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Trabalhar e não ser trabalhador: pertencimento e reconhecimento de classe na “vida do crime”

TO WORK AND NOT TO BE A WORKER: CLASS BELONGING, CLASS RECOGNITION AND CRIMINALITY

Resumo

Pretendemos discutir percepções e posicionamentos com relação à questão de classe social por parte de jovens engajados no tráfico de drogas na Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV). Os dados empíricos discutidos aqui se baseiam em 45 entrevistas semiestruturadas e uma observação participante de 18 meses em unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei. Apesar de reconhecerem suas atividades incrimináveis cotidianas como um “trabalho”, os interlocutores não se reconheciam como “trabalhadores”. Debateremos a distinção feita pelos entrevistados entre “trabalhadores” e “vagabundos”, em suas implicações morais, na obtenção de renda e no consumo. Dessa forma, discutiremos como esse grupo observa questões ligadas à ética do trabalho e à classe social, apontando como questões morais, ligadas à condenação criminal, e questões objetivas, ligadas às possibilidades de consumo - seja devido à ilegitimidade do dinheiro obtido nas práticas incrimináveis, seja pelas incertezas da “vida no crime” - são mobilizadas nessas classificações.

Palavras-chave
Classe social; pertencimento de classe; ética do trabalho; vida no crime; adolescentes em conflito com a lei

Abstract

In this paper, we intend to discuss the perceptions and positions concerning the social class issue from the standpoint of young men engaged in drug trafficking in the Great Vitória Metropolitan Area (RMGV). The empirical data consists on forty-five semi-structured interviews and participant observation, run by 18 months, in facilities for juvenile delinquents. In spite the fact that they could consider their daily criminal activities as “work”, they did not consider themselves as “workers”. We shall debate the distinction the subjects made between “laborers” and “vagabonds” in its moral implications, as well as source of income and in consumption. Hence, we will discuss how this group perceives issues concerning work ethics and social class. We intend to evince how moral issues are employed in these classifications, concerning criminal condemnation and possibilities of consumption - either due to ilegitimity of the money that comes from criminal activity, or due to instability of crime-life.

Keywords
Social class; class belonging; work ethics; crime-life; juvenile delinquency

Introdução

Este artigo pretende discutir percepções e posicionamentos com relação à questão de classe social por parte de jovens engajados no tráfico de drogas na Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV). A estratégia metodológica utilizada na realização da pesquisa incluiu 45 entrevistas semiestruturadas e uma observação participante que se estendeu de julho de 2013 a dezembro de 2014 em duas unidades de internação para adolescentes em conflito com a lei - a Unidade de Internação Metropolitana de Internação (Unimetro), em Vila Velha, e a Unidade de Internação Provisória II (Unip II), na cidade de Cariacica do estado do Espírito Santo - e o objeto empírico selecionado foram os adolescentes submetidos à medida socioeducativa de internação. Essa medida socioeducativa é a mais grave que pode ser imposta a um adolescente, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad - Lei n. 8.069/1990).

Nessas unidades de internação, foi possível entrevistar os adolescentes isoladamente, sem a presença de qualquer agente do Estado na sala. Foi-nos permitido também acompanhar o andamento de atividades escolares e oficinas extracurriculares, especialmente na Unimetro. Durante esses momentos, contudo, éramos acompanhados por ao menos um agente socioeducativo, sem contar as vezes que estávamos com professores, pedagogos, psicólogos, assistentes sociais ou jurídicos.

Na maioria das vezes, após ser apresentado ao adolescente, o pesquisador solicitava uma entrevista. Houve casos em que o pedido para realização de uma entrevista veio após algum período de convivência - em um único caso um interno veio se apresentar ao pesquisador e solicitou ser entrevistado. Quando o interno concordava em participar, era realizada uma sessão de perguntas nas quais o pesquisador buscava compreender como o adolescente via as transformações em suas relações sociais e em sua sociabilidade, face ao avanço de sua carreira criminal. Aqueles que preferiam não participar eram deixados, mas houve poucos casos de negação explícita - apenas três. Mediante uma segunda autorização, várias dessas entrevistas foram gravadas, embora haja dez entrevistas feitas sem o registro de áudio, num total de 45. Falava-se sobre uma variedade de tópicos como as relações familiares, as amizades, as relações amorosas, as de vizinhança, assim como suas relações com a polícia e com as organizações voltadas para a prática de atos incrimináveis.

Como se acompanhou o cotidiano dos adolescentes dentro das unidades, foi possível encontrar inúmeras vezes com os adolescentes que já haviam sido entrevistados. Apesar de ser um ambiente que não contava mais com o isolamento, também se saía da formalidade da entrevista. Durante esses encontros, se falava de todo tipo de assunto, muitas vezes não relacionado com a carreira criminal ou com a vida do adolescente. No entanto, em algumas ocasiões era possível aprofundar assuntos discutidos nas entrevistas ou que envolviam temáticas relacionadas ao “mundo do crime”. Nesses encontros menos formais, se pôde construir uma relação de maior confiança entre o pesquisador e os adolescentes. Foi também possível compreender com maior profundidade alguns dos dados que haviam sido colhidos durante as entrevistas, bem como aprofundar conversas e elucidar cenários e possibilidades que vinham sendo levantadas durante a pesquisa. Neste artigo, portanto, buscamos explorar as construções feitas pelos entrevistados relacionadas ao trabalho e à classe social, coletadas tanto nas entrevistas como em conversas informais. Ao fim de 18 meses, a maioria dos adolescentes com quem havíamos estabelecido contato já tinha recuperado a liberdade e, por essa razão, encerramos a pesquisa.

Vale ressaltar que, embora nenhum deles estivesse responsabilizado pela prática de tráfico de drogas - a medida de internação em regra é dada à prática de atos infracionais considerados mais graves, como o roubo ou o homicídio -, a quase totalidade dos adolescentes entrevistados estava engajada nesse comércio ilegal. Na representação que esses jovens apresentaram, configura-se um “mundo do crime”,1 1 Para uma discussão sobre as categorias de crime, vida no crime e mundo do crime, ver Grillo (2013). do qual a organização local do tráfico de drogas é o articulador principal.

Assim, fazer parte de quadrilha de traficantes de drogas no nível local envolve a participação numa série de atividades que se assemelha a relações de trabalho tradicionais: significa ter horários fixos de desempenho da função, zelar pelos bens da “firma” e respeitar a hierarquia organizacional.2 2 O termo “firma” era usado nativamente, o que denota claramente essa analogia, assim como os termos “gerente”, para os responsáveis intermediários, e “patrão”, para os chefes principais. Além disso, significa maximizar os ganhos financeiros, seja como trabalho de safra (por período), seja por uma porcentagem sobre aquilo que foi vendido no varejo. Esses ganhos eram elevados, muito maiores do que um adolescente poderia auferir no mercado formal ou mesmo do que os salários dos trabalhadores adultos sem qualificação.

Nesse sentido, nossa proposta central é discutir quais foram as representações mobilizadas em torno da questão da classe social por parte dos entrevistados. As falas nas entrevistas e as conversas transcritas nas entradas do caderno de campo foram divididas em diferentes “nós”, com auxílio de um software de análise de dados qualitativos (Nvivo), possibilitando separar os diferentes assuntos, como religião, vida familiar, uso de drogas, prática de atos incrimináveis etc. Nesse trabalho, analisamos as entradas que se remetem a trabalho formal, a noções de classe social e a gasto de dinheiro e consumo - o que não significa que nessas entradas, alguns dos outros temas não sejam citados também. Porém, privilegiamos os temas ligados à garantia da subsistência e à obtenção de dinheiro.

Pode-se, assim, indagar qual é a posição que esses jovens ocupam em relação à classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 1999ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.). Nesse sentido, mobilizamos conceitos ligados à classe social, especialmente o conceito de lumpemproletariado (MARX, 2000MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Versão para eBook. Ridendo Castigat Mores: 2000.) para jogar luz sobre a situação que esses interlocutores apresentavam, na busca de compreender como eles se aproximam e se afastam dos trabalhadores que ocupam postos no mercado formal. Não pretendemos, contudo, subsumir completamente a condição desses jovens ao lumpemproletariado, como demonstraremos posteriormente.

Vale ressaltar que todos partiram de bairros periféricos da RMGV e que, na maioria dos casos, eram filhos de trabalhadores desqualificados. Contudo, aparentemente, eles se colocam contrários à lógica do trabalho, que permitia sobrevivência e dignidade social aos pais de muitos deles e à maioria de seus vizinhos. Assim sendo, buscaremos visualizar os aspectos objetivos e subjetivos da discussão de classe social feita pelos próprios sujeitos analisados na pesquisa.

1 Trabalhar e não ser trabalhador

Lohaine Jardim Barbosa (2012)JARDIM BARBOSA, Lohaine. Reflexões acerca do valor simbólico do “mundo do crime”: a “outra família”. SINAIS - Revista Eletrônica,Vitória, v.1, n. 11, jun. 2012. indica que o tráfico de drogas nos bairros periféricos da RMGV é um trabalho que não faz qualquer distinção de classe, cor ou escolaridade. Dessa forma, é uma atividade na qual são acolhidos também os mais miseráveis, os negros e pardos periféricos, aqueles que não possuem níveis elevados de escolarização ou bons contatos no mercado de trabalho. Chamamos atenção aqui para o fato de o tráfico varejista de drogas ser visto como um “trabalho”. Vários dos entrevistados utilizaram o termo “trabalho” para designar suas práticas incrimináveis, especialmente nas organizações locais destinadas à venda de drogas (“movimento”).

Você volta, tem droga pra comprar, dinheiro pra contar, arma pra comprar, arma, é só assim. Vinte e quatro hora, todo dia, rotina já acostumada já, todo dia assim. Você acorda de manhã cedo e acabou a droga, tem que comprar. Ah, fulano tem que pegar dinheiro com fulano, com ciclano, é maior correria, fi. Tem neguinho que fala que é fácil essa vida, não é fácil não. Correria, fi. (Interlocutor 01,3 3 Na impossibilidade ética e legal (Ecriad - Lei n. 8.069/1990, art. 17) de nomear os entrevistados, optouse por numerá-los, de forma a preservar sua identidade. entrevista realizada na cidade de Cariacica, em 13 de julho de 2013)

Por outro lado, segundo a literatura, a lógica de pensamento dos “bandidos” e a ética do trabalho tendem a ser sempre opostos. Por exemplo, Michel Misse (1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia), Iuperj, Rio de Janeiro, 1999., p. 208) aponta que “é contra o ethos do trabalho que age o bandido”, indicando que o combate aos “bandidos”, ao longo do século XX, tem como marca estar sempre articulado com os processos de disciplinamento das classes populares. Alba Zaluar (1994)ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. argumenta que o “bandido” é alguém que abriu mão da ética do trabalho. Segundo ela, entre os mais pobres existem aqueles que se revoltam, mediante as péssimas condições de trabalho - baixos salários, posições subalternas - que os esperam caso eles decidam se engajar no mercado formal, e, portanto, optam por passar a portar uma arma e a sobreviver do dinheiro obtido por meio de práticas criminalizáveis.

Notou-se que diversas vezes os adolescentes entrevistados se referiam aos vizinhos que tinham empregos no mercado formal como “trabalhadores”, uma categorização que eles acreditavam que não servia para a autodescrição - eles mesmos seriam “vagabundos”, “ladrões”, “do crime”, mas não “trabalhadores”.

No crime, a vida é responsa [divertida, interessante, o equivalente ao uso coloquial do termo “legal”], não tem? A vida não é ruim não, é bom, mas não vale a pena, não. Tudo o que você tem você perde rápido. Tem que ter, pode morrer de uma hora pra outra. Vida de trabalhador é vida suada, mas você tem o dinheiro o todo mês, dinheiro abençoado [legítimo] também. (Interlocutor 02, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 22 de agosto de 2013)

Meu pai também é um cara tranquilo, nunca se envolveu com nada, nunca usou droga… a única droga dele é a bebida e o cigarro. Trabalhador; trabalha pra ele mesmo. (Interlocutor 03, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 28 de março de 2014)

A vida no crime assim distingue-se da vida de trabalhador, apesar de ser muito trabalhosa. Apresenta-se, portanto, um ente de difícil definição sociológica: pessoas que trabalham, mas que não são trabalhadoras. Objetivamente, são indivíduos despossuídos dos meios de produção e que dependem de suas próprias energias para se apropriarem de matérias necessárias à sua vida e à sua sobrevivência. Por outro lado, abriram mão da ética que essa posição apresenta e não se restringem aos preceitos legais que constrangem a maioria dos despossuídos dos meios de produção. Ao mesmo tempo, não qualificaram sua mão de obra - ao menos pelos canais legais e tradicionais. Ainda assim, são pessoas sem qualificação que dependem do dispêndio de sua própria energia no trabalho para obterem renda. Porém, segundo o próprio entendimento, não são pessoas trabalhadoras. Acreditamos que essa distinção tem dois elementos importantes: em um núcleo de sentido, há uma questão moral a ser compreendida, que remete à negação da ética do trabalho e à indisciplina.4 4 Se pensarmos a ética do trabalho numa perspectiva weberiana, notamos um afastamento do modus operandi dos entrevistados, levando em consideração os pressupostos do espírito do capitalismo, que visa a valorização do trabalho como sinônimo de acumulação de riqueza nas sociedades capitalistas. Ver Weber (1981). Contudo, essa dimensão se dá em articulação com a situação objetiva dos “vagabundos” que vai também se distinguir dos “trabalhadores”, que apresentaremos posteriormente.

Ao analisar o oximoro de nossos interlocutores se apresentarem como pessoas que trabalham ainda que não sejam trabalhadores, observamos que várias reflexões podem surgir dessa contradição aparente. A primeira pergunta que nos parece sobressair é: afinal, se não são trabalhadores, são o quê? Uma questão marcante nesse sentido é a origem de classe que esses adolescentes apresentam. A governamentabilidade (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no College de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.) de jovens delinquentes sempre associou pobreza, abandono e delinquência, sendo que, de alguma forma, a gestão dos jovens delinquentes esteve sempre articulada com a suposta periculosidade da juventude pobre. Edmundo Campos Coelho, já no final da década de 1970, indica que serão sempre os indivíduos de status socioeconômico mais baixo os mais perseguidos pela polícia e os mais condenados pela justiça penal: “Também os estereótipos que os policiais têm do criminoso ou do infrator contumaz das leis constituem referências importantes para sua atuação; e, como os indivíduos de status socioeconômico baixo são aqueles que mais se ajustam a tais estereótipos, são eles que constituem os alvos por excelência da polícia.” (COELHO, 2005COELHO, Edmundo Campos. A oficina do Diabo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005. [1978], p. 276).

Do mesmo modo, constatamos que os adolescentes entrevistados tinham origens nas classes populares e que isso foi importante no processo que desencadeou na medida socioeducativa de internação. No entanto, a forma como era percebida essa origem de classe detinha variações, que tentavam classificar diferentes posições dentro da classe-que-vive-dotrabalho (ANTUNES, 1999ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.).5 5 Ricardo Antunes (1999) propõe a noção de classe-que-vive-do-trabalho, com intuito de explicar a nova morfologia da classe trabalhadora, salvaguardando a heterogeneidade histórica da classe trabalhadora. Para o autor, a classe-que-vive-do-trabalho é formada por trabalhadores (homens e mulheres) produtivos e improdutivos, desprovidos de meios de produção, trabalhadores precarizados, mas também de desempregados e trabalhadores informais. As famílias poderiam ter maiores ou menores dificuldades de obtenção de renda, e, para exprimir essa situação, a expressão utilizada recorrentemente era “(não) ter condições”:

Minha mãe não tem condições, pá. Minha mãe tá desempregada, ela trabalha de faxina, tá ligado? Trabalha de faxina faz um bom tempo já também. Aí, ela tá sem condição, eu falei: “Ah, deixa eu sair, vou arrumar um trampo aí, e vou fazer a união estável, véi”. (Interlocutor 04, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 24 de julho de 2013)

No caso desse exemplo, o adolescente queria pagar por taxas cartoriais para oficializar a relação com sua companheira. Ele sabia, entretanto, que sua mãe não poderia arcar com as despesas e que ele só poderia quitá-las com o próprio dinheiro. Isso demonstra muito como foram apresentadas as próprias famílias: como famílias que “têm” ou que “não têm condições”. Quando os pais tinham empregos estáveis ou fontes de renda regulares, eles diziam que os pais “tinham condição”, ainda que a família estivesse muito longe de ser rica ou de apresentar sinais de capital cultural ou social ligados a classes médias e altas. Quando os indícios de capital cultural e social, incluindo a qualificação da mão de obra pela educação - especialmente o acesso ao ensino superior -, começavam a aparecer, as pessoas passavam a ser consideradas “burguesas”; ou, no linguajar mais comum, playboys.

Toda a noção do playboy estava marcada de estereótipos. O universo dos playboys era pouco conhecido e as famílias “trabalhadoras” que “tinham condições” não faziam parte dele. O playboy, portanto, era uma espécie de outro generalizado para todas as pessoas que pertenciam a classes ou a frações de classes superiores. Um dos entrevistados tinha uma companheira que tinha “um pouco mais de condição” - ou seja, que vinha de uma família com trabalhadores qualificados com curso superior - e nos contou que ela uma vez lhe disse:

você sabe o que minha família pensa, alguns da minha família, da parte da minha mãe que você sabe que é parte da burguesia não gosta, não quer de jeito nenhum, mas meu pai, minha avó, meu tio, ‘tão com você, mesmo se não, eu ‘tô com você. (Interlocutor 05, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 15 de agosto de 2013)

Famílias que são “parte da burguesia” eram vistas como ainda mais opostas à “vida no crime”. Em geral, nos depoimentos dos interlocutores, não foram apresentadas grandes distinções entre as classes médias e altas, de forma que a figura do playboy parece englobar a todas elas. Ela se distingue assim da figura do “trabalhador”, embora dentre os “trabalhadores” possam ser distinguidos os que têm mais ou menos condições materiais.

2 Trabalhadores, playboys e vagabundos

A autoidentificação dos entrevistados caminhava para a noção de “vagabundo”. O “vagabundo”, por seu turno, também não está entre os “trabalhadores”, tampouco entre os playboys ou como “parte da burguesia”. Durante o trabalho de campo, acompanhou-se um diálogo entre quatro adolescentes e um agente socioeducativo (encarregado de vigiá-los), interessante para mostrar como eles entendiam essas noções. Nessa conversa, eles deixam evidenciada a percepção de que se tratam de três categorias objetivamente diferentes: “trabalhadores”, “vagabundos” e playboys.

O argumento dos adolescentes era de que os “trabalhadores” imitavam a eles (“vagabundos”) no modo de se vestir. O agente, aqui claramente identificado como “trabalhador”, retrucou dizendo que os “vagabundos” tentam imitar os playboys e os “trabalhadores” também, por usarem roupas de marcas. Outros agentes vieram também para distribuir o lanche dos adolescentes e igualmente entraram na conversa. Segundo um dos adolescentes, muitos “trabalhadores” usam roupa mesmo para ficar “parecendo vagabundo”. Eles citaram que como “vagabundo” se vive pouco, mas se vive como quer; e também que eles têm sempre roupas caras, estão sempre de “nave” (possuem sempre um veículo de locomoção, como uma motocicleta ou um carro), “pegam” (se relacionam sexualmente com) mais de dez mulheres por dia. Então, perguntaram aos agentes quem é que não quer uma vida assim.

Por seu turno, os agentes apresentavam respostas que lhes conferiam superioridade moral baseada na ética do trabalho. Assim, diziam que “entrar para o crime” qualquer um “entra”, porém, trabalhar e se esforçar é que seria difícil. Mas, em outro momento, um dos agentes reconheceu que ele não acha fácil trocar tiro com outras pessoas. Um dos adolescentes disse que “entrar para o crime” qualquer um entra, mas “representar” são poucos: apontando que existe uma questão de postura, que também é difícil de ser mantida e que nem todo “vagabundo” consegue levá-la adiante.

Detecta-se aqui uma percepção da sociedade de classes a partir da perspectiva dos adolescentes, de forma que eles dividem a sociedade na qual vivem em três classes. Pode-se notar que “trabalhadores” e “vagabundos”, apesar de serem classificações diferentes, são unidos por um fator em comum. Na percepção dos adolescentes, o que essas “classes” têm em comum é o que as oporia aos “playboys”, portanto os “playboys” não teriam a preocupação imediata com a sobrevivência e com a satisfação das necessidades imediatas - sejam elas do estômago ou da fantasia (MARX, 1983MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. 1, Livro Primeiro, tomo 1.). Logo, “trabalhadores” e “vagabundos” possuem necessidades que requerem respostas urgentes.

O engajamento à quadrilha de traficantes local é uma forma de prover o próprio sustento e, nesse sentido, tem a mesma função do que a entrada no mercado formal de trabalho. Ainda assim, alguns dos adolescentes apontaram que não poderiam ter se aproveitado do provimento de seus pais por mais alguns anos; afinal, mesmo se tratando de uma família de “trabalhadores” que “tinham condição”, era uma família de “trabalhadores”:

E eu me arrependi, arrependi porque eu tive muita oportunidade na vida. Eu tive. Meu pai e minha mãe não são ricos, mas têm uma condição boa. Minha família toda tem uma condição boa. Só eu mesmo que fui pra esse caminho louco. Caminho muito louco, mesmo assim, sempre tem oportunidade. (Interlocutor 06, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 18 de junho de 2013)

Assim, a falta de “condições” da família é sempre vista como uma possível justificativa para a entrada na “vida no crime”. Muito embora, apesar de a família poder ter “condições”, seria preciso sempre que o adolescente se engajasse, ele também, no mercado de trabalho. Porém esse engajamento nem sempre é fácil e, muitas vezes, é difícil para menores de idade conseguir atividades que lhes proporcionem renda. Além do mais, mesmo que a família possa sustentálo, ele pode se sentir um peso para o orçamento doméstico dos pais ou dos responsáveis, sentindo-se dependente da família. Conseguir a própria geração de renda equivale, dessa forma, a sentir-se mais livre:

Rapaz, pra falar a verdade pra você, eu gosto de trabalhar pra adquirir o que é meu, não tem? Eu não gosto de depender dos outros, nunca gostei de depender do meu pai e da minha mãe. Um dos motivos que eu entrei pro crime foi por causa disso, sempre gostei de ter minhas coisas, meus carros, minhas motos, minhas roupas de marca e meus pais não tinham condição de dar o que eu queria, então… E eu também não gostava de ficar pedindo porque eu sabia as condições dos meus pais, então… Por isso que entrei pro crime mesmo, fazer o quê? (Interlocutor 07, entrevista realizada na cidade de Cariacica, em 21 de agosto de 2013)

Merton (1970)MERTON, Robert King. Anomia e estrutura social. In: Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970. p. 203-227. chama de “inovação” as situações nas quais os indivíduos aceitam as metas institucionalmente definidas, mas negam os meios definidos como legítimos para atingi-las. Para esse autor, há situações nas quais o sucesso financeiro, socialmente estabelecido como meta principal, pode superar a falta de honra nos meios em adquiri-los. Ele argumenta que para as camadas populares, essa pressão tende a ser sentida de maneira ainda mais forte: elas têm mais dificuldade em obter sucesso nos meios legítimos dada a sua posição na estrutura social, ao mesmo tempo em que tendem a aspirar aos padrões de sucesso definidos de maneira geral, em busca do “sonho americano”. Para os adolescentes entrevistados, o envolvimento em carreiras criminais permite atingir o padrão de consumo que eles desejam.

Não obstante, o engajamento nessas carreiras apresenta um problema moral: ele não confere a mesma dignidade que o engajamento no mercado de trabalho legal. A “vida no crime” é criminalizada por definição, logo, interditada e imoral. Não é possível, uma vez engajado nessa “vida”, apresentar o discurso ligado à ética do trabalho. Portanto, este será sempre visto como o “caminho mais fácil”, mesmo que os riscos de ser preso ou morto aumentem drasticamente. Contudo, essa dimensão criminalizante vai provocar também diferenças objetivas nas vidas de “trabalhadores” e de “vagabundos”.

A problemática da diferenciação moral e da diferenciação objetiva de classe aparece também na obra de Karl Marx, principalmente no conceito de lumpemproletariado, em especial, quando analisa o golpe de Estado que torna o presidente da França Luís Napoleão Bonaparte em imperador dos franceses. Não é nosso intuito enquadrar a posição de classe de adolescentes engajados em carreiras criminais na RMGV como lumpemproletariado. Nosso objetivo, resgatando o conceito de Marx, é comparar as situações de forma a compreender melhor a situação dos adolescentes entrevistados. Com relação ao conceito de lúmpen, Marx (2000MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Versão para eBook. Ridendo Castigat Mores: 2000., p. 97) afirma que:

A pretexto de fundar uma sociedade beneficente, o lumpemproletariado de Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia de um general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de fortuna duvidosa e origem duvidosa, lado a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de faca, soldadores, mendigos - em suma, toda massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam de La bohêmme.

Deseja-se aqui chamar atenção para o fato de que, na construção de classes sociais de Karl Marx, a propriedade ou não dos meios de produção geralmente é o fator central para a classificação de cada classe como fato objetivo. Há, obviamente, definições mais pormenorizadas na obra de Marx, que englobam o tipo de propriedade ou a qualificação da mão de obra. O lumpemproletariado, contudo, não é definido apenas por isso. Em vários trechos Marx aponta também Luís Napoleão como parte desse grupo, o que coloca o imperador na mesma categorização que mendigos e saltimbancos. O que une o lumpemproletariado é a “necessidade de beneficiar-se às expensas da nação laboriosa”; logo é um “rebotalho de todas as classes [que formam] a única classe em que pode [Bonaparte] apoiar-se incondicionalmente” (Ibidem, p. 98). O lumpemproletariado é identificado por ser uma classe que se apropria daquilo que “a nação laboriosa” produziu. Porém não se confunde com a apropriação dos produtos do trabalho do proletariado que os proprietários dos meios de produção realizam. O comportamento do lumpemproletariado parece a Marx como imoral e inadmissível, seja na sociedade burguesa, seja numa sociedade de triunfo do proletariado. O lumpemproletariado é mostrado como atrelado com o enriquecimento ilícito (Ibidem, p. 186 e ss.), com o consumo imediato de produtos de luxo (p. 101) e com o uso da violência (p. 169), características que aparecem repetidamente nos discursos dos entrevistados.

Se fosse apenas um problema moral, Marx poderia ter reduzido a questão apenas à falta de consciência de classe, como na conceituação de classe em si e para si de Marx, que pode ser apresentada na seguinte forma:

As classes em si conjunto de membros de uma sociedade que são identificados por compartilhar determinadas condições objetivas, ou mesma situação no que se refere à propriedade dos meios de produção, das classes para si classes que se organizam politicamente para defesa consciente de seus interesses, cuja identidade é construída também do ponto de vista subjetivo. (QUINTANEIRO et al., 2003QUINTANEIRO,Tânia et al. Um toque de clássicos. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2003., p. 43-44)

Esse problema, porém, se apresenta para os “trabalhadores”, como os agentes socioeducativos que mencionamos acima, que podem discutir como a dignidade que eles associam a sua posição de trabalhador pode ser revertida em ganhos políticos ou em solidariedade. Porém, não se reproduz entre os “vagabundos”, não incluídos moralmente na classe-que-vive-do-trabalho. Uma vez excluídos da categoria de “trabalhadores”, eles não podem se mobilizar nessa classe para si, sendo tidos sempre como alguém que escolheu o “caminho louco”, como disse um interlocutor já citado, “se beneficiando das coisas mais fáceis”, como afirma um outro interlocutor do qual transcreveremos parte do depoimento posteriormente.

Todavia, é importante notar que Marx identifica também que as condições objetivas da vida do lumpemproletariado não se confundem com as do proletariado. O “desejo de enriquecer às custas de uma nação laboriosa” não apenas é desprezível, ele gera práticas e possibilidades objetivas que separam esses grupos e que os afastam dos trabalhadores. Nesse sentido, ela não pode fazer parte da classe para si não apenas pelas interdições morais, mas também pelas questões objetivas, que a afastam da classe em si. Não pretendemos reduzir nossos jovens engajados ao tráfico de drogas ao lumpemproletariado e com isso explicar toda sua condição de classe. Mas acreditamos que existam pontos em comum entre a separação que Marx faz entre lumpemproletariado e proletariado e a separação que foi coletada no trabalho de campo entre “vagabundos” e “trabalhadores”, uma vez que ambas parecem relacionar elementos de condenação moral e de condição de vida. Quando pensa no lumpemproletariado, Marx aponta para uma classe que não se enquadra nas relações sociais de produção nas quais se inscreve o proletariado. Retornando aos adolescentes entrevistados nessa pesquisa, busca-se apontar aqui para o fato de que suas carreiras criminais não geram apenas diferenciação moral, solidificada em processos de rotulação, mas também condições objetivas diferenciadas tanto na obtenção de renda, quanto nas práticas de consumo, como procuraremos demonstrar a seguir.

Contudo, ao contrário da articulação do lúmpen, os adolescentes que entrevistamos não sentem que pertencem a uma classe que é um rebotalho de todas as classes: sua origem está bem fincada no que Marx chamaria de proletariado, que eles chamam de “trabalhadores”, e que Antunes (1999)ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. amplia como a classe-que-vive-do-trabalho. Portanto, a pressão para satisfazer as necessidades é a mesma que sentem os trabalhadores, como apontamos há pouco. Nesse sentido, à medida que se tornam adultos e que buscam sua autonomia enquanto membros da sociedade, eles se veem pressionados a poder sustentar a si próprios e a suas famílias. No discurso dos adolescentes, é possível engajar-se à carreira criminal ou ao mercado de trabalho, entretanto, não há uma terceira opção:

E quem não quer, assim, pô, se não fosse crime você não queria ganhar numa gerência do tráfico de drogas, você ganhar dois mil por semana, se não fosse crime? É difícil. A gente sabe que é um crime, só que é um crime que ‘tá te beneficiando as coisas mais fácil. Que nem você recebe, uma auxiliar de serviço gerais fica um mês pra receber seiscentos e quarenta e cinco enquanto que um gerente de uma boca de droga ganha dois mil por semana, enquanto que um vapor tá ganhando trezentos, quatrocentos reais por noite. É triste, entendeu? Aí, as pessoas acabam procurando as coisas mais fácil. E a realidade das favelas que a gente é nascido e criado é essa. Certo é a gente ter o nosso livre-arbítrio pra escolher. Escolha quem faz é nós e o destino quem traça também. Então, se eu fiz uma escolha, eu vou traçar meu destino, e tracei desse jeito. Só quebrei a cara, mas… (Interlocutor 08, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 06 de agosto de 2013)

Não obstante, para além de pensar nas diferenciações morais, podemos pensar como o engajamento a uma ou outra possibilidade cria diferenças objetivas nas formas de obter renda e de consumir desses adolescentes. Os adolescentes entrevistados passaram a ter rendas muito mais significativas do que a de seus pais e de que a maioria de seus vizinhos adultos. O último depoimento reforça o que foi apontado constantemente: os valores recebidos na “vida do crime” superam e muito quaisquer possibilidades dos adolescentes no mercado formal de trabalho. Esse é um fator objetivo que permite muito da vazão aos desejos hedonísticos e de consumo:

Ah, se o cara for fazer rock [festa] com o dinheiro de serviço ‘tá ligado que não dá. O cara vai fazer um rock igual ele fazia na época que ele era do crime, que roubava, que traficava, tinha não sei quantos mil, dentro lá, várias gente ajudando ele a fazer um rock? Se você for fazer você sabe que vai fazer sozinho, se tu fazer na mão não é uma festa de família, um churrasquinho na mão. Mas esse aí não é o rock que nós gosta. Se for tem que ter não sei quantos de bebida, droga, carne, não sei, várias mulher, é aí é triste, dinheiro vai todo em menos de duas horas de rock. […] Dinheiro que o cara ganha no mês o cara gasta todo, já no tráfico o dinheiro que você ganha em um dia não tem diferença, amanhã você vai ganhar mais, você vai pegar mais… Se tu pegou dois, três mil hoje, juntou com mais uns amigos ali você comprou mil e quinhentos reais de bebida, droga e essas parada toda e coloca no rock, vai ter os outros que vai ajudar, aquele dinheiro não vai fazer nem falta se você for parar pra pensar, porque amanhã você vai fazer o quê, você vai de pé você vai roubar, você vai pegar ou mais ou menos, mas vai pegar, você vai traficar e você vai ganhar o mesmo tanto que você tinha ontem. Então esse dinheiro não vai fazer diferença, agora pra uma pessoa trabalhadora que tem que se matar o mês todo não dá pra fazer a mesma coisa que nós faz não. (Interlocutor 09, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 1° de agosto de 2013)

Alguns elementos neste depoimento merecem ser destacados. Em primeiro lugar, a noção de que sempre vai se ganhar mais dinheiro imediatamente. Isso separa “vagabundos” e “trabalhadores”, uma vez que estes recebem seus salários mensalmente e precisam fazer com que o dinheiro dure até o próximo pagamento. Para os “vagabundos”, a renda obtida com o tráfico de drogas pode ser previsível, mas o dinheiro obtido com assaltos é sempre uma incógnita - não se sabe exatamente quanto vai se auferir e, eventualmente, pode ser muito mais do que o que se imaginava - porém, se o ganho não parecer suficiente, é sempre possível sair para cometer um novo assalto. Desse modo, as diversões dos trabalhadores precisam ser muito mais comedidas.

Estabelece-se também uma lógica de conduta baseada na ideia de gastar o dinheiro assim que o obtém. Em parte, essa lógica pode ser explicada pela situação de privação que os entrevistados viveram durante suas infâncias. A maioria de seus pais “não tinha condições” e, agora que eles obtêm regularmente rendas mais altas, é de se esperar que eles as utilizem de maneira a compensar a ausência prolongada desses produtos. Em trabalho com adolescentes em conflito com a lei no Rio de Janeiro, Cruz Neto, Moreira e Sucena (2001CRUZ NETO, Otávio; MOREIRA, Marcelo Rasga; SUCENA, Luiz Fernando Mazzei. Nem soldados nem inocentes: juventude e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001., p. 142) argumentam que:

Haverá algum jovem que não se compraza diante de tal situação? Afinal, o consumo e todos os seus acessórios - fama, poder e status - são valorizados por ser uma característica distintiva de uma sociedade que diariamente bombardeia-nos com sua lógica mercantil: vista a roupa A para ficar mais bonito e ter sucesso profissional; beba refrigerante B para conquistar a garota que você deseja; use a vitamina C para ter uma vida saudável; dirija o carro D para ter uma vida com mais adrenalina!

Esses adolescentes nos parecerem claramente ligados à sedução do consumo em sua forma mais midiática, embora ela não tenha sido criada por e para eles. Entretanto, isso não explica as gritantes diferenças que eles apontaram entre seus gastos e os gastos dos “trabalhadores”, que não se limitam aos montantes, mas também à forma de gastar. Apontemos então mais um depoimento:

Nós pensava que nós ia ficar tranquilão, ganhando dinheiro, pegando mulher, tudo sem guerra com ninguém… Nós ‘tão cheio de problema, processo da justiça, sabendo que qualquer polícia que der batida ni nós, nós vão direto pra cadeia. E aí, o que que nós conquistamos? Nós já tivemos moto, já tivemos carro, já tivemos peça [arma de fogo] de tudo quanto é jeito, hoje em dia o que que nós temos? Já perdemos carro, já perdemos moto, não temos nenhuma casa. O dinheiro que tem é esse aqui que tá no bolso. Não temos nada. Aí nós via: “caraca, esse mundo que nós ‘tamo é doido mesmo, doido mesmo”. Falei: “de repente se eu tivesse trabalhando eu ‘taria com um, um dinheiro”. Que antes o dinheiro suado, trabalhado, você pensa mil vezes antes de gastar cinco reais. Você vai gastar cinco reais aí você fala assim: “Será que eu tenho necessidade mesmo de gastar pra comprar isso? Esses cinco reais foi quase um dia que eu trabalhei, ou até mais né? Dois dias dependendo do trabalho. Será que vai valer a pena gastar um dia de serviço pra comprar isso?Vou comprar não.” Mas já com o dinheiro da droga, você não se preocupa com aquilo ali, porque você ganhou aquilo ali agora, você gasta daqui a pouco e daqui a pouco mesmo você já vai ter outro, é aquele dinheiro amaldiçoado que te dá com uma mão tirando com as duas (Interlocutor 05).

Muitas expressões que indicam que o dinheiro auferido através de práticas incrimináveis é gasto rapidamente eram utilizadas, como “vem fácil, vai fácil”; ou “o diabo dá com uma mão e toma com duas”. Muitos elementos se somam para explicar esse tipo de comportamento. Já mencionamos o desejo - ou mesmo a “necessidade da fantasia” - de obter certos produtos. Também não se pode esquecer a sensação fascinante e viciante que a vazão de desejos de prazer proporciona. Entretanto, ainda se somam outros fatores, como a capacidade de planejamento.

Richard Sennett, em A corrosão do caráter (2006)SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006., aponta que trabalhadores durante o período do capitalismo industrial - até a década de 1970 - tinham maiores possibilidades de projetar seus futuros em um período de maior estabilidade. Assim, ele pôde acompanhar a trajetória de um faxineiro que, fixo no mesmo emprego por décadas, investiu na educação dos filhos, enquanto os filhos - formalmente bem-educados - tinham dificuldade de prever seus próximos passos nas carreiras, dadas as novas instabilidades que o mercado de trabalho apresentava no final do século XX. Analogamente - e apenas enquanto analogia - os “vagabundos” encontram-se em uma relação de ainda maior instabilidade: podem ser presos a qualquer momento, como o depoimento acima indicou, e têm a mesma possibilidade de serem mortos. Além disso, numa operação policial, podem ter o dinheiro que eventualmente juntaram confiscados - oficial ou extraoficialmente - por policiais; ou ainda ter de gastá-lo com advogados. Por outro lado, eles apresentam muita dificuldade de investir legalmente o dinheiro que adquirem: seria muito complicado possuir bens com documentos em seus nomes, o que dificulta sobremaneira manter contas em banco, ou investir em imóveis ou automóveis de maneira oficial. Os “trabalhadores”, por outro lado, podem usar seu dinheiro sem constrangimento legal e mesmo que sejam obrigados a prestarem conta de sua origem não encontram problemas quanto a isto; e também podem se imaginar em uma relação mais estável no longo do tempo - afinal, jovens “trabalhadores” têm boas razões para acreditarem que viverão ainda por muitas décadas.

Nesse sentido, muitos dos adolescentes antes de se engajarem ao tráfico de drogas, tiveram experiências no mercado formal de trabalho e, portanto, podiam comparar as duas experiências. É de se admirar outro aparente paradoxo que eles me apresentavam: quando tinham altas rendas, não tinham qualquer excedente no final do mês; quando recebiam parcos salários, conseguiam economizar. Portanto, eu solicitava sempre aos que tinham tido uma experiência como “trabalhador” que comparassem a forma como gastavam:

Era diferente porque quando eu ‘tava trabalhando… Quando eu ‘tava na molecagem mesmo era curtir com o dinheiro, era curtir tipo assim era mais comprar negócio pra fazer festa em casa. Eu botava o som lá e ficava comprando um monte de bobeira, gastava à toa, véi, tipo, sei lá: “ah, ‘tô com vontade de comer isso”, mais com bobeira. Aí quando eu estava trabalhando não, eu arranjei uma namorada e comecei a morar com ela e ajudar. Aí o que acontecia eu ajudava, minha mãe administrava o dinheiro junto com minha namorada pra poder nós comprar as coisinhas certinhas, entende? Aluguel não preocupava muito não, ajudava mais em água e luz, entende? Caramba, estava com uns planos mesmo já tinha corrido atrás pra poder tirar cartão, ver se conseguia cartão pra poder tirar móvel porque aí eu queria alugar uma casa fora daquele lugar ali porque eu estava dentro da favela ainda, aí eu já queria morar fora da favela, não queria mais ficar na favela. Aí eu comecei a comprar as coisas e caí na bobeira de novo naquela onda. Porque eu ‘tava com aqueles planos todos só que estava devagar, as coisas você sabe que quando vai trabalhando não é assim “bum”. Não vem. (Interlocutor 10, entrevista realizada na cidade de Vila Velha, em 13 de agosto de 2013)

Depoimentos como esse foram repetidos em todos os casos em que os adolescentes tinham experiência como “trabalhadores”. De maneira geral, pode-se dizer que a vida do “trabalhador” permite que ele junte dinheiro e tente construir patrimônio, enquanto a vida do “vagabundo” demanda que ele gaste o mais rapidamente possível tudo o que conseguir, pela junção de fatores que elencamos. Dessa maneira, as práticas de diversão e de extravasamento do prazer não apenas são perseguidas pelo “vagabundo”, mas são permitidas por suas condições objetivas. Eles externavam a sensação de que não importava quanto dinheiro eles ganhassem com práticas incrimináveis, em pouco tempo eles estariam sem nada:

Entrevistador - Aí tirava mais com o tráfico ou tirava mais com… ?

Entrevistado - Rapaz, na verdade, eu não tirei nada com nada de lugar nenhum.

Entrevistador - Tudo que tirava ia embora rapidinho.

Entrevistado - Isso é verdade, isso não é mito não, isso é verdade. Por mais malandro que seja o bandido, ele ganha dez mil aqui, ele deve dez, vinte lá na frente.

Entrevistador - Deve a quem?

Entrevistado - Tô falando, ele ganha dez mil aqui, mas aí compra um carro de luxo aqui, compra outro, vai embora. Aí ‘cê vê, o cara vai preso, ‘cabou, depois de uma semana ‘tá com mais nada. Dinheiro, tudo que vem fácil, vai fácil. Porque deve, no sentido assim, você ganha dez, você gasta vinte. Você nunca gasta quanto você ganha, ‘cê nunca gasta o que você pode. Aí, nessa vida, só quer mais e mais. Aí esquece do dia de amanhã. (Interlocutor 06)

Os depoimentos sobre quanto era possível adquirir trabalhando no “movimento” eram bastante inconsistentes entre si. Com o tempo, percebemos que isso não era central na situação em que eles se encontravam: não importava quanto fosse a quantia, ela seria gasta de maneira rápida e hedonística.

3 Revolta ao trabalho?

Boa parte dos entrevistados oscilou entre a posição de “trabalhador” e a de “vagabundo” ao menos em algum momento. Em A máquina e a revolta (1994), Alba Zaluar demonstra com o trabalho era visto ora como fonte de dignidade, ora como humilhante e análogo à escravidão. A dificuldade de obter renda legalmente a partir dos estratos socioeconômicos mais baixos poderia ser fonte de orgulho para muitos, embora sempre fosse vista como injusta e árdua. É nessa conjuntura, segundo a autora, que alguns se revoltam, colocam “uma arma na cintura” e abandonam a ética do trabalho. Os adolescentes que foram entrevistados nessa pesquisa apresentaram uma lógica muito semelhante:

Entrevistado: Eles queria que eu trabalhasse em supermercado, embalar compra pros outros e nisso eu não ia trabalhar não.

Entrevistador: Por que não? Era ruim o horário?

Entrevistado: Duzentos e vinte reais por mês mano, tá doido? Pra trabalhar o mês todo? Não, mano, eu não quero trabalhar pra ganhar mixaria não; vou me matar. Eu ia estudar de manhã ou à noite, se eu fosse estudar a noite eu ia pegar de oito até cinco e meia, ia em casa tomar banho e ir pra escola… tinha o INSS, pra ganhar duzentos e quatro reais por mês e eu falei: “que isso? Não”. Não ia trabalhar de embalador não, não ia fazer isso não, não voltei pra escola, depois fui preso de novo, fiquei três meses, saí agora esses dias e fiquei morcegando na rua, uma semana e meia, e fui preso por homicídio.

Entrevistador: Você falou que eles tinham oferecido duzentos e vinte por mês e mínimo na época era por volta…

Entrevistado: Duzentos e vinte a duzentos e cinquenta alguma coisa assim, metade de um salário mínimo, que na época era por volta de quinhentos reais. Era meio salário que eles pagam aqui, então eu não quis não, eu falei pra minha irmã que queria arrumar pra mim, que eu não quis não. (Interlocutor 11, entrevista realizada na cidade de Cariacica, em 03 de julho de 2013)

Muitos se queixavam das péssimas condições que encontraram no mercado de trabalho, que muitas vezes não obedeciam à legislação trabalhista. Alguns diziam que não trabalhariam por um salário mínimo ou que se recusariam a fazer certos tipos de emprego. Era uma reclamação constante na Unimetro a de que não havia oportunidades de trabalho para os internos. Houve um adolescente, contudo, que foi encaixado em um emprego em uma fazenda. A reação que se pôde captar de alguns de seus colegas, no entanto, não foi nada simpática: eles se recusavam a ter um emprego em que fossem obrigados a fazer um trabalho muito pesado ou a lidar com fezes de animais.

Esse tipo de reação está na dimensão do que Alba Zaluar chamou de “revolta”. Por outro lado, Normando Jorge de Albuquerque Melo (2013)MELO, Normando Jorge Albuquerque. “Suspeitei desde o princípio”: a construção da identidade entre os internos da FUNASE-PE. Tese (Doutorado), PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013., em sua pesquisa com adolescentes em conflito com a lei na região metropolitana de Recife, indica que o trabalho aparece, na visão de seus interlocutores, como o principal fator para abandono de carreiras criminais, bem como para provar essa “mudança”. É quando se insurge contra a ética do trabalho que o estilo de vida do “vagabundo” ganha sua acusação moral mais grave: uma vez contra essa ética, tendencialmente o “vagabundo” deixa de permitir qualquer projeto de ordem moderna, ainda que revolucionário. Nas palavras de Melo (2013MELO, Normando Jorge Albuquerque. “Suspeitei desde o princípio”: a construção da identidade entre os internos da FUNASE-PE. Tese (Doutorado), PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013., p. 149-150):

Se os pobres sempre foram alvo de suspeitas, elas foram se intensificando na medida em que a sociedade salarial se constituía, e com ela, uma moralidade que tem como base o amor ao trabalho, ontologizado como fator de humanização e fonte exclusiva da dignidade humana. A ideologia que colocou o trabalho como lei suprema da sociedade, não está presente apenas nos discursos populares, nas representações consideradas leigas da vida social, mas penetrou as análises acadêmicas. Só para citar um exemplo mais irônico, isso pode ser visto na figura do lumpemproletariado, no qual Marx e Engels identificam um caráter corroído pelo tempo prolongado de desemprego, e que por sua total ausência de valores é pernicioso à consciência revolucionária do proletariado. É ou não uma leitura feita através das lentes do “amor ao trabalho”, da ética capitalista que busca incutir no cativo o amor pelo cativeiro, e assim garantir os braços necessários à sua reprodução?

Podemos afirmar que a posição defendida por Karl Marx e Friedrich Engels é centrada essencialmente no fim da exploração dos homens pelos homens, tendo enfoque em duas premissas: a primeira seria o foco no trabalho concreto, que vis-à-vis representa a abstração do trabalho útil no contexto de relativização do seu conteúdo particularmente intrínseco (tráfico) do trabalho realizado por alguém, sendo demarcado por Marx como qualquer trabalho humano praticado em geral, do qual consta a utilização de dispêndio físico e/ou intelectual para ser executado, bem como o trabalho abstrato, ou o tempo de trabalho socialmente necessário à produção e comercialização (funcionamento do tráfico de drogas) do trabalho (mercadoria). Em suas próprias palavras:

Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor das mercadorias. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil, produz valores de uso. (MARX, 1983MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. 1, Livro Primeiro, tomo 1., p.53)

Contudo, o fim da alienação do trabalho só poderá ser verificável se conjugado com a segunda premissa, qual seja, a questão da teoria da emancipação social e política em Karl Marx. De maneira resumida, representa a superação da sociedade capitalista, da exploração dos homens pelos homens, a eliminação das classes sociais a partir do próprio proletariado. Ou seja, a revolução social, segundo Marx, é a busca incessante por uma sociedade superior da qual classificou como sociedade comunista, que representaria a emancipação total da humanidade (MARX, 2010MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.).

Assim, a emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando, como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérica; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si essa força social como força política. (FREITAS; COSTA, 2013FREITAS, Amílcar Cardoso Vilaça de; COSTA, Elizardo Scarpati. O direito moderno sob a ótica dos clássicos da sociologia: análises e questionamentos. In: Cad. CRH [online], v. 26, n. 69, 2013, p. 639-653., p. 649)

Entretanto, no estado de organização político-econômica da sociedade atual, no qual existe a alienação do trabalho, o “amor ao trabalho” dificilmente poderá ser mais do que a defesa de que os explorados aceitem a exploração. No entanto, apresentamos e analisamos a perspectivas dos adolescentes, que não se rebelaram contra o trabalho em si, mas estão em desacordo com algumas faces do labor na contemporaneidade: se revoltaram contra o trabalho mal pago, contra os horários ruins e as atividades humilhantes, mas diziam que “teriam coragem de trabalhar”, se encontrassem um “bom emprego”. A discussão que fazem, portanto, não é revolucionária, buscando a superação do trabalho alienado - e sequer nega o valor do trabalho - em si, mas sua revolta (ZALUAR, 1994ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.) vai contra as possibilidades de trabalho que eles encontram. Logo, os que estavam mais distantes de terminar o Ensino Médio por vezes mencionaram supletivos para “terminarem os estudos”; os que estavam mais próximos pensavam em fazer cursos técnicos, sempre visando o mercado de trabalho. Contudo, mesmo que se consiga um emprego, a “vida difícil” exige disciplina e os obrigará a (re) adquirir a docilidade que Foucault (1991)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis:Vozes, 1991. descreveu: seria preciso abrir mão das possibilidades de extravasamento imediato de desejos de prazer e de consumo que estão presentes na “vida fácil”.

Considerações finais

Buscamos aqui entender e elucidar as percepções sobre o pertencimento de classe de adolescentes em conflito com a lei na RMGV engajados no tráfico ilegal de drogas. Algumas categorias nativas indicam fortes analogias entre o “mundo do crime” e o “mundo do trabalho”, como por exemplo, a noção de que se faz parte de uma “firma”, na qual as pessoas estão organizadas em “plantões” e chefiadas por “gerentes” e por um “patrão”. Mesmo o termo “trabalho” chega a ser utilizado nativamente para designar essas atividades incrimináveis. Todavia, a categoria “trabalhador” nunca é mobilizada no mesmo sentido, chamando atenção para a separação entre o “trabalhador” e o “vagabundo”.

Muito se considerou as alterações que um processo de rotulação criminal (BECKER, 2008BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.; CICOUREL, 1995CICOUREL,Aaron. The social organization of the juvenile justice. New Brunswick:Transaction Publishers, 1995.; LEMERT, 1972LEMERT, Edwin. Human deviance, social problems, and social control. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1972.; MATZA, 1969MATZA, David. Becoming Deviant. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1969.) geram para a vida daqueles que são rotulados e para os que estão em torno deles. É possível pensar desde processos de demonização individual dos adolescentes, que levam ao combate a eles como a personificação da criminalidade (como o processo de sujeição criminal descrito por Misse [1999]MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia), Iuperj, Rio de Janeiro, 1999.), até criminalização da pobreza de maneira mais ampla a partir do medo que a ideia de que criminalidade dentro das favelas permite (MALAGUTI BATISTA, 2003MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.), sob diferentes ângulos.

Nesse sentido, o pertencimento de classe dos adolescentes pode ser discutido. Sabe-se que eles são mais facilmente criminalizados por serem oriundos das classes mais populares. Por outro lado, sabe-se que eles não têm à sua disposição a dignidade que a ética do trabalho confere e não podem se afirmar como trabalhadores iguais àqueles que têm posições no mercado formal de trabalho. É possível pensar que o processo de rotulação criminal os diferencia dos demais membros das classes populares. Logo, estão, de alguma forma, discriminados dentro de suas comunidades de origem, até por terem abandonado integral ou parcialmente a ética do trabalho.

Por outro lado, existem questões que não são oriundas da interação social e do processo de rotulação, que aqui denominamos de objetivas: a renda majorada, a incapacidade de aplicar o dinheiro em investimentos que possam demandar justificativa de sua origem, a incerteza sobre o futuro - não apenas sobre a manutenção dos rendimentos, mas sobre a manutenção da liberdade e da vida em si. Esses fatores diferenciam, mais uma vez, “vagabundos” e “trabalhadores”, embora outros fatores objetivos também os aproximem novamente, como a falta de qualificação da própria mão de obra, a necessidade de transformar o dispêndio da própria energia e tempo em dinheiro com urgência, as poucas oportunidades de ascensão profissional e de educação.

Por esse ângulo, acreditamos que muito ainda há por ser analisado a respeito dessa temática. A definição dessas situações é central para a compreensão da situação desses jovens e mesmo para pensar situações de inibição de atividades criminosas. Isso significa abandonar a personificação do problema e investigar as condições no qual ele ocorre.

  • 1
    Para uma discussão sobre as categorias de crime, vida no crime e mundo do crime, ver Grillo (2013)GRILLO, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese (Doutorado em Antropologia). PPGSA/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013..
  • 2
    O termo “firma” era usado nativamente, o que denota claramente essa analogia, assim como os termos “gerente”, para os responsáveis intermediários, e “patrão”, para os chefes principais.
  • 3
    Na impossibilidade ética e legal (Ecriad - Lei n. 8.069/1990, art. 17) de nomear os entrevistados, optouse por numerá-los, de forma a preservar sua identidade.
  • 4
    Se pensarmos a ética do trabalho numa perspectiva weberiana, notamos um afastamento do modus operandi dos entrevistados, levando em consideração os pressupostos do espírito do capitalismo, que visa a valorização do trabalho como sinônimo de acumulação de riqueza nas sociedades capitalistas. Ver Weber (1981)WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira/UnB, 1981..
  • 5
    Ricardo Antunes (1999)ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. propõe a noção de classe-que-vive-do-trabalho, com intuito de explicar a nova morfologia da classe trabalhadora, salvaguardando a heterogeneidade histórica da classe trabalhadora. Para o autor, a classe-que-vive-do-trabalho é formada por trabalhadores (homens e mulheres) produtivos e improdutivos, desprovidos de meios de produção, trabalhadores precarizados, mas também de desempregados e trabalhadores informais.

REFERÊNCIAS

  • ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
  • BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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  • WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo: Pioneira/UnB, 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2017
  • Aceito
    22 Jun 2018
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