecida a captura, o dispositivo estabelece uma relação de dependência e fazer cair em um círculo vicioso que se presume invencível. paralelo da biopolítica. Em virtude de ser dispositivo, a exceção não depende da decretação formal do estado de exceção para se manifestar e pode surgir entre nós mesmo sem seu nome próprio.

Deste modo, pode-se afirmar que “a exceção é o dispositivo original através do qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão”, no qual suspensão designa a possibilidade de pôr fim à vida ou promovê-la, e que “uma teoria do estado de exceção é condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004., p. 10). A filosofia agambeniana percorre esse caminho justamente para demonstrar como a exceção permite a ligação entre o direito e a vida, permite o cancelamento da vida em nome do direito, enquanto a “forma extrema da relação que inclui algo unicamente através da sua exclusão” (AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 22). Embora pareça contraditório, “não é impossível vislumbrar situações que envolvam, em um mesmo ou diversos atos, uma inclusão que seja concorrente de diversas exclusões, ou mesmo um ato que seja ao mesmo tempo inclusivo e exclusivo” (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016., p. 22).

Isso porque a figura da exceção nos moldes agambenianos permite compreender como, em determinadas circunstâncias, ocorre a suspensão do direito sobre certas pessoas ou grupos, transformando a sua vida em “vida nua”, ou seja, vida vulnerável, facilmente controlável e, não raro, impunemente eliminável.2 2 Para a compreensão da sua acepção de “vida nua”, Agamben (2010) faz uma releitura da filosofia clássica, a fim de trazer à luz os conceitos de zoé e bíos. Nessa dicotomia, zoé designa o simples fato de viver, ou seja, a mera existência enquanto vida nua, ao passo que bíos designa a “vida qualificada”, a vida do indivíduo ou do grupo. A retomada dessa distinção serve para ilustrar justamente a condição de determinados seres humanos na contemporaneidade, evidenciando a relação inclusão (daqueles que vivem uma vida “qualificada”) versus exclusão (daqueles que são relegados à condição de banimento, ou seja, que vivem uma vida “desqualificada”) que caracteriza a política contemporânea. Evidentemente o trabalhador que vê seus direitos vilipendiados pode ser aproximado a este conceito cunhado pela filosofia agambeniana, uma vez que se transforma em uma vida “sem valor”, ou seja, em mero “objeto” nas engrenagens das cadeias produtivas – revelando a discriminação estrutural reconhecida pela CorteIDH no caso Fazenda Brasil Verde, como se demonstrará na sequência.

E se o estado de exceção é a regra, o espaço que se abre a partir dele é o que podemos chamar, com Agamben (2010)AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., de “campo”,3 o lugar exato em que a situação extrema se converte no próprio paradigma cotidiano. Toda exceção tem historicamente criado seus espaços prediletos de recrutamento da vida humana, seus campos. Suspendendo-se o ordenamento jurídico dentro de um determinado território, o próprio território parece exigir a abertura de espaços que não se comuniquem com o ambiente comum. Configura-se o campo, portanto, de acordo com o autor, como o espaço que se abre quando o estado de exceção se torna a regra, um espaço aberto toda vez que o dispositivo da exceção for acionado com esta finalidade, independentemente da decretação formal do estado de exceção.

Portanto, identificar os espaços e locais em que tais campos apareceram e aparecem na contemporaneidade será, em grande medida, a tarefa daqueles que buscam interpretar nosso tempo. Nesse sentido, dentro dos limites do presente artigo, pretende-se, na sequência, identificar o espaço da empresa que se utiliza da mão de obra escrava como um espaço de “campo”, na medida em que a redução do trabalhador a uma situação de mero “objeto” (produção da “vida nua”, desqualificada, portanto), nesse ambiente, se dá.

2 O trabalho escravo no Brasil contemporâneo e a empresa-campo: uma análise a partir do Caso “Fazenda Brasil Verde versus Brasil” submetido à CorteIDH

Agamben (2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 164), consoante o exposto no tópico precedente, em seu projeto filosófico, conclama a “olhar o campo não como um fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado, mas de algum modo, como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda vivemos”. Enquanto localização deslocadora, o campo é a matriz oculta da política em que ainda vivemos. Ele revela, portanto, o “puro, absoluto e insuperado espaço biopolítico (e enquanto tal fundado unicamente sobre o estado de exceção)” como paradigma oculto do espaço político da modernidade, do qual “deveremos aprender a reconhecer as metamorfoses e os travestimentos” (AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 119).

Na sua identificação do que é um “campo”, Agamben (2010)AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010. sugere uma figura jurídico-política inerente ao Estado moderno: um pedaço do território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço externo. Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído através da sua própria exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento, é o próprio estado de exceção. Na medida em que o estado de exceção é, de fato, desejado, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, então, a estrutura na qual o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente.

A filosofia agambeniana abandona, assim, definitivamente, a dicotomia legal/ilegal. Em Agamben (2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.; 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010.), a argumentação vai em outra direção, na medida em que a constatação da generalização dos mecanismos de suspensão do direito aponta um fenômeno mais profundo: trata-se da transformação das técnicas de poder e de dominação, que articulam a aplicação do direito e sua suspensão como ferramenta de manutenção do status quo. Nessa chave de compreensão, o direito não é o contraponto civilizatório. Pelo contrário, o direito, articulado às relações de exploração/dominação que o constituem e o produzem, faz parte do processo de produção da vida nua.

No estado de exceção descortinado por Agamben, torna-se impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução: nele, o que está de acordo com a norma e o que a viola coincidem sem resíduos. O nexo original entre violência e direito é mantido. A violência exercitada no estado de exceção, portanto, não conserva nem simplesmente põe o direito, “mas o conserva suspendendo-o e o põe excetuando-se dele” (AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 69). Em outras palavras,

é como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004., p. 48-49).

Essa constatação sinaliza para o fato de que a produção da “vida nua” não é externa ao direito, mas, ao contrário, está contida paradoxalmente em seu modo de funcionamento. Barsalini (2011BARSALINI, Glauco. Estado de exceção permanente: soberania, violência e direito na obra de Giorgio Agamben. 2011. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011., p. 3) apreende o paradoxo agambeniano ao construir a seguinte sentença: “determinar a suspensão da regra (a exceção) significa garantir a continuidade da regra, na medida em que tal determinação se justifica pela ameaça que sofre o estado da não exceção”. Nas palavras de Nascimento (2012NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben. São Paulo: LiberArs, 2012., p. 114), no estado de exceção a “aplicação divorcia-se da norma. O que resta é somente um excesso de aplicação inconsistente e materialmente opressivo, sem qualquer referência à norma”. A partir desta perspectiva é que se pode afirmar que se está virtualmente na presença de um campo cada vez que uma estrutura assim se cria.

A um ordenamento sem localização, processa-se uma localização sem ordenamento, um estado de exceção permanente, no qual “a lei é o arbítrio do soberano”, de modo que “a vida humana que cai sob a condição da exceção se torna em verdadeiro homo sacer. É a vida nua sobre a qual vigora a vontade soberana como lei absoluta e a exceção como norma de sua existência” (RUIZ, 2012RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU, São Leopoldo, v. 10, n. 39, 2012., p. 14).

Na medida em que seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico jamais realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida, sem qualquer mediação. Por isso, o campo é o próprio paradigma do espaço político, no ponto em que a política se torna biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão (AGAMBEN, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010.). A produção da vida nua não é, porém, um fato extrapolítico natural, que o direito deve limitar-se a constatar ou reconhecer; ela é antes, no sentido que se viu, um limiar em que o direito se transmuta a todo momento em fato e o fato em direito, e no qual os dois planos tendem a tornar-se indiscerníveis. Nesse sentido, aduz Agamben (1998AGAMBEN, Giorgio. Qué es um campo? Artefacto: pensamientos sobre la técnica. Buenos Aires, n. 2, p. 52-55, 1998., p. 53-54) que:

será un campo tanto el estadio de Bari, donde en 1991 la policía italiana hacinó provisoriamente a los inmigrantes clandestinos albaneses antes de devolverlos a su propio país, como el velódromo de invierno en el que la autoridad de Vichy acogió a los judíos antes de entregárselos a los alemanes; tanto em campo de prófugos en la zona fronteriza con España en el que murió preso en 1939 Antonio Machado como las zonas de espera de los aeropuertos internacionales franceses en las que permanecían retenidos los extranjeros que pedían que se los reconociera con el estatuto de refugiados. En todos estos casos, un lugar aparentemente anodino (por ejemplo, el Hotel Arcades em Roissy) delimita en realidad un espacio en el cual el ordenamiento normal es de hecho suspendido, y en cual los extranjeros pueden ser retenidos en la zona de espera antes de la intervención de la autoridad judiciaria.

Diante do exposto, como já salientado na introdução, a provocação que o presente artigo visa a responder reside na compreensão da empresa que se utiliza de mão de obra escrava ou em condições de trabalho análogas à do escravo como um espaço passível de subsunção ao conceito de campo delineado pela filosofia agambeniana. Para ilustração da tese aqui esposada, será abordado o Caso “Fazenda Brasil Verde versus Brasil”, submetido à jurisdição da CorteIDH – já descrito na introdução –, em cujo julgamento se reconheceu que o Brasil violou inúmeros direitos estabelecidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em especial a proibição da escravidão e da servidão, assim como as garantias à liberdade pessoal e à integridade (física, psíquica e moral) da pessoa.

Referido caso foi escolhido por ilustrar, na esteira do pensamento de Walter Benjamin (2012)BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tradução: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., a necessidade de se repensar o conceito de história. Com efeito, assim como o anjo da história benjaminiano, o pavor que as experiências com o escravismo provocam ao “olharmos para trás” na história (da humanidade e, particularmente, do Brasil), arregala os olhos de quem vê, impelido pelo “vento do progresso”, as mesmas atrocidades sendo cometidas nas sociedades contemporâneas. Parte-se, portanto, da ideia de que o escravismo no Brasil não representou apenas um “intervalo” provisório que se destinava a desintegrar-se na medida em que o progresso retomasse seu curso “natural”: pelo contrário, a opressão e a exclusão representados pela sociedade escravocrata configuram regra e não exceção na história dos oprimidos. Para o filósofo judeu, a tarefa do historiador consiste sempre em “trazer à tona novas identidades, fazer uma outra leitura dos documentos, colocar possibilidades novas de diálogo entre presente e passado”, o que significa “romper com a concepção mecanicista e linear da história”. Trata-se, em síntese, de compreender a história como algo “aberto” e, em virtude disso, como algo que suscita diversas interpretações, de modo que nada do que aconteceu possa ser considerado “perdido” para a história (TURINI, 2004TURINI, Leide Alvarenga. A crítica da história linear e da ideia de progresso: um diálogo com Walter Benjamin e Edward Thompson. Educação e filosofia, v. 18, n. 35-36, p. 93-125, jan./dez. 2004., p. 110).

Para estabelecer a linha de raciocínio que orientará a discussão, observar-se-ão, incialmente, cinco características que, de acordo com Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016., servem para ilustrar o que se poderia considerar como campo na atualidade:

  1. O dispositivo excepcional que causa a sua abertura pode ser acionado de diversas maneiras, seja pela via legiferante, seja pela via administrativa, seja pela via policial, ou mesmo por uma via meramente discursiva;

  2. Ainda que em tese resulte da suspensão temporal do ordenamento jurídico, o campo tende a adquirir uma disposição espacial permanente;

  3. O campo designa um espaço de indeterminação jurídica, no qual o que diz a lei e o que é permitido ou proibido não estão bem definidos;

  4. Em razão da característica anterior, o transeunte do campo fica inteiramente submisso à decisão de quem, nesse espaço, exerce o poder enquanto “soberano”;

  5. A estrutura de exceção que permite perceber a abertura e a presença do campo é modulável, é capaz de reciclar-se e adaptar-se a distintas situações, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contextos diversos.

Portanto, cabe demonstrar de que modo a empresa contemporânea pode constituir-se em uma espécie de campo, ao transformar-se em espaço de exceção que permite a perpetuação (permanente) das mais abjetas formas de escravidão, assumindo uma a uma as características elencadas por Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016..

Quanto à primeira característica, Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016. destaca que o dispositivo excepcional que causa a sua abertura pode ser acionado de diversas maneiras, seja pela via legiferante, seja pela via administrativa, seja pela via policial, ou mesmo por uma via meramente discursiva. Como veremos, tendo em vista a escravidão contemporânea no Brasil, pode-se perceber que todos estes mecanismos de acionamento podem e são utilizados nos mais diversos momentos. Especialmente pela via administrativa institucional, pela qual o próprio Estado permite ou mesmo impulsiona tal prática, exercendo seu típico biopoder.

É, portanto, no contexto biopolítico que se pode questionar: de que modo é possível que tais práticas se constituam em uma tradição que perdura por séculos no país? Por que as leis trabalhistas – e penais – já existentes no Brasil, assim como os Tratados Internacionais protetivos, não são suficientes para resguardar os direitos dos trabalhadores? Por que a Constituição Federal não age em um campo suficientemente abrangente para resguardar de maneira efetiva os direitos de seus cidadãos? Como é possível ser o Brasil um dos países que aplicam medidas para acabar com os regimes de escravidão, e ainda apresentar, de acordo com Borba e Camara (2016)BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos Humanos e a questão do trabalho em condições análogas à de escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, v. 14, n. 6, p. 18-36, maio/ago. 2016., em torno de 155.300 pessoas que vivem em tais situações? Tais questionamentos colocam no centro do debate a atuação estatal, e mais do que isto, a questionam: a quem de fato se curvam os interesses do Estado?

Um exemplo neste sentido refere-se à recente recusa do governo brasileiro em publicar a chamada “Lista Suja” do trabalho escravo. Chamada oficialmente de “cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo”, constitui-se em um importante instrumento de combate ao trabalho escravo. Sua publicação estava suspensa desde 2014, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou o pedido feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), argumentando que não havia a garantia do direito de defesa das empregadoras. Seguiu-se um debate judicial que culminou na edição de alterações na forma como a lista seria divulgada, agora contendo apenas os nomes dos empregadores com todos os recursos administrativos esgotados.4 4 Documento disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/29/politica/1490822084_983546. html>. Acesso em: 29 fev. 2017. Cumprindo-se as exigências do STF para a divulgação da lista, o Governo Federal recusou-se a publicá-la, o que só ocorreu mediante liminar concedida ao Ministério Público do Trabalho, obrigando que o documento, elogiado pela Organização das Nações Unidas, voltasse a se tornar público.

Ora, tal posicionamento pode ser claramente encarado como uma chave permissiva, de abertura para espaços permanentes de exceção dos quais se originam campos, neste caso específico, empresas-campos, espaços nos quais a massificação dos lucros e da produtividade se dá pela exploração, autorizada, de vidas transformadas em “vidas nuas”. Deste modo, considera-se que a característica abordada por Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016. é preenchida no caso da escravidão contemporânea no Brasil. Aqui, especialmente a atuação estatal/administrativa constitui-se em dispositivo capaz de acionar a abertura do estado de exceção – revelando a indiscernibilidade entre direito e violência, uma vez que esta abertura se dá em plena vigência do texto constitucional de 1988 – e dar início aos chamados campos ou, mais especificamente, autorizando as empresas-campo a se instaurem e se perpetuem em nome da maximização do lucro, sob a lógica do biopoder.

Como observa Figueira (2000FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Por que o trabalho escravo? Estudos avançados, v. 14, n. 38, p. 31-50, 2000. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9503/11072>. Acesso em: 7 set. 2017.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 36), ao abordar o tema do trabalho escravo em fazendas do norte do país, nunca, no Brasil, os governos – militar ou civil – atacaram o problema do trabalho escravo de frente, agindo sempre de “forma pontual, libertando escravizados, interceptando o tráfico de pessoas, multando empresas pela violação das leis trabalhistas, mas muito raramente utilizaram medidas de direito penal”. Nesse contexto, “o crime de desrespeito aos direitos humanos não foi coibido nem recebeu punição, mesmo nos casos em que houve violência física, tortura e homicídio”. No que diz respeito às ações preventivas, estas, na ótica do autor, também sempre deixaram a desejar, uma vez que “não houve medidas estruturais como, por exemplo, uma legislação que permitisse a expropriação do imóvel envolvido no crime”. Com efeito, nos casos denunciados, “existia a possibilidade legal da desapropriação, que raramente era feita”, e, quando feita, a medida “era acompanhada por cálculos do valor do imóvel acima do valor do mercado, premiando o proprietário em vez de puni-lo”.

Tal fato não passou despercebido à CorteIDH no Caso Fazenda Brasil Verde. Na sentença condenatória restou evidenciado que, mesmo tendo a Fazenda passado por 12 fiscalizações do Ministério do Trabalho, nas quais foram denunciadas irregularidades e graves violações de direitos humanos dos trabalhadores – que levaram, inclusive, ao resgate de alguns deles –, o Estado Brasileiro, mesmo ciente da gravidade do quadro, nunca condenou ninguém e tampouco tomou medidas contundentes no sentido de prevenir outras violações. Em virtude disso, a CorteIDH entendeu que foram cumpridos todos os requisitos para a responsabilidade do Brasil por omissão, a saber: “i) a existência de um risco real e imediato; ii) o conhecimento estatal deste risco; iii) a especial situação das pessoas afetadas, e iv) as possibilidades razoáveis de prevenção” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
, p. 57-58).

Diante disso, o órgão jurisdicional do SIDH concluiu que:

no período entre a denúncia e a fiscalização, o Estado não conseguiu coordenar a participação da Polícia Federal ativamente na referida fiscalização, além da função de proteção da equipe do Ministério do Trabalho. Tudo isso demonstra que o Estado não atuou com a devida diligência requerida para prevenir adequadamente a forma contemporânea de escravidão constatada no presente caso e que não atuou como razoavelmente era de se esperar, de acordo com as circunstâncias do caso, para pôr fim a esse tipo de violação (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
, p. 89-90).

A segunda característica do campo contemporâneo, conforme apontado por Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016., vincula-se ao fato de que, ainda que em tese este resulte da suspensão temporal do ordenamento jurídico, o campo tende a adquirir uma disposição espacial permanente. Novamente aqui, a empresa-campo, perpetuadora do estado de exceção da escravidão pode ser enquadrada: tanto no que concerne às empresas empregadoras quanto aos seres humanos, já muito mais próximos de verdadeiros homines sacri, a vinculação ao campo no qual prevalece a exceção tende a se perpetuar, e tornar-se permanente.

No caso dos trabalhadores, pesquisa realizada pela OIT (2011) revelou que, dos entrevistados, 59,7% das pessoas encontradas em condição de trabalho escravo já haviam passado por essa situação anteriormente, configurando uma alta taxa de reincidência. Destes, 44,5% foram impedidos de deixar o serviço porque não lhes foi fornecido transporte à fazenda que é distante ou de difícil acesso; dívidas impediram o abandono para 32,8%; a existência de seguranças armados foi motivo para 15,1% dos trabalhadores; e castigos físicos foram relatados por 11,8%.

Para compreender tal quadro, deve-se considerar os fatores que permeiam a partida dos jovens que acabam enredados nas teias do aliciamento e do endividamento que os aprisionam a condições degradantes de trabalho e, paralelamente, o processo de desenraizamento social, no qual, aos poucos, são apagados os laços com a família deixada para trás e com os seus lugares de origem.

Normalmente, enfatiza Costa (2008)COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008., o trabalhador escravizado é jovem, vindo do meio rural ou das periferias das grandes cidades, ou ainda migrantes. A precária situação econômica pressiona a família que, sem condições de manter todos os membros, transforma a procura por trabalho, qualquer que seja, em necessidade. Impulsionado pela fuga da miséria, ou pelo sonho de enriquecer, são recrutados e aliciados por empregadores ou por seus prepostos, chamados de “gatos”, e convidados a trabalhar em regiões distantes de seu domicílio. Inicia-se aí um processo contínuo de endividamento e isolamento, aprofundado pela retenção de documentos, vigilâncias e ameaças constantes, constituindo uma situação degradante e cerceadora da liberdade dos trabalhadores (COSTA, 2008COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008.).

À medida que as tarefas para as quais foram recrutados terminam, eles permanecem sem ter como sair do local ou são abandonados nas cidades próximas sem dinheiro. Muitos perdem completamente o contato com seu local de origem e famílias, o que, agravado pela vergonha do insucesso econômico e a desmoralização a que foram submetidos, impede a sua volta. Sem dinheiro e desligados dos laços de pertencimento, são acolhidos novamente em pequenas pousadas, onde assumem novas dívidas que serão novamente pagas por um “gato”. É reiniciado o círculo vicioso do endividamento, e os trabalhadores tornam-se, assim, “peões de trecho”.5 5 O “peão de trecho” refere-se ao trabalhador que, sem residência fixa, sobrevive de trabalhos temporários. Entre um trabalho e outro, ele permanece em algum município em busca de novas oportunidades, desligado das antigas relações familiares e sem construir novas. Nesse trânsito constante, ele cria débitos em pensões e bordéis, mantendo-se preso à rede de endividamento e ao trabalho coercitivo. Em geral, o “peão-de-trecho” é analfabeto, sem qualificação profissional e tem problemas de alcoolismo (COSTA, 2008). Nesta espiral,

o trabalho escravo gera o isolamento afetivo econômico e geográfico do trabalhador. Transformado no “peão de trecho”, ele é desconectado dos laços sociais que o tornavam parte de um todo que conferia sentido às suas ações. Cativo da rede do endividamento progressivo, o “peão de trecho” personifica, desse modo, o desenraizamento social que acirra a vulnerabilidade do trabalhador e o torna um não-cidadão, destituído de importância social e valor político (COSTA, 2008COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008., p. 187).

Estabelece-se, desse modo, o ciclo da escravidão contemporânea, no qual os trabalhadores permanecem sem se inserir em outra opção de sobrevivência (COSTA, 2008COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008.). No entanto, não são apenas os trabalhadores que se tornam permanentemente enredados nas teias do estado de exceção estabelecidos pelas empresas-campo. Estas, do mesmo modo, tendem a repetir e perpetuar esta situação ao longo de sua existência.

Como demonstra o emblemático caso que originou a condenação do Estado Brasileiro diante da CorteIDH, na Fazenda Brasil Verde, “i) existiam ameaças de morte aos trabalhadores que queriam abandonar a fazenda; ii) os trabalhadores eram impedidos de sair livremente; iii) não existiam salários ou estes eram ínfimos; iv) existia endividamento com o fazendeiro, e v) as condições de moradia, saúde e alimentação eram indignas”. Sobre esses fatos, a CIDH já havia concluído “que o dono e os administradores da fazenda dispunham dos trabalhadores como se fossem de sua propriedade” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
, p. 57).

Quanto à terceira característica: o campo designa um espaço de indeterminação jurídica, onde o que diz a lei e o que é permitido ou proibido não estão bem definidos, esta, claramente pode ser vislumbrada na realidade brasileira. Como afirmam Borba e Camara (2016BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos Humanos e a questão do trabalho em condições análogas à de escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, v. 14, n. 6, p. 18-36, maio/ago. 2016., p. 20), “o Brasil é um dos países que aplicam medidas para acabar com os regimes escravocratas de trabalho, no entanto, ainda apresenta juridicamente dificuldades para objetivar essa realidade, e dentre brechas legais, localizar e combatê-la”.

Nesta esfera, cabe destacar as infindáveis disputas legislativas, judiciais e discursivas sobre o que, de fato, constitui o chamado trabalho escravo contemporâneo. A respeito dos muitos resgates de trabalhadores divulgados no Brasil, na maioria das vezes não fica claro sobre o que exatamente está se tratando, uma penumbra que atinge também a literatura sobre o tema, o campo legislativo e o campo judicial (GOMES; LEMOS, 2013GOMES, Geise do Socorro Lima; LEMOS, Flávia Cristina Silveira. A constituição do trabalho escravo como um acontecimento. Revista Polis e Psique, v. 3, n. 1, p. 66-79, 2013.).

De um modo geral, as denúncias apontam situações de falta de cumprimento dos direitos trabalhistas, configurados nas extensas horas de trabalho, sem pagamento; falta de registro da carteira; condições de higiene e salubridade inadequadas; e violências cometidas pelos empregados dos contratantes/fazendeiros/empresários, práticas diversas de tortura: chicoteamento, coronhadas, acorrentamento, partes do corpo mutiladas, assassinatos e humilhações verbais e ameaças, tudo acompanhado pela presença de “seguranças”, como elemento que garantiria da coerção. Por conta desta variedade de violências e seus contextos, cada prática ganha visibilidade com uma denominação, dependendo do contexto em que se dão (GOMES; LEMOS, 2013GOMES, Geise do Socorro Lima; LEMOS, Flávia Cristina Silveira. A constituição do trabalho escravo como um acontecimento. Revista Polis e Psique, v. 3, n. 1, p. 66-79, 2013.).

É com base nesta confusão, em muito proposital, entre o significado dos termos, especialmente aquela entre trabalho escravo e trabalho análogo ao escravo, que o biopoder, tem recorrentemente atacado a imposição de limites à exploração do trabalho. Em alguns casos, fala-se simplesmente que não há trabalho escravo no Brasil (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil. 2011. Disponível em: <http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/forced_ abour/doc/perfil_completo_624.pdf>. Acesso em: 29 fev. 2017.
http://www.oit.org.br/sites/default/file...
), em outros, produzem-se ataques à legislação brasileira, criticando os conceitos nela empregados. Atualmente, em termos legislativos, o Estado brasileiro instituiu um limite para a existência da própria relação de trabalho, expresso no artigo 149 do Código Penal, já abordado no tópico precedente. Caso seja detectada sua transgressão, deverá ser desfeita a relação.

São diante dos conceitos de trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes, restrição à locomoção etc. que surgem as lacunas, disputas e indeterminações legais que permitem sua perpetuação. Se até o momento tem prevalecido a interpretação literal do artigo, que apresenta o fator degradante como condição suficiente para caracterização da condição análoga à de escravo, há correntes que defendem a interpretação de que só haveria tal condição com a coerção individual direta do empregador.6 6 Sales e Filgueiras (2013) destacam o caso que envolvia trabalhadores que cuidavam de um zoológico, alojados em barracão de lona, e no qual a sentença de um Juiz Federal assim estabeleceu: “não há evidências de que os trabalhadores, embora submetidos a condições de trabalho e moradia degradantes, não pudessem abandonar o local no momento em que quisessem”. Conclui que não há crime, que só ocorreria se demonstrada “privação de liberdade, isto é, que esteja claro que a vítima só se sujeita ao trabalho porque é impedida de deixar o local, em razão de coação por parte do agente”. Esta segunda opção implicaria desconsiderar que, para além da ação individual da empresa-campo, há sempre uma teia biopolítica que permite o acionamento do estado de exceção e que viabiliza a submissão de trabalhadores à água envenenada por agrotóxicos, aos salários atrasados, aos alojamentos de lona preta, à ausência de banheiros, à inexistência de locais para refeição, à retenção dos salários, ao fornecimento de comida estragada, a jornadas intermináveis; enfim, submete trabalhadores a condições que aqui denominamos de escravidão contemporâneas, transformando-os em vidas nuas, ou seja, descaráveis e, portanto, matáveis.

Essa última percepção ressalta os perigos das interpretações individualizadoras dos casos de escravidão vigentes. Embora cada indivíduo seja portador de um valor singular, tal história não se resume às ações e aos fatos referentes ao sujeito singular, mas sim, expõe uma trama cultural, social, política e econômica na qual estruturas de biopoder interagem.

Nesse ponto, a CorteIDH, no julgamento do Caso Fazenda Brasil Verde, salientou, manifestando concordância com o decidido pelo Tribunal Especial para Serra Leoa e a Corte de Justiça da Comunidade Econômica da África Ocidental, assim como pelo Tribunal Penal Internacional ad hoc para a antiga Iugoslávia,

que, para determinar uma situação como escravidão nos dias atuais, deve-se avaliar, com base nos seguintes elementos, a manifestação dos chamados “atributos do direito de propriedade”: a) restrição ou controle da autonomia individual; b) perda ou restrição da liberdade de movimento de uma pessoa; c) obtenção de um benefício por parte do perpetrador; d) ausência de consentimento ou de livre arbítrio da vítima, ou sua impossibilidade ou irrelevância devido à ameaça de uso da violência ou outras formas de coerção, o medo de violência, fraude ou falsas promessas; e) uso de violência física ou psicológica; f) posição de vulnerabilidade da vítima; g) detenção ou cativeiro, i) exploração” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
, p. 72).

Se o campo designa um espaço de indeterminação jurídica, onde o que diz a lei e o que é permitido ou proibido não estão bem definidos, conforme vislumbrou-se, a quarta característica do campo contemporâneo é acionada, colocando o andante permanente destes espaços, as vidas abjetas e matáveis, inteiramente submissas à decisão daquele que faz as vezes de soberano. E é ao soberano a quem cabe a competência de decidir sobre o estado de exceção, estando habilitado a decidir sobre a suspensão dos limites e garantias estabelecidos na Constituição na medida em que julgar necessário.

Um exemplo marcante e emblemático para iniciar a reflexão sobre o alcance deste poder sobre a vida totalmente transformada em abjeta é aquele narrado por Costa (2008)COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008.. A autora refere-se ao caso de um trabalhador escravizado que, após uma tentativa de fuga, foi capturado por um funcionário da fazenda em que trabalhava, e como punição, ele foi obrigado a realizar sexo oral nesse funcionário diante de todos os trabalhadores, configurando-se uma carga simbólica de degradação não apenas física, mas moral até então inimagináveis, e que só se tornam possíveis porque na outra ponta, ou seja, do lado oposto das vidas matáveis, vislumbra-se o discurso de sustentação do campo impetrado pelo “soberano”. Muitos destes relatos, afirma Costa (2008COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008., p. 190), não revelam sequer constrangimentos morais, e revelam a magnitude do poder que os sustenta:

J.A. (fazendeiro) ao receber uma jornalista do Le Monde garantiu que não utilizava mão-de-obra escrava. “Manifestou surpresa pela Igreja Católica demonstrar compaixão pelos peões e não por ele, um ‘desbravador’, que, com suor construíra um expressivo patrimônio. Sentia-se injustiçado, pois beneficiava os pobres oferecendo trabalho. Para ele tudo era simples: quem deve é obrigado a pagar, mesmo trabalhando sob coerção física; enquanto não saldar a dívida, deve ser retido na fazenda”.

Da mesma forma, quando seus nomes são incluídos na “lista suja”, tais “soberanos” apresentam-se como indivíduos produtivos, altruístas, desbravadores e pioneiros, cujos empreendimentos buscam o crescimento do país por meio da geração de empregos e impostos, referindo-se às práticas de trabalho escravo e aos mecanismos de controle e coerção exercidos contra os trabalhadores como “irregularidades trabalhistas” corriqueiras.

Neste universo, o exercício do poder não está restrito às relações hierárquicas entre “soberanos” e “escravos”, entre donos de empresas e empregados, entre fazendeiros e seus trabalhadores, mas é parte de uma estrutura maior, marcada pela politização da vida, em que o corpo é o sujeito da política. Nela, a vida natural do homem está implicada nos mecanismos e nos cálculos de poder, o que envolve a decisão sobre as vidas que deixam de ser politicamente relevantes. Sendo irrelevantes e, portanto, destituídas de valor e importância social, tornam-se nuas e, como tal, impunemente eliminadas por um poder soberano que decide sobre seu valor, tal como o exemplo citado anteriormente sobre a violência sexual exercida contra o trabalhador parece revelar: a mais completa desumanização a que estão submetidos os escravos contemporâneos por parte dos que lhe são hierarquicamente superiores.

O poder soberano, nesse sentido, está personificado no fazendeiro, no dono da empresa, no chefe, amparado por uma hierarquia estabelecida no interior destes locais que visa a assegurar o controle, o cuidado e o usufruto das vidas escravizadas, evidenciando a estrutura biopolítica por trás da cadeia de mando dessas propriedades. Tal hierarquia, afirma Costa (2008)COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008., varia segundo a atividade nela desenvolvida e sua abrangência e, por trás (ou acima), está o proprietário, dono absoluto do poder.

Fora dos empreendimentos, a soberania dos proprietários, sejam fazendeiros ou empresários urbanos, é reconhecida pela força política que possuem. Seja por meio da ocupação de cargos eletivos nas esferas de poder municipais, estaduais ou federais, seja, de forma indireta, por possuir estreitos laços com representantes dos seus interesses nos referidos cargos. Além disso, podem contar com a conivência da polícia, que pode atuar como parte dos instrumentos de repressão utilizados contra os trabalhadores.7 7 O sucesso dos fazendeiros que se instalaram no estado do Pará, por exemplo, dependia, em grande medida, da sua capacidade de transformar em seus aliados as polícias militar e civil. As milícias privadas dos fazendeiros são, até hoje, frequentemente formadas e mantidas com a participação de policiais. As principais vítimas das milícias são trabalhadores rurais, religiosos, ambientalistas, militantes em defesa dos direitos humanos e dirigentes sindicais do campo que procuram defender os direitos daqueles com baixas rendas e submetidos à exploração das mais diversas ordens (COSTA, 2008). Tamanha força política e econômica lhes garante impunidade e promove a reincidência, tornando a vida e os corpos dos trabalhadores o local, por excelência, da sua atuação. Deixá-los morrer, ordenando sua execução ou retirando-lhes as condições de sobrevivência (água, comida, alojamento, cuidados médicos), torna-se “prática corriqueira” plenamente justificada.

Neste modelo, a desumanização se dá pela redução do escravo a um conjunto de estereótipos negativos compartilhados pelos “soberanos”, e que passam a justificar sua exploração. Perigoso, preguiçoso, vingativo, mentiroso, bêbado e desrespeitador das famílias, como apontou Costa (2008)COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008., são adjetivos utilizados para (des)qualificá-los e, com isso, remetê-los à figura do estranho, do estrangeiro ou daquele que é “de fora”. São estes os estigmas que acompanham aqueles desconectados dos laços sociais reconhecidos como positivos, e tal qual os imigrantes estrangeiros ilegais, os trabalhadores escravos passam a figurar na condição de não cidadãos (COSTA, 2008COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008.). Como resultado, a vida, agora estabelecida como vida nua, começa a morrer simbólica ou socialmente a partir do colapso de suas condições, constituindo um não lugar onde todas as barreiras disciplinares acabam ruindo.

Segundo Agamben (2010AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 155), “condenados à morte e habitante do campo são, portanto, de algum modo inconscientemente assemelhados a homines sacri, a uma vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio”. Essas cesuras biopolíticas são apreendidas por Figueira (2000FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Por que o trabalho escravo? Estudos avançados, v. 14, n. 38, p. 31-50, 2000. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9503/11072>. Acesso em: 7 set. 2017.
https://www.revistas.usp.br/eav/article/...
, p. 44), quando salienta que, como pano de fundo do imaginário do escravagista, existe a concepção de que alguns seres humanos são objetos de negociação, podem ser comercializados e dominados, sendo que “a identidade desses homens que se tenta coisificar, pode não ser a cor da pele, nem a religião; mas, a pobreza, a exclusão às riquezas e ao bem-estar, reservados a outros”. Esse quadro revela que “os valores proclamados na Revolução Francesa, ou nas diversas declarações de Direitos Humanos de países e de organismos internacionais, podem ser e continuam sendo letra morta em muitos lugares”.

Nos termos do presente estudo, isso significa dizer que as declarações de direitos, ao mesmo tempo em que podem ser compreendidas como instrumentos de garantia de direitos individuais e liberdades públicas, também podem ser vistas como instrumentos de ressignificação e investimento político da vida nua no corpo do Estado-nação. Essas declarações possuem, por um lado, uma função emancipatória, mas, por outro, elas também integram o dispositivo de abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.; 2010). Assim, “ao lado da função emancipatória das declarações de direitos fundamentais, seria também indispensável perceber que elas integram o dispositivo de abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder” (GIACOIA JUNIOR, 2008GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sobre direitos humanos na era da bio-política. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo Horizonte, n. 118, p. 267-308, 2008., p. 284).

Nesse sentido, no caso Fazenda Brasil Verde, a CorteIDH constatou que:

a partir do momento em que os trabalhadores recebiam o adiantamento em dinheiro por parte do gato, até os salários irrisórios e descontos por comida, medicamentos e outros produtos, originava-se para eles uma dívida impagável. Como agravante a esse sistema, conhecido como truck system, peonaje ou sistema de barracão em alguns países, os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, sob ameaças e violência, vivendo em condições degradantes. Além disso, os trabalhadores não tinham perspectiva de poder sair dessa situação em razão de: i) a presença de guardas armados; ii) a restrição de saída da Fazenda sem o pagamento da dívida adquirida; iii) a coação física e psicológica por parte de gatos e guardas de segurança e iv) o medo de represálias e de morrerem na mata em caso de fuga. As condições anteriores se potencializavam em virtude da condição de vulnerabilidade dos trabalhadores, os quais eram, em sua maioria, analfabetos, provenientes de uma região muito distante do país, não conheciam os arredores da Fazenda Brasil Verde e estavam submetidos a condições desumanas de vida (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 79).

Por fim, quanto à quinta característica, Nascimento (2016)NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016. afirma que a estrutura de exceção que permite perceber a abertura e a presença do campo é modulável, capaz de reciclar-se e adaptar-se a distintas situações, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contextos diversos, mas sempre perdurar. Esta característica, especialmente, é uma das que mais tem marcado os processos de escravidão, desde os tempos mais remotos até os dias atuais: sua capacidade de adaptação e sobrevivência.

Como núcleo comum do fenômeno, Borba e Camara (2016)BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos Humanos e a questão do trabalho em condições análogas à de escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, v. 14, n. 6, p. 18-36, maio/ago. 2016. apontam a submissão a um trabalho forçado, ameaças de punição, uso de coação, restrição da liberdade pessoal, retenção do trabalhador no local de trabalho, por meio de vigilância ostensiva ou da apropriação de seus documentos e de seus objetos pessoais, e sua configuração se foca na privação da liberdade. A escravidão moderna, portanto, pode assumir várias formas, sendo chamada de tráfico humano, trabalho forçado, escravidão ou práticas análogas, servidão por dívida, casamento forçado, venda e/ou exploração de crianças, dentre outros.

Além destas diversidades, no Brasil as situações ocorrem tanto na zona rural do país, nas áreas da pecuária, da exploração madeireira, da mineração e das plantações de cana-de-açúcar, quanto na zona urbana, especialmente na fabricação de vestuário8 8 Os flagrantes são comuns no setor de confecções de roupas. Nos últimos anos, há diversos exemplos de resgates de empregados que trabalhavam para a Zara, C&A, Marisa, Pernambucanas, GAP, dentre outras grandes marcas nacionais e internacionais. Para ilustrar as condições de trabalho impostas, foi constatado em São Paulo, em 2010, que a rede de lojas Marisa estava diretamente articulada à exploração criminosa de 16 bolivianos e um peruano – endividados, sem carteira assinada, alojados em local com instalações elétricas expostas e extintores vencidos ao lado de tecidos. As jornadas de trabalho começavam às 7h e chegavam até as 21h (HASHIZUME, 2010). e na construção civil, com a mão de obra caracterizada pela migração de regiões pobres do país, ou de migrantes internacionais, buscando maiores e melhores oportunidades de vida.

Diante de um fenômeno mutante, mas persistente, Borba e Camara (2016)BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos Humanos e a questão do trabalho em condições análogas à de escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, v. 14, n. 6, p. 18-36, maio/ago. 2016. reafirmam as diferenciações entre a época da escravidão legal, nos séculos passados, e a escravidão ilegal atual. Agora, a forma de trabalho escravo mais encontrada no país é a da servidão por dívida. Na escravidão histórica, o custo de conseguir um escravo era alto, fazendo com que ele fosse considerado um investimento a ser amortizado com o passar dos anos. Os “novos” escravocratas não precisam investir muito para conseguir mão de obra. Basta o anúncio de uma “oportunidade de emprego” e vários trabalhadores farão fila para segui-los. Em comum, ambos se assemelham no que toca ao trabalho forçado ou obrigatório, em que sua liberdade é tolhida e o seu direito de ir e vir é monitorado por pistoleiros ou “gatos” armados, feito os capitães do mato de outrora, e ainda em relação às condições degradantes de habitação, em que os alojamentos de lona de plástico ou palha são espécies de senzalas, cuja alimentação é deficiente, as instalações sanitárias são precárias e a água bebida não é potável.

Um fato, porém, que merece destaque, afirmam Borba e Camara (2016BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos Humanos e a questão do trabalho em condições análogas à de escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, v. 14, n. 6, p. 18-36, maio/ago. 2016., p. 26), é que apesar de as diferenças étnicas não serem mais fundamentais na escolha da mão de obra, há uma maior incidência de negros que as demais etnias. Isso ocorre “devido ao histórico social de desigualdade da população negra, realidade que não se alterou substancialmente mesmo após a assinatura da Lei Áurea”, visto que “o Estado e a sociedade não garantiram condições para os libertos poderem efetivar sua cidadania, o que ocasionou, atualmente, na existência de mais negros pobres do que brancos pobres no Brasil”. A seleção dos “escravos modernos” dá-se, principalmente, pelo nível socioeconômico mais humilde e, por isso, existe a predominância de pessoas negras em tal situação de trabalho, mesmo que a raça não seja mais considerada um pré-requisito (BORBA; CAMARA, 2016BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos Humanos e a questão do trabalho em condições análogas à de escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, v. 14, n. 6, p. 18-36, maio/ago. 2016., p. 26).

Trata-se, aqui, evidentemente, da “discriminação estrutural” revelada e considerada pela CorteIDH no julgamento do Caso Fazenda Brasil Verde. Em seu Voto Fundamentado, o juiz da CorteIDH, Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, coloca o tema da escravidão contemporânea no Brasil como uma espécie de “herança histórica” decorrente da incapacidade do Estado em efetivamente erradicar essa modalidade de violência, elucidando o conceito de “discriminação estrutural” utilizado no julgamento:

apesar de a escravidão ter sido abolida (1888), a pobreza e a concentração da propriedade das terras foram causas estruturais que provocaram a continuação do trabalho escravo no Brasil e, ao não terem terras próprias nem situações laborais estáveis, muitos trabalhadores no Brasil se submetiam a situações de exploração, aceitando o risco de cair em condições de trabalho desumanas e degradantes. Em 2010, a OIT considerou que existiam aproximadamente 25.000 pessoas submetidas a trabalho forçado no território brasileiro. Além disso, foi provado que a maior quantidade de vítimas de trabalho escravo no Brasil são trabalhadores originários das regiões dos estados que se caracterizam por serem os mais pobres, com maiores índices de analfabetismo e de emprego rural (Maranhão, Piauí, Tocantins), entre outros. Os trabalhadores destes estados se dirigem àqueles com maior demanda por trabalho escravo: Pará, Mato Grosso e Tocantins. Os trabalhadores, em sua maioria homens pobres, afrodescendentes ou mulatos, entre 18 e 40 anos, são recrutados em seus estados de origem por “gatos” para trabalhar em Estados longínquos, com a promessa de salários atrativos (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
, p. 27).

Com efeito, no julgamento do Caso em comento, pela primeira vez a CorteIDH reconheceu que os fatos que deram origem à denúncia perante o SIDH estavam diretamente relacionados à posição econômica das vítimas que se encontravam na Fazenda Brasil Verde. No parágrafo 339 da sentença, a CorteIDH reconhece que os trabalhadores se encontravam em uma situação de pobreza, que provinham das regiões mais pobres do país – e, consequentemente, com menor desenvolvimento humano e perspectivas de trabalho e emprego –, que eram analfabetos e tinham pouca ou nenhuma escolarização, situação que “os colocava em uma situação que os tornava mais suscetíveis de serem aliciados mediante falsas promessas e enganos”. Trata-se, segundo a CorteIDH, de uma situação que “possui origens históricas e era conhecida, pelo menos, desde 1995, quando o Governo do Brasil expressamente reconheceu a existência de ‘trabalho escravo’” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
, p. 89).

O que se vislumbra deste cenário é que, apesar das diferenças conjunturais, históricas e sociológicas entre as diversas formas de escravidão surgidas ao longo do tempo, e aquelas que existem atualmente, é possível vislumbrar, em todas, o caráter extremamente exploratório do trabalho, e mais do que isso, o caráter biopolítico que configura a vida produtiva no Brasil. Por isso, o trabalho escravo contemporâneo não pode ser analisado apenas como mais um crime, ou uma prática isolada, mas é parte de uma estratégia de poder estatal/capitalista que estabelece no “fazer viver e deixar morrer” biopolítico sua estratégia de perpetuação, enquanto estratégia modulável, cuja exceção que dá ensejo ao campo é capaz de reciclar-se e adaptar-se a distintas situações, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contextos diversos, mas sempre perdurar.

Considerações finais

O presente artigo, a partir do marco teórico descortinado pela biopolítica – conforme delineada pela obra foucaultiana e (re)visitada na contemporaneidade pela filosofia de Giorgio Agamben – buscou compreender em que medida, na contemporaneidade, a empresa que se utiliza da mão de obra escrava pode ser equiparada a um “campo”, permitindo o neologismo “empresa-campo” para designar espaços de exceção no que se refere às normas – nacionais e internacionais – de proteção dos direitos do trabalhador. Como método de abordagem do tema, utilizou-se o estudo de caso, a partir da análise da sentença proferida pela CorteIDH no julgamento do Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil.

A partir da análise das categorias filosóficas empregadas na pesquisa (biopolítica e estado de exceção, nos termos cunhados pelo projeto filosófico agambeniano), permitiu-se evidenciar que o espaço “empresa-campo” se abre, no Brasil, no momento em que se reúnem algumas condições/características, todas presentes no Caso analisado, e que permitem compreender como o direito, articulado às relações de exploração/dominação que o constituem e o produzem, faz parte do processo de produção da vida nua.

Nesse sentido, foi possível constatar, primeiramente, que o dispositivo responsável pela abertura desses espaços pode ser acionado de diversas maneiras – legiferante, administrativa, policial, ou mesmo por uma via meramente discursiva. No caso brasileiro, entende-se que todas elas viabilizam a criação de espaços de exceção no que se refere à produção da “vida nua” do trabalhador. No caso específico analisado (Fazenda Brasil Verde), ficou demonstrado que a exceção foi criada na medida em que o Estado brasileiro, mesmo ciente das condições degradantes de trabalho no âmbito da fazenda de gado situada no norte do país – revelada pelas constantes fiscalizações ocorridas no local a partir da atuação do Ministério do Trabalho –, manteve-se inerte no que se refere à tomada de medidas contundentes para cessar/evitar as violações. Eis a indiscernibilidade entre direito e violência que caracteriza o estado de exceção agambeniano.

No que diz respeito ao critério temporal, demonstrou-se que, ainda que o campo, em tese, resulte da suspensão temporal do ordenamento jurídico, ele tende a adquirir uma disposição espacial permanente. Isso significa, no caso do trabalho escravo no país, que – mesmo tendo sido empreendidos esforços no sentido de sua erradicação – trata-se de prática que, de fato, acompanha a história do país mesmo após a “abolição” da escravidão pela Lei Áurea. Jamais o trabalho escravo – nas suas diversas modalidades – deixou de existir no Brasil, o que ficou reconhecido na sentença proferida pela CorteIDH no caso analisado.

Também se evidenciou que o campo designa um espaço de indeterminação jurídica, ou seja, um espaço no qual o texto da lei e o que é permitido ou proibido não estão bem definidos, o que se revela, no caso do trabalho escravo no Brasil, a partir da incapacidade do Estado – pela via legal e administrativa – em efetivamente “alcançar” os espaços de violação de direitos dos trabalhadores em situação de escravidão. Trata-se, aqui, concomitantemente, da constatação da quarta característica que permite evidenciar uma situação de campo na contemporaneidade, ou seja, aferir em que medida o indivíduo capturado neste espaço fica inteiramente submisso à decisão de quem, nele, exerce o poder na condição de “soberano”. No caso investigado, a CorteIDH permitiu compreender a presença, na Fazenda Brasil Verde, de um espaço anômico, na medida em que os trabalhadores nela capturados subsistiam em condições de extrema vulnerabilidade, absolutamente vinculados à figura dos “soberanos” que impediam a sua saída do espaço, utilizando-se, para tanto, da estratégia do endividamento.

Por fim, restou evidenciado que a estrutura de exceção que permite perceber a abertura e a presença do campo é modulável, ou seja, é capaz de reciclar-se e adaptar-se a distintas situações, sofrer metamorfoses, encontrar formas diversas em contextos diversos. Essa característica é justamente aquela que permite que o trabalho escravo seja uma realidade ainda presente na sociedade brasileira, revelando aquilo que pioneiramente foi levado em consideração pela CorteIDH no julgamento do caso: a discriminação estrutural. Revela-se, aqui, a importância deste julgado, na medida em que constitui o primeiro caso no qual o órgão jurisdicional do SIDH reconheceu e determinou expressamente a responsabilidade internacional de um Estado por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão.

Feitas essas considerações, é possível asseverar, em síntese conclusiva, que a utilização do trabalho escravo no Brasil contemporâneo permite uma aproximação ao conceito de “campo” desenvolvido pela obra filosófica de Giorgio Agamben, na medida em que se compreende que – conforme sobejamente demonstrado a partir do Caso Fazenda Brasil Verde versus Brasil, julgado pela CorteIDH – ainda vigem no país espaços nos quais a vontade do “soberano” em auferir lucros não encontra barreira alguma, de modo que os trabalhadores inseridos nesses espaços transformam-se em meros “objetos”, vidas absolutamente descartáveis, a serviço desse projeto.

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    Como dispositivo, “compreende uma rede, que pode ser composta de elementos heterogêneos articulados, que envolve uma disposição estratégica inscrita em um jogo de poder, destinada a capturar e controlar todo gesto e toda palavra dos viventes” (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, Daniel Arruda. A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 28, p. 19-35, 2016., p. 21). Dispositivo é, portanto, uma armadilha que visa à captura, gerando atração e podendo assumir diferentes aspectos a depender da conjuntura na qual está inserido; uma vez estabelecida a captura, o dispositivo estabelece uma relação de dependência e fazer cair em um círculo vicioso que se presume invencível.
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    Para a compreensão da sua acepção de “vida nua”, Agamben (2010)AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010. faz uma releitura da filosofia clássica, a fim de trazer à luz os conceitos de zoé e bíos. Nessa dicotomia, zoé designa o simples fato de viver, ou seja, a mera existência enquanto vida nua, ao passo que bíos designa a “vida qualificada”, a vida do indivíduo ou do grupo. A retomada dessa distinção serve para ilustrar justamente a condição de determinados seres humanos na contemporaneidade, evidenciando a relação inclusão (daqueles que vivem uma vida “qualificada”) versus exclusão (daqueles que são relegados à condição de banimento, ou seja, que vivem uma vida “desqualificada”) que caracteriza a política contemporânea.
  • 3
    Mesmo não sendo objeto da presente pesquisa, cumpre salientar que a proposta de Agamben, ao empreender a pesquisa Homo Sacer (desenvolvida nas obras: Homo Sacer I – O poder soberano e a vida nua [2010], Estado de exceção [2004] e O que resta de Auschwitz [2008]), é justamente preencher uma “lacuna” deixada pelas investigações desenvolvidas por Michel Foucault e Hannah Arendt. Segundo Agamben (2010)AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010., Foucault, mesmo tendo definido o conceito de biopolítica, deixou de lado a análise do campo de concentração que, na sua ótica, como salientado, apresenta-se como expressão por excelência da biopolítica moderna; Arendt, por sua vez, mesmo tendo elaborado um aprofundado estudo acerca do fenômeno do totalitarismo, em nenhum momento debateu o assunto a partir de uma perspectiva biopolítica.
  • 4
    Documento disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/29/politica/1490822084_983546. html>. Acesso em: 29 fev. 2017.
  • 5
    O “peão de trecho” refere-se ao trabalhador que, sem residência fixa, sobrevive de trabalhos temporários. Entre um trabalho e outro, ele permanece em algum município em busca de novas oportunidades, desligado das antigas relações familiares e sem construir novas. Nesse trânsito constante, ele cria débitos em pensões e bordéis, mantendo-se preso à rede de endividamento e ao trabalho coercitivo. Em geral, o “peão-de-trecho” é analfabeto, sem qualificação profissional e tem problemas de alcoolismo (COSTA, 2008)COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008..
  • 6
    Sales e Filgueiras (2013)SALES, Jeane; FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Trabalho análogo ao escravo no Brasil: natureza do fenômeno e regulação. Revista da ABET, v. 12, n. 2, p. 29-47, 2013. destacam o caso que envolvia trabalhadores que cuidavam de um zoológico, alojados em barracão de lona, e no qual a sentença de um Juiz Federal assim estabeleceu: “não há evidências de que os trabalhadores, embora submetidos a condições de trabalho e moradia degradantes, não pudessem abandonar o local no momento em que quisessem”. Conclui que não há crime, que só ocorreria se demonstrada “privação de liberdade, isto é, que esteja claro que a vítima só se sujeita ao trabalho porque é impedida de deixar o local, em razão de coação por parte do agente”.
  • 7
    O sucesso dos fazendeiros que se instalaram no estado do Pará, por exemplo, dependia, em grande medida, da sua capacidade de transformar em seus aliados as polícias militar e civil. As milícias privadas dos fazendeiros são, até hoje, frequentemente formadas e mantidas com a participação de policiais. As principais vítimas das milícias são trabalhadores rurais, religiosos, ambientalistas, militantes em defesa dos direitos humanos e dirigentes sindicais do campo que procuram defender os direitos daqueles com baixas rendas e submetidos à exploração das mais diversas ordens (COSTA, 2008)COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 173-198, jul./dez. 2008..
  • 8
    Os flagrantes são comuns no setor de confecções de roupas. Nos últimos anos, há diversos exemplos de resgates de empregados que trabalhavam para a Zara, C&A, Marisa, Pernambucanas, GAP, dentre outras grandes marcas nacionais e internacionais. Para ilustrar as condições de trabalho impostas, foi constatado em São Paulo, em 2010, que a rede de lojas Marisa estava diretamente articulada à exploração criminosa de 16 bolivianos e um peruano – endividados, sem carteira assinada, alojados em local com instalações elétricas expostas e extintores vencidos ao lado de tecidos. As jornadas de trabalho começavam às 7h e chegavam até as 21h (HASHIZUME, 2010)HASHIZUME, Maurício. Escravidão é flagrada em oficina de costura ligada à Marisa. Repórter Brasil, 17 de março de 2010. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1714&name=Escravidão-é-flagrada-emoficina- de-costura-ligada-à-Marisa>. Acesso em: 20 abr. 2017.
    http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.p...
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2017
  • Aceito
    09 Mar 2018
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