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O direito à cidade sob uma perspectiva jurídico-sociológica

The right to the city from a legal and sociological perspective

Resumo

O artigo propõe um conceito jurídico de direito à cidade sob uma perspectiva jurídico-sociológica. O conceito de cidade “justa e sustentável” é desenvolvido a partir da concepção do direito à cidade como utopia, proposta por Henri Lefebvre, e dos estudos sobre práticas urbanas de mobilização social, realizados por Manuel Castells. Com base no método do humanismo dialético apresentado por Roberto Lyra Filho, a legitimidade do Direito é construída dialeticamente a partir do processo de libertação do indivíduo à medida em que ele afirma histórica e socialmente novos direitos em contradição com as liberdades já estabelecidas. Assim, o conteúdo jurídico do direito à cidade é definido a partir das lutas dos movimentos sociais urbanos que buscam afirmar seus direitos em cada etapa histórica. O direito a uma cidade justa é concebido, neste momento histórico, como o direito político de interferir nas decisões acerca do uso do território e de participar da produção do espaço urbano no sistema capitalista de produção.

Direito à cidade; humanismo dialético; Roberto Lyra Filho; movimentos sociais urbanos; utopia

Abstract

The article proposes a legal concept of the right to the city from the legal and sociological perspective. The utopian concept of the right to the city proposed by Henri Lefebvre, associated to Manuel Castells’ works about urban practices of social mobilization, leads to a definition of the concept of a “just and sustainable” city. Following the method of dialectical humanism presented by Roberto Lyra Filho, the legitimacy of law derives dialectically from the process of liberation of the individual, to the extent that he historically and socially affirms new rights in contradiction with established freedoms. Thus, the search for the legal content of the right to the city lies on the struggles of urban social movements which fight for the recognition of their rights in each historical stage. The right to a just city is conceived, at the current historical moment, as the political right to interfere on decisions about the use of territory and to participate in the production of urban space in the capitalist system of production.

Right to the city; dialectical humanism; Roberto Lyra Filho; urban social movements; utopia

Introdução

A expressão “direito à cidade” aparece na obra homônima publicada por Henri Lefebvre no mesmo ano em que, na França, estudantes iniciaram os protestos conhecidos como o Movimento Estudantil de Maio de 1968. Apoiados por operários e intelectuais, esses movimentos tinham em comum o fato de não se restringirem à luta de classes e ao combate à pobreza econômica, mas reivindicarem o direito de transformar as relações de poder, em suas mais variadas formas. Nesse contexto, o direito à cidade concebido por Lefebvre tem um caráter revolucionário e utópico: ele atribui a crise da cidade ao modelo capitalista de produção que estrutura a sociedade industrial ocidental e propõe uma revolução – não do operariado, mas das forças sociais. A revolução urbana de Lefebvre se dirige contra o Estado e pressupõe a substituição do valor de uso – baluarte da ideologia capitalista – pelo valor de troca. O direito à cidade a ser garantido por essa revolução é o direito de participar da vida urbana, compreendida como simultaneidade e centralidade, produção e fruição da obra humana.

No Brasil, o slogan do Movimento Estudantil “é proibido proibir” foi título de música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, apresentada no Festival Internacional da Canção de 1968, ano em que a ditadura militar iniciava seu período de repressão mais violenta. Aqui, o direito à cidade deixa seu viés comunista (ou anarquista) e ganha outra face. Ele é apropriado pelos movimentos sociais urbanos com uma dupla função: reivindicar direitos sociais (moradia, transporte, trabalho, segurança, lazer, saneamento básico etc.) e afirmar a cidadania por meio da luta democrática. É com essa feição que o direito à cidade passa a ser reconhecido na Constituição Federal de 1988, no capítulo dedicado à política urbana.

A partir de então, esse direito passa a ser interpretado juridicamente como um amplo conjunto de direitos sociais que, associado ao direito à dignidade da pessoa humana e ao direito à planificação da cidade por meio de procedimentos formalmente democráticos, garante a qualidade de vida do morador urbano. A compreensão do direito à cidade como um conjunto de outros direitos pode ser bastante útil para a atuação dos movimentos sociais, como forma de reunir reivindicações específicas em uma agenda comum, a exemplo do que aconteceu no Brasil, nas Jornadas de Junho de 2013. Também permite utilizar esse direito como uma categoria para compreensão das lutas dos movimentos sociais urbanos, na Sociologia e na Ciência Política. No Direito, contudo, isso pode se tornar um problema. Ao incluir na esfera normativa do direito à cidade um rol de outros direitos já protegidos pela Constituição, corre-se o risco de subtrair a especificidade desse direito e, ao mesmo tempo, alargar de tal forma o seu âmbito de proteção, que ele acabe se esvaziando. Em outras palavras, o direito à cidade pode perder seu conteúdo jurídico e se transformar em uma espécie de “ferramenta inútil ao operador do direito”.

O fato de que o próprio termo “cidade” é empregado, na maior parte das vezes, de forma naturalizada, contribui para a dificuldade em definir o conteúdo jurídico do direito à cidade. Essa naturalização pode levar à reprodução, no âmbito do Direito, de discursos que refletem valores da estrutura social dominante, entre os quais podemos citar: o discurso esteta, que valoriza a cidade como produto de um desenho arquitetônico; o técnico-burocrático, que deixa a cargo exclusivamente do Estatuto da Cidade e dos planos diretores a adequada promoção do ordenamento territorial; e o naturalista, que encara a cidade como uma ameaça à natureza.

Na contramão desses discursos, surgem estudos jurídicos que buscam integrar as perspectivas social, política e jurídica desse direito. Este artigo, no intuito de colaborar nessa tarefa, propõe um conceito jurídico de direito à cidade a partir de uma abordagem jurídico-sociológica, construída com base na teoria do humanismo dialético, proposta por Roberto Lyra Filho. A escolha dessa abordagem evita a identificação automática entre direito à cidade e direito à ordem urbanística e permite ao Direito contribuir para a reconstrução dessa ordem, a partir do reconhecimento das contradições sociais que caracterizam a disputa pela produção do espaço urbano no sistema capitalista de produção.

O artigo se divide em três seções. A primeira traz uma revisão da literatura sobre o direito à cidade desde a sua primeira acepção – proposta por Lefebvre – até aquelas adotadas contemporaneamente pelas ciências sociais e, dentre elas, o Direito. A segunda apresenta a teoria do humanismo dialético no cenário do direito constitucional contemporâneo. A terceira seção propõe um conceito jurídico do direito à cidade com base no método do humanismo dialético e abre algumas possibilidades de operacionalização desse direito a partir dessa interpretação.

1 Do Movimento Estudantil de Maio de 1968, na França, aos Movimentos por Direitos Sociais, no Brasil: utopia e práticas sociais

Ao traçar a evolução do conceito do direito à cidade na literatura acadêmica a partir dos estudos pioneiros de Lefebvre, Tavolari (2016)TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos, Cebrap, São Paulo, n. 104, p. 93-109, mar. 2016. identifica duas vertentes de pesquisa. A primeira segue na trajetória inaugurada por esse filósofo, de caráter utópico e potencialmente revolucionário, voltada à superação da “miséria urbana” provocada pelos padrões de urbanização da sociedade capitalista industrializada. A segunda – cujo principal representante é Manuel Castells – volta-se ao estudo das práticas urbanas direcionadas à conquista de direitos sociais como forma de construção da cidadania. Para a segunda vertente, as reivindicações por padrões mínimos de vida levariam à mobilização social e, consequentemente, ao aumento da consciência social.

Para compreender bem o pensamento de Lefebvre, vale trazer aqui uma breve síntese das ideias expressas em suas obras O direito à cidade e A revolução urbana, esta última publicada em 1970 (LEFEBVRE, 2001LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2001., 2008LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Tradução de Sérgio Martins. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.). Sintetizando as diversas formas de cidade que a humanidade experimentou em uma linha que vai do momento zero para a urbanização total, Lefebvre identifica quatro fases: (a) a cidade política, realizada no modo de produção asiático, que organizava e mantinha influência sobre os arredores rurais; (b) a cidade comercial, que centralizou o mercado de trocas e criou uma estrutura social baseada no dinheiro e no patrimônio imobiliário; (c) a cidade industrial, nascida junto com o capitalismo, que deslocou o centro de decisão para os que detêm os meios de produção e informação; e, finalmente, (d) a cidade em crise, que se traduz nas moradias precárias, nos subúrbios desconectados do centro da cidade, no esfacelamento do tecido urbano e no superpovoamento das cidades.

Ao explicar as causas que levaram a essa crise, ele distingue três níveis de fenômenos: o nível do habitar, que compreende os fenômenos relacionados à questão da moradia (mas não se resume a eles); o nível da planificação urbana; e o nível do processo de industrialização e urbanização global, que, sob a lógica do capitalismo, transforma a cidade em produto. Este último nível, ao organizar o espaço de maneira coercitiva e homogeneizante, acaba por absorver os dois primeiros, reduzindo o urbano ao valor de troca. Para Lefebvre:

O mundo da mercadoria tem sua lógica imanente, a do dinheiro e do valor de troca generalizado sem limites. Uma tal forma, a da troca e da equivalência, só exprime indiferença diante da forma urbana; ela reduz a simultaneidade e os encontros à forma dos trocadores, e o lugar de encontro ao lugar onde se conclui o contrato ou quase-contrato de troca equivalente: o reduz ao mercado. A sociedade urbana, conjunto de atos que se desenrolam no tempo, privilegiando um espaço (sítio, lugar) e por ele privilegiados, altamente significantes e significados, tem uma lógica diferente da lógica da mercadoria. É um outro mundo. O urbano se baseia no valor de uso. (LEFEBVRE, 2001LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2001., p. 87)

Segundo o autor, a lógica do capitalismo produz uma racionalidade urbana instrumental que se expressa em ideologias: (a) a do formalismo ou estetismo; (b) a da tecnocracia, que prega a planificação estatal; e (c) a do mercado. Essas ideologias, juntas, produzem a estratégia global fundada no consumo programado e controlado. A reversão da crise urbana se daria, então, pela substituição da racionalidade urbana instrumental pela política, pois só essa é capaz de colocar em primeiro plano a forma urbana, definida como a simultaneidade e o encontro em um só lugar das atividades e atos, produtos e bens, obra e criador. Sob esse paradigma, o direito à cidade é concebido como o direito ao encontro, à criação e à participação no processo de construção do espaço urbano.

A leitura da obra de Lefebvre leva à seguinte indagação: qual estratégia poderia, em substituição à estratégia do consumo, produzir essa racionalidade política? A principal crítica à sua obra é justamente o fato de que, ao se afastar da luta de classes marxista e encontrar na revolução – comunista ou anarquista – o caminho para um novo humanismo, ele teria afastado a possibilidade de lutas sociais concretas, único caminho, segundo seus críticos, para a emergência de mudanças revolucionárias.

Em A questão urbana, publicada em 1972, Castells critica de forma contundente a conceituação do urbano a partir do uso da forma como categoria filosófica. De acordo com ele, Lefebvre, ao equiparar a cidade a uma forma produzida pela criação humana, está ciente de que o Estado também detém essa condição. Para afastar tal contradição, Lefebvre cria uma outra condição para que a forma seja urbana: a de que se livre de qualquer repressão (e, nesse caso, se constitua em uma forma utópica). Contudo, a realidade demonstra que existem cidades repressivas, que nem por isso deixam de ser cidades, e utopias que não são urbanas.

Para Castells, a redução de todas as formas de luta de classes a uma forma só (a urbana), como proposto por Lefebvre, acaba por encobrir a análise das contradições sociais que dão origem a essas lutas. Ele acredita, assim como Lefebvre, que o desenvolvimento urbano só pode se dar pela prática política, mas essa prática tem no Estado seu centro e objeto. Portanto, a análise da questão urbana não prescinde, para esse autor, da análise de como os conflitos sociais se articulam, por meio de movimentos sociais, com vista a interferir na estrutura político-administrativa do Estado.

De acordo com Tavolari (2016TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos, Cebrap, São Paulo, n. 104, p. 93-109, mar. 2016., p. 98), essas duas vertentes de pensamento, “aparentemente pouco conciliáveis”, combinaram-se no cenário brasileiro pós-ditadura militar, tanto nos textos de intervenção – base teórica dos movimentos sociais urbanos – quanto nos acadêmicos. Ela mostra como, a partir da década de 1970, a obra de Lefebvre é apropriada por Ermínia Maricato, Pedro Jacobi e outros intelectuais, em textos de intervenção, para qualificar a luta pela construção da cidadania. Conforme a autora:

Se Ermínia Maricato já fazia menção ao livro [O Direito à Cidade] em 1976 [...], é na década de 1980 que ela defende a necessidade de “ampliar a consciência” do direito à terra para “construir a consciência’ do direito à cidade, como forma de dar uma nova qualidade às reivindicações populares, já tendo em vista a Assembleia Nacional Constituinte [...]. Em contraste com o caráter pontual da luta pelo direito à terra, o direito à cidade envolveria uma concepção mais ampla: pensar como a cidade é produzida de maneira desigual. (TAVOLARI, 2016TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos, Cebrap, São Paulo, n. 104, p. 93-109, mar. 2016., p. 99)

Em uma leitura da obra de Lefebvre sob o prisma jurídico, Trindade (2012)TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: reflexões sobre o direito à cidade. Lua Nova, São Paulo, n. 87, p. 139-165, 2012. explora a noção de cidadania de Thomas H. Marshall e a distinção feita por Norberto Bobbio entre os direitos e liberdades civis, que consistem em obrigações negativas, e os direitos sociais, que são obrigações positivas. A fim de dar especificidade a esse direito e distingui-lo do conjunto de direitos sociais do morador urbano, o autor sustenta que o direito à cidade consiste na possibilidade de acesso justo às localizações privilegiadas da cidade e, portanto, seu reconhecimento do ponto de vista jurídico somente se justifica na perspectiva da função social da propriedade.

Ainda no campo das ciências sociais em geral, Marcuse (2010)MARCUSE, Peter. ¿Los derechos en las ciudades y el derecho a la ciudad? In: SUGRANYES, Ana; MATHIVET, Charlotte (Ed.). Ciudades para tod@s: Por el derecho a la ciudad, propuestas y experiencias. Santiago: Habitat International Coalition, 2010. p. 91-103. distingue entre o direito à cidade e os direitos nas cidades. Para ele, o primeiro pode ser entendido com a concepção que lhe conferiu Lefebvre, ou seja, é o direito a reivindicar uma sociedade diferente, orientada não pelas forças do sistema capitalista de produção, mas por relações sociais, físicas e econômicas direcionadas à satisfação do ser humano. Já os direitos nas cidades seriam os direitos sociais dos moradores urbanos, como moradia, água potável, meio ambiente ecologicamente sustentável, participação na gestão democrática, emprego, educação, entretenimento e liberdade de expressão e reunião.

Ao contrário das demais ciências sociais, que já se ocupam do direito à cidade há algum tempo, no Direito essa preocupação é recente. Os trabalhos de Guimarães (2017)GUIMARÃES, Virgínia Totti. Direito à cidade e direitos na cidade: integrando as perspectivas social, política e jurídica. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 626-665, 2017., que busca integrar as perspectivas social, política e legal do direito à cidade, e de Mello (2017)MELLO, Cláudio Ari. Elementos para uma teoria jurídica do direito à cidade. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 437-462, 2017., que propõe elementos para uma teoria jurídica do direito à cidade, destacam-se nesse cenário.

Para Guimarães (2017)GUIMARÃES, Virgínia Totti. Direito à cidade e direitos na cidade: integrando as perspectivas social, política e jurídica. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 626-665, 2017., o direito à cidade pode ser conceituado como um direito fundamental, de natureza difusa, que se rege pela solidariedade e compreende, além de um conjunto de direitos sociais, o direito à dignidade da pessoa humana. A autora avança na ideia de que o direito à cidade é um direito de natureza coletiva, o que permite ao Poder Judiciário invalidar normas e atos administrativos e impedir a prática de condutas particulares contrárias a esse direito, além de controlar decisões de política pública. Contudo, reconhece que a sua garantia nos termos estabelecidos na Constituição se subordina, na prática, à disputa política, já que pressupõe a existência de recursos financeiros suficientes para a realização das políticas públicas necessárias à satisfação dos direitos sociais que o constituem.

Para contornar essa dificuldade, a jurisprudência utiliza a técnica de definição de um conteúdo de mínimo existencial, sem o qual o âmbito de proteção ao direito restaria esvaziado, mas a própria autora reconhece que, muitas vezes, mesmo em situações em que o conteúdo mínimo do direito à cidade é reconhecido, sua garantia fica condicionada à existência de recursos financeiros para a execução de políticas públicas. Além disso, no caso dos direitos difusos que integram o seu conteúdo jurídico, especialmente do direito à proteção ao meio ambiente natural, ela aponta a possibilidade de diferentes interpretações do Poder Judiciário – muitas vezes contraditórias – acerca da aplicação desses direitos.

A constatação de que um mesmo direito pode ser invocado para a defesa de interesses contrapostos revela a importância da análise do direito à cidade sob uma perspectiva política e remete ao conflito de interesses que permeia os discursos ideológicos a respeito do que deveria ser uma vida com qualidade ou uma cidade sustentável. Sob essa perspectiva, a chave da questão, concordam os pesquisadores e operadores do Direito, é conferir ao direito à cidade uma interpretação que contribua para reverter o padrão excludente de urbanização das cidades brasileiras. Embora a aplicação do princípio da função social da propriedade possa auxiliar nessa tarefa, não tem se mostrado suficiente para produzir as transformações sociais, políticas e econômicas necessárias para a construção de uma nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. Nesse sentido, Fernandes (2007)FERNANDES, Edésio. Constructing the “Right to the City” in Brazil. Social Legal Studies, v. 16, n. 2, p. 201-219, jun. 2007. Disponível em: <http://1mundoreal.org/wp-content/uploads/2010/12/Edesio- Fernandes-Constructing-The-Right-to-the-City-in-Brazil.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017.
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reconhece a existência de retrocessos na política urbana nacional, como a descontinuidade de programas urbanos de grande impacto; desocupações forçadas (que vieram a atingir enorme proporções nos preparativos para a Copa de 2014); e elaboração de propostas de lei buscando alterar o Estatuto da Cidade. Tais retrocessos se acentuaram a partir da crise econômica mundial de 2008 e da dependência dos estados nacionais em relação ao capital financeiro internacional, especialmente no caso do Brasil.

Finalmente, o trabalho de Mello tem como principal preocupação fornecer subsídios que permitam aos entes públicos e particulares operacionalizar o direito à cidade em suas decisões e atividades. Ele atribui três propriedades teóricas a esse direito: (a) a natureza de direito coletivo; (b) o conteúdo normativo complexo; e (c) o conteúdo axiológico. Para Mello, o direito à cidade é um direito coletivo à ordem urbanística. Seu conteúdo normativo compõe-se de uma série de posições jurídicas subjetivas (feixes de direitos, prerrogativas, ônus e outras posições jurídicas) protegidas pelos direitos sociais do morador urbano (moradia, mobilidade urbana, meio ambiente, saneamento básico etc.), pelo direito à gestão democrática da cidade e pelo direito ao planejamento urbano. Com relação ao seu conteúdo axiológico, o direito à cidade é conceituado juridicamente como o direito a uma cidade justa e sustentável.

A remissão aos conceitos de justiça e sustentabilidade reforça a necessidade de se definir o que seria uma sociedade justa e sustentável. Para tanto, o autor parte do pressuposto de que existe uma concepção de justiça fundada nos valores morais de uma determinada comunidade que, ao serem constitucionalizados, orientam as suas estruturas políticas básicas, tais como instituições, procedimentos e direitos. Assim, a construção de uma teoria da cidade justa não deveria, segundo Mello, se preocupar com as diversas concepções do que seria uma vida boa (eudaimonia), mas concentrar-se nas estruturas políticas básicas da sociedade, de forma a proteger a liberdade e a igualdade de cada membro da comunidade para que possa fazer suas escolhas existenciais, desenvolver seus projetos de vida e realizar-se pessoalmente.

Ao conceber o direito à cidade como um direito coletivo cujo conteúdo axiológico é predeterminado pelos valores compartilhados de uma dada coletividade no momento da promulgação da Constituição, Mello aceita a existência de um consenso sobre tais valores, ideia que pode ser questionada, dada a pluralidade de valores éticos que caracteriza as sociedades modernas. Além disso, afasta-se da perspectiva política do direito à cidade, acionada por Guimarães para identificar a cidade como um espaço marcado por contradições e diferenças. Essa autora, por sua vez, ainda que anuncie essa perspectiva, não aprofunda a análise acerca dos aspectos políticos do direito à cidade e da forma como se poderia garantir efetivamente esse direito sob a perspectiva política. De forma geral, atribui ao Estado, por meio de uma atuação positiva, a garantia do conjunto dos direitos sociais do morador urbano, da função social da propriedade condicionada ao plano diretor, da gestão democrática e da sustentabilidade das cidades.

Percebe-se, assim, que, ao contrário da concepção de direito à cidade proposta por Lefebvre, em que o direito à cidade é compreendido como o direito de participar da construção do espaço urbano, o conceito jurídico do direito à cidade ainda está associado, predominantemente, a direitos de natureza social – e, portanto, sujeitos a limitações de recursos financeiros –, e não ao direito político de participar na formação da vontade estatal.1 1 Para uma distinção entre direitos fundamentais sociais e direitos a organização e procedimento, entre os quais os direitos a participar na formação da vontade estatal, ver Robert Alexy (2011). As próximas seções servirão para avançar um pouco nessa discussão.

2 O humanismo dialético no cenário constitucional brasileiro: ordem e desordem

A Constituição Federal de 1988, que, em seu preâmbulo, estabelece uma ordem política justa e fraterna, fundada na liberdade, igualdade e justiça, ainda não conseguiu concretizar esses valores por meio de políticas públicas que garantam a todos os cidadãos brasileiros o exercício de seus direitos constitucionais.2 2 O baixo grau de acessibilidade dos cidadãos ao exercício dos direitos constitucionalmente afirmados no Brasil é identificado por Holston (2008) que utiliza o termo “cidadania insurgente” para descrever a situação em que os direitos constitucionais são garantidos em níveis diferentes conforme a classe social e econômica à qual pertencem os cidadãos. Ao analisar a forma como os constitucionalistas brasileiros tratam esses valores constitucionais, Cittadino (2013)CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. identifica três correntes preponderantes no cenário jurídico nacional: os liberais, os comunitários e os críticos-deliberativos. Embora o pensamento jurídico brasileiro seja tradicionalmente orientado pela primeira corrente, que pressupõe a interpretação dos direitos fundamentais por meio de normas e princípios extraídos de valores morais abstratos, prevalece, no âmbito do direito constitucional, uma visão comunitária da Constituição. De acordo com essa visão, os direitos constitucionais apresentam um espaço normativo que deve ser completado por valores escolhidos como essenciais pela própria comunidade no momento histórico de sua interpretação.

Contudo, como ressalta a própria autora, a visão comunitarista está calcada no pressuposto de que existem valores éticos compartilhados por toda a sociedade, quando a observação das democracias modernas revela justamente o contrário. No caso do Brasil, ela anota, essa pluralidade é acentuada pelo fato de que os períodos de estabilidade constitucional – que favorecem a formação de um conjunto de valores éticos comuns a todos os cidadãos – foram extremamente curtos. Assim, na opinião da autora e ao contrário do que pregam os comunitaristas, parece impossível, no atual momento histórico, estabelecer um consenso sobre os valores éticos da comunidade. Diante dessa constatação, ela se une aos crítico-deliberativos e, com base na teoria habermasiana, sugere que esse consenso seja obtido pela via procedimental.

Como se sabe, a teoria crítico-deliberativa proposta por Habermas (2003)HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I e II. utiliza dois critérios para interpretar a norma jurídica: o critério de validade, aferido a partir da sua produção por meio de procedimentos discursivos apropriados; e o critério de adequação ao caso concreto. Esse último critério se vale do conceito de paradigma jurídico, definido, pelo autor, como o modo pelo qual os atores de uma determinada sociedade – cidadãos, clientes, legislador, justiça e administração – compreendem o seu sistema jurídico. Ele identifica, nas sociedades modernas, uma disputa política entre dois paradigmas jurídicos ditados pelo sistema capitalista industrial: o paradigma do direito formal burguês – incapaz de garantir as liberdades individuais, uma vez que não consegue distribuir de forma justa as chances de vida geradas socialmente – e o paradigma do direito ao bem-estar. O segundo, embora se oriente pelo critério de justiça distributiva, equipara o ideal de liberdade a um modelo de distribuição igualitária de bens regulado pelo Estado. Para superá-los, Habermas propõe o paradigma procedimental, em que a liberdade – entendida como critério de justiça – é associada à autonomia. Essa autonomia se realiza na medida em que a opinião pública (poder comunicativo), que circula livremente na esfera pública, exerce sua influência no sistema político. Dessa forma, o critério de justiça é preenchido quando os cidadãos deixam de ser meros destinatários da norma e se tornam seus produtores, por meio da ação comunicativa.

O calcanhar de Aquiles da teoria habermasiana, reconhecido por Cittadino, é o fato de que o paradigma proposto por Habermas é formal, ou seja, ele depende da mobilização do poder comunicativo na esfera pública e da permeabilidade do Poder Legislativo e Judiciário à vontade e opinião dos participantes. A solução desse problema dependeria, para ela, não só da efetividade dos mecanismos participativos previstos no texto constitucional, como da construção de uma cidadania juridicamente participativa por meio de um processo de reconstrução política, que caberia, principalmente, ao Poder Judiciário.

Ao contrário da teoria crítico-deliberativa, centrada no diálogo e no consenso, o humanismo dialético parte das relações de dominação entre os grupos sociais. De acordo com Lyra Filho (2012LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 18. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., 1986LYRA FILHO, Roberto. Desordem e processo: um posfácio explicativo. In: LYRA, Doreodó Araújo (Org.). Desordem e processo: estudos sobre o Direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. p. 263-333.), as duas grandes correntes de pensamento jurídico universal, o positivismo e o jusnaturalismo, conquanto expressem preocupações fundamentais – a primeira com a normatividade do Direito e a segunda com o ideal de justiça como critério de validade das normas – sempre foram utilizadas, nos diversos momentos da história, para fundamentar discursos jurídicos que tentavam manter privilégios das classes opressoras e dominar as classes oprimidas. Diante dessa constatação, o humanismo dialético propõe, por meio do método dialético, a síntese dessas duas correntes, apropriando suas preocupações fundamentais e superando suas contradições.

No caso do positivismo, a contradição exposta por Lyra Filho dirige-se à falsa identificação entre Direito e norma jurídica positivada. Os positivistas, ao desconsiderarem a existência de normas jurídicas não positivadas, que também regulam as relações sociais, incorrem, para o autor, em um erro duplo: aceitam todas as normas jurídicas positivadas como veiculadoras de um direito legítimo; e, ao mesmo tempo, limitam o espaço de produção do Direito às instituições políticas, ignorando o fato de que existe uma pluralidade de ordens jurídicas na sociedade que coexistem com a ordem estatal (LEMA, 2014LEMA, Sergio Roberto. Roberto Lyra Filho e o direito alternativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.).

Quanto aos jusnaturalistas, a contradição está no fato de que, embora reconheçam a ideia de justiça como critério de legitimidade das normas jurídicas, não chegam a formular um padrão objetivo de validação para aferir essa legitimidade, de forma que o fundamento ético do Direito acaba recaindo em uma ideia abstrata e universal. Dessa forma, eles não conseguem apreender o conteúdo da justiça em cada momento histórico, o que só é possível a partir da compreensão dos conflitos entre as classes oprimidas e as classes opressoras de uma sociedade em particular.3 3 Esse conflito entre as classes opressoras e oprimidas não se resume, para Lyra Filho, à clássica luta de classes revelada pelo marxismo, mas inclui todos os conflitos de interesses que ocorrem no seio da sociedade, entre os quais aqueles que decorrem da reivindicação de minorias que pretendem afirmar seu direito à diferença.

A síntese proposta pelo humanismo dialético apropria a ideia positivista de que o Direito se exprime normativamente, mas afasta a identidade entre o sentido da norma jurídica e a ordem positivada. Para Lyra Filho, a normatividade do Direito não se limita ao direito positivo, mas deve ser apreendida a partir da análise do processo histórico no qual ele é produzido. De outro lado, o critério de legitimidade do Direito, para o humanismo dialético, reside, como no jusnaturalismo, na ideia de justiça. Contudo, a justiça não é concebida como um ideal abstrato, mas historicamente determinada pelas condições econômicas, políticas e sociais de uma determinada sociedade.

Sob o ponto de vista global, a análise histórica da sociedade revela que os sistemas jurídicos modernos são condicionados pelo modelo capitalista de produção, que privilegia os interesses do capital. Lyra Filho não nega a normatividade desses sistemas, mas entende que o fundamento ético do Direito reside na possibilidade que o homem tem de libertar-se dos fatores que condicionam a sua existência, por meio de um processo de conscientização (COSTA, 2008COSTA, Alexandre Araújo. Humanismo dialético: a filosofia jurídica de Roberto Lyra Filho. Brasília: Thesaurus, 2008. 99 p. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/hermeneutica-filosofica/>. Acesso em: 30 out. 2017.
http://www.arcos.org.br/livros/hermeneut...
). A legitimidade do Direito é, assim, construída ontológica e dialeticamente a partir de um fundamento ético que constitui o próprio processo de libertação do ser humano, em especial das classes oprimidas enquanto grupos de indivíduos com existência concreta (LEMA, 2014LEMA, Sergio Roberto. Roberto Lyra Filho e o direito alternativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.). O processo de libertação é dialético, porque a liberdade não existe em si, mas se afirma histórica e socialmente, por meio de lutas sociais, de forma que liberdades que antes sequer eram pensadas passam a se afirmar em contradição com as liberdades já estabelecidas, como, por exemplo, as liberdades reivindicadas pelas mulheres e pelas minorias sexuais.

O foco de interesse do humanismo dialético não é a ordem instituída (organização, estrutura), mas o processo histórico de ordenação e desordenação. À medida que o processo crescente de conscientização dos oprimidos cria tensões não superáveis em face das instituições vigentes, as forças resultantes dessas tensões resultam em um vetor desordenador do status quo, diante do qual se coloca a alternativa de forçar a ruptura institucional por meio de um comportamento agressivo (golpe) ou promover reformas de alicerce. Essas reformas constituem o que Lyra Filho chama de verdadeira revolução. O Direito tem como função, diante desse processo, evitar a ruptura abrupta da ordem (golpe), promovendo avanços em direção à democratização das estruturas sociais.

A revolução do humanismo dialético – como ele deixa bem claro – não caminha para a utopia marxista, em que o Estado e o Direito são suprimidos e a moral e o direito (subjetivo) permitiriam ao trabalhador apropriar-se de sua parte do produto social. No humanismo dialético, a utopia não constitui previsão de uma sociedade futura, mas serve para marcar a direção para onde devem se projetar os esforços de reorganização dos elementos da própria realidade social. De acordo com o autor, as utopias são fatos históricos (e não meta-históricos), na medida em que têm como função inspirar a práxis. Portanto, a utopia, como parte do método do humanismo dialético, orienta o investigador na tarefa de identificar a relação entre as etapas do processo de desenvolvimento humano e a direção em que ele ocorre.

Lyra Filho iniciava a elaboração da teoria do humanismo dialético, quando faleceu precocemente. Contudo, duas de suas obras, O que é direito e Desordem e processo: um posfácio explicativo, esta última publicada depois de sua morte, dão alguma ideia do que seria o método humanista dialético.

A análise da norma jurídica, segundo esse autor, pressupõe um esforço de afastamento da ideologia colocada pela classe privilegiada, para compreender o fato social em sua essência. Essa compreensão tem como únicas bases sólidas a Sociologia do Direito e a Sociologia Jurídica.4 4 Para Lyra Filho (2012), a Sociologia do Direito é o estudo da base social de um direito específico, que permite, por exemplo, analisar a maneira pela qual o nosso direito estatal reflete a sociedade brasileira em suas linhas gerais, enquanto a Sociologia Jurídica é o estudo do Direito em geral, como instrumento de controle e de mudanças sociais. Contudo, tanto a Sociologia da “estabilidade, harmonia e consenso” como a Sociologia “da mudança, conflito e coação”, modelos de compreensão do fato social propostos pela Sociologia tradicional, são insatisfatórias. O primeiro modelo porque, ao considerar todas as normas em um único bloco, presumidamente consensual, ignora a base socioeconômica da sociedade, suas classes sociais, a existência de grupos oprimidos com suas próprias normas (subsistemas legais5 5 A respeito dos diferentes subsistemas legais que podem coexistir em uma ordem jurídica, ver O direito dos oprimidos, tese de Boaventura de Sousa Santos (2014) sobre a análise do direito informal e da resolução de litígios na favela Jacarezinho, no Rio de Janeiro. ) e a presença de forças internacionais estabilizadoras ou desestabilizadoras da ordem nacional. O segundo porque se limita a reconhecer a existência, no espaço social, de grupos sociais em conflito, que contestam a organização social e reivindicam mudanças, mas não é capaz de apresentar uma proposta de reorganização social com ação e objetivos nítidos.

O modelo sociológico-jurídico proposto por Lyra Filho reconhece a existência de blocos de normas jurídicas que coexistem conflituosamente dentro da estrutura social, gerando uma tensão que leva os diferentes grupos e classes dominados a contestar as normas jurídicas colocadas pelo Estado. Essa contestação pode ser apenas reformista, isto é, pode visar o simples reconhecimento de normas e princípios adotados fora da estrutura estatal, sem atingir o sistema institucional, ou revolucionária, isto é, capaz de reestruturar as bases das instituições. Assim, a igualdade formal pregada pelas declarações das revoluções americana e francesa, que representavam a contestação da ordem vigente por parte da burguesia liberal, deram lugar, hoje, ao ideal de igualdade substancial, inspirado pelos avanços das democracias socialistas.

Tanto a reforma como a revolução pressupõem uma práxis jurídico-política: precisam se instrumentar politicamente, mas só se legitimam juridicamente. O Direito é definido, assim, a partir de um processo de luta social constante, em que estão em disputa dois blocos de normas: de um lado, o direito estatal, que exprime os valores da ordem institucional; de outro, o direito vindicado pelas classes e grupos dominados. As contradições, por sua vez, não se dão apenas entre blocos de normas, mas dentro dos próprios blocos, de sorte que existem contradições dentro do próprio direito estatal. Essas contradições entre as normas positivadas acabam por proporcionar múltiplas leituras. A leitura da norma jurídica proposta pelo humanismo dialético é a que se coloca a favor dos oprimidos, uma vez que o processo de libertação coletiva – colocado como fundamento ético do Direito – depende da sua emancipação.

É por meio dessa atividade hermenêutica que o Direito pode se constituir em instrumento de mudança. A hermenêutica proposta por Lyra pressupõe, portanto, a busca de contradições na ordem jurídica instituída que permitam ampliar o âmbito de proteção de direitos que emergem das lutas sociais e se positivam. As normas nas quais se exprimem esses direitos, por sua vez, são tanto mais legítimas quanto mais porosas se tornem, de forma a absorver as transformações reivindicadas pelas classes oprimidas.

A próxima seção se debruçará sobre o processo de positivação do direito à cidade e partirá das reivindicações dos movimentos sociais urbanos no atual momento histórico para propor um conceito jurídico do direito à cidade com base no método do humanismo dialético.

3 O direito à cidade e seu conceito jurídico: utopia e práxis jurídica

A identificação do conteúdo jurídico do direito à cidade com base no humanismo dialético pressupõe que a legitimidade do Direito é extraída do conceito de justiça construído no processo histórico-dialético de conscientização de liberdades que se afirmam por meio de lutas sociais. Nesse processo, os direitos subjetivos – individuais e coletivos – (a) surgem em um determinado momento histórico, como resultado de liberdades conquistadas por meio de lutas sociais; (b) ingressam no sistema jurídico estatal por meio de normas positivadas; (c) têm seu conteúdo jurídico ampliado por meio de processos hermenêuticos que exploram as contradições do sistema jurídico e se orientam pela necessidade de emancipação dos indivíduos.

Na tentativa de compreender esse processo, é útil traçar um breve apanhado de como o direito à cidade passou a ser reconhecido na estrutura político-jurídica nacional. Esse direito é afirmado no texto constitucional a partir das lutas dos movimentos sociais que, ainda na década de 1970, retomaram a postura reivindicatória deflagrada antes ditadura de 1964-1985 e reprimida durante a fase mais dura do regime militar. Conforme anota Bassul (2005)BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005., a primeira eleição direta de governadores após a ditadura militar, em 1981, inseriu a questão urbana na pauta política nacional. No ano seguinte, a 20ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aprovou o documento Solo Urbano e Ação Pastoral, em que se posicionava contra a retenção imobiliária especulativa e a remoção de assentamentos informais e propunha o condicionamento da propriedade urbana à sua função social. Nesse cenário, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) elaborou o Projeto de Lei n. 775/83, que objetivava “a melhoria da qualidade de vida nas cidades” por meio de várias diretrizes e instrumentos, muitos dos quais aproveitados pela Emenda Constitucional da Reforma Urbana – PE n. 0063 – e incluídos no texto constitucional e no Estatuto da Cidade. O projeto nunca chegou a ser votado diante da reação intensa dos setores conservadores da sociedade, que o acusavam de abolir o direito de propriedade no Brasil.

A partir da instauração da Assembleia Nacional Constituinte, em 1986, intensificou-se a atuação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), que mobilizava associações, movimentos populares e representantes de entidades sindicais, profissionais, acadêmicas, além de setores mais progressistas da Igreja Católica. O MNRU apresentou a emenda constitucional que incluía o capítulo de política urbana na Constituição e participou das negociações políticas que levaram à sua aprovação. Ao final dos trabalhos, o único artigo da emenda popular incluído na Constituição com a redação próxima do sentido da emenda, como avaliou, à época, Maricato, foi o que tratava do usucapião especial para fins de moradia (BASSUL, 2005BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005.).

O texto final dos trabalhos da Constituinte, embora tenha representado uma vitória do MNRU, não agradou ao movimento, principalmente porque submeteu a função social da propriedade – que era o ponto central da emenda – aos planos diretores municipais, o que não constava do texto original. Foi essa vinculação – responsável pela ênfase dada nos anos seguintes aos planos diretores municipais como garantia da função social da propriedade – que assegurou, como parte do acordo com os setores ligados ao capital, a aprovação desse princípio no texto constitucional (BASSUL, 2005BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005.).

Logo após a promulgação da Constituição, o MNRU passou a reivindicar a regulamentação dos dispositivos constitucionais. Para isso, o Senador Pompeu de Sousa apresentou o projeto de lei do Estatuto da Cidade (PL n. 181/89). De acordo com Bassul (2005)BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005., o projeto recebeu uma reação ainda mais forte do que o PL n. 775/83 por parte dos setores ligados ao capital (proprietários de terras, empresários da construção civil e do setor imobiliário) e da Tradição, Família e Propriedade (TFP), setor conservador da Igreja Católica. Em documento intitulado como TFP contra a Reforma urbana socialista e confiscatória – Estatuto da Cidade, o setor afirmava que o projeto “investia contra dois princípios da ordem natural, consagrados pela doutrina social da Igreja e arraigados na sociedade brasileira: o da propriedade privada e o da livre iniciativa”.6 6 Documento original, p. 5, cf. Bassul (2005, p. 114).

Apresentado no plenário do Senado em junho de 1989, o projeto só foi aprovado 13 anos depois, como resultado de uma longa negociação entre os setores ligados ao MNRU e aqueles ligados ao capital, que resultou na descaracterização de várias de suas proposições iniciais, como a retirada do conceito de função social da propriedade e do instituto do abuso de direito de propriedade. A essa altura, muitos dos instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto já estavam sendo implementados pelos municípios e haviam se revelado em boas oportunidades de atividade empresarial, por meio de parcerias entre o setor público e o capital privado, o que explica, segundo Bassul, a aprovação do projeto pela Câmara de Indústria e Comércio (CEIC), em 1997, sem qualquer objeção.

Coincidentemente, quando o projeto chegou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no ano de 2000, realizou-se o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, que chamou a atenção do mundo para o Brasil. As votações finais do projeto ocorreram no ano seguinte, quando, também por coincidência, o Brasil participava das sessões extraordinárias da ONU conhecidas como Istambul+5, em Nova York, para implementação da Agenda Habitat. A mobilização dos setores ligados à questão urbana estava no seu auge, nesse período, e contou com campanhas públicas, notas e manifestos do MNRU, além de um abaixo-assinado de advogados e juristas que defendiam a constitucionalidade do projeto.

A análise do processo histórico de positivação do direito à cidade, acima esboçada, permite compreender a disputa entre os ideários do MNRU e dos setores ligados ao capital. Cabe indagar, nesse passo, se os princípios defendidos pelo MNRU – que orientaram suas lutas sociais durante esse período – estão refletidos no Estatuto da Cidade. De acordo com Bassul (2005)BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005., ainda que algumas das reivindicações do MNRU não tenham sido incorporadas no próprio Estatuto, 84% delas foram atendidas, considerando a legislação posteriormente editada. Do ponto de vista qualitativo, é inegável que o Brasil tem hoje uma legislação urbanística bastante avançada.

Contudo, os instrumentos jurídico-urbanísticos previstos no Estatuto não têm sido utilizados para reverter o padrão de exclusão que caracteriza a política urbana nacional. Maricato e Ferreira (2002)MARICATO, Ermínia; FERREIRA, João Sette Withaker. Operação urbana consorciada: diversificação urbanística participativa ou aprofundamento da desigualdade? In: OSÓRIO, L. M. (Org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. revelam que o planejamento urbano tradicionalmente adotado no país prioriza investimentos que atendem aos interesses do mercado imobiliário, em detrimento dos interesses dos habitantes da cidade. Daí por que alguns instrumentos urbanísticos que foram pensados para melhorar a qualidade de vida nas cidades – como a operação urbana consorciada – acabaram sendo apropriados pelo capital e revertidos em investimentos vantajosos exclusivamente para os investidores.7 7 A respeito, ver Castro (2016) e Fix (2000). Em contraste, outros instrumentos que poderiam se refletir em significativas melhorias urbanas – mas que contrariam os interesses do capital – ficam praticamente esquecidos, como o IPTU progressivo no tempo. Do ponto de vista da gestão democrática das cidades, ainda que o procedimento de elaboração dos planos diretores municipais preveja a realização de audiências públicas obrigatórias, estudos demonstram que esses canais de participação social costumam ser capturados pelo poder econômico,8 8 A respeito, ver Villaça (2005). o que deixa a ordenação da cidade a cargo do corpo técnico-burocrático do Estado, extremamente permeável aos interesses do mercado.

As contradições que informam a produção do espaço urbano nacional refletem-se no sistema jurídico, na medida em que obstaculizam a garantia do direito à cidade como direito a uma “cidade justa”, nos dizeres de Mello. São essas contradições (e lacunas) que permitem encontrar, na lei positivada, as brechas pelas quais o Direito pode garantir de forma plena os direitos já positivados e contribuir para as transformações necessárias à positivação dos direitos emergentes.

Cabe, então, no esforço de construção do conteúdo jurídico do direito à cidade, investigar quais seriam os direitos que emergem das lutas sociais no atual momento histórico. Para tanto, é importante compreender como se dá a atividade contestadora não só no plano interno como no plano internacional, onde tem raízes o processo histórico de produção do Direito nacional. Isso porque, embora a análise do sistema urbano se dê em um espaço e tempo específicos, como ressalta Castells (1982)CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Tradução de Arlene Caetano. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1982., esse sistema é também parte de um sistema urbano global.9 9 Confirmam essa proposição os estudos sobre a inserção das cidades no mercado competitivo global, como um produto a fim de atrair negócios e, dessa forma, gerar recursos necessários ao financiamento das necessidades sociais. A respeito, ver Freire (2001).

Tavolari (2016)TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos, Cebrap, São Paulo, n. 104, p. 93-109, mar. 2016., ao traçar a evolução do conceito de direito à cidade, salienta que esse termo tem recebido maior projeção a partir do início desta década, quando eclodiu uma nova onda de ocupações e protestos pelo mundo. Essas ações, diferentemente das anteriores, não têm como reivindicações apenas direitos sociais, como moradia, transporte e equipamentos públicos, mas questionam a maneira como vem sendo produzido o espaço urbano, de forma a privilegiar os interesses do capital. Assim, o Movimento Ocupe Estelita, citado pela autora, busca evitar que o Cais José Estelita se transforme em um empreendimento de luxo e reivindica que o Estado dê ao local uma destinação cultural, em vez daquela pretendida pelo mercado e autorizada pelo setor público. Em Istambul, os protestos de 2013, que reuniram cerca de 2,5 milhões de pessoas e se espalharam por várias cidades turcas, tiveram início com um protesto ambiental contra a derrubada de 600 árvores do Parque Taskim Gezi para a construção de um shopping.

O traço característico desses protestos é a articulação de uma demanda social com o direito político de participar da vontade do Estado. Tanto no caso do Ocupe Estelita como no do Parque Taskim Gezi, os ativistas buscam afirmar não apenas o direito à cultura ou ao meio ambiente natural, mas o direito de decidir politicamente que uso se dará ao território e como será produzido o espaço urbano. Ao comentar a atuação do Movimento Ocupe o Cocó, organizado em Fortaleza para evitar a construção de viadutos que avançariam pelo Parque do Cocó, derrubando árvores de uma das poucas áreas verdes da cidade, Rolnik (2013)ROLNIK, Raquel. Ocupe o Cocó: resistência em defesa do parque continua em Fortaleza. Blog da Raquel Rolnik. 2 mai. 2013. Disponível em: <https://raquelrolnik.wordpress.com/2013/09/02/ocupe-o-coco- resistencia-em-defesa-do-parque-continua-em-fortaleza/>. Acesso em: 30 out. 2017.
https://raquelrolnik.wordpress.com/2013/...
afirma:

Aliás, está enganado quem pensa que os manifestantes do Ocupe o Cocó estão lutando apenas contra a derrubada de árvores e a preservação do parque. Essa mobilização mostra que a população de Fortaleza está questionando fortemente o modelo de desenvolvimento urbano da cidade e não aceita mais projetos que impactam a vida de todos, mas que não são discutidos com ninguém.

A análise do direito à cidade sob uma perspectiva jurídico-sociológica permite afirmar, portanto, que há um processo histórico de afirmação do direito político de participar da produção da política urbana. Esse direito não é ignorado por Guimarães (2017GUIMARÃES, Virgínia Totti. Direito à cidade e direitos na cidade: integrando as perspectivas social, política e jurídica. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 626-665, 2017., p. 659), que inclui no conteúdo jurídico do direito à cidade “o poder de definir os destinos da cidade, a partir de projetos utópicos e desejos na cidade, bem como da prática exercida no espaço urbano”. Contudo, o direito político de participação aparece, na conceituação proposta, ainda de modo vago e impreciso, de forma que, na prática, o conteúdo normativo do direito à cidade acaba reduzido ao conjunto de direitos sociais que o compõem, associado ao direito à dignidade da pessoa humana.

No entanto, se o conjunto de direitos sociais que integram o conteúdo do direito à cidade já é garantido na Constituição, de forma individual e coletiva, assim como é garantido o direito fundamental à dignidade da pessoa humana, qual seria a especificidade do conteúdo jurídico desse direito? É justamente para evitar essa redundância – colidente com o princípio da Navalha de Occam – que Mello separa seu conteúdo normativo do axiológico, atribuindo a este último a garantia de uma “cidade justa e sustentável”. Ressurge, aqui, o ponto central do debate, isto é: qual a definição de uma cidade justa e sustentável (utopia) e que práticas podem ser reconhecidas pelo direito como legítimas, diante da necessidade de realização desse valor (práxis)?

Uma definição de “cidade justa”, segundo o humanismo dialético, deve adotar o critério de justiça determinado historicamente pelas condições sociais, econômicas e políticas nacionais e internacionais. Essas condições indicam, no momento histórico atual, a necessidade de transformação da ordem jurídico-urbanística, que tem se mostrado incapaz de promover o desenvolvimento urbano por meio de uma justa distribuição dos ônus e das benesses sociais. Essa transformação exige a afirmação, ao lado da racionalidade industrial, de uma racionalidade política, capaz de reverter a situação de desequilíbrio entre os interesses do capital e dos habitantes das cidades.

A operacionalização do direito à cidade, sob essa perspectiva, implica se reconhecer como legítimas práticas que garantam um planejamento urbano mais permeável aos interesses da comunidade, por meio da participação efetiva de todos os setores da sociedade nas decisões que impactam a produção do espaço urbano. Essa questão remete aos critérios de democracia material, uma vez que, conforme salienta Lyra Filho, as instituições formalmente democráticas não são suficientes para garantir a legitimidade do sistema político. Assim, faz-se necessário observar o “grau de participação efetiva dos cidadãos nas instâncias de decisão e o conteúdo das medidas por elas adotadas” para verificar se as reivindicações das classes tradicionalmente preteridas estão sendo consideradas (LEMA, 2014LEMA, Sergio Roberto. Roberto Lyra Filho e o direito alternativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014., p. 89).

Nesse sentido, a garantia do direito à cidade exige o reconhecimento da obrigatoriedade dos canais de participação social no processo de produção da política urbana (nacional, estadual e municipal). Além disso, demanda o controle de sua atuação de forma a verificar se estão presentes as condições necessárias para que a participação da sociedade civil consiga influenciar efetivamente a condução dessa política, evitando o controle do aparelho técnico-burocrático do Estado pelo capital. Para isso, é preciso aprofundar o estudo da participação social nesses canais, especialmente com relação a aspectos que enfraquecem o poder de decisão dos setores ligados aos movimentos sociais em relação aos setores do capital. Alguns desses aspectos são: (a) a inserção, no processo de produção da política urbana, de setores da sociedade tradicionalmente excluídos; (b) a necessidade de conferir aos canais de participação caráter deliberativo para que possam influenciar efetivamente a tomada de decisões; e (c) o estabelecimento do equilíbrio de forças entre os vários setores da sociedade representados nesses canais.

Do ponto de vista da participação fora do Estado, a interpretação do direito à cidade sob uma perspectiva jurídico-sociológica permite considerar a existência de subsistemas legais, desenvolvidos a partir da necessidade de regular a conduta de particulares excluídos do sistema legal estatal. Esses subsistemas legais exercem pressão sobre o direito estatal, forçando mudanças na ordem jurídico-urbanística, o que não pode ser ignorado pelo Direito. A respeito, é importante lembrar que o direito de laje surge em um desses subsistemas legais, como objeto de contrato entre moradores das favelas, e ingressa no sistema legal estatal por meio da MP n. 759/2016 (convertida na Lei n. 13.465/2017).

Essas são apenas algumas das possibilidades de operacionalização do direito à cidade que se abrem a partir da análise desse direito sob uma perspectiva jurídico-sociológica. O maior ganho dessa abordagem é, sem sombra de dúvida, permitir ao Direito funcionar como instrumento de mudanças sociais significativas, que permitam aos setores tradicionalmente excluídos participar da produção da política urbana nacional. Esse parece ser o papel reservado ao Poder Judiciário no processo de reconstrução política de uma ordem jurídico-urbanística mais justa.

Conclusão

Este artigo buscou identificar o conteúdo jurídico do direito à cidade sob uma perspectiva jurídico-sociológica, com base no método do humanismo dialético. Para tanto, associou o conceito utópico de direito à cidade concebido por Lefebvre com o trabalho sobre práticas urbanas de mobilização social desenvolvido por Manuel Castells.

O direito à cidade pensado por Lefebvre é o direito à liberdade e à produção criativa. É o direito político de transformar radicalmente as estruturas sociais forjadas no sistema capitalista de produção e construir, em substituição à racionalidade industrial, uma nova racionalidade, que privilegie a cidade como um local de encontro e simultaneidade.

Embora a obra de Lefebvre tenha servido de base aos movimentos sociais que se mobilizaram em torno da questão urbana, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, ela foi apropriada no Brasil com um sentido que ultrapassou o pensamento desse filósofo. Ao abandonar o sentido radicalmente revolucionário e utópico do direito à cidade e voltar-se para as práticas sociais que buscavam reverter o modelo de urbanização excludente, os movimentos sociais se aproximaram das ideias de Castells, propostas em A questão urbana. Para Castells, o direito à cidade é concebido como o direito de questionar, por meio de práticas sociais, a planificação urbana dirigida pelo Estado.

Nesta década, o mundo assiste a novas lutas – no plano nacional e internacional – que buscam interferir nas decisões políticas acerca do uso do território e da produção do espaço urbano no sistema capitalista de produção. Identificou-se no processo histórico de afirmação do direito à cidade uma mudança em relação às lutas dos movimentos urbanos que reivindicavam apenas direitos sociais individuais e coletivos. Essa mudança deve se refletir na definição do conteúdo jurídico do direito à cidade. Ao mesmo tempo, a definição do seu conteúdo normativo como um conjunto de direitos já consagrados na Constituição Federal nada acrescenta ao processo de operacionalização desse direito.

Assim, o artigo propôs um conceito jurídico de direito à cidade que, com base no método do humanismo dialético, articulou as teorias desenvolvidas por Lefebvre e Castells com as lutas dos movimentos sociais urbanos no atual momento histórico. A partir de um conceito de “cidade justa” definido historicamente pelas condições econômicas, políticas e sociais que condicionam a sociedade atual, o direito à cidade foi identificado como o direito de participar e de interferir nas decisões estatais que condicionam o uso do território e a produção do espaço urbano. A operacionalização desse direito implica o reconhecimento da legitimidade de práticas que garantam um planejamento urbano mais permeável aos interesses da comunidade, de forma a reverter os padrões de exclusão característicos da ordem urbanística nacional. Dentre essas práticas, a articulação da democracia representativa com as práticas de democracia participativa mostra-se como importante – mas não única – via de acesso das forças sociais tradicionalmente preteridas nos processos de decisão política.

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    » www.planosdiretores.com.br/downloads/ilusaopd.pdf>
  • 1
    Para uma distinção entre direitos fundamentais sociais e direitos a organização e procedimento, entre os quais os direitos a participar na formação da vontade estatal, ver Robert Alexy (2011)ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011..
  • 2
    O baixo grau de acessibilidade dos cidadãos ao exercício dos direitos constitucionalmente afirmados no Brasil é identificado por Holston (2008)HOLSTON, James. Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2008. que utiliza o termo “cidadania insurgente” para descrever a situação em que os direitos constitucionais são garantidos em níveis diferentes conforme a classe social e econômica à qual pertencem os cidadãos.
  • 3
    Esse conflito entre as classes opressoras e oprimidas não se resume, para Lyra Filho, à clássica luta de classes revelada pelo marxismo, mas inclui todos os conflitos de interesses que ocorrem no seio da sociedade, entre os quais aqueles que decorrem da reivindicação de minorias que pretendem afirmar seu direito à diferença.
  • 4
    Para Lyra Filho (2012)LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 18. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012., a Sociologia do Direito é o estudo da base social de um direito específico, que permite, por exemplo, analisar a maneira pela qual o nosso direito estatal reflete a sociedade brasileira em suas linhas gerais, enquanto a Sociologia Jurídica é o estudo do Direito em geral, como instrumento de controle e de mudanças sociais.
  • 5
    A respeito dos diferentes subsistemas legais que podem coexistir em uma ordem jurídica, ver O direito dos oprimidos, tese de Boaventura de Sousa Santos (2014)SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014. sobre a análise do direito informal e da resolução de litígios na favela Jacarezinho, no Rio de Janeiro.
  • 6
    Documento original, p. 5, cf. Bassul (2005BASSUL, José Roberto. Estatuto da Cidade: quem ganhou? Quem perdeu? Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005., p. 114).
  • 7
    A respeito, ver Castro (2016)CASTRO, Laura Rocha de. O impacto da operação urbana consorciada água espraiada na implantação de habitação de interesse social. 2016. 157 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura, Tecnologia e Cidade). Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016. e Fix (2000).
  • 8
    A respeito, ver Villaça (2005)VILLAÇA, Flávio. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo, 2005. Edição do autor. Disponível em: <http:// www.planosdiretores.com.br/downloads/ilusaopd.pdf>. Acesso em: 30 out. 2017.
    www.planosdiretores.com.br/downloads/ilu...
    .
  • 9
    Confirmam essa proposição os estudos sobre a inserção das cidades no mercado competitivo global, como um produto a fim de atrair negócios e, dessa forma, gerar recursos necessários ao financiamento das necessidades sociais. A respeito, ver Freire (2001)FREIRE, Mila. Administrando cidades no século XXI: novos desafios para a capacitação. Revista de Administração Municipal, IBAM, Rio de Janeiro, ano 46, n. 232, 2001..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2016
  • Aceito
    09 Mar 2018
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