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Obiter dicta abusivos: esboço de uma tipologia dos pronunciamentos judiciais ilegítimos

Abusive obiter dicta: a tentative typology of illegitimatejudicial pronouncements

Resumo

O trabalho oferece um refinamento analítico-conceitual da noção de obiter dictum, a qual é entendida em uma acepção ampla e não essencialista, e uma reflexão sobre as suas circunstâncias de legitimidade, com vistas a identificar pronunciamentos judiciais abusivos, que realizam atos de fala capazes de ensejar efeitos sistêmicos indevidos ou danos à ordem jurídica. Ao final, oferece ainda uma tipologia dos obiter dicta ilegítimos e exemplos de cada uma das classes identificadas.

Obiter dictum; conceito; legitimidade; obrigações judiciais; atos de fala

Abstract

The paper offers an analytic and conceptual refinement of the concept of obiter dictum, understanding it in a broad and non-essentialist sense, and a critical reflection on its circumstances of legitimacy, with a view to identifying abusive judicial pronouncements, which perform speech acts capable of producing unwanted systemic effects or violation to the legal order. In the end, it offers a typology of abusive obiter dicta and a set of examples of each of the classes of such pronouncements.

Obiter dictum; concept; legitimacy; judicial obligations; speech acts

Introdução

Busca-se no presente trabalho uma revisão do conceito de obiter dictum, capaz de atingir a dois desideratos: primeiro, entender todas as classes de pronunciamentos judiciais não estritamente autoritativos, mas institucionalmente relevantes, e não apenas os que tradicionalmente vêm sendo identificados pelas teorias do precedente; é dizer, busca-se um refinamento conceitual da noção de obiter dictum com vistas a explicitar os seus elementos necessários e típicos. Em segundo lugar, busca-se entender as condições de legitimidade dos obiter dicta, isto é, as circunstâncias em que eles podem ou não ser realizados de maneira moralmente justificada.

Procuro demonstrar que por meio de obiter dicta o Poder Judiciário pode realizar uma série de atos de fala para os quais não tem legitimidade, seja para interferir em processos políticos ou jurídicos em curso em outras instituições ou outros juízos, seja para violar a ordem jurídica ou as obrigações ligadas ao papel institucional (role-obligations) do Judiciário.

Se essa hipótese for verdadeira, os obiter dicta são uma potencial fonte de instabilidade política e representam um risco aos princípios do Estado de Direito e da Separação dos Poderes. Passa a ser urgente, portanto, identificar as situações em que obiter dicta abusivos são realizados, como pretendo fazer na última seção deste trabalho.

Como ponto de partida metodológico do refinamento do conceito de obiter dictum (primeiro desiderato deste trabalho), parto da tradição analítica de teoria do direito anglo-saxã, em especial os autores provenientes do positivismo jurídico excludente. A razão dessa escolha metodológica não se encontra, porém, em uma filiação às teses fundamentais deste tipo de positivismo jurídico, mas no fato de que no entendimento do autor a distinção rígida entre ratio decidendi e obiter dictum somente pode ser mantida caso se adote – como pressuposto necessário, ainda que implícito – o modelo de precedentes “estritamente vinculantes” oferecido pelo positivismo jurídico anglo-saxão.

Um primeiro referencial teórico do trabalho é, portanto, a concepção positivista de precedentes como razões excludentes, que se encontra em autores como Joseph Raz e Frederick Schauer. Contrariamente a essas teorias, sustentarei que as razões normalmente designadas como obiter dicta são normativamente relevantes e capazes de exercer uma função prática importante, gerando razões contributivas para a ação e para novas interpretações do direito. No intento de oferecer uma análise mais exitosa dos obiter dicta, proponho substituir o referencial teórico acima pela teoria dos atos de fala de autores como John L. Austin e John R. Searle, que pode, com algumas cautelas e, eventualmente, adaptações, ser aplicada para explicar o sentido de tais pronunciamentos judiciais.

Com base nesse segundo referencial teórico, ofereço um conceito amplo de obiter dictum, de bases não essencialistas, e proponho explicar a fonte de sua normatividade.

Feita essa revisão do conceito de obiter dictum, passarei ao segundo desiderato do trabalho, que é o de identificar situações de abuso na utilização de obiter dicta, que tornam moralmente defeituoso um pronunciamento judicial.

A metodologia será, portanto, analítica e interpretativa: para atender ao primeiro desiderato do trabalho, nas seções 1, 2 e 3, aplicarei o método analítico, buscando identificar os elementos necessários para uma definição adequada de obiter dictum; para atender ao segundo desiderato, nas seções 4 e 5, me valerei de uma reflexão interpretativa,1 1 Quando faço alusão ao método “interpretativo”, a minha referência fundamental é à obra de Ronald Dworkin (1986, p. 46-48), que sustenta que para interpretar práticas sociais que realizam determinados valores é necessária uma atitude interpretativa com dois componentes: (1) identificar os princípios que tornam essa prática valiosa; e (2) ler essa prática à luz desses princípios, buscando construí-la da melhor maneira que ela pode ser (tendo esses princípios como vetores). Em termos concretos, pretendo, para atingir o segundo desiderato do trabalho (identificar as circunstâncias de legitimidade de uso dos obiter dicta), partir de uma interpretação construtiva de casos concretos à luz dos princípios do Estado de Direito (rule of law) e da Separação dos Poderes, que serão referidos na seção 5. Nesta seção, ofereço uma tipologia de atos de fala abusivos a partir de exemplos de magistrados brasileiros. buscando, a partir dos princípios do Estado de Direito e da Separação dos Poderes, tal como interpretados por Jeremy Waldron, classificar os obiter dicta abusivos à luz da maneira como eles são capazes de violar esses dois princípios jurídicos fundamentais.

O trabalho se divide em seis seções. Na primeira seção, revisito a teoria do precedente estritamente vinculante e a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum, com vistas a diferenciar esses dois conceitos em sistemas jurídicos caracterizados pela existência de precedentes vinculantes e demonstrar a dificuldade dessa teoria para explicar a normatividade dos obiter dicta. Na segunda seção, busco, com base em algumas reflexões no campo da teoria dos atos de fala, caracterizar os obiter dicta como atos de fala indiretos e entender a sua força ilocucionária. Na terceira seção, tento construir um conceito não essencialista de obiter dictum que seja mais adequado à prática jurídica contemporânea, por ser capaz de explicar todos os pronunciamentos institucionais do Poder Judiciário sobre questões jurídicas em discussão, e não apenas os tradicionalmente capturados pela teoria clássica do precedente. Na quarta seção, introduzo a noção de obiter dictum abusivo, que constitui o ponto central a ser enfrentado neste trabalho. E na quinta seção, finalmente, elaboro uma tipologia dos obiter dicta abusivos comumente encontrados no sistema jurídico brasileiro, procurando fornecer tanto uma classificação quanto um conjunto de exemplos de obiter dicta abusivos.

1 A doutrina dos precedentes estritamente vinculantes e o papel subsidiário dos obiter dicta

De acordo com o modelo de precedentes judiciais estritamente vinculantes, pronunciamentos sobre questões de direito necessários para decidir casos anteriores (normalmente julgados por tribunais de hierarquia superior) criam normas obrigatórias para juízes subsequentes.

Duas premissas fundamentais, próprias do positivismo jurídico contemporâneo, são tacitamente assumidas por uma teoria que descreva os precedentes judiciais como vinculantes em sentido estrito: (1) a tese da independência do conteúdo, segundo a qual a validade de uma norma é uma questão distinta em relação à sua correção substancial, podendo ser auferida de maneira independente de qualquer avaliação moral (HART, 1982HART, H. L. A. Commands and authoritative reasons. In: HART, H. L. A. Essays on Bentham. Oxford: Oxford University Press, 1982. p. 243-268., p. 260-261; SCHAUER, 2004SCHAUER, Frederick. The limited domain of the law. Virginia Law Review, v. 90, n. 7, p. 1909-1956, 2004.); e (2) a distinção entre casos regulados, para os quais o sistema jurídico oferece uma solução prefixada, estabelecida de maneira autoritativa por alguma disposição legislativa ou por uma autoridade judicial dotada de competência para criar o direito (como, por exemplo, um tribunal superior dotado de competência para estabelecer precedentes vinculantes para os tribunais que lhe são subordinados), e casos não regulados, nos quais o sistema jurídico “não oferece uma resposta jurídica correta” e estamos diante de uma lacuna do direito (RAZ, 2009aRAZ, Joseph. Law and value in adjudication. In: RAZ, Joseph. The authority of law. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2009a. p. 180-209., p. 181).2 2 Ao sustentarmos a influência do positivismo jurídico na doutrina do precedente vinculante em sentido estrito, é necessário evitar dois mal-entendidos: (1) Afirmar que a doutrina dos precedentes estritamente vinculantes assume estas premissas do positivismo analítico não implica a conclusão de que devemos aderir ao positivismo jurídico. Pelo contrário, caso pretendamos, como me pareceu mais atraente em trabalho anterior, desenvolver uma teoria não positivista do precedente judicial, devemos colocar em questão a própria conclusão de que pode haver um sistema de precedentes tão vinculantes quanto o descrito pela concepção tradicional do common law. Como expliquei em trabalho anterior, “com o obscurecimento do positivismo jurídico” o modelo oferecido pela teoria inglesa tradicional “deixa de constituir uma alternativa viável para orientar a interpretação e a aplicação do direito judicial” (BUSTAMANTE, 2012, p. 253). (2) De outro lado, é importante frisar, também, que adotar uma concepção positivista de direito não leva também necessariamente a um modelo estrito de precedentes, pois é possível, como veremos mais adiante, sustentar uma concepção de positivismo jurídico que atribua diferentes graus de força institucional para os precedente judiciais (ver, nesse sentido, WALUCHOW, 1994, p. 31-79).

De um lado, a tese da independência do conteúdo é assumida porque o modelo de precedentes estritamente vinculantes supõe que, ao argumentar com base em um precedente, o intérprete abstrai do seu próprio juízo sobre a correção de uma decisão, seguindo o precedente independentemente de uma valoração sobre sua justificação. De outro lado, a distinção entre casos regulados e não regulados é assumida porque ao se vincular a um precedente, em um caso “regulado”, o intérprete assume que o direito se encontra plenamente estabelecido (settled), de modo que decidir o caso futuro é um ato de aplicação de uma regra a um caso particular, que se diferencia claramente dos atos de criação judicial do direito.3 3 O positivismo analítico da tradição de H. L. A. Hart, diferentemente da vertente de Hans Kelsen, sustenta uma clara demarcação entre atos de criação e de aplicação do direito (incluindo-se quando a mesma entidade, como um tribunal, tem poder para aplicar e discricionariamente criar novas regras jurídicas). Ver, nesse sentido, Hart (1994, p. 272-276) e Kelsen (1998, p. 260-263). Sem essas duas condições, não se pode falar em vinculação estrita ao precedente judicial.

O âmbito de vinculação do precedente judicial estritamente vinculante equivale ao âmbito da solução encarnada em uma regra judicial para um problema jurídico particular. Na perspectiva de Joseph Raz, por exemplo, precedentes vinculam juízes posteriores quando eles são capazes de gerar “razões protegidas” para os juízes futuros (RAZ, 2009bRAZ, Joseph. Legitimate Authority. In: RAZ, Joseph. The authority of law. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2009b, p. 4-27., p. 17-18). São, por conseguinte, razões tanto para atuar segundo uma razão eleita como decisiva pela autoridade que pronunciou a regra jurídica como também para excluir as outras razões que eventualmente poderiam ser ponderadas para determinar qual é a melhor decisão (RAZ, 2009bRAZ, Joseph. Legitimate Authority. In: RAZ, Joseph. The authority of law. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2009b, p. 4-27., p. 18).

De modo análogo, Frederick Schauer entende a força do precedente judicial como semelhante à força que as regras exercem sobre a nossa racionalidade prática4 4 Segundo Schauer, precedentes não coincidem necessariamente com a categoria das regras porque neles nem sempre está evidente um aspecto essencial destas últimas, que é a generalização de um predicado factual assumido como suposto de fato para a sua incidência (SCHAUER, 1991, p. 187). Sem embargo, um precedente judicial só será relevante se da descrição factual que ele apresenta se puderem inferir, por meio de generalizações prescritivas, regras derivadas de precedentes ou generalizações suficientes para gerar razões autoritativas para a ação. . Atuamos “com base em uma regra”, para Schauer, quando a solução estabelecida pela regra contraria nossas intuições sobre a justiça ou nossos interesses em determinada situação. A regra somente exerce uma pressão sobre nós quando ela é capaz de alterar o curso de nossa ação, modificando a solução que alcançaríamos se a regra não existisse (SCHAUER, 1991SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Oxford University Press, 1991., p. 71-72). De acordo com Schauer, essa importante característica das regras é encontrada nos precedentes judiciais. Se, por um lado, precedentes judiciais carecem de uma formulação canônica, como ocorre, por exemplo, com regras legislativas, a força de um precedente (assim como a das regras) deriva de seu “peso para a decisão” (decisional weight) no caso concreto. Seguimos um precedente não quando nossas ações meramente se coadunam como a experiência que adquirimos em casos passados, mas quando nos reconhecemos como vinculados “apesar de nossa crença de que a decisão anterior foi equivocada” (SCHAUER, 1991SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Oxford University Press, 1991., p. 182).

Atuar com base em um precedente, por conseguinte, é atuar apenas porque existe um precedente; é conformar-se com uma solução por causa do status que as soluções para problemas jurídicos estabelecidas em precedentes possuem (SCHAUER, 1987SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, v. 39, n. 3, p. 571-605, 1987., p. 581). Seguir um precedente é diferente de “aprender” com o passado, ou “ser persuadido por alguma decisão”, na medida em que nessas hipóteses inexiste o traço da obediência ou da constrição, que é característico do raciocínio por precedentes (SCHAUER, 2009SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer – a new introduction to legal reasoning. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2009., p. 38).

As explicações oferecidas pelo positivismo de Schauer e Raz para a autoridade dos precedentes são compatíveis com a diferenciação rígida entre ratio decidendi e obter dictum, encontrada na doutrina estrita do stare decisis, que se tornou dominante no common law por influência do positivismo jurídico de Jeremy Bentham, no século XIX.

Um dos elementos centrais dessa doutrina é a asserção de que nem todas as afirmações de um juiz ou uma corte possuem a autoridade própria dos precedentes judiciais, na medida em que é somente a ratio decidendi que vincula os juízes posteriores. Por mais importantes que os obiter dicta sejam, eles “nunca são mais do que uma autoridade persuasiva” (CROSS; HARRIS, 1991CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 1991., p. 41).

Para as teorias do precedente estritamente vinculante, a relevância de um precedente para solução de um caso futuro está na sua autoridade, e não na razoabilidade da solução que ele propõe para um caso concreto (GOODHART, 1931GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. In: GOODHART, Arthur L. Essays in jurisprudence and the Common Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1931. p. 1-26., p. 4). A doutrina do stare decisis, portanto, vislumbra as razões geradas pelo precedente judicial como decisivas, excludentes, no sentido de vincular de maneira definitiva os tribunais que se colocam sob sua autoridade.

De acordo com Waluchow (1994)WALUCHOW, W. J. Inclusive legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 1994., além da “força gravitacional” que os precedentes exercem sobre os cidadãos, a qual consiste nas razões morais que esses precedentes geram para estes,5 5 A noção de “força gravitacional” dos precedentes foi cunhada por Ronald Dworkin, que se afasta radicalmente do modelo de precedentes vinculantes oferecido pelo positivismo. Para Dworkin (1978, p. 113), “a doutrina da equidade oferece a única perspectiva adequada para toda a prática do precedente”. Essa força gravitacional seria, para Dworkin, a única força que os precedentes possuem, e deveria ser avaliada em termos morais, pois ela deve estar baseada em argumentos de princípio (DWORKIN, 1978, p. 115). os precedentes possuem uma “força institucional”, que compreende a capacidade que os tribunais superiores têm de vincular os tribunais inferiores e os oficiais que aplicam o direito em geral. Como explica o autor, em um sistema de precedentes autoritativos um tribunal intermediário se encontra sob a “força institucional” de um precedente quando ele tem obrigação de decidir conforme a regra estabelecida por esse precedente, carecendo de capacidade institucional para modificá-la mesmo quando estiver convencido de que essa regra é equivocada e merece ser reconsiderada pelo tribunal superior (WALUCHOW, 1994WALUCHOW, W. J. Inclusive legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 1994., p. 39).6 6 Waluchow admite, porém, que essa força institucional pode variar: “a diferença entre estar ‘estritamente’ ou ‘moderadamente’ vinculado por um precedente parece refletir graus diferentes de força institucional” (WALUCHOW, 1994, p. 38). Admite, ainda, uma possibilidade de colisão entre a “força institucional” de um precedente (que varia em função do poder que uma pessoa ou autoridade pode deter de alterar o direito existente para afastar a obrigação de seguir o precedente), e a sua “força gravitacional” (que se refere à existência, ou não, de uma obrigação moral de seguir o precedente). Ver, nesse sentido, Waluchow (1994, p. 39-40). Parece haver, portanto, algumas diferenças significativas entre a concepção de Waluchow, proveniente do positivismo inclusivo, e as concepções mais estritas de Raz e Schauer. A concepção de precedente deste último autor, em que pesem suas próprias afirmações em contrário (SCHAUER, 1991, p. 198), só parecem se compatibilizar com as teorias típicas do positivismo excludente. Como afirmei em escrito anterior, “a sua metodologia [de Schauer] para identificar uma ação como juridicamente obrigatória pressupõe um teste para estabelecer a validade jurídica que é inteiramente independente da moralidade e somente é compatível com o positivismo excludente” (BUSTAMANTE, 2016, p. 40). Não é necessário, porém, aprofundar na análise dessas diferenças entre Waluchow, de um lado, e Raz e Schauer, de outro, pois elas não exercerão influência significativa sobre o argumento aduzido neste trabalho ou sobre a concepção de obiter dictum que tentarei oferecer nas próximas seções.

No common law inglês, esse caráter autoritativo do precedente judicial foi radicalizado a partir do século XIX, sob a influência do positivismo jurídico de Jeremy Bentham (EVANS, 1987EVANS, Jim. Change in the doctrine of precedent during the Nineteenth Century. In: GOLDSTEIN, Laurence. Precedent in law. Oxford: Oxford University Press, 1987. p. 35-72.; BUSTAMANTE, 2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., p. 70-90). A doutrina do precedente estritamente vinculante tornava o precedente vinculante inclusive para a própria Câmara Judicial da House of Lords, exigindo-se a aprovação pelo Parlamento de uma lei para a superação do precedente.7 7 A doutrina do precedente, antes do século XIX, foi um fenômeno similar em todo o continente Europeu, cumprindo a função de unificação do direito no contexto de formação do Estado Moderno. Estava, porém, assentada mais em uma exigência de racionalidade humanista do que em um modelo autoritativo de coordenação do Poder Judiciário. Ver, nesse sentido, Gorla (1981), Moccia (2005), Dolezalek (1998) e Bustamante (2012, 53-70). É apenas no século XIX, com o enrijecimento da doutrina do precedente, que esse contexto começa a mudar. Como sustentei em escrito anterior: “se, de um lado, são as ideias de racionalidade e coerência do direito que fundamentaram o surgimento de uma teoria dos precedentes vinculantes, foi o positivismo novecentista à la Bentham que acabou gerando a doutrina do precedente horizontalmente vinculante, estabelecida pela House of Lords em “London Tramways” (1898). [...] A doutrina do precedente vinculante simpliciter foi um produto do século XVII e uma construção jurisprudencial universal que, no plano histórico-político, coincide com a formação do Estado Moderno e, no plano jurídico-teórico, encontra fundamento nas teorias jurídicas humanistas dos séculos XVI e XVII. [...] A teoria do precedente horizontalmente vinculante, por outro lado, foi fruto de um contexto substancialmente diverso, já no século XIX. Seu fundamento foi um positivismo jurídico que inverteu por completo a balança entre ratio e auctoritas, passando a atribuir mais peso à última, e colocou a segurança jurídica acima de todos os outros valores” (BUSTAMANTE, 2012, p. 83-86).

Neste modelo, afirmava-se que a fundamentação da decisão apresentada como precedente judicial seria irrelevante para determinar a sua autoridade (GOODHART, 1931GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. In: GOODHART, Arthur L. Essays in jurisprudence and the Common Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1931. p. 1-26., p. 4), e que as regras fixadas em precedentes judiciais seriam válidas e vinculantes para os juízes a quo mesmo quando as decisões em que elas tenham sido estabelecidas fossem completamente carentes de razões ou não tenham tido a sua fundamentação publicada (CROSS; HARRIS, 1991CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 1991., p. 47-48).

A distinção entre ratio decidendi e obiter dictum, nesse contexto, se apresentava como o contraponto desta retórica de vinculação estrita. Historicamente, ela cumpriu a tarefa prática de manter aberta a possibilidade de desenvolvimento do common law e de se inaugurar um argumento por analogia em que podemos comparar situações reguladas e não reguladas, de modo a ajustar o direito a necessidades oriundas de casos concretos e zelar pelo caráter argumentativo da prática jurídica.

Como explica Criscuoli, “a necessidade de distinguir entre ratio decidendi e obiter dictum – já oficialmente advertida por Vaughan C.J. em Boles v. Horton, de 1673 – é uma consequência natural do fato de que o juiz não encontra limites” ao enunciar os fundamentos do seu julgamento. Para conter a discricionariedade judicial, é aconselhável que a liberdade para oferecer a justificação de uma decisão judicial seja “balanceada com uma regra segundo a qual nem tudo o que o juiz diz (ou pode dizer) é vinculante para futuros juízes” (CRISCUOLI, 2000CRISCUOLI, Giovanni. Introduzione allo studio del Direito Inglese – Le Fonti. 3.ed. Milão: Giuffrè, 2000., p. 348).

Os defensores da natureza estritamente vinculante do precedente judicial costumam temperar a sua doutrina, portanto, com um método rigoroso para determinar o conteúdo da ratio decidendi: “é somente a regra que tenha de fato sido estabelecida, quando a corte atua com base nela, que é vinculante em casos subsequentes” (BENDITT, 1987BENDITT, Theodore M. The rule of precedent. In: GOLDSTEIN, Laurence. Precedent in Law. Oxford: Oxford University Press, 1987. p. 73-87., p. 99).

Ao contrário da ratio decidendi, que tem ensejado infindáveis discussões teóricas que levam à propositura de diferentes “métodos” de identificação do elemento vinculante de um precedente judicial, o conceito de obiter dictum é relativamente inexplorado pelas teorias do precedente. Costuma-se definir o conceito de obiter dictum negativamente: ou seja, considera-se obiter dictum qualquer pronunciamento judicial, no curso de uma opinião jurídica expressa em um voto ou uma sentença, que não constitui a ratio decidendi de uma decisão e é, por conseguinte, carente de conteúdo jurídico autoritativo.

Obiter dicta são argumentos que podem ou não ser aceitos como razões para pronunciamentos futuros. Eles carecem de “força de precedente” porque apesar de estarem contidos em decisões judiciais vinculantes não constituem a parte vinculante dessas decisões. Bem entendidos, obiter dicta seriam meros repositórios de razões auxiliares que discorrem sobre questões ainda não decididas pelos tribunais.

Essa concepção de precedente como razão excludente, encontrada apenas na ratio decidendi, está exposta a um duplo risco: de um lado, o risco de uma espécie de axiomatização da ratio decidendi, vislumbrando-a como absolutamente vinculante e considerando-a capaz de decidir de maneira estritamente autoritativa todos os casos supervenientes, de modo a gerar razões peremptórias para decidir; de outro lado, o risco de considerar o obiter dictum um pronunciamento judicial carente de relevância prática. Embora pronunciado por um órgão jurisdicional que atua investido de sua função institucional, o obiter dictum corre o risco de não ser tratado como um argumento institucional.

Em vista dessas dificuldades, teorias mais recentes, especialmente no mundo do civil law, sustentaram que a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum é inadequada para compreender a verdadeira força do precedente judicial (BUSTAMANTE, 2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.; GALGANO, 1999GALGANO, Francesco. L’Interpretazione del precedente giudiziario. In: VISINTINI, Giovanna. Metodologia nello studio della giurisprudenza civile e commerciale. Milão: Giuffrè, 1999. p. 215-237., p. 219; ENG, 2000ENG, Svein. The doctrine of precedent in English and Norwegian law – some common and specific features. Scandinavian Studies in Law, v. 39, p. 275-324, 2000., p. 305-311).

E, em sentido análogo, no mundo do common law, A. W. Simpson critica a doutrina do stare decisis sob o fundamento de que ela não é uma característica histórica do common law, que sobreviveu por séculos sem precedentes vinculantes e sem o conceito de ratio decidendi (SIMPSON, 1973SIMPSON, A.W. The Common Law and Legal Theory. In: SIMPSON, A. W. Oxford Essays in Jurisprudence, Second Series. Oxford: Oxford University Press, 1973. p. 77-99., p. 77). Ao invés de um elemento constitutivo do common law, precedentes vinculantes seriam uma criação moderna derivada do “defeituoso esquema para compreensão do common law” oferecido pelo “positivismo jurídico” (SIMPSON, 1973SIMPSON, A.W. The Common Law and Legal Theory. In: SIMPSON, A. W. Oxford Essays in Jurisprudence, Second Series. Oxford: Oxford University Press, 1973. p. 77-99., p. 84).8 8 Não é necessário estabelecer aqui se o ceticismo de Simpson em relação ao positivismo jurídico é justificável, tendo em vista que o propósito deste trabalho é meramente insistir na relevância normativa dos obiter dicta, independentemente de o positivismo ser (ou não) capaz de fornecer uma boa teoria do direito. Em todo caso, parece-me claro que há algumas versões do positivismo jurídico, como, por exemplo, o “positivismo inclusivista”, que estão menos vulneráveis a esse tipo de crítica. Os argumentos mais desafiadores sobre a dificuldade do positivismo para explicar o common law são direcionados à sua versão “exclusivista”, como observamos em Postema (1996) e Martin (2014).

Dentre todas essas críticas, no entanto, a mais contundente se encontra em Neil MacCormick, que sustenta, em contraposição, que a parte relevante de um precedente é apenas a sua justificação (MACCORMICK, 2005MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law. Oxford: Oxford University Press, 2005., p. 144); que pode haver múltiplas rationes decidendi em um único caso (MACCORMICK, 2005MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law. Oxford: Oxford University Press, 2005., p. 153); e que o que torna os precedentes relevantes para o raciocínio jurídico não é somente a autoridade, mas principalmente a exigência moral de universalizabilidade (MACCORMICK, 2005MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law. Oxford: Oxford University Press, 2005., p. 148-149). Para o autor, “o dogma de que cada precedente deve ter apenas uma única e clara ratio decidendi é uma mera ficção, na verdade uma ficção nociva” (MACCORMICK, 1978MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Oxford: Oxford University Press, 1978., p. 83).

As teses de MacCormick encontraram, aliás, forte acolhida na literatura existente no Brasil sobre precedentes judiciais, sendo abundantes os trabalhos que sustentam tanto a possibilidade de mais de uma ratio decidendi como a existência de diferentes graus vinculatividade para os precedentes judiciais.9 9 Ver, Bustamante (2012, p. 282-387), Mello (2008, p. 61-66), Zanetti Jr. (2015, p. 337-346) e Mourão (2016, p. 413-450), onde são apresentados diferentes critérios de classificação dos precedentes judiciais quanto à força ou eficácia.

Apesar de os obiter dicta não expressarem “razões protegidas” que excluem as outras considerações relevantes para solucionar um caso concreto,10 10 Uma das razões pelas quais a concepção positivista do precedente, descrita na seção 1, pode ser criticada é que nem sequer a parte do precedente que constitui a ratio decidendi – entendida como regra do caso – tem essa capacidade. O processo de reconstrução do precedente deve ser mais do que a “descoberta” de regras encravadas na fundamentação de uma decisão, pois constitui uma autêntica interpretação de um material jurídico complexo onde pode haver diferentes regras jurisprudenciais, cada uma com sua própria força que deriva de um leque de fatores institucionais e extrainstitucionais. Tentei elucidar alguns desses fatores em Bustamante (2012). Ver também, de modo mais sucinto, Bustamante (2014). eles tendem a constituir parte da doutrina judicial da corte e expressam de maneira pública e geral argumentos frequentemente considerados “altamente persuasivos” pelo juiz que segue a sentença, voto ou decisão em que ele figure (BANKOWSKI et al., 1997, p. 498). Apesar de esse efeito persuasivo ser muitas vezes negligenciado tanto na literatura anglo-saxã mencionada neste trabalho quanto na literatura nacional,11 11 A literatura nacional sobre precedente judicial caracteriza-se, como a literatura anglo-saxã, pela desatenção à importância dos obiter dicta, preocupando-se mais em diferenciá-los da ratio decidendi, para evitar que se lhes atribuam efeitos vinculantes, do que em determinar o seu próprio valor normativo (ver, nesse sentido, MARINONI, 2010, p. 279-288; ZANETTI JR., 2015, p. 372; MELLO, 2008, p. 125; e BARBOZA, 2014, p. 216-224). Há quem sustente, inclusive, que os precedentes “emanam exclusivamente das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios – isto é, vinculantes”, pois “do contrário, poderiam ser confundidos com simples exemplos” (MITIDIERO, 2017, p. 84). Nesta perspectiva, ainda que o autor não seja explícito nesse ponto, parece-me não haver lugar para qualquer força normativa para um obiter dictum, pois a única alternativa ao efeito vinculante é o argumento ab exemplo. A desatenção com a força normativa dos obiter dictum atinge, inclusive, o autor do presente trabalho, que propôs em escrito anterior “rever a dicotomia rígida entre ratio e ditum, entre a parte vinculante e a parte não vinculante de um precedente judicial” (BUSTAMANTE, 2012, p. 276). Embora eu tenha proposto “rever a dicotomia rígida”, um leitor atento perceberá que na prática a minha teoria é mais radical do que aparenta, pois essa “revisão” acaba por erradicar a diferença entre ratio e dictum, já que a minha teoria (em relação à qual hoje eu confesso ter algumas incertezas) pretende descrever a interpretação dos precedentes judiciais como um “processo hermenêutico” em que identificamos uma (ou mais) norma extraída de um precedente judicial e realizamos um juízo normativo para decidir sobre o “peso ou a força que essa norma vai assumir no futuro” (BUSTAMANTE, 2012, p. 302-306). Quando analisamos as alternativas que eu dei para fixar esse peso, na teoria em comento, vemos que na realidade eu não distingui entre ratio e obiter dictum, pois considerei em abstrato qualquer norma inferida de um precedente judicial. O fato de uma norma não ser necessária ou suficiente para decidir um caso, ou não ter sido objeto de consenso entre os juízes, ou não ter sido objeto de discussão perante as partes, por exemplo, seria uma razão para considerar essa norma como “meramente persuasiva”, que é precisamente o tipo de eficácia que tradicionalmente se atribui ao obiter dictum em geral. Por essa razão, sustento que é preciso, nesse momento, aprofundar nesse ponto e diferenciar os obiter dicta inclusive das rationes decidendi com limitado grau de persuasividade, como pretendo fazer na seção seguinte deste trabalho. uma reflexão adequada sobre os obiter dicta deve ser capaz de superar essa lacuna e não negligenciar a sua capacidade de gerar razões para a ação. Ademais, e esse ponto é verdadeiramente importante para nosso argumento, o obiter dictum não deve ser definido de forma negativa, em contraposição à ratio decidendi. Os propósitos desses dois tipos de pronunciamentos são diferentes: enquanto a ratio decidendi é um elemento necessário da justificação de uma decisão, o obiter dictum não busca apenas produzir fundamentos para justificar a solução de um caso concreto. Ele é necessariamente geral, transcendendo o caso concreto. Por essa razão, na seção seguinte, classificarei o obiter dictum como uma espécie de ato de fala indireto.

2 Os obiter dicta como atos de fala indiretos12 12 Agradeço a um parecerista anônimo deste periódico por me encorajar a prosseguir, em uma seção própria, a intuição, meramente mencionada na primeira versão deste trabalho, de que o obiter dictum pode ser classificado como um ato de fala indireto.

Mesmo não sendo atos decisórios, obiter dicta são atos de fala judiciais, os quais se caracterizam por um importante componente performativo e geram consequências para os participantes da prática jurídica. Para entender a estrutura desses atos, é recomendável ir além da literatura de teoria do direito, realizando uma breve incursão, ainda que propedêutica, na filosofia da linguagem. O que torna os obiter dicta normativamente relevantes não é apenas o significado linguístico (sentence meaning) das afirmações neles contidas, mas também a sua força ilocucionária (a ação realizada pelo falante ao enunciá-los) e os seus efeitos perlocucionários (os efeitos e consequências que eles geram para os seus destinatários, como por exemplo a persuasão ou a formação de uma determinada crença) (AUSTIN, 1962AUSTIN, John L. How to do things with words. 2.ed. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1962., p. 83-s). Conjuntamente considerados, esses elementos se combinam para determinar, à luz de um conjunto de pressuposições de fundo, da intencionalidade do falante e de regras que definem o significado das expressões linguísticas, o sentido de cada ato de fala.

Segundo os ensinamentos da teoria dos atos de fala, o sentido dos atos de fala nem sempre pode ser determinado pelo seu conteúdo semântico e ou por uma suposta correspondência das expressões empregadas com o mundo físico. Em muitos casos, importa mais o aspecto performativo de nossas ações de fala, isto é, o que fazemos ao dizer determinadas coisas.13 13 Embora Austin distinga os atos “ilocutionários”, que dizem determinadas coisas com uma certa força, uma ação discursiva, dos atos “perlocutionários”, que dizem respeito aos “efeitos de dizer algo ou realizar uma asserção” (AUSTIN, 1962, p. 83-ss), essa distinção não precisa ser aprofundada aqui por duas razões. Primeiramente, porque não existem atos puramente perlocucionários. Como explica Peter Pagin, “o ato perlocutionário é realizado por meio de um ato ilocucionário, e depende inteiramente da reação do ouvinte. Por exemplo, por meio de argumentos o falante pode convencer o falante, e por meio de um alerta o falante pode amedrontar o ouvinte. Nesses exemplos, o convencimento e o medo são atos perlocucionários” (PAGIN, 2016, passim). Em segundo lugar, para caracterizar um ato de fala como um obiter dictum não é preciso necessariamente analisar todos os seus efeitos perante os ouvintes. As consequências de um obiter dicta abusivo, por exemplo, são entendidas aqui como meros desdobramentos. Obiter dicta abusivos devem ser evitados, coibidos e, eventualmente, punidos, mesmo que as consequências intencionadas nunca sejam materializadas e mesmo que eles não tenham efeitos perlocucionários relevantes. No caso dos juízes, a posição institucional que eles ocupam e a função que eles exercem, de “dizer o direito” de maneira autoritativa, geram efeitos pragmáticos para os seus pronunciamentos que os tornam capazes de influir nas razões para ação que as demais pessoas e instituições possuem. Quando juízes pronunciam um obiter dictum, eles expressam o que eles pensam que o direito é, e isso é muito importante para qualquer participante da prática jurídica.

Decisões judiciais são, invariavelmente, atos ilocucionários prolatados com autoridade, seja para condenar alguém, reconstituir um determinado estado de coisas, absolver alguém, declarar o conteúdo de um direito, constituir uma relação jurídica ou qualquer ação de natureza análoga.

Sem embargo, é ingênuo imaginar que na fundamentação das decisões judiciais os juízes realizem apenas um único ato de fala. Em vista da extensão e da complexidade dos argumentos encontrados nos atos de aplicação judicial do direito, a sentença judicial dá margem a uma série de atos de fala indiretos, cuja performance é realizada em um contexto discursivo mais amplo.

Sustentarei, nas próximas linhas, que obiter dicta são uma espécie de atos de fala indiretos. Como explica John Searle (1979SEARLE, John R. Indirect Speech Acts. In: SEARLE, John R. Expression and meaning: studies in the theory of speech acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p. 30-57., p. 30), o sentido dos atos de fala nem sempre é simples. Em casos de adivinhações, insinuações, ironia ou metáforas, por exemplo, “o sentido do pronunciamento do falante e o sentido (literal) da sentença podem se afastar de diversas maneiras”. Nesses exemplos, ao expressar uma sentença, o falante “quer expressar o que ele diz mas quer expressar também algo mais”, e possivelmente até mesmo uma “outra ilocução com um conteúdo proposicional diferente” (SEARLE, 1979SEARLE, John R. Indirect Speech Acts. In: SEARLE, John R. Expression and meaning: studies in the theory of speech acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p. 30-57., p. 30). Para descrever essas ações linguísticas, Searle se vale de exemplos simples como as frases “eu quero que você faça algo” e “você pode me passar o sal?” – que por vezes devem ser entendidas não como expressão de um desejo ou formulação de uma pergunta, mas como um pedido. Em tais situações, “o falante pretende produzir no ouvinte o conhecimento de que um pedido foi feito para ele, e ele pretende produzir esse conhecimento ao tornar o ouvinte capaz de reconhecer a sua intenção de produzir esse pedido” (SEARLE, 1979SEARLE, John R. Indirect Speech Acts. In: SEARLE, John R. Expression and meaning: studies in the theory of speech acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p. 30-57., p. 31).

Essas situações ilustram atos de fala indiretos. De acordo com Searle,

Em atos de fala indiretos o falante comunica ao ouvinte mais do que ele de fato diz, por confiar em certas informações de fundo mutuamente compartilhadas, tanto linguísticas quanto não linguísticas, em conjunto com capacidades gerais de racionalidade e inferência por parte do ouvinte. Para sermos mais específicos, o aparato necessário para explicar a parte indireta de um ato de fala inclui uma teoria dos atos de fala, certos princípios gerais de conversação cooperativa (alguns dos quais foram discutidos por Grice), e informações de fundo mutuamente compartilhadas por parte do falante e do ouvinte para realizar inferências. (SEARLE, 1979SEARLE, John R. Indirect Speech Acts. In: SEARLE, John R. Expression and meaning: studies in the theory of speech acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p. 30-57., p. 32).14 14 Foi omitida, na citação acima, a referência bibliográfica consultada por Searle para o pensamento de Grice.

Quando estamos diante de um ato de fala indireto, observamos que o falante realiza ações que dependem de suas intenções e que só podem ser bem compreendidas tendo em consideração uma série de informações de fundo compartilhadas, que determinam contextualmente a relevância do ato de fala e a sua força ilocucionária. São essas informações de fundo que nos revelam, nos atos de fala indiretos, se estamos diante de um pedido, uma repreensão, uma ameaça ou uma autorização, para ficarmos com alguns exemplos.

Sem embargo, em sua teoria dos atos de fala, Searle se vale de exemplos simples e considera os atos de fala em isolamento. Atos de fala, para ele, são a “unidade básica de comunicação” (SEARLE, 1969SEARLE, John R. Speech acts: an essay in the philosophy of language. Cambridge: Cambridge University Press, 1969., p. 21). Seus exemplos são, normalmente, menos complexos do que a estrutura de uma decisão judicial, onde vários fatos são narrados e vários argumentos cumulativamente aduzidos (ou rechaçados) levam a uma única decisão. Seus exemplos assumem, também, na maioria das vezes, situações em que há um falante e um ouvinte determinado ou determinável, e nem sempre isso está presente quando lidamos com pronunciamentos gerais (paralelos ao julgamento de um caso) realizados por uma autoridade jurídica.

Ainda assim, no entanto, a ideia de atos de fala indiretos pode nos ajudar a entender o caráter dos obiter dicta. Pronunciamentos judiciais à margem dos fundamentos estritamente necessários para decidir um caso prático somente se tornam relevantes quando funcionam como atos de fala indiretos em uma decisão judicial. Embora o discurso judicial se volte, genericamente, para a conclusão acerca de um julgamento de um caso concreto, entre a premissa inicial e a conclusão do raciocínio pode haver uma série de obiter dicta. A razão pela qual esses pronunciamentos aparecem na decisão não é a de constituírem fundamentos para a decisão, pois eles normalmente não são nem necessários e nem suficientes para decidir o caso concreto.

Bem entendidos, obiter dicta são atos de fala indiretos porque eles são prolatados em um contexto em que a autoridade judicial é relevante, mas não para decidir um caso concreto. Sua força ilocucionária, portanto, há de ser outra. Obiter dicta podem ser prolatados, por exemplo, para alertar à comunidade jurídica de uma possível modificação futura que se pretende fazer no direito judicial, ou para requerer ao legislador que mude uma determinada lei, ou para realizar uma promessa em relação a uma decisão futura, caso determinada matéria venha a ser apreciada pela corte em um caso posterior, ou para interpretar proposições jurídicas mais abstratas, que apenas indiretamente se relacionam com o caso em juízo; ou ainda, em exemplos menos honrados, para e oferecer apoio a um determinado grupo político particular, ou constranger uma determinada autoridade a decidir um caso ou matéria que ainda não está sob a jurisdição da corte que prolatou o obiter dictum. Todos esses propósitos não coincidem com o conteúdo proposicional dos obiter dicta, sendo, ao contrário, depreendidos de informações de fundo de que dispõem a corte e os destinatários dos seus pronunciamentos.

Em todas essas situações, os obiter dicta adquirem uma relevância prática e são capazes de influenciar o comportamento dos cidadãos, de outros juízes ou de qualquer outra classe de autoridades governamentais. Ainda que os classifiquemos como dotados de uma normatividade frágil, na medida em que não lhes reconhecemos autoridade para resolver definitivamente, com força de precedente vinculante, os casos contidos em suas hipóteses e generalizações, obiter dicta são capazes de influir sobre a prática e de gerar razões para ação. Razões para a ação que, em que pese o seu caráter persuasivo (mas não peremptório), derivam da posição institucional do juiz ou tribunal que os prolatou.

Quando miramos o precedente de uma perspectiva prática, a força normal do obiter dicta se torna inegável. Obiter dicta são quase sempre semiautoritativos, no sentido de que apesar de não serem razões protegidas, no sentido aduzido na seção 1, eles são razões institucionais.

3 Uma concepção ampla de obiter dictum

Diante do reconhecimento de que, ao menos do ponto de vista prático, os obiter dicta são dotados de um peso importante na argumentação jurídica, sendo capazes de exercer força gravitacional e institucional sobre os cidadãos e as instituições jurídicas, são necessários tanto um refinamento analítico, com vistas a especificar os pronunciamentos que devem ser classificados como um obiter dictum, como também uma delimitação das circunstâncias de legitimidade de tais pronunciamentos, isto é, uma reflexão normativa sobre em que condições pode um órgão jurisdicional realizá-los.

No ângulo analítico, o obiter dictum é normalmente definido de maneira negativa, como qualquer pronunciamento realizado por um órgão jurisdicional no curso de um julgamento, mas sem decidir o caso concreto. Como explica Neil MacCormick, obiter dicta se diferenciam da ratio decidendi porque eles são enunciados “para além do ponto ou pontos necessários para solucionar o caso” (MACCORMICK, 1987MACCORMICK, Neil. Why cases have rationes and what these are? In: GOLSDTEIN, Laurence. Precedent in Law. Oxford University Press, 1987. p. 155-182., p. 156). Um obiter dictum é “algo dito por um juiz ao realizar o seu julgamento que não é essencial para a decisão do caso. Ele não forma parte da ratio dencidendi do caso e portanto não cria precedente vinculante, mas pode ser citado como autoridade persuasiva em casos futuros” (MARTIN; LAW, 2006MARTIN, E. A.; LAW, J. Oxford Dictionary of Law. Oxford: Oxford University Press, 2006., p. 363). Duas características saltam aos olhos: (1) obiter dicta são argumentos pronunciados em um voto ou uma decisão jurídica dotada de autoridade; (2) obiter dicta são argumentos que vão além dos estritamente necessários para a solução do problema jurídico em consideração.15 15 Como sintetiza Geoffrey Marshall, um obiter dictum pode se referir a quatro classes de argumentos ou proposições: “O conceito de obiter dicta pode incluir observações sobre um argumento aduzido mas não decidido no caso, ou observações sobre um fato hipotético, ou observações sobre um argumento não aduzido no caso em questão, ou asserções gerais sobre o direito ou a prática, especialmente aquelas realizadas em sede de recurso” (MARSHALL, 1997, p. 515).

Não obstante, como vimos na seção 2, apesar dessa caracterização ser aplicada de forma praticamente unânime, ela é inadequada para explicar o funcionamento desses pronunciamentos e para se adequar à prática jurídica de muitos ordenamentos jurídicos, como, por exemplo, o sistema jurídico brasileiro. Com efeito, embora o segundo elemento do conceito de obiter dictum possa ser considerado essencial – na medida em que é uma característica necessária para distingui-lo da ratio decidendi que eles interpretem o direito, mas não resolvam autoritativamente nenhum caso concreto –, o primeiro elemento pode ser dispensável.

Nesse sentido, é possível a existência de pronunciamentos judiciais semiautoritativos, externados por autoridades competentes, com elevado poder de influência sobre os demais juízes, os cidadãos e as instituições em geral, mas que não sejam necessariamente pronunciados no curso de um voto ou uma sentença judicial. Esses pronunciamentos, na maioria das vezes, são recebidos pela comunidade jurídica como uma interpretação oficial do direito, realizada por um órgão jurisdicional (ou parte dele) dotado de competência para dar respostas oficiais sobre o conteúdo do direito, ou seja, para resolver as nossas divergências sobre o conteúdo do direito e os conflitos que porventura possam surgir sobre a aplicação adequada de suas normas.

Podemos indagar, portanto: do ponto de vista prático, qual é a diferença entre esses pronunciamentos e os tradicionalmente caracterizados como obiter dictum? Em ambos os casos, a relevância do pronunciamento institucional deriva especificamente da função exercida pelo órgão jurisdicional que o pronunciou. Em ambos os casos, o autor do pronunciamento realiza uma interpretação abstrata do direito, externando uma regra geral ou argumento universal que pode ser replicado e contém uma promessa em relação ao futuro, decorrente do dever de imparcialidade e coerência na atividade jurisdicional. Em ambos os casos, esse ato de interpretação do direito por uma autoridade judicial é realizado de maneira pública, embora não tenha sido realizado com vistas a decidir especificamente um litígio concreto. Esses três elementos parecem ser, a meu ver, as características mais relevantes dos obiter dictum, e nenhuma delas implica necessariamente que os pronunciamentos judiciais subsumíveis nesse conceito sejam invariavelmente externados no curso de uma decisão judicial.

Provavelmente, a razão pela qual o conceito tradicional de obiter dictum é empregado de forma aproblemática no mundo do common law está na discrição típica dos magistrados nesses sistemas. Seria impensável, por exemplo, imaginar um magistrado inglês dando uma entrevista ou uma palestra em que comente uma decisão de outro juiz (ainda pendente de recurso) para dizer que ela é correta ou incorreta, ou discutindo aberta e deliberadamente casos, interpretações e argumentos que serão apreciados em casos futuros pelo órgão jurisdicional a que tal magistrado pertence.

Mas se ele realiza esses pronunciamentos, como devemos classificá-los? Se, por exemplo, um Ministro do Supremo Tribunal Federal vem a público, em uma entrevista coletiva de rádio e televisão, dizer, por exemplo, que uma lei em discussão no Congresso é inconstitucional, ou que a decisão de um de seus colegas é contrária ao direito, não podemos esperar que esse pronunciamento tenha efeitos práticos e incentive determinadas atitudes por parte de outros oficiais ou outros poderes? Se esses pronunciamentos vêm acompanhados de interpretações do direito, por mais irrefletidas que essas interpretações sejam e por menos cuidadoso que seja o raciocínio empregado para justificá-las, não é de esperar que os destinatários da prestação judicial considerem essas interpretações ao menos parcialmente relevantes para futuros argumentos jurídicos?

Classificar tais pronunciamentos como obiter dicta, em um sentido amplo ou impróprio, tem a vantagem de explicitar que ambos os tipos de pronunciamentos – internos e externos ao processo judicial em sentido estrito – têm efeitos semelhantes sobre a ação dos demais poderes e envolvem responsabilidades semelhantes, as quais precisam ser bem elucidadas para que possamos saber quando esses pronunciamentos são legítimos.

Ademais, mesmo nos sistemas jurídicos tradicionais do common law, adeptos da mais ortodoxa teoria do precedente, reconhece-se que pronunciamentos judiciais realizados fora de um julgamento específico podem, em casos excepcionais, ter efeitos normativos substanciais, como aconteceu por exemplo no Reino Unido em 1966, quando a Câmara Judicial da House of Lords enunciou o Practice Statement que modificou a sua doutrina que proibia o overruling de precedentes judiciais.16 16 Ver: CROSS; HARRIS, 1991, p. 104.

Propomos entender obiter dictum, portanto, de maneira ampla, é dizer como um pronunciamento público e oficial de uma autoridade ou órgão do Poder Judiciário, normalmente realizado no curso de um processo judicial, sobre uma questão jurídica controvertida, normalmente capaz de influenciar decisões jurídicas posteriores do Judiciário ou de outras instituições jurídicas e de gerar razões para novos argumentos jurídicos.

Antes de analisar os elementos do conceito apresentado, cabe uma advertência. Não pretendi apresentar, com este conceito, uma definição essencialista de obiter dictum, reunindo todas as suas propriedades “necessárias”. Mais adequado para entender a noção de obiter dictum se afigura uma “enumeração tipológica”,17 17 Como explica Misabel Abreu Machado Derzi, enunciados tipológicos se diferenciam de conceitos que são construídos de forma classificatória: “O conceito de classes é definido em um número limitado e necessário de características. Entretanto, o tipo não é definido, mas apenas descrito; suas características não são indispensáveis, sendo que algumas delas podem faltar. Ele está na imagem geral, na visão ou intuição do total” (DERZI, 2008, p. 57-58). À luz dessa classificação, a enumeração das características dos obiter dicta realizada nesse trabalho se aproxima de uma tipologia, ao invés de uma delimitação conceitual rigorosa. ou de “conceitos por agrupamento” (cluster concepts)18 18 A noção de “conceitos por agrupamento” (cluster concepts) é utilizada para se referir a conceitos “cuja aplicação é uma função não de critérios necessários ou suficientes, mas ao invés disso de uma lista ponderada de critérios, sendo que nenhum deles é necessário ou suficiente” (SCHAUER, 2015, p. 172). Esse tipo de uso linguístico é normalmente atribuído a Searle. Ao discutir o uso de nomes próprios, por exemplo, Searle sustenta que a função desses nomes é justamente permitir que sejamos capazes de referir a certos indivíduos ou objetos específicos sem empregar descrições precisas e exaustivas de suas características: “se os critérios para nomes próprios fossem em todos os casos bastante rígidos e específicos, então um nome próprio seria nada mais do que uma abreviação para esses critérios, um nome próprio funcionaria exatamente como uma descrição definida de modo elaborado. Mas o que há de único e a imensa conveniência pragmática de nomes próprios em nossa linguagem residem precisamente no fato de que eles nos permitem referir publicamente a objetos sem sermos forçados a levantar questões e chegar a um acordo sobre quais características descritivas exatamente constituem a identidade do objeto” (SEARLE, 1958, p. 171-172). que estão conectados pelo que Wittgenstein, em suas Investigações filosóficas, denominou de “semelhanças de família”.

Agrupar várias práticas dentro de um mesmo conceito, para Wittgenstein, implica identificar as semelhanças entre vários membros de uma categoria, que justifiquem enquadrá-los dentro do mesmo grupo. Ao expor, por exemplo, diferentes características encontradas nos jogos (alguns deles exigindo maestria, outros apresentando caráter competitivo, outros permitindo derrotas e vitórias, outros podendo ser jogados individualmente, outros em grupos, outros com equipamentos como bolas etc.), Wittgenstein chega à seguinte conclusão:

O resultado dessa observação é esse: nós vemos uma complicada rede de similaridades que se sobrepõem umas às outras e se entrecruzam; por vezes similaridades gerais, por vezes similaridades em detalhes.

Não consigo pensar em nenhuma expressão melhor para caracterizar essas semelhanças do que “semelhanças de família” (family resemblances); pois a várias semelhanças entre os membros de uma família: estatura, traços, cor dos olhos, andar, temperamento etc. se sobrepõem e se entrecruzam da mesma maneira – E eu devo dizer: os “jogos” formam uma família. (WITTGENSTEIN, 1958WITTGENSTEIN, Ludiwg. Philosophical investigations. Trad. G.E.M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958., §§ 66-67, p. 33).

Em outro fragmento, no mesmo parágrafo, Wittgenstein utiliza a imagem de uma corda com várias fibras, e explica que, para ele, o que garante unidade a essa corda não é o fato de uma única fibra percorrer toda a sua extensão, mas o fato de muitas fibras se sobreporem umas às outras, garantindo uma unidade.

Com essa advertência, passo a explicar os elementos desse conceito, que conterá alguns elementos essenciais e outros elementos típicos, mas que serão importantes para entender a noção de obiter dictum (quando sustento que os obiter dicta são “normalmente realizados no curso de um processo”, ou “normalmente” capazes de influenciar decisões jurídicas, ou ainda de “normalmente” gerar razões para novos argumentos jurídicos, estou a me referir a características típicas, que se afirmam como “semelhanças de família”, e não como elementos necessários).19 19 Um desses elementos não essenciais (ou típicos) é o caráter semiautoritativo. O caráter semiautoritativo é, sem dúvida, uma das características mais importantes dos obiter dicta, embora, como veremos, não seja uma característica essencial que pode ser encontrada em todos os pronunciamentos que caracterizamos como obiter dictum. Para uma estratégia de análise semelhante de um conceito diferente (a coerção) e sua importância enquanto característica dos sistemas jurídicos, ver Schauer (2015, p. 1-10). Schauer considera a coerção um elemento central do direito, embora não estritamente necessário do ponto de vista lógico.

Inicialmente, só podem ser enquadrados nesse conceito pronunciamentos públicos, que sejam realizados para um auditório externo à própria corte, estando a autoridade judicial que realiza o pronunciamento ciente de que ele será recebido pelo público como a sua visão a respeito de um tema relevante para a sociedade.

Em segundo lugar, trata-se de um pronunciamento oficial, realizado por uma autoridade judicial investida do seu cargo e detentora das prerrogativas e responsabilidades funcionais que o cargo impõe sobre a sua atuação. Pronunciamentos anteriores ao exercício do cargo, ou posteriores, ou realizados em contextos para os quais a sua função pública é irrelevante, como, por exemplo, as opiniões e interpretações externadas no exercício de uma atividade acadêmica legitimamente acobertada pela liberdade de cátedra, não podem ser classificadas como tal. A relevância prática dos obiter dicta deriva inteiramente de sua capacidade de gerar razões “relacionadas à identidade”,20 20 Teóricos do direito normalmente definem a normatividade do direito como a sua capacidade de prover razões para a ação “relacionadas à identidade” (identity-related). É dizer, razões jurídicas fazem uma diferença prática por causa do seu status jurídico ou de sua origem. Como explica Andrei Marmor (2011, p. 63), “o direito essencialmente pretende gerar razões para a ação ‘relacionadas à identidade’. Quando o direito prescreve um certo modo de conduta, ele reivindica que faz uma diferença prática que seja o direito que o prescreva. Portanto, esta é uma das principais questões sobre a normatividade do direito: como explicar a força das razões relacionadas à identidade como as que o direito pretende gerar?” Quando consideramos a força dos obiter dicta, podemos observar que eles também adquirem um status normativo em virtude de sua fonte judicial, em virtude certas particularidades do contexto comunicativo em que juízes realizam pronunciamentos institucionais, de modo que é razoável atribuir-lhes uma certa força normativa, na medida em que eles fazem uma diferença prática que é ao menos relativamente independente dos seus méritos morais. É importante registrar, porém, que Marmor sustenta que a normatividade do direito pressupõe, invariavelmente, a capacidade de gerar “razões protegidas” no sentido de Raz. Diferentemente dessas razões, as razões geradas pelo obiter dicta são, como ressaltei acima, razões contributivas (HAGE; PECZENIK, 2000, p. 306-308) para a ação, que não excluem outras razões e não reivindicam caráter substitutivo em relação às demais razões para ação. Não me parece que essa característica impeça de classificá-las, porém, como razões relacionadas à identidade. pois são apenas essas que fazem os pronunciamentos judiciais classificados como obiter dictum terem um valor diferente das meras opiniões jurídicas de professores, advogados e cidadãos.

Em terceiro lugar, esses pronunciamentos normalmente são realizados tanto no curso de um julgamento, como acontece nos casos mais frequentes e mais relevantes, como podem também, em casos mais esporádicos, ocorrer fora de um processo. Nessa última hipótese, no entanto, é importante considerar que o conceito amplo de obiter dictum que propomos nesse ensaio se aplica unicamente aos casos em que o pronunciamento é oficial no sentido que se expôs acima, ou seja, unicamente aos pronunciamentos institucionais que são relevantes apenas por causa da função exercida pelo magistrado.

Em quarto lugar, trata-se unicamente de pronunciamentos sobre questões jurídicas controvertidas. Deve haver uma tomada de posição em relação a um tema público, a qual pressupõe uma interpretação do direito que é apresentada, explícita ou implicitamente, como correta. Esse ato de apresentação de tal interpretação traz consigo o efeito ilocucionário de um “autocomprometimento” com essa interpretação por parte do seu autor, que constitui uma promessa implícita em relação ao futuro em decorrência da universalizabilidade na argumentação jurídica institucional. Finalmente, a decisão deve ser relevante, seja por ser capaz de influenciar decisões posteriores do Judiciário ou de outros Poderes,21 21 A decisão possui, nesse caso, a capacidade de ser empregada como um argumento para decisões futuras, como uma razão à qual se possa apelar diante de novas situações em um momento prospectivo. seja por violar, em si mesma, uma obrigação funcional dos magistrados e causar danos a outrem.

Com essa redefinição do conceito de obiter dictum, propondo-se uma interpretação ampla dessa noção tradicional, já estamos em condições de abordar o segundo aspecto relevante de uma concepção adequada desse tipo de pronunciamento judicial: as circunstâncias de sua legitimidade, que serão tratadas na próxima seção.

4 A noção de obiter dictum abusivo

Uma explicação completa das circunstâncias de legitimidade dos obiter dicta é um projeto mais ambicioso do que é possível realizar neste ensaio. Tal explicação precisaria partir de uma teoria geral sobre as obrigações derivadas do papel institucional do Poder Judiciário, isto é, das role obligations da magistratura, e depois especificar quais são os deveres específicos dos magistrados no momento em que realizam pronunciamentos semiautoritativos para interpretar o direito e explicitar publicamente, sem decidir nenhum problema concreto, a sua compreensão do sistema jurídico.

Obrigações derivadas do papel social (role obligations) são um tipo de “obrigações especiais”, é dizer, obrigações que afetam uma classe ou subconjunto de pessoas, “em contraste com as obrigações naturais” que afetam (ou são devidas a) “todas as pessoas, apenas enquanto pessoas” (JESKE, 2014JESKE, Diane. Special Obligations. In: ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Spring 2014. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/special-obligations>. Acesso em: 20 nov. 2017.
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). Obrigações derivadas do papel social têm um valor especial para a democracia quando lidamos com instituições. Como explica Michael Hardimon, no contexto de papéis políticos, familiares ou ocupacionais, essa classe de obrigações compreende um conjunto de “direitos e deveres institucionalmente especificados” (HARDIMON, 1994HARDIMON, Michael. Role obligations. The Journal of Philosophy, v. 91, n. 7, p. 333-363, 1994., p. 334). Uma obrigação dessa natureza, para o autor, é “uma exigência moral que se acopla a um papel institucional, cujo conteúdo é fixado pela função de seu papel, e cuja força normativa deriva desse papel” (HARDIMON, 1994HARDIMON, Michael. Role obligations. The Journal of Philosophy, v. 91, n. 7, p. 333-363, 1994., p. 334; JESKE, 2014JESKE, Diane. Special Obligations. In: ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Spring 2014. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/spr2014/entries/special-obligations>. Acesso em: 20 nov. 2017.
https://plato.stanford.edu/archives/spr2...
). Obrigações desse tipo são, frequentemente, uma classe de obrigações em relação à comunidade, constituindo um exemplo do que Ronald Dworkin denomina “obrigações associativas”, as quais compreendem as responsabilidades que as práticas sociais atribuem ao pertencimento a um grupo social (DWORKIN, 1986DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, MA: Belknap, 1986., p. 196).

A tarefa positiva de explicitar todas as situações em que os juízes estão autorizados a pronunciar obiter dicta é provavelmente irrealizável. Não obstante, é possível proceder de maneira negativa e delimitar situações em que os juízes não têm autoridade moral para se pronunciar, pois os seus pronunciamentos geram efeitos sistêmicos indesejados e podem interferir em decisões que o Poder Judiciário não tem legitimidade para tomar. Nesses casos, os juízes podem comprometer, de maneira autoritária, em vez de autoritativa, o funcionamento das outras instituições. Chamemos os obiter dicta pronunciados nessas situações de obiter dicta abusivos.

Obiter dicta abusivos são particularmente perigosos em momentos de grande polarização política e impasses institucionais que envolvem interpretações controvertidas dos limites de atuação dos três Poderes. Não obstante, é justamente nesses casos “perigosos” em que os obiter dicta abusivos são mais frequentes. É justamente essa frequência de obiter dicta abusivos que torna o Poder Judiciário, no Brasil contemporâneo, um dos mais perigosos agentes de desestabilização da democracia e do Estado de Direito.

É imperioso, por conseguinte, identificar esses obiter dicta abusivos e classificá-los como tais, a fim de evitar a natural expansão e propagação de sua força autoritativa e com isso criar um ambiente hostil aos efeitos sistêmicos que esses obiter dicta tendem a produzir quando não são adequadamente identificados como oficiais, semiautoritativos e ilegítimos. Proponho a seguir, portanto, uma tipologia dos obiter dicta abusivos que facilitará a identificação das suas modalidades.

5 Uma tipologia dos obiter dicta abusivos

Como apontado na seção anterior, obiter dicta abusivos são pronunciamentos institucionais, frequentemente semiautoritativos, para os quais os juízes não estão legitimados, na medida em que transcendem as circunstâncias em que os magistrados têm autoridade legítima para dizer o direito ou pronunciar-se institucionalmente. Nesses contextos, os juízes não podem praticar atos de fala indiretos sem descumprir uma obrigação ligada ao seu papel social. Apresento, a seguir, uma tentativa de tipificação dos casos mais usuais de obiter dicta desse tipo, que contribuem para a sua identificação e para explicitar os potenciais riscos que cada modalidade desses pronunciamentos pode gerar.

5.1. Obiter dicta abusivos em sentido estrito (endoprocessuais)

Por obiter dicta abusivos em sentido estrito ou endoprocessuais entendem-se os pronunciamentos judiciais não estritamente autoritativos – isto é, que não integram a ratio decidendi de uma decisão judicial – realizados no curso da fundamentação de uma decisão judicial. São abusivos (e nesse sentido, diferem dos obiter dicta em geral) porque não têm o efeito de apenas fixar uma doutrina ou expor os princípios gerais sob os quais se funda a jurisprudência da corte e nem meramente de antecipar possíveis mudanças jurisprudenciais, mas de se pronunciar sobre questões acerca das quais os juízes não deveriam ou não poderiam se pronunciar de maneira legítima.

São pronunciamentos semiautoritativos (no sentido definido acima). Obiter dicta abusivos em sentido estrito caracterizam-se pela capacidade de interferir indiretamente na atuação de outros agentes públicos em situações em que se esperaria do Judiciário uma posição de árbitro imparcial. Reúnem todos os elementos necessários e típicos da definição de obiter dictum apresentada na seção 3.

Em face dessa capacidade de gerar argumentos institucionais que constituem razões para a ação de outras autoridades, são considerados pronunciamentos semiautoritativos. Devemos identificar com cuidado, portanto, os elementos abusivos desses pronunciamentos ao encontrar a razão pela qual o ponto ou observação realizado em um julgamento é uma violação de uma “obrigação ligada ao papel institucional” dos juízes. Há que haver, pois, uma norma proibindo o juiz de realizar qualquer asserção sobre uma dada matéria. Oferecerei, a seguir, duas categorias para tais pronunciamentos abusivos, a depender do tipo de norma e ao tipo de órgão que está sujeito à influência do dictum.

5.1.1 Obiter dicta politicamente indutivos

A primeira classe dos obiter dicta abusivos em sentido estrito (endoprocessuais) é a dos “politicamente indutivos”, ou seja, dos obiter dicta que são utilizados em um voto ou decisão jurídica não como reforço de um argumento, mas como uma tomada de posição explícita em um tema sobre o qual a sociedade está profundamente dividida e que está pendente de discussão em esferas políticas que detenham autoridade exclusiva para se pronunciar sobre determinada matéria.

Há duas características centrais desta classe de obiter dicta: (i) a existência de desacordos persistentes sobre determinada questão, que não deve, ao menos no momento, ser decidida pelo Poder Judiciário; e (ii) a existência de um processo deliberativo em curso, na esfera política dotada de legitimidade para tomar essa decisão.

O tipo mais usual de obiter dictum politicamente indutivo é o dos pronunciamentos judiciais sobre o mérito de uma matéria em discussão no Poder Legislativo. Os tribunais devem respeitar, nestes casos, o tempo de cada processo: o Poder Judiciário não deve apresentar a sua interpretação antes de o Legislativo concluir o seu processo deliberativo. O problema do obiter dictum politicamente indutivo é que o pronunciamento oficial do Judiciário pode ensejar (principalmente nos sistemas jurídicos com controle de constitucionalidade, onde eles acabam sendo uma espécie de promessa de decisão futura) uma violação à separação dos Poderes em suas interfaces com o Estado de Direito. Esses princípios, conjuntamente, pressupõem um equilíbrio entre as forças políticas em cada instituição estatal, consideradas fóruns políticos apropriados para resolver (de acordo com os seus próprios julgamentos) os desacordos em seus processos deliberativos.

Quando os juízes tomam partido nessas matérias, eles interferem na política e criam incentivos para decisões particulares, falhando em respeitar um importante aspecto do princípio da Separação de Poderes, que compreende, como Jeremy Waldron elucida, a ideia de “governança articulada”. De acordo com Waldron, a separação de Poderes compreende algo mais do que as noções de “dispersão de poder” entre instituições e um sistema de checks and balances (WALDRON, 2016WALDRON, Jeremy. political theory. Cambridge, MA: Belknap, 2016., p. 45). Por mais importantes que essas noções sejam, o valor da separação dos Poderes não é integralmente satisfeito se não houver também uma diferenciação funcional nos poderes:

O que importa é que a ação governamental tenha se tornado articulada em muitos dos estágios e muitos dos estágios em tal articulação correspondam a exigências do Estado de Direito, tais como os princípios da clareza, promulgação, a integridade das expectativas, o devido processo legal, etc. Cada um desses elementos encarna preocupações com a liberdade, a dignidade e o respeito que o princípio do Estado de Direito representa. Eles oferecem múltiplos pontos de acesso a normas e múltiplos modos de internalização. Individualmente e em conjunto, eles representam a incorporação passo-a-passo de novas normas nas vidas e na ação daqueles que se submetem a elas. Há uma grave falha no Estado de Direito quando algum desses vários passos é omitido, ou quando dois ou mais deles são embaçados ou tratados como não diferenciados [...].

Insistir em ser governado pelo direito [que é um elemento do rule of law] é, entre outras coisas, insistir em ser guiado por um processo que responda à articulação institucional exigida pela separação de poderes: deve haver produção do direito antes que haja adjudicação ou administração, e deve haver adjudicação e o devido processo legal que ela implica antes que haja aplicação coerciva de qualquer ordem. (WALDRON, 2016WALDRON, Jeremy. political theory. Cambridge, MA: Belknap, 2016., p. 64-65).

Quando os juízes se pronunciam sobre questão que ainda não está sob o seu exame, ou seja, questão sobre a qual o Judiciário não deve, pelo menos naquele momento, realizar qualquer pronunciamento, então eles fracassam em respeitar o tipo de independência funcional exigida pela separação dos Poderes e pelo ideal de “governança articulada” pressuposto pelo princípio do Estado de Direito.

Um exemplo expressivo dessa modalidade de obiter dicta abusivo é a decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso no Mandado de Segurança n. 34.448, a qual indeferiu medida cautelar para sustar a tramitação da PEC 241/2016, posteriormente convertida na Emenda Constitucional n. 95, na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2016a). O que chama a atenção nessa decisão é que se trata de medida cautelar em Mandado de Segurança interposto contra a própria tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição, que constitui matéria em relação à qual há farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que apenas quando o processo legislativo for violado é que os parlamentares têm direito a impetrar Mandado de Segurança contra a Mesa da respectiva Casa Legislativa para suspender a tramitação de uma proposição legislativa. A jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que em um caso como esse o processo deve ser extinto sem julgamento de mérito, uma vez que os deputados impetrantes não apontaram qualquer vício de processo legislativo para justificar a suspensão da tramitação da PEC, mas apenas razões de mérito que alegavam violações ao art. 60, § 4º, da Constituição Federal.22 22 Ver, nesse sentido: BRASIL, 2014; BRASIL, 2003. Argumentavam os impetrantes, entre outras coisas, que a referida PEC – que estabelece um congelamento de gastos públicos para os próximos vinte anos, independentemente de qualquer modificação na situação econômica ou fiscal do país e de qualquer eventual aumento populacional ou aumento da arrecadação fiscal – violaria as cláusulas da separação dos Poderes (art. 60, § 4º, III), do voto secreto, universal e periódico (art. 60, § 4º, II) e de garantia dos direitos fundamentais (art. 60, § 4º, IV). O Poder Executivo, pelos próximos 20 anos, estaria proibido de realizar qualquer incremento de despesa, à exceção das despesas com pagamentos de juros da dívida pública, pouco importando até mesmo a decisão do eleitor sobre quais serão os governos futuros e como será a composição do Congresso Nacional nas legislaturas vindouras. Argumentava-se, ainda, que na prática a Emenda à Constituição traria cortes drásticos no orçamento público, os quais tornariam inviável o custeio de direitos fundamentais previstos na própria Constituição.

O que chama a atenção no caso é que ao invés de extinguir o processo sem julgamento de mérito e devolver a matéria ao Poder Legislativo, deixando todos os questionamentos sobre o mérito da PEC para um exame posterior à sua eventual promulgação, em processo próprio, o ministro fez questão de entrar no mérito de todos os pedidos, passando por cima da jurisprudência do seu tribunal que expressamente proíbe o “controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei” (BRASIL, 2014BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 32.033/DF, Tribunal Pleno, Relator para o acórdão Min. Teori Zavascki, j. 20.06.2013, DJe 14.02.2014, v. 227-01, p. 330, Brasília, 2014.).

Ao entrar no mérito, a decisão monocrática potencialmente fortalece a pretensão política dos defensores da PEC nas duas Casas do Congresso Nacional. Ela lhes dá um argumento institucional semiautoritativo no sentido da plausibilidade da proposição, em que pese o seu caráter altamente controvertido, desequilibrando com isso o jogo da deliberação parlamentar e criando justamente o que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal citada pretende evitar, que é uma espécie de controle prévio de constitucionalidade.

Ao avalizar todos os pontos da controvertida proposição legislativa, a decisão monocrática interferiu ilegitimamente no jogo político, prejulgando questões que ainda não estavam suficientemente maduras para qualquer pronunciamento judicial e gerando razões adicionais para uma decisão particular no âmbito do Legislativo. Quando um juiz da Suprema Corte entra no mérito do caso para oferecer um tipo de “conforto” para os defensores do Projeto de Emenda, ele ilegitimamente interfere na integridade dos procedimentos parlamentares, prejulgando questões que não estão abertas para qualquer tipo de pronunciamento judicial.

O Judiciário acaba se comportando, portanto, como uma espécie de garantidor da plausibilidade de teses jurídicas controvertidas que têm de ser discutidas no interior do parlamento, com toda a complexidade de argumentos e forças que existem no interior das Casas Legislativas. Induz, dessa maneira, comportamentos políticos em relação aos quais a magistratura deveria permanecer imparcial.

5.1.2 Obiter dicta abusivos transprocessuais

Um obiter dictum transprocessual é também uma forma abusiva de obiter dictum em sentido estrito. Ele erige uma questão de direito para interferir no julgamento de um outro caso, cujo julgamento está pendente em um órgão jurisdicional diferente. Ele cria incentivos não para outras instituições, como o Parlamento ou o Poder Executivo, mas para outros juízes, pretendendo resolver antecipadamente processos em tramitação perante outras instâncias.

Não basta, porém, estar-se diante de um obiter dictum que pode ser usado como um elemento adicional da fundamentação de um caso futuro, pois essa característica é insuficiente para distinguir o obiter dictum abusivo transprocessual dos obiter dicta em geral. As características essenciais são que: (i) haja um processo já formalizado, sobre o qual exista um amplo debate social – que verse sobre questão relevante de interesse público – e em relação ao qual haja um desacordo razoável por parte da sociedade; e (ii) que o obiter dictum pretenda influir no resultado desse julgamento, sem ter autoridade para tanto.

O obiter dictum transprocessual é abusivo porque ele pretende influir sobre um outro juízo, muitas vezes no mesmo tribunal, prejudicando a qualidade do debate existente na instância apropriada. Por vezes, por exemplo, uma Turma ou um Grupo de Turmas ou Órgão Especial de um tribunal realiza pronunciamentos desse tipo para “pular uma etapa”, ou seja, para diminuir a margem de escolhas do órgão colegiado com competência para julgar o caso e com isso criar uma espécie de “efeito manada” na direção sinalizada pelo obiter dictum.

Um caso paradigmático de obiter dictum transprocessual é o julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) sobre o caso da divulgação, pelo juiz Sérgio Moro, de conversas entre a então presidenta da República Dilma Rousseff e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, às vésperas do impeachment de 2016. Uma das decisões judiciais mais polêmicas da história constitucional recente do Brasil foi a decisão, no âmbito da “operação Lava-Jato”, de tornar públicas gravações de conversas telefônicas entre Lula e várias pessoas, entre elas então presidenta da República Dilma Rousseff. Algumas dessas gravações foram ilegais, por razões diferentes, como o Pleno Supremo Tribunal Federal posteriormente reconheceu (BRASIL, 2017b). No que concerne às gravações da presidenta Dilma Rousseff, o tema produziu séria instabilidade política, na medida em que a ela estava sob julgamento político na Câmara dos Deputados, que analisava as acusações de prática de crime de responsabilidade, com vistas a autorizar a instauração de impeachment pelo Senado Federal e o afastamento da chefe do Poder Executivo.

Pela fundamentação da decisão, pode-se depreender o propósito político de gerar uma reação contra a presidenta da República e interferir em seu desfavor, diante da opinião pública e dos demais agentes públicos responsáveis, no âmbito do Poder Legislativo, pelo julgamento da presidenta. De acordo com Sérgio Moro, “o levantamento propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública e da própria Justiça criminal. A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras” (BENDINELLI; MENDONÇA, 2016BENDINELLI, T.; MENDONÇA, H. Quebra de sigilo de Sérgio Moro é questionada por juristas: entenda. El País, São Paulo, 18 mar. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/17/politica/1458183598_880206.html>. Acesso em: 15 abr. 2018.
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/03...
).

Diante da divulgação alegadamente ilegal dos áudios de conversas privadas da presidenta da República, foi ajuizada representação disciplinar contra o juiz Sérgio Moro junto à Corregedoria do Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF-4), em que se pedia, entre outras providências, a instauração de processo administrativo disciplinar contra o magistrado e o seu afastamento cautelar. Ao julgar um recurso contra o arquivamento desta representação a Corte Especial do TRF-4 decidiu, por 13 votos a 1, em processo relatado pelo desembargador Rômulo Pizzolatti, que não havia indício de infração disciplinar por parte do magistrado, com fundamento na excepcionalidade da situação. Sustentou o relator, em seu voto acompanhado pela ampla maioria, que as interceptações ilegais deveriam ser vistas como “medidas excepcionais” que fariam com que as regras legais que proíbem a divulgação das conversas pudessem ser “suplantadas pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal”. Tratar-se-ia, pois, “sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional” (BRASIL, 2016d).

Essa decisão foi duramente criticada, na medida em que remete à controvertida noção de “razões de Estado”. Nesse sentido, o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni se pronunciou de maneira contundente:

A excepcionalidade foi o argumento legitimador de toda inquisição ao largo da história, desde a caça às bruxas até os nossos dias, passando por todos os golpes de Estado e todas as subsequentes ditaduras. Nunca ninguém exerceu um poder repressivo arbitrário no mundo sem invocar a ‘necessidade’ e a ‘exceção’, mas também é certo que também todos afirmaram hipocritamente que atuavam legitimados pela urgência de salvar valores superiores ante a ameaça de males de extrema gravidade.

Assim, Carl Schmitt destruiu a Constituição de Weimer hierarquizando suas normas e argumentando que o princípio republicano permitiria, em situações excepcionais, ignorar todas as demais normas. Apesar de isso ser um raciocínio perverso para legitimar o poder ilimitado do Führer, pelo menos o fazia invocando o princípio republicano (que, por certo, pouco lhe interessava).

Até ali há motivo de crítica e rechaço, mas não de assombro, que é justamente o que causa a sentença que lemos [do TRF-4], porque esta não se dá o trabalho de invocar nenhum valor superior nem de inventar alguma emergência grave, mas diz diretamente que se pode ignorar a Constituição quando é necessário para aplicar a lei penal em casos que não se considerem ‘normais’.

Experimentamos o assombro ante essa sideral sinceridade revanchista, que se propaga por toda nossa região, passando por cima dos mais elementares limites do direito, sem tomar-se sequer a preocupação que no seu tempo tomou Carl Schmitt. (ZAFFARONI, 2016ZAFFARONI, E. Raúl. El escándalo jurídico. Página 12, Buenos Aires, 30 out. 2016. Disponível em: <https://www.pagina12.com.ar/diario/contratapa/13-313021-2016-10-30.html>. Acesso em: 20 nov. 2017.
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).

Sem embargo, para além do argumento de que a justificativa apresentada pelo TRF-4 seria autoritária, a decisão em questão é problemática também por ter como alvo indireto o próprio magistrado que se pretendia investigar. Ao invés de focar o seu argumento, por exemplo, na ausência de culpabilidade, ou dolo, ou na existência de um conflito de princípios, por exemplo, o tribunal explicitamente afirma que a denominada operação conjunta da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário está dispensada de cumprir as regras ordinárias da Constituição e da lei que definem o conteúdo do “devido processo legal”. A decisão parece redigida com o intuito específico de fornecer ao juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba uma espécie de alento ou reassurance, ou seja, a confiança necessária para prosseguir com o seu modus operandi, que reproduz padrões de investigação, detenções provisórias, delações e (principalmente) vazamentos de dados à imprensa da operação italiana mani pulite.23 23 Ver, nesse sentido, Moro (2004), onde o Juiz Sérgio Moro analisa as principais estratégias de condução processual da operação italiana. Para uma comparação entre a operação italiana e a atuação processual de Sérgio Moro ver Vasconcelos (2015), e para uma crítica a esse tipo de estratégia de condução do processo, que é descrita como própria do “Estado de Exceção”, ver LACOMBE; CAMARGO; VIEIRA, 2016.

Aos olhos do leitor atento, transparece que a decisão da Corte Especial do TRF passa uma espécie de “recado” para o órgão colegiado responsável pelo julgamento dos recursos contra as controvertidas decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba. Do ponto de vista processual, a justificação apresentada é grave não apenas por assumidamente excepcionar a aplicação da lei em vista da “excepcionalidade” do caso concreto, inaugurando uma lógica instrumentalista em que “os fins justificam os meios”, mas também – e principalmente – porque busca exercer influência direta sobre o órgão jurisdicional responsável pelo julgamento de apelação, encorajando-o a adotar uma maior tolerância em face da ilegalidade quando os atos judiciais em discussão sejam os julgamentos realizados no âmbito da Lava-Jato. Trata-se de um obiter dictum transprocessual porque é uma decisão com um alvo certo: a própria Operação Lava-Jato, com seus métodos e condenações.

5.2 Obiter dicta exoprocessuais

A doutrina tradicional não considera o que chamo de obiter dicta exoprocessuais como parte do gênero obiter dictum. Trata-se de pronunciamentos prolatados fora dos autos, embora tipicamente retenham um caráter semiautoritativo semelhante ao dos obiter dicta em sentido estrito. Se adotarmos a definição não essencialista de obiter dictum que ofereci neste ensaio, não há, porém, problemas em se caracterizá-los como obter dicta. Importa, para a caracterização de um obiter dictum exoprocessual, o preenchimento das principais características que mencionamos na seção 3 do presente trabalho. Ainda que fora dos autos, há que ser um pronunciamento público e oficial, cuja relevância é medida não em função do seu conteúdo, mas primordialmente em função da sua origem. O obiter dictum exoprocessual (que também pode ser chamado de obiter dictum em sentido amplo) é importante apenas enquanto ele se refira a pronunciamentos realizados por um magistrado enquanto magistrado, ainda que fora de um processo.

Ademais, só se pode falar em obiter dictum em sentido amplo ou exoprocessual quando o pronunciamento for relevante e versar sobre um caso concreto, uma questão jurídica por ser decidida, capaz de produzir efeitos sistêmicos relevantes ou danos à ordem jurídica. À semelhança dos obiter dicta em sentido estrito, eles constituem uma interpretação do direito realizada por um magistrado ou grupo de magistrados, à qual se agrega uma relevância especial por causa da posição institucional que o magistrado ocupa.

Quanto mais importante seja a função jurisdicional exercida pelo magistrado autor de um obiter dictum exoprocessual, mais relevância institucional tem o pronunciamento. Em consequência, maiores serão também os perigos caso esse obiter dictum seja prolatado de maneira abusiva.

O abuso de obiter dicta exoprocessuais é um fenômeno especialmente grave no Brasil, onde se percebe um elevado grau de influência da opinião pública sobre os julgamentos do Supremo Tribunal Federal (NOVELINO, 2016NOVELINO, Marcelo. O Supremo Tribunal Federal brasileiro e a opinião pública. Revista do Ministério Público, v. 146, p. 77-107, abr.-jun. 2016.) e um alto grau de exposição púbica do magistrado, que quase sempre se sente à vontade para criticar publicamente as decisões de colegas, fazer prognósticos sobre futuras decisões dos tribunais a que está vinculado, conceder entrevistas sobre processos que estão sob sua jurisdição, frequentar eventos acadêmicos e dar palestras, manifestar sua opinião sobre questões políticas etc.

Nessas opiniões, o risco de pronunciamentos infelizes ou desarrazoados multiplica-se em relação aos pronunciamentos realizados em obiter dicta endoprocessuais, na medida em que nestes últimos o magistrado discursa sob o pesado ônus da obrigação de fundamentar as suas decisões, sob pena de nulidade. Mais livres para falar sem o risco de que sua decisão seja anulada por falta de fundamentação, os magistrados na maior parte das vezes realizam esses pronunciamentos com uma menor carga de responsabilidade, aumentando o seu potencial abusivo. Passemos a uma classificação desses pronunciamentos.

5.2.1 Obiter dicta exoprocessuais prejulgadores e indutivos

As classes dos obiter dicta prejulgadores e indutivos normalmente aparecem de forma combinada, merecendo ser tratadas conjuntamente. Os primeiros têm por característica a realização de um julgamento prévio, publicamente manifestado, sobre matéria de fato ou de direito que virá, quase certamente, a ser submetida à apreciação do tribunal do magistrado que realiza esse tipo de pronunciamento. Um obiter dictum prejulgador é um juízo, um ato de interpretação ou aplicação do direito realizado fora dos autos, sobre matéria que está em discussão na sociedade e sobre a qual o Judiciário se pronunciará. É um juízo prévio, anterior à apresentação da defesa do réu ou mesmo, em alguns casos, da própria formulação da acusação pela parte autora.

Em sua forma mais extrema, o obiter dictum prejulgador é também indutivo, pois se manifesta como uma espécie de conselho para os acusadores a ingressarem em juízo pedindo determinada providência, que será apreciada pelo tribunal em um momento futuro.

De todas as formas de obiter dicta abusivos, a forma combinada dos obiter dicta prejulgadores e indutores é a mais grave, pois faz tabula rasa do princípio do Estado de Direito. Um exemplo pode ilustrar o risco que esse tipo de pronunciamento representa.

No dia 6 de setembro de 2017, após a repercussão de uma divulgação, pela Procuradoria-Geral da República, de gravações dos empresários Joesley Batista e Ricardo Saudi, executivos do grupo J&F, proprietário da JBS, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, pediu a palavra no início de uma sessão do Plenário do Supremo Tribunal Federal para se manifestar sobre o conteúdo dessas gravações. Realizou, sentado na cadeira do Plenário do STF, vestindo a toga que os magistrados utilizam ao proferir os seus julgamentos, diante do plenário, um enquadramento jurídico da conduta dos acusados e sugeriu expressamente ao Procurador-Geral da República que pedisse a prisão dos dois acusados. Não havia qualquer pedido de prisão formulado; não havia nenhuma petição, nenhum pedido de providências. O pronunciamento foi externado nos seguintes termos:

Eu verifico que esse episódio de ontem, que foi difundido de forma transparente pelo Sr. Procurador-Geral da República, revelou que esses partícipes do delito, que figuraram como colaboradores, ludibriaram o Ministério Público, degradaram a imagem do país no plano internacional, atentaram contra a dignidade da justiça e revelaram a arrogância dos criminosos do colarinho branco, de sorte que eu deixo ao alvedrio do Ministério Público a opção de fazer com que esses participantes dessa cadeia criminosa, que confessaram diversas corrupções, que eles passassem do exílio nova-iorquino para o exílio da Papuda. Gostaria de sugerir isso aqui, em meu nome pessoal e eventualmente daqueles que concordam com a minha indignação.24 24 Discurso gravado em meio audiovisual disponível em Prazeres e Amorim (2017).

Como de costume, a sessão foi transmitida ao vivo pela TV Justiça e repercutiu em todos os telejornais daquela noite. O discurso foi difundido rapidamente e ganhou a imediata atenção de todos os órgãos de imprensa, levando o Ministério Público a pedir a prisão dos acusados, a qual foi prontamente deferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Observam-se neste exemplo os dois efeitos abusivos do pronunciamento judicial em questão: o prejulgamento e o caráter indutivo, na medida em que independentemente de o Ministério Público ter ou não determinado a sua ação por esse pronunciamento, ele em si já constitui uma razão para a ação da instituição. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, do alto de sua autoridade, realiza não só uma interpretação abstrata da lei, como acontece em alguns casos de obiter dictum abusivo, mas também um enquadramento do fato à norma, é dizer, uma operação básica de subsunção, descrevendo detalhadamente as ilicitudes que considera presentes e a consequência (prisão) a ser engendrada.

Do ponto de vista prático, ele não apenas é capaz de gerar razões para o Ministério Público pedir a prisão dos acusados, mas também realiza um prejulgamento baseado nas notícias de jornal que foram veiculadas no dia anterior, violando de maneira grosseira o princípio do devido processo legal.

5.2.2 Obiter dicta de competição interna

Um obiter dictum pode ser utilizado, ainda, como forma de um magistrado exercer pressão sobre outro, com vistas a minar a autoridade de sua decisão e contribuir para a sua revisão. Fora dos autos, um membro de órgão colegiado pode se manifestar na imprensa contra a decisão de um colega seu, com vistas a ridicularizá-la e a estimular a sua revisão por vias informais.

Para a existência de um obiter dictum de competição interna, os seguintes elementos devem se fazer presentes: de início, a existência de uma decisão de outro magistrado ou órgão jurisdicional sobre uma questão controvertida e relevante, sobre a qual exista um amplo desacordo social; em segundo lugar, uma crítica realizada por outro magistrado, normalmente um magistrado da mesma corte, com poder de participar no mesmo julgamento, em grau de recurso, sobre a decisão em tela; em terceiro lugar, que essa crítica se volte para o público externo à corte, e não para as esferas internas de deliberação; em quarto lugar, que a crítica tenha por objetivo não apenas apontar problemas na decisão, mas esvaziar a sua autoridade, criando incentivos para outras instituições se insurgirem contra a decisão.

Mais uma vez não faltam exemplos desse tipo de pronunciamento judicial no Supremo Tribunal Federal. Quando o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, concedeu medida cautelar na ADPF 402, ajuizada pela Rede de Sustentabilidade, para afastar do exercício do cargo o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros (BRASIL, 2016b), não creio que adotou uma interpretação correta da Constituição Federal.25 25 Ver, nesse sentido, Bustamante e Freitas (2017). Não obstante, o que chama a atenção foi um pronunciamento crítico de outro membro do mesmo tribunal, em sede de obiter dictum de competição. O exemplo de obiter dictum abusivo não proveio de qualquer crítica institucional, qualquer recurso ou argumento jurídico-processual, mas de uma declaração para a imprensa do ministro Gilmar Mendes, que classificou o ministro Marco Aurélio de “doido” e “senil”, pedindo publicamente o seu impeachment. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, a decisão seria “indecente” (MORENO, 2016MORENO, Jorge Bastos. Gilmar sugere inimputabilidade ou impeachment para Marco Aurélio. O Globo, Rio de Janeiro, 6 dez. 2016. Blog de Jorge Bastos Moreno. Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-moreno/post/gilmar-sugere-inimputabilidade-ou-impeachment-para-marco-aurelio.html>. Acesso em: 20 nov. 2017.
http://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-mo...
).

Num contexto de profundo conflito entre o Senado e o Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes iniciou uma campanha pela imprensa para encorajar a Casa Legislativa a resistir à decisão judicial já prolatada, intensificando o risco de uma crise institucional mais profunda e uma ruptura da ordem democrática. No dia seguinte à decisão do ministro Marco Aurélio, após os pronunciamentos do ministro Gilmar Mendes, a Mesa do Senado Federal decidiu não dar cumprimento à decisão, deliberando por “aguardar a deliberação final do Pleno do Supremo Tribunal Federal” (BRASIL, 2016c).

Como se observa, ainda que não se possa concluir que o pronunciamento do ministro Gilmar Mendes de fato implicou a decisão do Senado, fica evidente que ele pelo menos gera razões para a sua realização e cria uma ambiente de grave insegurança jurídica, na medida em que um ministro da Corte passa a dar incentivos públicos para o descumprimento da decisão de outro e abandona o papel de magistrado para atuar como uma espécie de advogado no caso.

Em contextos de fragilidade, discursos desse tipo geram fragmentação da autoridade da corte e uma disputa interna que só faz prejudicar o Estado de Direito, a reputação da corte e a desejável estabilidade política pela qual a Corte deveria zelar.

5.3 Obiter dicta abusivos em sentido impróprio

Um terceiro tipo de obiter dictum abusivo é o composto pelos pronunciamentos judiciais, no curso de um julgamento, que não têm conteúdo semiautoritativo. Em um sentido tecnicamente rigoroso, também pode-se questionar se essa classe de pronunciamento judicial deve ou não ser categorizada como obiter dictum, pois um dos elementos típicos da noção está ausente: a capacidade de influenciar decisões jurídicas do Judiciário ou de outras instituições jurídicas e de gerar razões para novos argumentos jurídicos. Novamente, tais pronunciamentos somente podem ser considerados obiter dicta à luz da definição ampla que se propõe neste trabalho. Contrariamente aos obiter dicta em sentido próprio, tais pronunciamentos não são semiautoritativos para os juízes posteriores e não constituem razões válidas para uso na fundamentação de decisões vindouras. Não têm, pois, sequer autoridade persuasiva. Não obstante, apesar de não possuírem essa nota típica dos obiter dicta em geral, eles possuem as demais as características desse conceito, que são tidas como necessárias (e não meramente típicas): publicidade, oficialidade e relevância institucional. Embora eles sejam prolatados no curso de um julgamento, só podemos classificar esses pronunciamentos como obiter dicta quando adotarmos o conceito não essencialista apresentado neste trabalho.

Denominamos tais pronunciamentos de obiter dicta abusivos em sentido impróprio porque a sua relevância não está no uso posterior que outras autoridades, judiciais ou extrajudiciais, podem dele fazer em atos ou processos futuros, mas nos próprios atos ilocucionários praticados pelos magistrados. Por vezes, por exemplo, juízes realizam discursos no curso de um julgamento que vão além da interpretação do direito ou de sua aplicação adequada às circunstâncias do caso. No julgamento de uma medida cautelar inominada para afastar o senador Aécio Neves do seu mandato parlamentar, por exemplo, o ministro Luiz Fux interrompeu seu voto para repreender pessoalmente o senador e levantar questionamentos sobre a sua idoneidade moral.

Para além da mera aplicação da gravíssima medida cautelar de suspensão do exercício de mandato parlamentar em curso, que tem implicações sobre a separação dos Poderes e a democracia, entre outros princípios constitucionais, o ministro fez questão de repreender o senador por não haver voluntariamente se afastado do mandato e de fazer um discurso moralista para agradar as massas. Ao terminar o seu voto, sustenta que seria exigível do senador um “gesto de grandeza” de se afastar do seu mandato, e que como ele não realizou tal gesto o tribunal deveria auxiliá-lo (FERNANDES, 2017FERNANDES, Talita. Ministro Tucano diz que Fux “zombou” de Aécio ao votar por seu afastamento. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 set. 2017. Poder. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/ 09/1922143-ministro-tucano-diz-que-fux-zombou-de-aecio-ao-votar-por-seu-afastamento.shtml>. Acesso em: 20 nov. 2017.
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/...
). É o que se pode ler no seguinte excerto:

Isso tudo se resume num gesto de grandeza que o homem público deveria ter adotado. Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo exatamente a que ele se porte tal como ele deveria se portar: pedir não só para sair da presidência do PSDB; pedir uma licença, sair do Senado Federal para poder provar à sociedade a ausência de toda e qualquer culpa nesse episódio que acabou marcando de maneira dramática, para nós que convivemos com ele, a sua carreira política. (YOUTUBE, 2017).

O que torna abusivo esse pronunciamento é a extrapolação dos deveres de urbanidade e respeito às partes, que devem ser preservados e protegidos pelo magistrado. Um senador da República, por pior que tenha sido a sua conduta, tem o direito de ser julgado objetivamente, com base em juízos fundados sobre fatos e provas, sendo irrelevantes todas as considerações de apreço ou repúdio, aprovação ou desaprovação pessoal, que os magistrados possam vir a ter sobre sua pessoa ou sua conduta. No caso concreto, ainda que houvesse razões para afastar o Senador – como concluiu a maioria do tribunal (STF AFASTA..., 2017), mas não a maioria do Senado, que deliberou por sustar a referida medida cautelar (BRASIL, 2017a) – não cabe ao magistrado realizar qualquer juízo moral sobre se o Senador deveria ou não ter voluntariamente se afastado do cargo, pois este tem o direito de lutar por seu mandato e a regra geral deve ser a proteção dessa prerrogativa.

O pronunciamento em sede de obiter dictum teve o caráter, portanto, não de um argumento jurídico, mas de uma reprimenda pessoal inadequada e inadmissível em uma corte suprema, funcionando mais como uma penalidade acessória imposta ao réu pelo arbítrio do magistrado do que como um argumento jurídico ou uma interpretação do direito. É uma forma de obiter dictum abusiva não porque pode produzir efeitos sistêmicos inadequados ou influir sobre o comportamento de outros agentes públicos e instituições; ao contrário, é uma conduta intrinsecamente nociva e sua mera realização constitui um populismo judicial que viola frontalmente o Estado de Direito.

Conclusões

A análise das modalidades de obiter dictum abusivos, dentro e fora do processo judicial, com ou sem caráter semiautoritativo, nos remete às exigências que o princípio do Estado de Direito (entendido em sua tradição anglo-saxã, que o define como Rule of Law) impõe sobre a prática jurídica. Em um interessante trabalho recente sobre o tema, o professor Jeremy Waldron formula uma indagação que atrai a nossa atenção sobre a responsabilidade que as autoridades judiciais assumem quando elas decidem casos difíceis pela primeira vez, isto é, quando elas atuam na margem de indeterminação do direito e são chamadas a exercer a função de fixar um precedente para casos futuros. Como o juiz deve se portar diante dessas situações? Qual é a atitude ou postura interpretativa dele esperada e como ele deve desempenhar essa tarefa de fixar autoritativamente uma norma geral para juízes futuros?

De acordo com Waldron, a teoria do Direito como Integridade, proposta por Dworkin, tem muito a dizer em resposta a essa questão, pois o juiz deve se portar como um intérprete (e não autor) do direito, como alguém que busca uma verdade jurídica digna de ser seguida, atraindo para si um esforço intelectual de encontrar a diretriz que emana dos princípios fundamentais do direito, que tornam adequado e justificável o sistema jurídico como um todo. Como explica Waldron,

Quando ele (o juiz) determina que não há uma regra estabelecida que incide direta e explicitamente sobre a situação diante de si, então a questão que ele formula a si mesmo é essa: “Qual impacto, então, tem o direito sobre essa situação, mesmo se ele for um impacto indireto ou implícito?” Ele deve permanecer em contato com o direito; ele deve tentar relacionar os fundamentos da presente determinação de alguma maneira racional com os princípios e políticas e regras e standards previamente estabelecidos. Ele não deve abandonar o direito em troca do canto da sereia da moralidade no primeiro sinal de dificuldade. Ele deve perguntar a si mesmo algo como a questão dworkiniana: “o que o melhor entendimento do direito implica para um caso como esse, tendo em vista que o direito existente não determina a matéria de modo direto ou explícito”? (WALDRON, 2012WALDRON, Jeremy. Stare decisis and the Rule of Law. Michigan Law Review, v. 111, n. 1, p. 1-32, 2012., p. 15).

Essa diretriz para os casos futuros ilustra uma parte substantiva da responsabilidade que a ideia de Estado de Direito implica para os juízes que têm como tarefa estabelecer o conteúdo do direito quando ele é tido como incerto ou duvidoso. Na raiz dessa diretriz está uma atitude institucional de submissão ao direito e um dever de buscar encontrar o direito a partir da sua melhor leitura, considerada a prática social em que ele é gestado. O que a atitude interpretativa dworkiniana exige, como lembra Waldron, não é uma substituição do direito pela moralidade nos clarões deixados pelas regras incompletas; pelo contrário, é uma busca do sentido que deriva da própria prática social e tem que ser encontrado por um esforço intelectual de manter-se fiel a esta prática.

Essa atitude pressupõe um comprometimento com o direito, e não com as opiniões pessoais ou a moralidade genérica. Ela pressupõe, também, um comprometimento com os processos e os lugares da deliberação (WALDRON, 2011WALDRON, Jeremy. The Rule of Law and the importance of procedure. In: FLEMING, James. Getting to the Rule of Law. Nomos. New York: New York University Press, 2011. v. 50, p. 3-31.; POSTEMA, 2004POSTEMA, Gerald J. Integrity: Justice in workclothes. In: BURLEY, Justice. Dworkin and his critics, with replies from Dworkin. Maldem: Blackwell, 2004. p. 291-318.), um respeito ao momento adequado de decidir. Se a argumentação jurídica se legitima porque o Poder Judiciário pode consistir um “fórum de princípio”, como propõe Dworkin (1985DWORKIN, Ronald. The forum of principle. In: DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985. p. 33-71., p. 69-70), é necessário um respeito a esse fórum e à ética específica que rege as atuações dos participantes desse fórum.

Todos os casos de obiter dicta abusivos tratados neste ensaio rompem com essa atitude. Eles representam a atitude de um juiz que se sente um protagonista na construção da prática a partir de si mesmo, isto é, a partir de seus juízos políticos ou moral independentes, que muitas vezes são considerados superiores aos que somos capazes de extrair da prática por via do processo de interpretação. Ademais, eles representam, de forma ainda mais perigosa, uma indiferenciação perigosa entre direito e política que subordina a ideia de legalidade e de Estado de Direito a um instrumentalismo vulgar que não reconhece na lei limites genuínos à atividade das instituições.

Obiter dicta abusivos são abusivos porque não é dado aos juízes nem sair do direito no momento em que eles se encontram sob a responsabilidade de construir as suas decisões e nem tomar a dianteira das deliberações políticas necessárias para a construção do direito. Existe uma moralidade específica do processo de argumentação jurídica, isto é, da maneira institucionalizada para deliberarmos sobre direito e construirmos as soluções para nossos desacordos interpretativos sobre o seu conteúdo. Obiter dicta abusivos não são só palavras inoportunas ou discursos fora de contexto, pois eles produzem resultados e extravasam o âmbito de legitimidade da influência do Poder Judiciário sobre o conteúdo de nossas obrigações. Entender e conter esse tipo de pronunciamento judicial é uma tarefa importante para a manutenção do Estado de Direito, do equilíbrio entre os poderes e da estabilidade institucional.

nota de agradecimento

O autor do artigo é Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ-2). Recebeu recursos no processo n. 305188/ 2013-5.

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  • SIMPSON, A.W. The Common Law and Legal Theory. In: SIMPSON, A. W. Oxford Essays in Jurisprudence, Second Series Oxford: Oxford University Press, 1973. p. 77-99.
  • STF AFASTA AÉCIO do mandato e determina recolhimento domiciliar noturno, EBC – Agência Brasil, Brasília, 26 set. 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-09/stf-afasta-aecio-de-mandato-e-determina-recolhimento-domiciliar-noturno> Acesso em: 15 abr. 2018.
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  • VASCONCELOS, Frederico. Escrito em 2004, artigo de Moro sobre operação em Itália espelha Lava Jato. Folha de S. Paulo, 29.12.2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/12/1723856-escrito-em-2004-artigo-de-moro-sobre-operacao-na-italia-espelha-lava-jato.shtml> Acesso em: 20 abr. 2018.
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  • WALDRON, Jeremy. The Rule of Law and the importance of procedure. In: FLEMING, James. Getting to the Rule of Law. Nomos New York: New York University Press, 2011. v. 50, p. 3-31.
  • WALDRON, Jeremy. Stare decisis and the Rule of Law. Michigan Law Review, v. 111, n. 1, p. 1-32, 2012.
  • WALDRON, Jeremy. political theory Cambridge, MA: Belknap, 2016.
  • WALUCHOW, W. J. Inclusive legal positivism Oxford: Oxford University Press, 1994.
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  • ZANETTI JR. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Jus Podivm, 2015.
  • 1
    Quando faço alusão ao método “interpretativo”, a minha referência fundamental é à obra de Ronald Dworkin (1986DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, MA: Belknap, 1986., p. 46-48), que sustenta que para interpretar práticas sociais que realizam determinados valores é necessária uma atitude interpretativa com dois componentes: (1) identificar os princípios que tornam essa prática valiosa; e (2) ler essa prática à luz desses princípios, buscando construí-la da melhor maneira que ela pode ser (tendo esses princípios como vetores). Em termos concretos, pretendo, para atingir o segundo desiderato do trabalho (identificar as circunstâncias de legitimidade de uso dos obiter dicta), partir de uma interpretação construtiva de casos concretos à luz dos princípios do Estado de Direito (rule of law) e da Separação dos Poderes, que serão referidos na seção 5. Nesta seção, ofereço uma tipologia de atos de fala abusivos a partir de exemplos de magistrados brasileiros.
  • 2
    Ao sustentarmos a influência do positivismo jurídico na doutrina do precedente vinculante em sentido estrito, é necessário evitar dois mal-entendidos: (1) Afirmar que a doutrina dos precedentes estritamente vinculantes assume estas premissas do positivismo analítico não implica a conclusão de que devemos aderir ao positivismo jurídico. Pelo contrário, caso pretendamos, como me pareceu mais atraente em trabalho anterior, desenvolver uma teoria não positivista do precedente judicial, devemos colocar em questão a própria conclusão de que pode haver um sistema de precedentes tão vinculantes quanto o descrito pela concepção tradicional do common law. Como expliquei em trabalho anterior, “com o obscurecimento do positivismo jurídico” o modelo oferecido pela teoria inglesa tradicional “deixa de constituir uma alternativa viável para orientar a interpretação e a aplicação do direito judicial” (BUSTAMANTE, 2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., p. 253). (2) De outro lado, é importante frisar, também, que adotar uma concepção positivista de direito não leva também necessariamente a um modelo estrito de precedentes, pois é possível, como veremos mais adiante, sustentar uma concepção de positivismo jurídico que atribua diferentes graus de força institucional para os precedente judiciais (ver, nesse sentido, WALUCHOW, 1994WALUCHOW, W. J. Inclusive legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 1994., p. 31-79).
  • 3
    O positivismo analítico da tradição de H. L. A. Hart, diferentemente da vertente de Hans Kelsen, sustenta uma clara demarcação entre atos de criação e de aplicação do direito (incluindo-se quando a mesma entidade, como um tribunal, tem poder para aplicar e discricionariamente criar novas regras jurídicas). Ver, nesse sentido, Hart (1994, p. 272-276) e Kelsen (1998KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 260-263).
  • 4
    Segundo Schauer, precedentes não coincidem necessariamente com a categoria das regras porque neles nem sempre está evidente um aspecto essencial destas últimas, que é a generalização de um predicado factual assumido como suposto de fato para a sua incidência (SCHAUER, 1991, p. 187). Sem embargo, um precedente judicial só será relevante se da descrição factual que ele apresenta se puderem inferir, por meio de generalizações prescritivas, regras derivadas de precedentes ou generalizações suficientes para gerar razões autoritativas para a ação.
  • 5
    A noção de “força gravitacional” dos precedentes foi cunhada por Ronald Dworkin, que se afasta radicalmente do modelo de precedentes vinculantes oferecido pelo positivismo. Para Dworkin (1978, p. 113), “a doutrina da equidade oferece a única perspectiva adequada para toda a prática do precedente”. Essa força gravitacional seria, para Dworkin, a única força que os precedentes possuem, e deveria ser avaliada em termos morais, pois ela deve estar baseada em argumentos de princípio (DWORKIN, 1978, p. 115).
  • 6
    Waluchow admite, porém, que essa força institucional pode variar: “a diferença entre estar ‘estritamente’ ou ‘moderadamente’ vinculado por um precedente parece refletir graus diferentes de força institucional” (WALUCHOW, 1994, p. 38). Admite, ainda, uma possibilidade de colisão entre a “força institucional” de um precedente (que varia em função do poder que uma pessoa ou autoridade pode deter de alterar o direito existente para afastar a obrigação de seguir o precedente), e a sua “força gravitacional” (que se refere à existência, ou não, de uma obrigação moral de seguir o precedente). Ver, nesse sentido, Waluchow (1994WALUCHOW, W. J. Inclusive legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 1994., p. 39-40). Parece haver, portanto, algumas diferenças significativas entre a concepção de Waluchow, proveniente do positivismo inclusivo, e as concepções mais estritas de Raz e Schauer. A concepção de precedente deste último autor, em que pesem suas próprias afirmações em contrário (SCHAUER, 1991, p. 198), só parecem se compatibilizar com as teorias típicas do positivismo excludente. Como afirmei em escrito anterior, “a sua metodologia [de Schauer] para identificar uma ação como juridicamente obrigatória pressupõe um teste para estabelecer a validade jurídica que é inteiramente independente da moralidade e somente é compatível com o positivismo excludente” (BUSTAMANTE, 2016BUSTAMANTE, Thomas. Coercion and the normativity of law: some critical remarks on Frederick Schauer’s The Force of Law. In: BEZEMECK, Christoph; LADAVAC, Nicoletta. The Force of Law reaffirmed: Frederick Schauer and his critics. Heidelberg: Springer, 2016. p. 27-59., p. 40). Não é necessário, porém, aprofundar na análise dessas diferenças entre Waluchow, de um lado, e Raz e Schauer, de outro, pois elas não exercerão influência significativa sobre o argumento aduzido neste trabalho ou sobre a concepção de obiter dictum que tentarei oferecer nas próximas seções.
  • 7
    A doutrina do precedente, antes do século XIX, foi um fenômeno similar em todo o continente Europeu, cumprindo a função de unificação do direito no contexto de formação do Estado Moderno. Estava, porém, assentada mais em uma exigência de racionalidade humanista do que em um modelo autoritativo de coordenação do Poder Judiciário. Ver, nesse sentido, Gorla (1981)GORLA, Gino. L’uniforme interpretazione della legge e i tribunali supremi. In: GORLA, Gino. Diritto comparato e diritto comune europeo. Milão: Giuffrè, 1981. p. 511-540., Moccia (2005)MOCCIA, Luigi. Comparazione giuridica e diritto europeo. Milão: Giuffrè, 2005., Dolezalek (1998)DOLEZALEK, Gero. I precedenti giudiziale nello Ius Commune. In: VINCENTI, UMBERTO. Il Valore dei preceddenti giudiziali nella tradizione europea. Padova: Cedam, 1998. p. 55-80. e Bustamante (2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., 53-70). É apenas no século XIX, com o enrijecimento da doutrina do precedente, que esse contexto começa a mudar. Como sustentei em escrito anterior: “se, de um lado, são as ideias de racionalidade e coerência do direito que fundamentaram o surgimento de uma teoria dos precedentes vinculantes, foi o positivismo novecentista à la Bentham que acabou gerando a doutrina do precedente horizontalmente vinculante, estabelecida pela House of Lords em “London Tramways” (1898). [...] A doutrina do precedente vinculante simpliciter foi um produto do século XVII e uma construção jurisprudencial universal que, no plano histórico-político, coincide com a formação do Estado Moderno e, no plano jurídico-teórico, encontra fundamento nas teorias jurídicas humanistas dos séculos XVI e XVII. [...] A teoria do precedente horizontalmente vinculante, por outro lado, foi fruto de um contexto substancialmente diverso, já no século XIX. Seu fundamento foi um positivismo jurídico que inverteu por completo a balança entre ratio e auctoritas, passando a atribuir mais peso à última, e colocou a segurança jurídica acima de todos os outros valores” (BUSTAMANTE, 2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., p. 83-86).
  • 8
    Não é necessário estabelecer aqui se o ceticismo de Simpson em relação ao positivismo jurídico é justificável, tendo em vista que o propósito deste trabalho é meramente insistir na relevância normativa dos obiter dicta, independentemente de o positivismo ser (ou não) capaz de fornecer uma boa teoria do direito. Em todo caso, parece-me claro que há algumas versões do positivismo jurídico, como, por exemplo, o “positivismo inclusivista”, que estão menos vulneráveis a esse tipo de crítica. Os argumentos mais desafiadores sobre a dificuldade do positivismo para explicar o common law são direcionados à sua versão “exclusivista”, como observamos em Postema (1996)POSTEMA, Gerald J. Law’s autonomy and public practical reason. In: GEORGE, Robert P. The autonomy of law – essays on legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 79-118. e Martin (2014)MARTIN, Margaret. Judging positivism. Oxford: Hart Publishing, 2014..
  • 9
    Ver, Bustamante (2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., p. 282-387), Mello (2008MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 61-66), Zanetti Jr. (2015, p. 337-346) e Mourão (2016MOURÃO, Juraci. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: Jus Podivm, 2016., p. 413-450), onde são apresentados diferentes critérios de classificação dos precedentes judiciais quanto à força ou eficácia.
  • 10
    Uma das razões pelas quais a concepção positivista do precedente, descrita na seção 1, pode ser criticada é que nem sequer a parte do precedente que constitui a ratio decidendi – entendida como regra do caso – tem essa capacidade. O processo de reconstrução do precedente deve ser mais do que a “descoberta” de regras encravadas na fundamentação de uma decisão, pois constitui uma autêntica interpretação de um material jurídico complexo onde pode haver diferentes regras jurisprudenciais, cada uma com sua própria força que deriva de um leque de fatores institucionais e extrainstitucionais. Tentei elucidar alguns desses fatores em Bustamante (2012)BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.. Ver também, de modo mais sucinto, Bustamante (2014)BUSTAMANTE, Thomas. La interpretación y la fuerza gravitacional de los precedentes judiciales: fragmentos de una teoría del precedente judicial. In: BENAVIDES, José Luis. Contribuciones para el sistema de precedentes jurisprudencial y administrativo. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2014. p. 111-140..
  • 11
    A literatura nacional sobre precedente judicial caracteriza-se, como a literatura anglo-saxã, pela desatenção à importância dos obiter dicta, preocupando-se mais em diferenciá-los da ratio decidendi, para evitar que se lhes atribuam efeitos vinculantes, do que em determinar o seu próprio valor normativo (ver, nesse sentido, MARINONI, 2010MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2010., p. 279-288; ZANETTI JR., 2015, p. 372; MELLO, 2008MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 125; e BARBOZA, 2014BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 216-224). Há quem sustente, inclusive, que os precedentes “emanam exclusivamente das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios – isto é, vinculantes”, pois “do contrário, poderiam ser confundidos com simples exemplos” (MITIDIERO, 2017MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017., p. 84). Nesta perspectiva, ainda que o autor não seja explícito nesse ponto, parece-me não haver lugar para qualquer força normativa para um obiter dictum, pois a única alternativa ao efeito vinculante é o argumento ab exemplo. A desatenção com a força normativa dos obiter dictum atinge, inclusive, o autor do presente trabalho, que propôs em escrito anterior “rever a dicotomia rígida entre ratio e ditum, entre a parte vinculante e a parte não vinculante de um precedente judicial” (BUSTAMANTE, 2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., p. 276). Embora eu tenha proposto “rever a dicotomia rígida”, um leitor atento perceberá que na prática a minha teoria é mais radical do que aparenta, pois essa “revisão” acaba por erradicar a diferença entre ratio e dictum, já que a minha teoria (em relação à qual hoje eu confesso ter algumas incertezas) pretende descrever a interpretação dos precedentes judiciais como um “processo hermenêutico” em que identificamos uma (ou mais) norma extraída de um precedente judicial e realizamos um juízo normativo para decidir sobre o “peso ou a força que essa norma vai assumir no futuro” (BUSTAMANTE, 2012BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012., p. 302-306). Quando analisamos as alternativas que eu dei para fixar esse peso, na teoria em comento, vemos que na realidade eu não distingui entre ratio e obiter dictum, pois considerei em abstrato qualquer norma inferida de um precedente judicial. O fato de uma norma não ser necessária ou suficiente para decidir um caso, ou não ter sido objeto de consenso entre os juízes, ou não ter sido objeto de discussão perante as partes, por exemplo, seria uma razão para considerar essa norma como “meramente persuasiva”, que é precisamente o tipo de eficácia que tradicionalmente se atribui ao obiter dictum em geral. Por essa razão, sustento que é preciso, nesse momento, aprofundar nesse ponto e diferenciar os obiter dicta inclusive das rationes decidendi com limitado grau de persuasividade, como pretendo fazer na seção seguinte deste trabalho.
  • 12
    Agradeço a um parecerista anônimo deste periódico por me encorajar a prosseguir, em uma seção própria, a intuição, meramente mencionada na primeira versão deste trabalho, de que o obiter dictum pode ser classificado como um ato de fala indireto.
  • 13
    Embora Austin distinga os atos “ilocutionários”, que dizem determinadas coisas com uma certa força, uma ação discursiva, dos atos “perlocutionários”, que dizem respeito aos “efeitos de dizer algo ou realizar uma asserção” (AUSTIN, 1962, p. 83-ss), essa distinção não precisa ser aprofundada aqui por duas razões. Primeiramente, porque não existem atos puramente perlocucionários. Como explica Peter Pagin, “o ato perlocutionário é realizado por meio de um ato ilocucionário, e depende inteiramente da reação do ouvinte. Por exemplo, por meio de argumentos o falante pode convencer o falante, e por meio de um alerta o falante pode amedrontar o ouvinte. Nesses exemplos, o convencimento e o medo são atos perlocucionários” (PAGIN, 2016PAGIN, Peter. Assertion. In: ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Winter 2016. Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/assertion/>. Acesso em: 1 abr. 2018.
    https://plato.stanford.edu/archives/win2...
    , passim). Em segundo lugar, para caracterizar um ato de fala como um obiter dictum não é preciso necessariamente analisar todos os seus efeitos perante os ouvintes. As consequências de um obiter dicta abusivo, por exemplo, são entendidas aqui como meros desdobramentos. Obiter dicta abusivos devem ser evitados, coibidos e, eventualmente, punidos, mesmo que as consequências intencionadas nunca sejam materializadas e mesmo que eles não tenham efeitos perlocucionários relevantes.
  • 14
    Foi omitida, na citação acima, a referência bibliográfica consultada por Searle para o pensamento de Grice.
  • 15
    Como sintetiza Geoffrey Marshall, um obiter dictum pode se referir a quatro classes de argumentos ou proposições: “O conceito de obiter dicta pode incluir observações sobre um argumento aduzido mas não decidido no caso, ou observações sobre um fato hipotético, ou observações sobre um argumento não aduzido no caso em questão, ou asserções gerais sobre o direito ou a prática, especialmente aquelas realizadas em sede de recurso” (MARSHALL, 1997MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent. In: MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Interpreting precedents. Aldershot: Ashgate, 1997. p. 503-517., p. 515).
  • 16
    Ver: CROSS; HARRIS, 1991CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 1991., p. 104.
  • 17
    Como explica Misabel Abreu Machado Derzi, enunciados tipológicos se diferenciam de conceitos que são construídos de forma classificatória: “O conceito de classes é definido em um número limitado e necessário de características. Entretanto, o tipo não é definido, mas apenas descrito; suas características não são indispensáveis, sendo que algumas delas podem faltar. Ele está na imagem geral, na visão ou intuição do total” (DERZI, 2008, p. 57-58). À luz dessa classificação, a enumeração das características dos obiter dicta realizada nesse trabalho se aproxima de uma tipologia, ao invés de uma delimitação conceitual rigorosa.
  • 18
    A noção de “conceitos por agrupamento” (cluster concepts) é utilizada para se referir a conceitos “cuja aplicação é uma função não de critérios necessários ou suficientes, mas ao invés disso de uma lista ponderada de critérios, sendo que nenhum deles é necessário ou suficiente” (SCHAUER, 2015SCHAUER, Frederick. The force of law. Cambridge, MA: Belknap, 2015., p. 172). Esse tipo de uso linguístico é normalmente atribuído a Searle. Ao discutir o uso de nomes próprios, por exemplo, Searle sustenta que a função desses nomes é justamente permitir que sejamos capazes de referir a certos indivíduos ou objetos específicos sem empregar descrições precisas e exaustivas de suas características: “se os critérios para nomes próprios fossem em todos os casos bastante rígidos e específicos, então um nome próprio seria nada mais do que uma abreviação para esses critérios, um nome próprio funcionaria exatamente como uma descrição definida de modo elaborado. Mas o que há de único e a imensa conveniência pragmática de nomes próprios em nossa linguagem residem precisamente no fato de que eles nos permitem referir publicamente a objetos sem sermos forçados a levantar questões e chegar a um acordo sobre quais características descritivas exatamente constituem a identidade do objeto” (SEARLE, 1958SEARLE, John R. Proper names. Mind, v. 67. n. 266, p. 166-173, 1958., p. 171-172).
  • 19
    Um desses elementos não essenciais (ou típicos) é o caráter semiautoritativo. O caráter semiautoritativo é, sem dúvida, uma das características mais importantes dos obiter dicta, embora, como veremos, não seja uma característica essencial que pode ser encontrada em todos os pronunciamentos que caracterizamos como obiter dictum. Para uma estratégia de análise semelhante de um conceito diferente (a coerção) e sua importância enquanto característica dos sistemas jurídicos, ver Schauer (2015SCHAUER, Frederick. The force of law. Cambridge, MA: Belknap, 2015., p. 1-10). Schauer considera a coerção um elemento central do direito, embora não estritamente necessário do ponto de vista lógico.
  • 20
    Teóricos do direito normalmente definem a normatividade do direito como a sua capacidade de prover razões para a ação “relacionadas à identidade” (identity-related). É dizer, razões jurídicas fazem uma diferença prática por causa do seu status jurídico ou de sua origem. Como explica Andrei Marmor (2011MARMOR, Andrei. Philosophy of law. Princeton: Princeton University Press, 2011., p. 63), “o direito essencialmente pretende gerar razões para a ação ‘relacionadas à identidade’. Quando o direito prescreve um certo modo de conduta, ele reivindica que faz uma diferença prática que seja o direito que o prescreva. Portanto, esta é uma das principais questões sobre a normatividade do direito: como explicar a força das razões relacionadas à identidade como as que o direito pretende gerar?” Quando consideramos a força dos obiter dicta, podemos observar que eles também adquirem um status normativo em virtude de sua fonte judicial, em virtude certas particularidades do contexto comunicativo em que juízes realizam pronunciamentos institucionais, de modo que é razoável atribuir-lhes uma certa força normativa, na medida em que eles fazem uma diferença prática que é ao menos relativamente independente dos seus méritos morais. É importante registrar, porém, que Marmor sustenta que a normatividade do direito pressupõe, invariavelmente, a capacidade de gerar “razões protegidas” no sentido de Raz. Diferentemente dessas razões, as razões geradas pelo obiter dicta são, como ressaltei acima, razões contributivas (HAGE; PECZENIK, 2000HAGE, Jaap; PECZENIK, Aleksander. Law, morals and defeasibility. Ratio Juris, v. 13. n. 3, p. 305-325, 2000., p. 306-308) para a ação, que não excluem outras razões e não reivindicam caráter substitutivo em relação às demais razões para ação. Não me parece que essa característica impeça de classificá-las, porém, como razões relacionadas à identidade.
  • 21
    A decisão possui, nesse caso, a capacidade de ser empregada como um argumento para decisões futuras, como uma razão à qual se possa apelar diante de novas situações em um momento prospectivo.
  • 22
    Ver, nesse sentido: BRASIL, 2014BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 32.033/DF, Tribunal Pleno, Relator para o acórdão Min. Teori Zavascki, j. 20.06.2013, DJe 14.02.2014, v. 227-01, p. 330, Brasília, 2014.; BRASIL, 2003BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança 24.677/DF, decisão monocrática. Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13.11.2003, DJ de 20.11.2003, p. 41, Brasília, 2003..
  • 23
    Ver, nesse sentido, Moro (2004)MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação Mani Pulite. Revista CEJ, v. 8, n. 26, p. 56-62, set. 2004., onde o Juiz Sérgio Moro analisa as principais estratégias de condução processual da operação italiana. Para uma comparação entre a operação italiana e a atuação processual de Sérgio Moro ver Vasconcelos (2015)VASCONCELOS, Frederico. Escrito em 2004, artigo de Moro sobre operação em Itália espelha Lava Jato. Folha de S. Paulo, 29.12.2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/12/1723856-escrito-em-2004-artigo-de-moro-sobre-operacao-na-italia-espelha-lava-jato.shtml>. Acesso em: 20 abr. 2018.
    http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/...
    , e para uma crítica a esse tipo de estratégia de condução do processo, que é descrita como própria do “Estado de Exceção”, ver LACOMBE; CAMARGO; VIEIRA, 2016.
  • 24
    Discurso gravado em meio audiovisual disponível em Prazeres e Amorim (2017)PRAZERES, Leandro; AMORIM, Felipe. Fux defende no STF prisão de Joesley e Saud: “que passem ao exílio da Papuda”. UOL Notícias, São Paulo, 6 set. 2017. Disponível em: https://noticias.uol.com. br/politica/ultimas-noticias/2017/09/06/apos-divulgacao-de-audio-fux-defende-prisao-de-joesley-e-ricardo-saud.htm. Accesso em: 20 nov. 2017
    https://noticias.uol.com. br/politica/ul...
    .
  • 25
    Ver, nesse sentido, Bustamante e Freitas (2017)BUSTAMANTE, Thomas; FREITAS, Graça Maria Borges de. Separação e equilíbrio de poderes: reflexões sobre democracia e desenho institucional do STF pós-88. Cadernos Adenauer, v. 18, n. 1, p. 193-216, 2017..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2017
  • Aceito
    20 Abr 2018
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