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A compatibilidade da prática de zero-rating com a previsão de neutralidade de rede

COMPATIBILITY OF ZERO-RATING OFFERS WITH BRAZILIAN NET NEUTRALITY RULES

Resumo

Este artigo aborda a definição do conceito jurídico de neutralidade de rede conferida pela legislação brasileira, conforme interpretação dada ao art. 9º do Marco Civil da Internet, pela qual a neutralidade de rede refere-se ao tratamento isonômico dos pacotes de dados que transitam na rede, de modo a resguardar seu caráter aberto. A partir da interpretação desenvolvida em conformidade com o preceito constitucional da livre-iniciativa e também com a legislação setorial de telecomunicações - à qual os provedores de conexão à internet, enquanto agentes privados, estão sujeitos -, procura-se explicar a legalidade da prática de ofertas zero-rating, que fazem parte do âmbito de liberdade negocial dos entes privados. Nesse sentido, este artigo apresenta o argumento de que acordos puramente comerciais, que respeitem os limites impostos pelo art. 9º do Marco Civil da Internet, são permitidos. Por fim, trata da constitucionalidade do Decreto n. 8.771/2016, que deve ser interpretado em conformidade com o Marco Civil da Internet, de modo a não restringir a livre-iniciativa.

Palavras-chave:
Neutralidade de rede; zero-rating; Marco Civil da Internet

Abstract

This article addresses the definition of the legal concept of net neutrality established by Brazilian legislation, according to the interpretation given to article 9 of the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet, whereby net neutrality refers to the isonomic treatment of network traffic data, in order to guarantee the internet’s open character. Based on the interpretation developed herein, in accordance with the constitutional principle of free enterprise and also in line with the sector-specific telecommunications regulation - to which internet service providers, as private agents, are subject -, this article seeks to explain the legality of the practice of zero-rating offers, which are part of the scope of business freedom of private entities. In this sense, it presents the argument that commercial agreements which respect the limits imposed by article 9 of the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet are allowed by Brazilian legislation. Finally, this article addresses the constitutionality of Decree n. 8.771/2016, which must be interpreted in accordance with the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet in order to respect the principle of free enterprise.

Keywords:
Net neutrality; zero-rating; Brazilian Civil Rights Framework for the Internet

Introdução

A aprovação da Lei n. 12.965/2014 ocorreu depois de um longo e profundo debate, que se iniciou em 2007 (LEMOS, 2007LEMOS, Ronaldo. Internet brasileira precisa de Marco Regulatório Civil. UOL Tecnologia, 22 maio 2007. Disponível em: http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm. Acesso em: 3 abr. 2018.
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) e foi concluído em 2014, contando com diversas modalidades de participação da sociedade.1 1 Vale notar que o processo legislativo do Marco Civil da Internet contou, até mesmo antes de seu início, com grande participação de entidades da sociedade civil. Esse processo foi altamente inovador, por incorporar a possibilidade de participação de membros da sociedade civil também via internet, e não apenas em audiências e consultas públicas presenciais. De acordo com Steibel (2014, p. 18-27), apenas essa ferramenta on-line permitiu a participação de aproximadamente 250 autores individuais, que apresentaram 1.500 contribuições durante as duas fases de consulta por meio do Portal do Marco Civil da Internet. O tema da neutralidade de rede foi um dos elementos presentes desde o início do debate sobre o Marco Civil da Internet e, ainda hoje, suscita calorosas discussões sobre a compatibilização desse conceito com o estabelecimento de modelos comerciais por provedores de conexão.

Este artigo toma por objeto as ofertas de zero-rating por operadoras de serviços de telecomunicações, de modo a avaliar a compatibilidade de modelos comerciais de tal natureza com a regra da neutralidade de rede, estabelecida pelo Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014). Buscamos demonstrar que a neutralidade de rede, pela delimitação conferida pelo art. 9º do Marco Civil da Internet, veda a discriminação quanto ao tráfego de pacotes de dados no nível da infraestrutura da rede (para preservar seu caráter aberto e agnóstico), mas não impõe restrições a modelos comerciais que ajustem a alocação dos ônus financeiros pelo tráfego de dados (desde que tais modelos respeitem condição anterior de não discriminação de pacotes no plano da infraestrutura).

Sustentamos2 2 Este artigo se propõe a refletir a visão dos autores a respeito do tema em exame a partir de uma perspectiva dogmática, além de incorporar igualmente uma visão acerca da adoção desse posicionamento sob o prisma da escolha de política pública que representa. que uma interpretação diversa sobre a amplitude do conceito jurídico de neutralidade de rede não só contraria as disposições constitucionais que pregam a livre-iniciativa e a mínima intervenção estatal nas atividades econômicas em sentido estrito, como também não é compatível com a legislação do setor de telecomunicações e com o próprio Marco Civil. Nesse sentido, ofertas zero-rating são arranjos comerciais legalmente admitidos, desde que não impliquem restrições quanto ao fluxo de tráfego de dados na rede ou discriminação de pacotes de dados (PEREIRA NETO et al., 2018PEREIRA NETO, Caio Mário S.; LEMOS, Ronaldo; DOUEK, Daniel; ADAMI, Mateus Piva. Neutralidade da rede e Internet das Coisas no Brasil: uma relação harmônica. JOTA, 16 jan. 2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/neutralidade-da-rede-e-internet-das-coisas-no-brasil-uma-relacao-harmonica-16012018. Acesso em: 9 abr. 2018.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/...
).

Para explicitar o argumento e explicá-lo em detalhes, este artigo divide-se nas seguintes seções: (i) a Seção 1 apresenta um breve relato acerca da natureza aberta da internet3 3 Os autores destacam terem trabalhado no presente artigo adotando a conceituação de internet trazida pelo próprio Marco Civil da Internet, qual seja, nos termos do art. 5º, inciso I, da lei: “Internet: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes”. e expõe a característica de neutralidade de rede; (ii) na sequência, a Seção 2 expõe a interpretação que nos parece teleologicamente correta da norma de não discriminação prevista no Marco Civil da Internet; (iii) a Seção 3 analisa o Decreto n. 8.771/2016, o qual regulamentou o Marco Civil da Internet; e (iv) a Seção 4 traz um breve relato acerca do posicionamento recente das autoridades responsáveis pela aplicação da regulamentação de neutralidade de rede no Brasil. Ao final do artigo, uma breve conclusão sumariza o exposto.

1. A internet e a neutralidade de rede

É possível traçar as origens da internet a uma rede originalmente militar denominada ARPAnet.4 4 “The Internet was born about 20 years ago, trying to connect together a U.S. Defense Department network called the ARPAnet and various other radio and satellite networks. The ARPAnet was an experimental network designed to support military research-in particular, research about how to build networks that could withstand partial outages (like bomb attacks) and still function. (Think about this when I describe how the network works; it may give you some insight into the design of the Internet.)” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1993). Até o final da década de 1960, as redes de computadores existentes eram, grosso modo, construídas ao redor de um computador central que as gerenciava, concentrando todas as comunicações da rede. A ARPAnet foi criada como uma alternativa a essa característica centralizada das redes de então, desenvolvendo-se a partir de 1969.

A ARPAnet era capaz de conectar diferentes redes de computadores, sem depender de um grande servidor central. Para fazê-lo, adotava uma arquitetura descentralizada, end-to-end,5 5 “In the ARPAnet model, communication always occurs between a source and a destination computer. The network itself is assumed to be unreliable; any portion of the network could disappear at any moment (pick your favorite catastrophe-these days backhoes cutting cables are more of a threat than bombs). It was designed to require the minimum of information from the computer clients. To send a message on the network, a computer only had to put its data in an envelope, called an Internet Protocol (IP) packet, and “address” the packets correctly. The communicating computers-not the network itself-were also given the responsibility to ensure that the communication was accomplished. The philosophy was that every computer on the network could talk, as a peer, with any other computer” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1993). baseada na comutação de pacotes de dados.6 6 Referidos também como datagramas, que são assim definidos: “A self-contained, independent entity of data carrying sufficient information to be routed from the source to the destination computer without reliance on earlier exchanges between this source and destination computer and the transporting network” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1994). Essa arquitetura foi implementada por meio do Internet Protocol, ou “IP”, adotado a partir de 1983,7 7 “TCP/IP, in full Transmission Control Protocol/Internet Protocol, standard Internet communications protocols that allow digital computers to communicate over long distances. The Internet is a packet-switched network, in which information is broken down into small packets, sent individually over many different routes at the same time, and then reassembled at the receiving end. TCP is the component that collects and reassembles the packets of data, while IP is responsible for making sure the packets are sent to the right destination. TCP/IP was developed in the 1970s and adopted as the protocol standard for ARPANET (the predecessor to the Internet) in 1983” (Disponível em: https://www.britannica.com/technology/TCP-IP. Acesso em: 19 maio 2019). que consiste no conjunto de padrões técnicos que permite enviar pacotes de dados através de redes diversas, inclusive de características diferentes, integradas pela adoção desse protocolo.

Um pacote de dados pode ser imaginado, em linhas gerais, como um envelope, no qual fragmentos de informação são transportados pela rede. No interior do envelope, há o seu conteúdo (um vídeo, uma mensagem de texto, uma foto ou qualquer outra informação). No exterior do envelope, há o seu endereçamento (chamado header ou “cabeçalho”), que, por meio do IP, determina o caminho a ser percorrido.

Essas características técnicas originais dão à internet seu caráter de rede aberta, capaz de integrar as mais diversas redes. Por meio do IP, a internet pode ser representada pelo formato da ampulheta (ver Figura 1).

FIGURA 1
REPRESENTAÇÃO DA ESTRUTURA DE AMPULHETA DA INTERNET

Derivado de Hourglass_modern.svg: Xander89, por Olivier Mehani


Na camada superior da internet (representada pelo topo da ampulheta), admite-se qualquer tipo de conteúdo (v. g., e-mail, chamadas telefônicas, vídeos, mensagens curtas, etc.). Em sua camada inferior, encontram-se todos os tipos de infraestrutura de acesso (v. g., par de cobre usado no provimento de telefonia fixa, radiofrequência utilizada em telefonia móvel, cabo coaxial da rede de TV por assinatura e, recentemente, até fibra óptica para transmissão de dados em alta capacidade). Essa arquitetura permite a conexão de qualquer tipo de dispositivo (v. g., computadores pessoais, celulares, videogames, eletrodomésticos conectados, etc.) aos conteúdos disponibilizados na camada superior.

Além de ser capaz de integrar toda e qualquer rede - inclusive redes fechadas, limitadas ou de acesso restrito8 8 Do caráter aberto da internet decorre a possibilidade de seu emprego até mesmo para a integração de redes fechadas, que também se utilizam do mesmo IP, a ela se integrando. Cotidianamente, rodam sobre a internet redes limitadas, com circuitos restritos, usando o mesmo IP que caracteriza a internet. Por exemplo, sobre a internet são constituídas redes privadas sobre IP, que incluem virtual private networks (VPNs), virtual private lan services (VPLNs) e várias outras modalidades. Vale notar que essa capacidade de integrar redes privadas sobre a rede pública é uma característica essencial da internet aberta (ver, por exemplo, INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1996). -, a característica da internet é de que ninguém precisa pedir permissão para se conectar a ela, ou para enviar e receber dados por meio dela. Qualquer nova conexão é bem-vinda - e é desejável, desde que não exista nenhuma entidade que exerça controle significativo sobre a rede em si, considerada em seu todo, sendo essa entidade governamental, privada ou de qualquer outra natureza.

Essas duas características - a possibilidade de integração de quaisquer redes, abertas ou fechadas, por meio do IP, e a possibilidade de conexão aberta a qualquer interessado - são elementos essenciais da internet. O IP é basicamente neutro em relação à integração de outras redes e à abertura da internet. Uma proposição famosa refere-se a esse método neutro de transporte de dados como “estúpido” - isto é, em uma arquitetura de rede end-to-end, como a da internet, o transporte dos pacotes de dados obedece primordialmente à ordem de endereçamento definida pelo próprio pacote, sem qualquer controle central sobre o fluxo de informações.

Em outras palavras, na arquitetura da internet, o próprio pacote de dados contém as informações necessárias para atingir sua destinação, de modo que a rede permanece neutra com relação ao tráfego e à destinação daqueles pacotes.9 9 “In the Stupid Network, the data would tell the network where it needs to go. (In contrast, in a circuit network, the network tells the data where to go.) In a Stupid Network, the data on it would be the boss. Instead of fancy ‘intelligent’ network routing translation, in a Stupid Network, intelligent end-user devices would be connected to one or more high speed access networks - always listening for relevant information, for data addressed to their owner. Sometimes a ‘communication’ might be a few bits, perhaps a short, pager-type message. Other times, it might be longer, like email. In the event of the need for two-way voice communication, an initial message might state the identity of the ‘caller’, and/or inquire of the whereabouts of the owner. The intelligent end-user device could apply its knowledge of where its ‘owner’ was, and who the caller was. Then, if it were programmed to do so, it could launch a message to its owner, telling of the call, the caller’s identity, location, and any other information. It could also forward as much information as practical. End user devices would be free to behave flexibly, because in the Stupid Network the data is boss, bits are essentially free, and there is no assumption that the data is of a single data rate or data type” (ISENBERG, 1997). -10 10 O uso da expressão “neutro”, nesse parágrafo, não ignora a existência de regras técnicas de organização e priorização do tráfego de dados na internet, propostas conjuntamente para a organização de toda a rede. Ver, a propósito, o conjunto das Requests for Comments (RFCs), documentos técnicos de especificação da internet elaborados pelo Internet Engineering Task Force (IETF), disponível em: http://www. ietf.org/rfc.html. Acesso em: 3 abr. 2018. Nesse mesmo sentido, é interessante ler o comentário de David Isenberg: “In the Stupid Network, because the data is the boss, it can tell the network, in real time, what kind of service it needs. And the Stupid Network would have a small repertoire of idiot-savant behaviors to treat different data types appropriately. If the data identified itself as financial data, the Stupid Network would deliver it accurately, no matter how many milliseconds of delay the error checking would take. If the data were two-way voice or video, the Stupid Network would provide low delay, even at the price of an occasional flipped bit. If the data were entertainment audio or video, the Stupid Network would provide wider bandwidth, but would not necessarily give low delay or absolute accuracy. And if there were a need for unique transmission characteristics, the data would tell the Stupid Network in more detail how to treat it, and the Stupid Network would do what it was told” (ISENBERG, 1997). Nesse modelo, não se concebe, por exemplo, que determinado operador de rede defina outras formas de encaminhamento de pacotes, privilegiando-os ou desprivilegiando-os, por conta da origem ou do conteúdo que é carregado neles.

Nesse contexto, o conceito de neutralidade de rede, inicialmente cunhado por Tim Wu (2002WU, Tim. A proposal for Network Neutrality. Charlottesville: University of Virginia, 2002.; 2003WU, Tim. Network neutrality, broadband discrimination. Journal of Telecommunications and High Technology Law, v. 2, p. 141, 2003. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=388863. Acesso em: 19 jan. 2019.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
, p. 141), surge a partir das características de abertura e descentralização da internet, como mecanismo para sua proteção diante de potenciais ameaças, em especial por parte de operadores de rede. Seria possível argumentar, portanto, que o surgimento da noção de neutralidade de rede está profundamente atrelado a aspectos técnicos do funcionamento da internet, como o modelo end-to-end, que lhe conferem atributos de abertura e descentralização.11 11 “The Net Neutrality debate grew out of the concerns in the late 1990s about possible threats to the end-to-end nature of the internet. As documented by Mark Lemley and Lawrence Lessig in particular, the concern was that the vertical integration of cable firms with ISPs would prove a threat to the e2e design of the internet” (WU, Tim. Network Neutrality FAQ. Disponível em: http://www.timwu.org/network_neutrality.html. Acesso em: 3 abr. 2018). A respeito da preocupação com a preservação do princípio end-to-end de arquitetura de rede, vide: Lemley e Lessig (2001, p. 925).

Como pode ocorrer com frequência em discussões originadas em áreas tecnológicas e de engenharia, que chegam ao campo jurídico pela via política, a relativa simplicidade da descrição relatada não se traduz automaticamente em um conceito jurídico pronto e acabado de neutralidade de rede.12 12 Acerca dos perfis de abordagem para o modelo de regulação da neutralidade de rede, conferir: Wu (2003, p. 141), Melamed e Chang (2017), Oliveira e Paiva (2017, p. 23-50). A eficácia de abordagens regulatórias mais focadas em vedações ex ante e daquelas que admitem controle casuístico ex post tem no caso da neutralidade de rede uma agenda de pesquisa rica. Pelo contrário, há divergências a respeito dos contornos mais específicos desse conceito, o que enseja um amplo debate entre os diversos atores dos mercados envolvidos, da academia e da sociedade civil. Este artigo apresenta ideias que se inserem nesse debate, tendo como ponto de partida para a definição de neutralidade de rede a interpretação do Marco Civil da Internet.

Nesse sentido, consideramos que a aplicação do conceito de neutralidade de rede requer que indivíduos, empresas e governos responsáveis pelo gerenciamento de redes de telecomunicações não discriminem injustificadamente o tráfego de dados que nelas transita.13 13 “Net neutrality refers to a debate about the way that Internet Service Providers (ISPs) manage the data or ‘traffic’ carried on their networks when data is requested by broadband subscribers (known as “end-users” under EU law) from providers of content, applications or services (CAPs) such as YouTube or Spotify, as well as when traffic is exchanged between end-users. The best effort internet is about the equal treatment of data traffic being transmitted over the internet, i.e., that the ‘best efforts’ are made to carry data, no matter what it contains, which application transmits the data (‘application-agnosticism’), where it comes from or where it goes” (BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS [BEREC], 2016 - g.n.). Desse modo, um pacote de dados não pode ser tratado de maneira distinta da convencionada pelos padrões aplicáveis da internet por conta de características intrínsecas a ele (por exemplo, o pacote transmitir vídeo, voz, etc.). Vale dizer: neutralidade significa manter as regras de tráfego estabelecidas pelos padrões técnicos que regem a própria internet14 14 Vide nota 12, supra. como um todo, evitando, assim, que operadores de trechos da rede possam ditar regras que as contrariem.

É essa delimitação do conceito de neutralidade de rede que entendemos vigorar no Direito brasileiro, nos termos do Marco Civil da Internet. De acordo com a nossa leitura - explicitada em detalhes na seção a seguir -, a regra da neutralidade diz respeito especificamente à questão da discriminação de tráfego no nível (ou na camada) da infraestrutura da rede,15 15 “As the digitally networked environment matures, regulatory choices abound that implicate whether the network will be one of peer users or one of active producers who serve a menu of prepackaged information goods to consumers whose role is limited to selecting from this menu. These choices occur at all levels of the information environment: the physical infrastructure layer-wires, cable, radio frequency spectrum - the logical infrastructure layer-software - and the content layer. At the physical infrastructure level, we are seeing it in such decisions as the digital TV orders (DTV Orders), or the question of open access to cable broadband services, and the stunted availability of license-free spectrum. At the logical layer, we see laws like the Digital Millennium Copyright Act (DMCA) and the technology control litigation that has followed hard upon its heels, as owners of copyrighted works attempt to lock up the software layer so as to permit them to control all valuable uses of their works. At the content layer, we have seen an enclosure movement aimed at enabling information vendors to capture all the downstream value of their information” (BENKLER, 2000, p. 561). definido por meio de uma opção de política pública.

2. Análise do Marco Civil da Internet: a implementação jurídica da neutralidade de rede no Brasil

2.1 A diretriz geral de liberdade de iniciativa e dos modelos negociais

Em seu art. 3º, inciso VIII, o Marco Civil da Internet previu como princípio para a disciplina da Internet no Brasil a “liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei”. Referida legislação também conceitua a internet como “o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes”.16 16 Lei n. 12.965/2014, art. 5º, inciso I. Para todos os efeitos, as referências à internet pelos autores se pautam pelo conceito legal, dado o caráter dogmático da análise aqui proposta.

A liberdade para desenvolver modelos de negócio permite que indivíduos e empresas com atuação vinculada à internet estabeleçam relações jurídicas e econômicas de formatações variadas, sempre que tais relações não conflitem com as normas do Marco Civil da Internet - e, naturalmente, de outras leis e regulamentos. Para uma empresa provedora de serviço de telecomunicações que viabiliza a conexão à internet, o inciso indica a existência de espaço para inovação nessas relações, viabilizando, por exemplo, a adaptação de modelos de comercialização de serviços a necessidades de mercado que venham a se desenvolver.

As regras prescritas pelo Marco Civil são decorrentes da própria estrutura constitucional e regulatória do setor de telecomunicações, como se verá a seguir.

No Brasil, as atividades que suportam a conexão à internet em banda larga17 17 A internet em banda estreita pode também ser ofertada por meio do Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC). são do tipo prestado em regime privado18 18 Lei n. 9.472/1997, art. 65, inciso II; Resolução Anatel n. 477, de 7 de agosto de 2007, art. 5º: “O SMP é prestado em regime privado e sua exploração e o direito ao uso das radiofrequências necessárias dependem de prévia autorização da Anatel”; Resolução Anatel n. 614, de 28 de maio de 2013, art. 3º: “O SCM é um serviço fixo de telecomunicações de interesse coletivo, prestado em âmbito nacional e internacional, no regime privado, que possibilita a oferta de capacidade de transmissão, emissão e recepção de informações multimídia, permitindo inclusive o provimento de conexão à internet, utilizando quaisquer meios, a Assinantes dentro de uma Área de Prestação de Serviço”. (i.e., atividades econômicas em sentido estrito, na terminologia constitucional), podendo ser desempenhadas por meio de dois principais serviços de telecomunicações: o Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) e o Serviço Móvel Pessoal (SMP). Esses dois serviços são objeto de regulação pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que tem competência atribuída pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei n. 9.472/1997), o que não prejudica seu regime privado.

A Constituição de 1988 definiu um regime geral de exploração da atividade econômica em sentido estrito fundado na liberdade de iniciativa, conforme estabelecido pelo caput do art. 170. Nesse regime, a intervenção estatal, inclusive a de caráter legislativo, é excepcional, não devendo limitar excessivamente a atuação dos agentes econômicos.19 19 “[E]m se tratando de atividade privada, há um direito subjetivo à entrada e permanência no mercado, que, naturalmente, pode ser limitado por normas de direito público, ainda mais quando a atividade for fortemente regulamentada em razão do seu liame com o interesse público, mas, mesmo nesses casos, há um mínimo daquele direito subjetivo de iniciativa privada que deverá ser sempre resguardado. [...] Se ultrapassar estes lindes, a limitação legal ou administrativa na verdade terá deixado de o ser, constituindo uma servidão administrativa, uma requisição, uma desapropriação ou um confisco puro e simples. Não é por outra razão que o núcleo essencial dos direitos fundamentais são chamados de ‘limite dos limites’” (ARAGÃO, 2005, p. 194-195).

Essa realidade se reflete na legislação do setor de telecomunicações. Em decorrência do regime aplicável aos serviços explorados em regime privado, como o SCM e o SMP, mencionados anteriormente, o ordenamento jurídico assegura ao prestador um grau mínimo de intervenção pública em suas atividades (art. 128 da Lei n. 9.472/1997).20 20 Lei n. 9.472/1997, art. 128: “Art. 128. Ao impor condicionamentos administrativos ao direito de exploração das diversas modalidades de serviço no regime privado, sejam eles limites, encargos ou sujeições, a Agência observará a exigência de mínima intervenção na vida privada, assegurando que: I - a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público; II - nenhuma autorização será negada, salvo por motivo relevante; III - os condicionamentos deverão ter vínculos, tanto de necessidade como de adequação, com finalidades públicas específicas e relevantes; IV - o proveito coletivo gerado pelo condicionamento deverá ser proporcional à privação que ele impuser; V - haverá relação de equilíbrio entre os deveres impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos”.

É característica inerente ao regime privado de exploração dos serviços de telecomunicações a possibilidade de livre pactuação de preços entre as partes interessadas, havendo previsão legal expressa quanto à liberdade de preços no art. 129 da Lei n. 9.472/1997.21 21 Lei n. 9.472/1997, art. 129: “Art. 129. O preço dos serviços será livre, ressalvado o disposto no § 2° do art. 136 desta Lei, reprimindo-se toda prática prejudicial à competição, bem como o abuso do poder econômico, nos termos da legislação própria”.

Daí decorre que, para além das regras que disciplinam o provimento desses serviços de telecomunicações, a exploração comercial de serviços prestados em regime privado somente admite a intervenção do Estado nos casos de abuso de poder econômico, assim caracterizado pela legislação específica, a saber, a Lei n. 12.529/2012, que atribui competência ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para avaliar tais ocorrências.

Tendo apresentado esse pano de fundo para interpretação e fixado a natureza constitucional e legal da atividade explorada pelos provedores de conexão à internet, passemos à análise do art. 9º do Marco Civil da Internet.

2.2 Interpretação do art. 9º do Marco Civil da Internet: a neutralidade de rede no ordenamento jurídico brasileiro

Os contornos da neutralidade de rede enquanto norma jurídica prescrita pelo Marco Civil da Internet são definidos em seu art. 9º, que dispõe, in verbis:

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização de serviços de emergência.

§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º, o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§ 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.

O caput do artigo prevê uma regra geral direcionada ao responsável pela “transmissão, comutação ou roteamento” de tráfego de dados na internet, que deverá oferecer tratamento isonômico aos datagramas (i.e., pacotes de dados) que transitam em suas redes, sem distingui-los quanto a conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

Grosso modo, o roteamento pode ser compreendido como o mecanismo para definição do caminho a ser percorrido pelos pacotes de dados, para que atinjam seu destinatário.22 22 22“The internet modules use the addresses carried in the internet header to transmit internet datagrams toward their destinations. The selection of a path for transmission is called routing” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1981). A comutação, por sua vez, é o processo para o estabelecimento de conexões ponto a ponto entre dois terminais (remetente e destinatário). A transmissão, finalmente, é o processo de envio de pacotes de dados entre esses terminais. Como se pode constatar da leitura do caput do art. 9º, o Marco Civil da Internet confere o mesmo tratamento jurídico a cada uma dessas categorias de agentes, ao equipará-los como destinatários da norma nele contida.

Uma empresa que explore a atividade que suporta conexão de terminais à internet, fixa ou móvel, é responsável por parcela das atividades de transmissão, comutação e roteamento de tráfego de dados, de modo que é destinatária da norma prevista no art. 9º do Marco Civil da Internet.

Cabe, agora, verificar o conteúdo do art. 9º do Marco Civil da Internet. O comando legal básico direcionado a esses destinatários é o de conferir tratamento isonômico aos pacotes de dados roteados, comutados e transmitidos. Apesar de o comando “tratar de forma isonômica” ser razoavelmente indeterminado, o próprio caput do art. 9º indica um caminho interpretativo para especificá-lo. A partir do complemento “sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”, é possível depreender que o tratamento isonômico consiste na vedação de que o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento estabeleça, por sua conta, distinções aplicáveis ao tráfego de pacotes de dados, com base nos critérios mencionados.

Vale dizer que a infraestrutura de rede deve ser agnóstica em relação ao tipo de conteúdo dos pacotes que está transmitindo. Assim, a rede deve transmitir igualmente pacotes de vídeo ou texto, pacotes com origem do usuário X ou Y, pacotes que são visualizáveis pela aplicação A ou B. Pela regra adotada pelo Marco Civil, nenhum desses elementos deveria influenciar na velocidade de transmissão ou em sua confiabilidade. Nesse sentido específico, o operador de rede terá acesso sempre ao cabeçalho do pacote (aspecto que detalharemos adiante), mantendo a rede “cega”, ou “agnóstica”,23 23 Sobre o uso do termo “agnóstico” para definir a rede, vide: Getschko (2018) e Burnham (2010). em relação ao conteúdo do pacote que está transmitindo, de modo a não distorcer o tráfego de dados em favor ou em detrimento de qualquer conteúdo.

Nesse contexto, entendemos que a linha adotada para o Marco Civil da Internet focou especificamente na não discriminação do tráfego de informações no plano da infraestrutura da internet.24 24 Entendemos que a norma contida no art. 9º está relacionada especificamente à camada física e aos aspectos mais básicos da camada lógica da internet, conforme conceituadas em Benkler (2000, p. 562). São essas camadas as responsáveis pelo “tráfego de pacotes” tratado no Marco Civil. De fato, conforme parecer do relator do Projeto de Lei n. 2.126/2011, o Deputado Alessandro Molon - aprovado como Lei n. 12.965/2014:25 25 Parecer proferido em Plenário sobre o Projeto de Lei n. 2.126/2011, apresentado em 25-03-2014.

Por isonômico, entende-se que o tratamento dos pacotes de dados - a forma usual de transmissão de informações na Internet - deve ocorrer de forma não discriminatória. Assim, os intermediários que operacionalizam a transmissão de dados pela rede - sejam eles provedores de conexão, empresas de telecomunicação, backbones, prestadores de serviços de comutação, de roteamento de pacotes e demais agentes que atuam na operacionalização da Internet - não poderão efetuar discriminações quanto ao conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo utilizado na comunicação. Um provedor de serviços de Internet não poderá tratar diferentemente um serviço on-line de vídeo de uma empresa concorrente, em benefício de um serviço análogo por ele gerenciado, por exemplo. Da mesma forma, empresas de telecomunicações não poderão tratar de forma discriminatória aplicações que permitem a realização de conversas por voz por intermédio da rede. Estabelece-se, assim, uma regra que permite evitar abusos anticompetitivos dos diversos intermediários envolvidos na comunicação pela Internet, em benefício claro aos consumidores e à inovação. [...]

Cumpre ressaltar, ainda, que a neutralidade da rede prevista no Marco Civil não proíbe cobrança por volume de tráfego de dados, mas apenas a diferenciação de tratamento por pacotes de dados.

A neutralidade diz respeito ao tratamento isonômico e não discriminatório dos pacotes de dados, não impedindo, portanto, modelos de negócios que ofertem ao usuário conexão à Internet com modelos de cobranças por volume ou por velocidade no tráfego de dados.26 26 É importante esclarecer o conteúdo da seguinte referência constante do parecer do Deputado: “[O] que não pode ocorrer, sob risco de se prejudicar a estrutura aberta da Internet, bem como a inovação e os consumidores, é aumentar o controle sobre o uso do meio, da infraestrutura física. Modelos diferenciados de cobrança e tratamento dos pacotes podem resultar no fim do modelo descentralizado da Internet e no início da oferta de pacotes fatiados por tipos de serviços, o que não seria aceitável, por ir contrariamente à inovação, aos direitos do consumidor, bem como à arquitetura aberta, livre e descentralizada da Internet, propensa a novos entrantes no mercado”. Note-se que os “modelos diferenciados de cobrança e tratamento dos pacotes”, mencionados nesse trecho, são referentes às hipóteses de degradação de tráfego originadas ou destinadas a determinados provedores de conteúdo. Citamos anteriormente um exemplo preciso de prática censurável pela óptica do Deputado: o tratamento dispensado por determinado operador de rede aos servidores BitTorrent. Vale dizer que a crítica está voltada à cobrança de valores diferenciados dos provedores de conteúdo por parte dos detentores de infraestrutura, sob pena de degradação do tráfego daquele provedor, caso o acordo comercial não seja firmado. Não há qualquer relação, portanto, com o estabelecimento de modelos comerciais praticados junto aos usuários finais dos serviços de telecomunicações, como é o caso da consulente - em linha com o que demonstramos ao longo deste artigo. -27 27 Em sentido semelhante, há manifestação de José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça à época dos debates, a respeito do Marco Civil da Internet: “O respeito ao princípio da neutralidade de rede na internet veda a discriminação no tráfego de dados na internet em razão de seu conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação” (CARDOZO, 2014, p. xxvi).

Conforme a previsão do caput do art. 9º, portanto, tratamento isonômico diz respeito à vedação de que o operador da rede - público, privado ou de qualquer outra natureza - possa analisar o conteúdo dos pacotes de dados de modo a criar regras de tráfego específicas para cada um deles, privilegiando ou desprivilegiando pacotes no nível da infraestrutura, conforme suas características. É nesse sentido que a regra busca manter a infraestrutura “neutra” em relação aos pacotes de dados que transmite.

Nesse mesmo sentido, Hobaika e Borges (2014)HOBAIKA, Marcelo Bechara; BORGES, Luana. Responsabilidade jurídica pela transmissão, comutação ou roteamento e dever de igualdade relativo a pacotes de dados. In: LEITE, George; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas , 2014. p. 651-676. traçam distinção didática a respeito da abrangência da regra de neutralidade contida no art. 9º. Eles desenvolvem argumento segundo o qual seriam etapas distintas o provimento de internet, que envolve o fornecimento de uma capacidade de transporte de dados a uma determinada velocidade de conexão (condições de oferta estabelecidas em função de lógica comercial), e o tráfego de dados (aspecto estritamente técnico) - ponto com o qual concordamos:

Diante disso, por não haver interferência ou alteração da normalidade do tráfego dos pacotes de dados direcionados a qualquer aplicação, o tratamento distinto dos valores de velocidade e capacidade não configurariam quebra de isonomia. (HOBAIKA e BORGES, 2014HOBAIKA, Marcelo Bechara; BORGES, Luana. Responsabilidade jurídica pela transmissão, comutação ou roteamento e dever de igualdade relativo a pacotes de dados. In: LEITE, George; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas , 2014. p. 651-676., p. 661)

Os autores indicam em seu trabalho a existência de dois aspectos do provimento de serviço de telecomunicações que suportam o acesso à internet: a “normalidade do tráfego” dos pacotes de dados e a “velocidade e a capacidade” contratada por um usuário para o provimento de serviço de telecomunicação que dá suporte ao acesso à internet. A nosso ver, a regra de neutralidade de rede está ocupada do primeiro tema - a normalidade do tráfego. Quanto ao modo de provimento do serviço de telecomunicação ao usuário (i.e., a velocidade e a capacidade contratadas), trata-se de aspecto contratual que deverá observar a regulamentação setorial quanto ao provimento do serviço. Ou seja, o fato de um usuário contratar uma velocidade maior de acesso que outro usuário não implica qualquer violação à regra de neutralidade, desde que os pacotes de dados continuem transitando de maneira não discriminatória em ambos os casos.

Vale dizer: o dispositivo legal do Marco Civil sobre neutralidade tem como objetivo teleológico, em termos de mens legis, assegurar que os agentes gestores de redes (“provedores de conexão, empresas de telecomunicação, backbones, prestadores de serviços de comutação, de roteamento de pacotes e demais agentes que atuam na operacionalização da Internet”) não desvirtuem as características básicas da infraestrutura de suporte da internet, conforme descrito na Seção 1. O foco é justamente a vedação de que o operador da rede possa estabelecer regimes diferenciados de tráfego para pacotes específicos que trafegam por suas redes, distintos daqueles aplicáveis à internet como um todo (comando que é expresso pela fórmula “discriminar pacotes de dados”).

A fim de facilitar a compreensão dos comandos legais, citamos alguns exemplos de modalidades de discriminação vedada de pacotes de dados (datagramas) para cada um dos critérios mencionados pela segunda parte do caput do art. 9º:

  1. Por conteúdo: um operador de rede examina o tráfego de sua rede em busca de datagramas contendo trechos de vídeos. Ao reduzir a velocidade do tráfego daqueles datagramas, pois considera indesejável o tráfego de vídeos, haveria violação ao Marco Civil.

  2. Por origem: um operador de rede examina o tráfego de sua rede em busca de datagramas que estão sendo enviados a partir de um determinado site (v. g., o sindicato de seus empregados que organizava um movimento grevista). Ao reduzir a velocidade do tráfego daqueles datagramas ou mesmo bloquear o acesso ao site de origem, o operador violaria o Marco Civil.

  3. Por destino: um operador de rede examina o tráfego de sua rede em busca de datagramas que estão sendo enviados a um site (v. g., site que oferece o armazenamento de grandes arquivos dos usuários). Se ele reduzir a velocidade do tráfego daqueles datagramas, pois deseja limitar a competição com o seu próprio site de armazenamento de arquivos, estaria afrontando a previsão legal.

  4. Por serviço: um operador de rede examina o tráfego de sua rede em busca de datagramas (pacote de dados) que contêm chamadas de voz pela internet (VoIP, voz sobre IP). Ele reduz a velocidade do tráfego daqueles datagramas, pois entende que aquele serviço de voz sobre a internet compete com um determinado serviço de telecomunicações operado também por ele (v. g., telefonia fixa comutada). Ao privilegiar datagramas de serviços que são por ele explorados em detrimento de outros datagramas, haveria também uma violação ao Marco Civil.

  5. Por terminal: um operador de rede examina o tráfego de sua rede em busca de datagramas que são provenientes de um modelo determinado de telefone celular. Ao reduzir a velocidade do tráfego daqueles datagramas ou mesmo bloquear a sua transmissão para prejudicar o fabricante do aparelho, o operador estaria violando a regra de neutralidade.

  6. Por aplicação: um operador de rede examina o tráfego de sua rede em busca de datagramas originados por um novo aplicativo (v. g., voltado à postagem e ao compartilhamento de fotos). Se ele decidir prejudicar o tráfego daqueles datagramas, em virtude do elevado tráfego gerado, haverá uma violação ao Marco Civil, ressalvados os casos em que o volume de tráfego poderia inviabilizar tecnicamente a prestação adequada do serviço (art. 9º, § 1º).28 28 Exemplo desse tipo de discriminação, que a nosso ver seria objeto de questionamento com fundamento na vedação à discriminação técnica que empregue as medidas previstas no § 3º do art. 9º do Marco Civil, é o caso havido com a operadora norte-americana Comcast, que estaria monitorando e degradando a qualidade da conexão entre usuários de sua rede que trafegavam pacotes em modalidade peer-to-peer por meio do protocolo BitTorrent. A Federal Communications Commission decidiu que a prática da Comcast violava a neutralidade de rede, demonstrando a adoção de perspectiva focada em impedir a discriminação de pacotes de dados na camada de tráfego - nesse caso, inclusive mediante inspeção profunda do conteúdo de pacotes. Para a descrição das razões consideradas no caso citado, vide FCC, Memorandum Opinion and Order, File n. EB-08-IH-1518, FCC 08-183, Formal Complaint of Free Press and Public Knowledge Against Comcast Corporation for Secretly Degrading Peer-to-Peer Applications.

O bloqueio, a discriminação ou a degradação do tráfego realizados sob esses critérios contrariam a regra de isonomia posta pelo caput do art. 9º.

Essa interpretação do caput do art. 9º é reforçada pela redação dos §§ 1º e 2º do mesmo artigo. Como se nota, esses dois parágrafos buscam regulamentar eventuais exceções à regra geral do caput e caracterizam essas exceções justamente como a possibilidade de “discriminação ou degradação do tráfego” em circunstâncias excepcionais. É dizer que, as hipóteses contidas nos parágrafos, ao operacionalizar exceções à regra do caput, contribuem para a interpretação dos limites dos mandamentos ali contidos.

Assim, se a exceção se refere à “discriminação e degradação do tráfego”, o que ocorre tecnicamente no nível da infraestrutura de rede de transmissão de dados, tem-se que a regra geral do caput também se refere a uma obrigação de tratamento isonômico dos pacotes na própria rede, ou seja, ao encaminhamento dos pacotes de dados (“tráfego”) pela infraestrutura de suporte. Portanto, os parágrafos delimitam o conteúdo do caput do art. 9º. Vejamos.

Nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 9º, o tratamento não isonômico no nível da rede somente seria admitido em hipóteses a serem regulamentadas por decreto presidencial e decorre exclusivamente de: (i) requisitos técnicos indispensáveis; e (ii) priorização de serviços de emergência. Nas hipóteses de discriminação ou degradação de tráfego, deverão ser observados os requisitos previstos no § 2º.

Quanto a essas hipóteses de exceção, é importante destacar que o inciso IV do § 2º, único a fazer qualquer referência à oferta comercial de serviços, está indissociavelmente ligado à hipótese de “discriminação ou degradação de tráfego”. Esse inciso prevê que, nas hipóteses em que houver discriminação ou degradação de tráfego, na forma admitida pelo § 1º (leia-se: tratamento não isonômico para priorização de serviços de emergência e gestão técnica da rede), as condições comerciais oferecidas não poderão ser discriminatórias.29 29 Quanto ao ponto, fazemos referência à Análise n. 180/2018/SEI/OR, proferida pelo Conselheiro da Anatel Otávio Luiz Rodrigues Junior, na qual é apresentado exemplo didático de conduta que seria ordinariamente contrária ao caput do art. 9º por implicar bloqueio de determinados pacotes de dados em provimento do SCM. No caso, contudo, a Anatel opinou no sentido de que se tratava de conduta abarcada pelos §§ 1º e 2º do art. 9º, em conta de ser relativa a bloqueio considerado necessário para resguardar a estabilidade, a segurança e a funcionalidade da rede.

Não se trata, portanto, de dispositivo que restrinja pura e simplesmente a liberdade comercial geral dos provedores de serviços de telecomunicação que possibilitam conexão à internet, o que poderia ser inclusive inconstitucional, mas sim de uma restrição específica para que a autorização excepcional para degradar tráfego não seja explorada por planos comerciais específicos, o que geraria um incentivo à discriminação do tráfego de dados, comprometendo a neutralidade de rede tutelada pelo art. 9º.

Ou seja, a hipótese tratada no dispositivo está destinada especificamente à de degradação e discriminação de tráfego que será, nos termos da lei, regulamentada por meio de decreto presidencial, não podendo ser estendida para outras situações. Vale dizer: o art. 9º do Marco Civil da Internet apenas regulamenta as condições de oferta comercial de planos de conexão à internet para os casos em que essa oferta venha a ser realizada sob condições de discriminação ou degradação de tráfego.

Em todas as outras situações de normalidade, em que não haja discriminação técnica entre pacotes de dados, a intervenção nas condições comerciais não é objeto de tutela do art. 9º do Marco Civil da Internet, o que é apenas ressaltado pela análise dos parágrafos que compõem o dispositivo. Ou seja, na medida em que o tráfego seja tratado de maneira isonômica no nível da infraestrutura (v. g., sem degradação de qualidade ou velocidade por tipo de conteúdo, aplicação, origem, destino ou terminal), não haverá qualquer limitação ao uso de diferentes modelos de negócio e de precificação para a transmissão de pacotes.

Por fim, o § 3º do art. 9º trata da proteção ao conteúdo dos pacotes de dados, ao vedar seu bloqueio, seu monitoramento, sua filtragem e sua análise. Esse dispositivo, diferentemente do caput e dos §§ 1º e 2º, analisados até aqui, não dispõe especificamente a respeito do tratamento isonômico de pacotes de dados. Ele trata de outro tema, ao estabelecer uma norma autônoma voltada à vedação da análise do conteúdo dos pacotes de dados.

Para compreender o dispositivo, é importante ter em mente que todo datagrama é composto fundamentalmente de duas partes: um cabeçalho (header) e o conteúdo (data). O cabeçalho contém a informação necessária e suficiente para que o datagrama seja encaminhado até sua destinação.30 30 O cabeçalho é tecnicamente definido da seguinte forma: “The portion of a packet, preceding the actual data, containing source and destination addresses, and error checking and other fields. A header is also the part of an electronic mail message that precedes the body of a message and contains, among other things, the message originator, date and time” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1994). Já o conteúdo é a informação transportada propriamente dita. Em analogia com o setor postal, o datagrama é a carta, composta do endereçamento visível, externo ao envelope, e por seu conteúdo (que está presente dentro do envelope).

O operador de rede sempre terá acesso ao cabeçalho dos pacotes, já que é a partir dele que é possível encaminhar os dados pela rede, mas não poderá acessar o conteúdo. Assim, o § 3º do art. 9º da Lei n. 12.965/2014 impede, por exemplo, que o operador de rede identifique um conteúdo no pacote que é supostamente “indesejável” e, por conta disso, realize o seu bloqueio.

Como se nota, a redação final do art. 9º do Marco Civil da Internet foi voltada para resguardar a arquitetura básica da rede mundial de computadores, notadamente na preservação da abertura da rede, sua capacidade de integrar todas e quaisquer outras redes por meio do IP e de seu desenho end-to-end. A nosso ver, o que se pretendeu foi a manutenção da rede agnóstica em relação aos pacotes que transitam por ela. Porém, desde que seja mantido esse núcleo fundamental da neutralidade de rede, não há nada no Marco Civil que restrinja a flexibilidade dos agentes econômicos e suas ofertas comerciais. Essa é a interpretação que entendemos ser mais condizente com o regime constitucional da livre-iniciativa, a qual abre espaço, por exemplo, para a oferta de pacotes de provimento de serviço de suporte ao acesso à internet com estratégias de zero-rating.

2.3 Legalidade da oferta de pacotes zero-rating

A prática de zero-rating consiste no oferecimento, especialmente em planos de acesso móvel à internet, de franquia de dados ilimitada ou bonificada para a utilização de determinadas aplicações e serviços on-line. O oferecimento de serviço de telecomunicações sob tal modelagem depende da contabilização separada do consumo de volume de dados disponibilizados dentro de determinada franquia comercial de consumo e fora dela, por exemplo, para acesso a certa aplicação de internet.

Considerando a interpretação do art. 9º do Marco Civil da Internet desenvolvida aqui, realizada a partir das normas jurídicas que trataram do assunto no Brasil, entendemos que a prática não é vedada pela legislação brasileira de proteção à neutralidade de rede.

Conforme observamos, o art. 9º, caput, veda aos responsáveis pelo roteamento, pela comutação e pela transmissão de pacotes de dados a adoção de práticas de discriminação ou degradação de tráfego de datagramas com relação a seu conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicação. Há ainda a vedação do bloqueio, do monitoramento, da filtragem ou da análise do conteúdo dos datagramas.

Nesse contexto, as ofertas de zero-rating não são proibidas a priori, sendo ilegais do ponto de vista do Marco Civil da Internet apenas quando desrespeitam os parâmetros anteriormente elencados do art. 9º, caput.

Em primeiro lugar, a oferta não deve envolver qualquer tipo de tratamento diferenciado ou privilegiado para o tráfego de dados provenientes ou destinados ao aplicativo ou serviço on-line ofertado em relação aos dados gerais que transitam na rede, estando restrita ao oferecimento de uma condição puramente comercial (e. g., isenção da cobrança pelo acesso a determinadas aplicações de internet).

Nesse sentido, todos os dados devem trafegar exatamente da mesma forma, e com a mesma velocidade, independentemente da franquia de dados em que serão contabilizados. Enquanto duas franquias de dados estiverem sendo utilizadas simultaneamente (e. g., um pacote de 10 GB para acesso ao aplicativo tal sem cobrança pela operadora e um pacote de 5 GB para acesso geral com cobrança mensal), os dados referentes ao aplicativo ou serviço on-line parte da oferta de zero-rating devem receber rigorosamente o mesmo tratamento que os dados dos demais aplicativos e conteúdos, conforme os padrões gerais de funcionamento da internet e a capacidade da rede da provedora.

Ou seja, a velocidade e os demais parâmetros de transmissão contratados pelo usuário devem ser aplicados de maneira isonômica. Respeitada essa condição estabelecida no art. 9º, ofertas de zero-rating apresentam apenas uma distinção de cunho comercial, que não é vedada pela lei em comento.

O zero-rating nada mais é, então, do que uma faceta da possibilidade de estabelecimento de planos de serviço com limites de velocidade e volume de dados, aspectos anteriores ao tráfego propriamente dito e que não afetam o caráter neutro da infraestrutura de conexão e transmissão de dados.31 31 Para uma outra abordagem do conceito de zero-rating, ver Ramos (2018). No entanto, uma vez iniciado o tráfego, observadas as prévias condições comerciais em torno de velocidade e volume, os pacotes transitam segundo os padrões técnicos usuais da internet, ou seja, de maneira isonômica.

Em segundo lugar, a oferta também deve ser regular perante o § 3º do art. 9º, não implicando bloqueio, monitoramento, filtragem ou análise do conteúdo dos pacotes de dados, provenientes ou destinados ao aplicativo ou serviço ofertado ou a qualquer outro serviço ou aplicação.

A contabilização do tráfego de maneira apartada para fins de ofertas de zero-rating (i.e., identificar o tráfego sobre o qual não será cobrada tarifa de dados) não depende da análise do conteúdo dos pacotes de dados trafegados. Nesse sentido, a cobrança pelo tráfego é um ponto que não se confunde com a gestão técnica da “transmissão, comutação e roteamento”. Apenas o cabeçalho do pacote é lido (atividade que é requisito básico para seu tráfego pela rede), identificando o seu endereçamento com relação ao aplicativo ou serviço ofertado, seja como remetente, seja como destinatário. A análise do conteúdo dos pacotes não é um requisito para fins de operacionalização do plano de serviço.

Em terceiro lugar, é bastante comum a configuração de redes limitadas sobre a internet, integradas por meio da característica aberta do IP. Os exemplos são diversos: incluem virtual private networks (VPNs), virtual private lan services (VPLNs), redes ponto a ponto, entre várias outras modalidades de redes de acesso limitado ou restrito. Incluem também exemplos prosaicos, como é o caso de redes sem fio em aeroportos, as quais se valem do IP para ofertar acesso à internet.32 32 Para além desses exemplos, há uma série de outras experiências internacionais de provimento não oneroso de acesso móvel à internet para aplicações específicas, sejam elas redes sociais, aplicativos de mensagens eletrônicas ou serviços de streaming de músicas. De fato, pesquisas indicam que ao menos metade das operadoras de telefonia móvel do mundo empregam, de alguma maneira, planos e promoções que utilizam o modelo do zero-rating (ver, por exemplo, App Centric Operators on the Rise, Allot MobileTrends Report H1/2014. Disponível em: https://investors.allot.com/news-releases/news-release-details/allot-mobiletrends-report-records-rise-application-centric. Acesso em: 3 abr. 2018). Quando o usuário utiliza a rede sem pagar pela conexão, a ele é usualmente conferido o acesso ao sítio de internet do próprio aeroporto e, com frequência, a outros sites admitidos pela entidade que oferece o acesso (sites de previsão do tempo, por exemplo). Isso, de acordo com o racional exposto, não importa em qualquer violação ao princípio da neutralidade de rede. Ao pagar e adquirir o acesso completo à internet, o usuário continua podendo acessar os sites incluídos de modo gratuito, e também qualquer outro site de sua preferência. Claro, para que não haja violação à neutralidade de rede, o tratamento dos dados trafegados pelo usuário nos dois regimes de acesso, limitado e irrestrito, deve ser exatamente o mesmo, sem que haja discriminação ou privilégio.

Diante dos pontos levantados, entendemos que ofertas de zero-rating devem ser interpretadas como prática resguardada pelo art. 3º, inciso VIII, do Marco Civil da Internet, uma vez que não se encontra expressamente proibida pela lei, reflete o exercício de liberdade negocial de empresa que explora o provimento de conexão à internet a título de atividade econômica privada.

Destacamos que também faz parte da liberdade negocial o estabelecimento de mecanismo duplo de contabilização de franquia, com destinação de uma dessas franquias a aplicação(ões) específica(s), o qual é uma faculdade na estruturação de ofertas zero-rating. Em nossa visão, essa prática não configura ofensa à regra de neutralidade de rede prevista no art. 9º do Marco Civil da Internet, pelas mesmas razões que já expusemos anteriormente.

Esse tipo de serviço consiste, em linhas gerais, no provimento de uma conexão de dados que viabiliza o acesso à internet, havendo apenas a distribuição do volume máximo de utilização de dados atribuído a determinado usuário em duas franquias distintas, com finalidades igualmente diversas. O acesso à internet ou ao aplicativo ou serviço on-line parte da oferta é interrompido assim que a respectiva franquia se esgota. Conforme já destacado, enquanto houver volume disponível na franquia contratada, todo o tráfego deverá ser realizado de maneira isonômica - ou seja, os pacotes deverão trafegar sem qualquer interferência adicional dos detentores da rede.

Do mesmo modo, o plano continua favorecendo a navegação do usuário para outros sites, na medida em que libera a franquia geral do cômputo dos dados trafegados para o aplicativo ou o serviço on-line parte da oferta de zero-rating ou de franquia em separado. De fato, tal qual no exemplo citado, o usuário intensivo do aplicativo ou do serviço sobre o qual a oferta incide poderá navegar mais em outros sites do que navegaria se o seu uso desse aplicativo fosse contabilizado na mesma franquia geral. Assim, por exemplo, se o usuário tem uma franquia geral de 8 GB/mês, mas está acostumado a navegar cerca de 3 GB por mês em seu aplicativo favorito, significa que ele teria normalmente cerca de 5 GB para utilizar com outros aplicativos. A partir do momento em que seu aplicativo favorito passa a fazer parte de uma oferta de zero-rating ou de franquia adicional em separado, se o usuário mantiver a mesma franquia geral de 8 GB, isso significa que ele terá maior disponibilidade para visitar outros sites.

Desse modo, entendemos inexistir ofensa ao art. 9º do Marco Civil da Internet pela oferta de zero-rating ou estabelecimento de franquias paralelas vinculadas a serviços, desde que: (i) haja preservação de isonomia na realização do tráfego dos pacotes de dados contabilizados em cada franquia (i.e., o fato de que o pacote seja contabilizado em uma ou outra franquia deve ser irrelevante para a sua velocidade e priorização na rede); e (ii) não haja bloqueio, monitoramento, filtragem ou análise do conteúdo dos pacotes de dados contabilizados em cada uma das franquias. Sendo a oferta puramente comercial (i.e., como cobrar sobre determinados tipos de tráfego), e mantida a neutralidade de rede no nível de infraestrutura (i.e., a infraestrutura continua agnóstica ao tráfego que transmite), não há que se falar em violação ao art. 9º do Marco Civil.

Por fim, qualquer eventual questionamento com relação aos aspectos anticoncorrenciais da formulação dos preços das ofertas deveria ser analisado no âmbito próprio, pela autoridade de defesa da concorrência brasileira (Cade), em análise caso a caso. Nesse sentido, tais práticas seriam submetidas a uma avaliação antitruste ex post, e não a uma proibição regulatória ex ante.33 33 Por não haver uma restrição regulatória ex ante, eventuais preocupações acerca de condições de competição geradas por acordos ou práticas de zero-rating poderão e deverão ser analisadas no âmbito próprio e considerando as circunstâncias de cada acordo ou prática. Ver acerca do tema a Seção 4 deste artigo. -34 34 A respeito da adequação de uma análise concorrencial ex post, ver: Oliveira e Paiva (2017, p. 23-50); Silva, Leurquin e Belfort (2016, p. 21-56).

2.4 Conclusão parcial

A partir da análise do regime jurídico aplicável aos provedores de conexão à internet, em conformidade com o exposto, é possível concluir que:

  1. O art. 170 da Constituição de 1988 protege o regime das atividades econômicas em sentido estrito, exploradas em regime de livre-iniciativa, o que resulta na excepcionalidade da intervenção estatal - notadamente no que se refere aos critérios de estabelecimento de preços e de modelos de negócios.

  2. A Lei Geral de Telecomunicações estabelece que os serviços de telecomunicações que suportam a transmissão de dados (como SCM e SMP) são explorados em regime privado e sujeitos à livre-iniciativa - inclusive no que tange à liberdade para formação de preços e ao estabelecimento de modelos de negócio.

  3. A Lei Geral de Telecomunicações, em seu art. 129, estabelece claramente que, com relação a serviços de telecomunicação prestados em regime privado, “o preço dos serviços será livre” e remete ao Cade a atribuição de avaliar infrações à ordem econômica.

  4. O art. 3º, inciso VIII, do Marco Civil da Internet, ao preceituar a liberdade negocial, estabelece critério de interpretação restritivo para a norma contida no art. 9º da mesma lei, alinhado com a Constituição Federal e com a legislação do setor de telecomunicações.

  5. O caput e os §§ 1º e 2º do art. 9º do Marco Civil da Internet estabelecem uma norma de tratamento isonômico do tráfego de pacotes de dados, aplicável ao roteamento, à comutação e à transmissão de pacotes de dados, atividades realizadas por prestadores de serviço de conexão à internet, entre outros agentes gestores de rede.

  6. O § 3º do art. 9º veda que os conteúdos dos pacotes de dados sejam bloqueados, monitorados, filtrados ou analisados.

  7. A opção legislativa brasileira focou-se na vedação ao tratamento discriminatório e na degradação de tráfego no nível da infraestrutura de suporte para a internet. Entendemos que o objetivo dessa prescrição é preservar a arquitetura aberta da internet, mantendo sua capacidade de integrar quaisquer outras redes, inclusive redes limitadas ou restritas por meio do IP.

Desse universo de comandos normativos não é possível extrair norma que proíba a comercialização de quaisquer planos de serviços que deem suporte à conexão à internet, exceto na hipótese em que esses: (i) impliquem tratamento discriminatório ou degradação do tráfego de datagramas pela rede; ou (ii) vulnerem o conteúdo de datagramas. Afora essas duas hipóteses, será livre a comercialização de planos de conexão e acesso à internet, respeitadas as demais disposições legislativas e regulamentares aplicáveis.

Logo, considerando a interpretação do art. 9º do Marco Civil da Internet desenvolvida anteriormente, realizada a partir das normas jurídicas que trataram do assunto no Brasil, entendemos que a prática de zero-rating ou de ofertas de franquias adicionais para certos aplicativos/serviços não é vedada pela legislação brasileira de proteção à neutralidade de rede.

3. O Decreto Presidencial n. 8.771/2016

Em 11 de maio de 2016, a então Presidente da República fez publicar o Decreto n. 8.771/2016, o qual regulamentou o Marco Civil da Internet, incluindo, mas não se limitando à disciplina da neutralidade de rede.

De acordo com o exposto nas seções anteriores, entendemos que o legislador delimitou a disciplina de neutralidade de rede no que tange à discriminação de tráfego, de modo a ser vedado ao provedor de conexão à internet conferir tratamento não isonômico aos conteúdos trafegados na rede (art. 9º, caput), bem como “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados” (art. 9º, § 3º).

Como visto, a regra da neutralidade não abrange acordos comerciais, os quais se encontram no campo da liberdade negocial e não são regulados pelo Marco Civil. Tais acordos são legais, da perspectiva desse marco regulatório, desde que cumpram com os requisitos impostos pelo art. 9º, caput, e § 3º.

Nesse sentido, a competência conferida pelo Legislativo para a regulamentação da Lei n. 12.965/2014 diz respeito especificamente à hipótese de “discriminação ou degradação do tráfego”, enquanto exceção à regra do art. 9º, caput, que postula a isonomia no tratamento dos conteúdos trafegados - tal qual dispõe o § 1º do art. 9º do Marco Civil. Novamente, o Marco Civil não tratou da possibilidade de regulamentação que contenha a vedação ex ante de acordos puramente comerciais que não digam respeito à discriminação de tráfego, nos termos do art. 9º, § 2º, inciso IV.

Não obstante esse quadro legal, o art. 10 do Decreto n. 8.771/2016 estipula regras a respeito de acordos comerciais, que podem restringir a livre-iniciativa dos agentes privados para estruturar ofertas, mesmo que essas ofertas respeitem as condições impostas pelo art. 9º do Marco Civil, isto é, não confiram tratamento diferenciado ao tráfego de dados. In verbis:

Art. 10. As ofertas comerciais e os modelos de cobrança de acesso à internet devem preservar uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória.

Caso essa disposição do art. 10 do decreto fosse lida como disposição que regulamenta aprioristicamente o conteúdo de todos os modelos comerciais, o artigo acabaria expandindo o conceito de neutralidade de rede para além do que foi previsto na lei, no que tange a tratamento não discriminatório dos dados que trafegam na rede. Ao fazê-lo, excederia a autorização legislativa para a expedição de regulamentação, que é restrita às hipóteses de discriminação de tráfego admissíveis, nos termos do próprio Marco Civil.

Cumpre rememorar a impossibilidade de que o decreto regulamentador de lei em sentido formal altere o comando restritivo da liberdade nela presente de maneira a instituir novo comando normativo, autônomo. Essa norma de organização do sistema normativo deriva de duas principais fontes:

  1. A primeira delas coloca óbice material à possibilidade de norma restritiva de liberdade não estar prevista ou autorizada35 35 Deve-se destacar, evidentemente, a possibilidade de que a lei contenha delegação da competência para disciplinar determinada situação ao regulamento, caso em que a norma infralegal poderá conter norma inteiramente nova, desde que aderente à moldura legal estabelecida pela lei em sentido estrito. Não é o que se observa no Marco Civil da Internet, contudo. Naquela lei, conforme buscamos demonstrar nas seções anteriores deste artigo, há norma restritiva de liberdade de conteúdo específico e fechado - qual seja, a vedação de discriminação entre datagramas em trânsito que não seja necessária nos termos do § 1º do art. 9º. Ou seja, nos casos em que a obrigação vem delimitada pela própria lei, que reflete a opção de política pública adotada quando de sua edição, não cabe ao Chefe do Poder Executivo elencar eventuais princípios e diretrizes presentes na lei como razão para subverter a obrigação prevista na própria lei, instituindo obrigação autonomamente criada por decreto. em lei, e está prevista no art. 174, caput, da Constituição Federal, que determina que o papel de agente normativo e fiscalizador do estado será exercido na forma da lei. O artigo está alinhado ao art. 170, parágrafo único, da Constituição, que coloca a lei como o instrumento necessário para a imposição de restrição ao acesso das atividades econômicas, e dá os contornos da proteção formal às liberdades econômicas positivadas pela Constituição. Dele deriva a impossibilidade material de limitação de liberdades pelo Estado que não esteja prevista ou, ao menos, amparada, em lei em sentido formal.

  2. A segunda tem cunho formal e dá conta do papel do decreto no sistema normativo. Nos termos do art. 84, inciso IV, da Constituição Federal, cabe ao Presidente da República expedir decretos para dar execução à lei. As exceções a essa norma geral são enumeradas taxativamente na própria Constituição - ver, por exemplo, as hipóteses trazidas no inciso VI do art. 84. É dizer: nas hipóteses em que a lei tenha especificado uma norma de determinada extensão, não pode o Chefe do Poder Executivo, por via de norma infralegal (o “decreto autônomo”), alterar o comando normativo presente na norma legal - em vez de lhe dar execução.

Nesse contexto, entendemos que a única interpretação plausível para esse dispositivo, dentro do quadro constitucional vigente e da legislação regulamentada, seria a que restringe as “ofertas comerciais” tratadas àquelas adotadas “na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego”, conforme referido no § 2º do art. 9º. Essa interpretação restritiva está fundamentada na aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição,36 36 Técnica hermenêutica mediante a qual se busca identificar o sentido da norma infralegal compatível com a Constituição para, então, aplicá-la. A respeito, conferir: Mendes e Branco (2013, p. 93-98). sendo a que adequa o decreto aos limites da lei e, por consequência, da Constituição. É dizer: apenas os acordos comerciais que gerem algum tipo de discriminação de tráfego na camada de infraestrutura (já vedados no art. 9º do decreto) poderiam violar a regra de neutralidade prevista no Marco Civil.

Qualquer interpretação expansiva do decreto que busque atingir todos os acordos comerciais parece-nos inconstitucional, uma vez que (i) excederia a autorização legislativa para a expedição de regulamentação; (ii) atingiria acordos comerciais mesmo na hipótese de não discriminação de pacotes no nível de infraestrutura de rede; e (iii) corresponderia à ingerência inconstitucional diante do regime de liberdade de iniciativa regulamentado, no caso concreto, pela Lei n. 9.472/1997 e pela regra da liberdade dos modelos de negócio, estabelecida no próprio Marco Civil.

Destaque-se, aqui, que os autores não ignoram as posições contrárias, por parte de autores nacionais e estrangeiros, a modelos de zero-rating,37 37 Ver, por exemplo: CRAWFORD, Susan. Zero for Conduct. Disponível em: https://medium.com/backchannel/less-than-zero-199bcb05a868. Acesso em: 20 jan. 2019, ou ainda, Ammori (2013). Cf., ainda, no âmbito nacional, Ramos (2018). substancialmente calcadas em sugestões de política pública (policy) - que, muitas vezes, sequer estão refletidas na legislação de seus países de origem. No entanto, e em aderência à proposta deste artigo, consideramos que, independentemente de uma discussão de alteração legislativa, o Marco Civil fez uma opção clara em relação à definição da extensão do conceito de neutralidade de rede no Brasil, bem como quanto às formas de controle (i.e., ex post), no que se refere às ofertas comerciais como aquelas de zero-rating aqui analisadas, opção legislativa essa que não pode ser alterada pela via regulamentar.

Nesse contexto, deve ser feita uma interpretação conforme, segundo a qual o art. 10 do decreto deve ser lido em conjunto e dentro dos limites estabelecidos pelo art. 9º, § 2º, da lei.

4. A posição do Cade, da Anatel e do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações

Ao longo do texto defendemos que o conceito de neutralidade de rede, conforme postulado no Marco Civil da Internet, diz respeito estritamente ao dever de não discriminação de tráfego de pacotes de dados. Não abarcaria, portanto, arranjos comerciais - os quais se encontram no campo da liberdade comercial de cada provedor -, sendo tal interpretação incorporada às disposições do Decreto n. 8.771/2016.

A análise da casuística corrobora a interpretação aqui proposta. De fato, ela está alinhada com o entendimento de alguns órgãos públicos brasileiros sobre o tema, como o Cade, a Anatel e também o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

Nesse sentido, destaca-se a decisão do Cade proferida no bojo de inquérito administrativo38 38 CADE, Inquérito Administrativo n. 08700.004314/2016-71. instaurado contra prestadoras de SMP, tendo em vista denúncia feita pelo Ministério Público Federal em que se acusavam as representadas de práticas discriminatórias no mercado da internet. Essas práticas referiam-se às políticas de preços e condições diferenciadas de prestação de serviços, em que se ofertavam aos usuários planos de dados que distinguiam as condições de acesso a determinados serviços de internet, por meio da cobrança de valores reduzidos ou mesmo da isenção total de cobrança - caracterizando-se, nesse último caso, a prática de zero-rating.

No âmbito do referido inquérito, o Cade entendeu que as condutas denunciadas tinham o objetivo de “viabilizar que determinados conteúdos pudessem ser consumidos nas mesmas condições técnicas de outras aplicações disponibilizadas na web, porém sem consumo de dados da franquia contratada”.39 39 SUPERINTENDÊNCIA GERAL DO CADE. Inquérito Administrativo n. 08700.004314/2016-71. Nota Técnica n. 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE, datada de 31-08-2017. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOTVltdzdZLqhkfLgLcg20sp2COFkT0u4F6kpO2C8HmeI4kRnRnEVbwvcVZhI5-Ryodazm-kfXdvuF-MMocM8XW. Acesso em: 9 abr. 2018. Logo, concluiu-se que as ofertas não tinham o propósito de favorecer ou privilegiar as condições de tráfego de determinados parceiros, mas tão somente alterar as condições de cobrança sobre esse tráfego. Isso significa que o pacote de dados de uma aplicação incentivada recebia o mesmo tratamento de uma aplicação não incentivada, alterando-se apenas as condições de cobrança.

Essa decisão da Superintendência Geral do Cade foi pautada nas manifestações da Anatel e do MCTIC realizadas no bojo do inquérito. Ambos se manifestaram dispondo que a discriminação abordada pela neutralidade de rede está relacionada a questões de tráfego de rede (i.e., discriminação de datagramas, com alteração do fluxo de tráfego), e não a questões comerciais. Dessa maneira, seria vedada às prestadoras de serviços de telecomunicações apenas a realização de análises de pacotes de dados, de modo a criar regras de tráfego específicas para cada tipo de pacote, privilegiando-os ou desprivilegiando-os, conforme suas características técnicas.

De acordo com o MCTIC, o legislador tinha preocupação no sentido de que “o estabelecimento de condições diferenciadas de trânsito nas redes entre as diversas aplicações poderia ocasionar prejuízos à inovação e ao desenvolvimento de novas aplicações”.40 40 SUPERINTENDÊNCIA GERAL DO CADE. Inquérito Administrativo n. 08700.004314/2016-71. Nota Técnica n. 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE, datada de 31-08-2017. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOTVltdzdZLqhkfLgLcg20sp2COFkT0u4F6kpO2C8HmeI4kRnRnEVbwvcVZhI5-Ryodazm-kfXdvuF-MMocM8XW. Acesso em: 9 abr. 2018. -41 41 Esse entendimento do MCTIC está em consonância com o documento da Anatel “Neutralidade de rede: proposta de consulta pública à sociedade sobre a regulamentação prevista no Marco Civil da Internet” (2015). Assim, a neutralidade de rede estaria adstrita à proibição de priorização de tráfego de conteúdo e não abarcaria modelos comerciais.

Do mesmo modo, a Anatel manifestou seu entendimento de que a atual redação do Marco Civil da Internet evoluiu “ao prever que o gerenciamento da neutralidade deverá ser realizado com ‘proporcionalidade, transparência e isonomia’”, o que não impede a “oferta de pacotes diferenciados, por exemplo, planos de acesso ilimitado a redes sociais ou a determinados conteúdos audiovisuais ou, ainda, para telas pequenas (que geram menor volume de dados)”. A agência posicionou-se reforçando que a conduta das representadas deriva de relações comerciais privadas, que não devem ser enrijecidas por interpretação que entenda a neutralidade de rede como absoluta.42 42 AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES (ANATEL). Processo n. 53500.020772/2016-69. Informe n. 4/2016/SEI/SCP, de 06-09-2016. Disponível em: https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?Yj72kUioo_z14_E1ere_NErKAAYpCDMsB4uhQFHnURw7-zDaMfPIMI8E37WdZvnvmvwOy8fPIjL8ye4k6Og2tVyMnK2VwG4a1o52XKIxVibtkB7nDUfxhoq956Rs3lD7. Acesso em: 9 abr. 2018.

Assim, nesse caso específico, foi afastada uma suposta violação à neutralidade de rede, tal qual disposta no Marco Civil da Internet. Logo, vê-se que a leitura ora proposta do art. 9º do Marco Civil da Internet é corroborada pelos entendimentos da Anatel, do MCTIC e do Cade sobre o tema. Isso não significa que tais acordos comerciais não possam, em certas circunstâncias, gerar distorções que mereçam atenção do Cade ou mesmo da Anatel. No entanto, significa, isso sim, que os acordos não são proibidos ex ante, devendo os seus efeitos ser analisados ex post, se e quando gerarem alguma distorção indevida.43 43 Essa abordagem está também refletida na experiência europeia mais recente. Em análise publicada no final de 2018 a respeito da aplicação das diretivas europeias sobre neutralidade de rede pelas autoridades dos estados-membros, a BEREC novamente indica que o tratamento de questões relacionadas a zero-rating depende de uma análise caso a caso: “The Regulation neither allows nor prohibits certain commercial practices per se. The zero-rating cases mentioned in this report illustrate that it is key to analyse the specifics details of the practice concerned and its circumstances. To this end, BEREC Net Neutrality Guidelines set out a number of criteria against which zero-rating needs to be assessed” (BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS [BEREC], 2018). Antes disso, em dezembro de 2017, outro relatório do órgão também já havia chegado à mesma conclusão (BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS [BEREC], 2017).

Conclusão

Ao término desta exposição, é possível tecer algumas conclusões a respeito da regra de neutralidade de rede incorporada à legislação brasileira, a qual possui seus contornos definidos pelo Marco Civil da Internet.

Como vimos, a internet tem como uma de suas principais características a abertura. Um dos elementos dessa característica é sua capacidade de interconectar todas e quaisquer outras redes - inclusive aquelas limitadas ou restritas.

Para preservar essa característica de abertura, os operadores de segmentos da rede devem permanecer neutros com relação ao tráfego de dados. Vale dizer que as redes devem ser agnósticas a diversos tipos de tráfego, não podendo criar regras próprias de discriminação de datagramas, salvo nas situações excepcionais autorizadas por lei. Para isso, o Marco Civil determinou o tratamento isonômico dos pacotes de dados, cujo objetivo final é preservar essa característica da infraestrutura de suporte da rede.

Assim, o art. 9º dessa lei estabeleceu uma regra destinada a impedir que entidades responsáveis pelo roteamento, pela comutação e pela transmissão de datagramas estabeleçam discriminação entre os pacotes de dados nas redes por elas gerenciadas, salvo em casos excepcionais (art. 9º, §§ 1º e 2º). Associada a essa regra, seu § 3º estabeleceu uma norma de proteção do conteúdo desses pacotes de dados, que não podem ser filtrados, bloqueados, analisados ou monitorados.

Essas regras incorporaram à legislação brasileira uma definição jurídica da neutralidade de rede focada especificamente no tráfego de pacotes de dados pelas redes de comunicação. Nesse entendimento, a regra não se estende às condições econômicas do provimento dos serviços de telecomunicações que possibilitam conexão à internet, sendo tais condições livremente pactuadas.

Essa interpretação fica ainda mais clara tendo em vista a regra da liberdade dos modelos de negócio, estabelecida pelo art. 3º, inciso VIII, do Marco Civil. Nesse sentido, o oferecimento de diversos planos de internet é livre, em consonância com a Constituição e com a Lei n. 9.472/1997.

Por essas razões, o Decreto n. 8.771/2016 não poderia, enquanto norma infralegal, ampliar o conceito de neutralidade de rede do Marco Civil e passar a utilizá-lo para vedar determinados modelos comerciais que respeitem o caráter aberto da rede. Também não é possível, em decreto, impor restrições aos agentes econômicos que não estejam previstas ou autorizadas pela lei.

Nesse contexto, o Decreto n. 8.771/2016 deve ser interpretado em consonância com a lei, de modo que sua diretriz para acordos comerciais possa atingir apenas aqueles acordos excepcionais nas hipóteses em que alguma discriminação de tráfego é permitida pela regulamentação (art. 9º, § 2º, do Marco Civil da Internet).

Isso não significa que todos e quaisquer acordos comerciais seriam lícitos, mas sim que nenhum acordo puramente comercial é a priori vedado. Acordos comerciais que não impliquem alteração do fluxo de tráfego na infraestrutura de rede, mas que gerem alguma distorção competitiva, podem ser investigados e punidos a posteriori.

Com isso, o Brasil adota um regime híbrido de proteção à neutralidade de rede: (i) há uma proteção ex ante conferida pelo Marco Civil da Internet, em que é vedada a priori qualquer tipo de discriminação de datagramas que não seja excepcionalmente necessária para fins técnicos ou de emergência; e (ii) há uma proteção ex post conferida pela legislação concorrencial, que permite a avaliação caso a caso de modelos comerciais que possam ser considerados prejudiciais à competição.

  • 1
    Vale notar que o processo legislativo do Marco Civil da Internet contou, até mesmo antes de seu início, com grande participação de entidades da sociedade civil. Esse processo foi altamente inovador, por incorporar a possibilidade de participação de membros da sociedade civil também via internet, e não apenas em audiências e consultas públicas presenciais. De acordo com Steibel (2014, p. 18-27)STEIBEL, Fabro. O portal da consulta pública do Marco Civil da Internet. In: LEITE, George; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas , 2014. p. 18-27., apenas essa ferramenta on-line permitiu a participação de aproximadamente 250 autores individuais, que apresentaram 1.500 contribuições durante as duas fases de consulta por meio do Portal do Marco Civil da Internet.
  • 2
    Este artigo se propõe a refletir a visão dos autores a respeito do tema em exame a partir de uma perspectiva dogmática, além de incorporar igualmente uma visão acerca da adoção desse posicionamento sob o prisma da escolha de política pública que representa.
  • 3
    Os autores destacam terem trabalhado no presente artigo adotando a conceituação de internet trazida pelo próprio Marco Civil da Internet, qual seja, nos termos do art. 5º, inciso I, da lei: “Internet: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes”.
  • 4
    “The Internet was born about 20 years ago, trying to connect together a U.S. Defense Department network called the ARPAnet and various other radio and satellite networks. The ARPAnet was an experimental network designed to support military research-in particular, research about how to build networks that could withstand partial outages (like bomb attacks) and still function. (Think about this when I describe how the network works; it may give you some insight into the design of the Internet.)” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1993INTERNET ENGINEERING TASK FORCE. FYI on “What is the internet?”. RFC 1462, maio 1993. Disponível em: https://tools.ietf.org/html/rfc1462. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://tools.ietf.org/html/rfc1462...
    ).
  • 5
    “In the ARPAnet model, communication always occurs between a source and a destination computer. The network itself is assumed to be unreliable; any portion of the network could disappear at any moment (pick your favorite catastrophe-these days backhoes cutting cables are more of a threat than bombs). It was designed to require the minimum of information from the computer clients. To send a message on the network, a computer only had to put its data in an envelope, called an Internet Protocol (IP) packet, and “address” the packets correctly. The communicating computers-not the network itself-were also given the responsibility to ensure that the communication was accomplished. The philosophy was that every computer on the network could talk, as a peer, with any other computer” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1993INTERNET ENGINEERING TASK FORCE. FYI on “What is the internet?”. RFC 1462, maio 1993. Disponível em: https://tools.ietf.org/html/rfc1462. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://tools.ietf.org/html/rfc1462...
    ).
  • 6
    Referidos também como datagramas, que são assim definidos: “A self-contained, independent entity of data carrying sufficient information to be routed from the source to the destination computer without reliance on earlier exchanges between this source and destination computer and the transporting network” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1994INTERNET ENGINEERING TASK FORCE. FYI on Questions and answers to commonly asked “new internet user” questions. RFC 1594, mar. 1994, substituída pela RFC 2664, ago. 1999. Disponível em: https://tools.ietf.org/html/rfc2664. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://tools.ietf.org/html/rfc2664...
    ).
  • 7
    “TCP/IP, in full Transmission Control Protocol/Internet Protocol, standard Internet communications protocols that allow digital computers to communicate over long distances. The Internet is a packet-switched network, in which information is broken down into small packets, sent individually over many different routes at the same time, and then reassembled at the receiving end. TCP is the component that collects and reassembles the packets of data, while IP is responsible for making sure the packets are sent to the right destination. TCP/IP was developed in the 1970s and adopted as the protocol standard for ARPANET (the predecessor to the Internet) in 1983” (Disponível em: https://www.britannica.com/technology/TCP-IP. Acesso em: 19 maio 2019).
  • 8
    Do caráter aberto da internet decorre a possibilidade de seu emprego até mesmo para a integração de redes fechadas, que também se utilizam do mesmo IP, a ela se integrando. Cotidianamente, rodam sobre a internet redes limitadas, com circuitos restritos, usando o mesmo IP que caracteriza a internet. Por exemplo, sobre a internet são constituídas redes privadas sobre IP, que incluem virtual private networks (VPNs), virtual private lan services (VPLNs) e várias outras modalidades. Vale notar que essa capacidade de integrar redes privadas sobre a rede pública é uma característica essencial da internet aberta (ver, por exemplo, INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1996INTERNET ENGINEERING TASK FORCE. Address allocation for private internets. RFC 1918, fev. 1996. Disponível em: https://tools.ietf.org/html/rfc1918. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://tools.ietf.org/html/rfc1918...
    ).
  • 9
    “In the Stupid Network, the data would tell the network where it needs to go. (In contrast, in a circuit network, the network tells the data where to go.) In a Stupid Network, the data on it would be the boss. Instead of fancy ‘intelligent’ network routing translation, in a Stupid Network, intelligent end-user devices would be connected to one or more high speed access networks - always listening for relevant information, for data addressed to their owner. Sometimes a ‘communication’ might be a few bits, perhaps a short, pager-type message. Other times, it might be longer, like email. In the event of the need for two-way voice communication, an initial message might state the identity of the ‘caller’, and/or inquire of the whereabouts of the owner. The intelligent end-user device could apply its knowledge of where its ‘owner’ was, and who the caller was. Then, if it were programmed to do so, it could launch a message to its owner, telling of the call, the caller’s identity, location, and any other information. It could also forward as much information as practical. End user devices would be free to behave flexibly, because in the Stupid Network the data is boss, bits are essentially free, and there is no assumption that the data is of a single data rate or data type” (ISENBERG, 1997ISENBERG, David. The rise of the stupid network. Computer Telephony, ago. 1997. Disponível em: http://rageboy.com/stupidnet.html. Acesso em: 19 jun. 2019.
    http://rageboy.com/stupidnet.html...
    ).
  • 10
    O uso da expressão “neutro”, nesse parágrafo, não ignora a existência de regras técnicas de organização e priorização do tráfego de dados na internet, propostas conjuntamente para a organização de toda a rede. Ver, a propósito, o conjunto das Requests for Comments (RFCs), documentos técnicos de especificação da internet elaborados pelo Internet Engineering Task Force (IETF), disponível em: http://www. ietf.org/rfc.html. Acesso em: 3 abr. 2018.
    Nesse mesmo sentido, é interessante ler o comentário de David Isenberg: “In the Stupid Network, because the data is the boss, it can tell the network, in real time, what kind of service it needs. And the Stupid Network would have a small repertoire of idiot-savant behaviors to treat different data types appropriately. If the data identified itself as financial data, the Stupid Network would deliver it accurately, no matter how many milliseconds of delay the error checking would take. If the data were two-way voice or video, the Stupid Network would provide low delay, even at the price of an occasional flipped bit. If the data were entertainment audio or video, the Stupid Network would provide wider bandwidth, but would not necessarily give low delay or absolute accuracy. And if there were a need for unique transmission characteristics, the data would tell the Stupid Network in more detail how to treat it, and the Stupid Network would do what it was told” (ISENBERG, 1997ISENBERG, David. The rise of the stupid network. Computer Telephony, ago. 1997. Disponível em: http://rageboy.com/stupidnet.html. Acesso em: 19 jun. 2019.
    http://rageboy.com/stupidnet.html...
    ).
  • 11
    “The Net Neutrality debate grew out of the concerns in the late 1990s about possible threats to the end-to-end nature of the internet. As documented by Mark Lemley and Lawrence Lessig in particular, the concern was that the vertical integration of cable firms with ISPs would prove a threat to the e2e design of the internet” (WU, Tim. Network Neutrality FAQ. Disponível em: http://www.timwu.org/network_neutrality.html. Acesso em: 3 abr. 2018). A respeito da preocupação com a preservação do princípio end-to-end de arquitetura de rede, vide: Lemley e Lessig (2001, p. 925)LEMLEY, Mark A.; LESSIG, Lawrence. The end of end-to-end: preserving the architecture of the internet in the broadband era (Oct. 1, 2000). UCLA Law Review, v. 48, p. 925, 2001; Stanford Law and Economics Olin Working Paper, n. 207; UC Berkeley Public Law Research Paper, n. 37. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=247737. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
    .
  • 12
    Acerca dos perfis de abordagem para o modelo de regulação da neutralidade de rede, conferir: Wu (2003, p. 141)AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES (ANATEL). Processo n. 53500.020772/2016-69. Informe n. 4/2016/SEI/SCP, 6 set. 2016. Disponível em: https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?Yj72kUioo_z14_E1ere_NErKAAYpCDMsB4uhQFHnURw7-zDaMfPIMI8E37WdZvnvmvwOy8fPIjL8ye4k6Og2tVyMnK2VwG4a1o52XKIxVibtkB7nDUfxhoq956Rs3lD7. Acesso em: 9 abr. 2018.
    https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pe...
    , Melamed e Chang (2017)MELAMED, Doug; CHANG, Andrew. What thinking about antitrust law can tell us about net neutrality (Nov. 27, 2017). 15 Colo. Tech. L.J. 93, 2017; Stanford Law and Economics Olin Working Paper, n. 511. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3078147. Acesso em: 19 jan. 2019.
    https://ssrn.com/abstract=3078147...
    , Oliveira e Paiva (2017, p. 23-50)OLIVEIRA, Ana Cláudia Beppu Santos; PAIVA, Tomás Filipe Schoeller. Zero rating - notas sobre abordagens regulatórias ex ante e ex post. Revista Fórum de Direito na Economia Digital - RFDED, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 23-50, 2017.. A eficácia de abordagens regulatórias mais focadas em vedações ex ante e daquelas que admitem controle casuístico ex post tem no caso da neutralidade de rede uma agenda de pesquisa rica.
  • 13
    “Net neutrality refers to a debate about the way that Internet Service Providers (ISPs) manage the data or ‘traffic’ carried on their networks when data is requested by broadband subscribers (known as “end-users” under EU law) from providers of content, applications or services (CAPs) such as YouTube or Spotify, as well as when traffic is exchanged between end-users. The best effort internet is about the equal treatment of data traffic being transmitted over the internet, i.e., that the ‘best efforts’ are made to carry data, no matter what it contains, which application transmits the data (‘application-agnosticism’), where it comes from or where it goes” (BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS [BEREC], 2016BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS (BEREC). About BEREC’s Net Neutrality Guidelines. Aug. 2016. Disponível em: http://berec.europa.eu/files/document_register_store/2016/8/NN%20Factsheet.pdf. Acesso em: 3 abr. 2018.
    http://berec.europa.eu/files/document_re...
    - g.n.).
  • 14
    Vide nota 12, supra.
  • 15
    “As the digitally networked environment matures, regulatory choices abound that implicate whether the network will be one of peer users or one of active producers who serve a menu of prepackaged information goods to consumers whose role is limited to selecting from this menu. These choices occur at all levels of the information environment: the physical infrastructure layer-wires, cable, radio frequency spectrum - the logical infrastructure layer-software - and the content layer. At the physical infrastructure level, we are seeing it in such decisions as the digital TV orders (DTV Orders), or the question of open access to cable broadband services, and the stunted availability of license-free spectrum. At the logical layer, we see laws like the Digital Millennium Copyright Act (DMCA) and the technology control litigation that has followed hard upon its heels, as owners of copyrighted works attempt to lock up the software layer so as to permit them to control all valuable uses of their works. At the content layer, we have seen an enclosure movement aimed at enabling information vendors to capture all the downstream value of their information” (BENKLER, 2000BENKLER, Yochai. From consumers to users: shifting the deeper structures of regulation toward sustainable commons and user access. Federal Communications Law Journal, v. 52, n. 3, 2000. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1242&context=fclj. Acesso em: 18 maio 2019.
    https://www.repository.law.indiana.edu/c...
    , p. 561).
  • 16
    Lei n. 12.965/2014, art. 5º, inciso I. Para todos os efeitos, as referências à internet pelos autores se pautam pelo conceito legal, dado o caráter dogmático da análise aqui proposta.
  • 17
    A internet em banda estreita pode também ser ofertada por meio do Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC).
  • 18
    Lei n. 9.472/1997, art. 65, inciso II; Resolução Anatel n. 477, de 7 de agosto de 2007, art. 5º: “O SMP é prestado em regime privado e sua exploração e o direito ao uso das radiofrequências necessárias dependem de prévia autorização da Anatel”; Resolução Anatel n. 614, de 28 de maio de 2013, art. 3º: “O SCM é um serviço fixo de telecomunicações de interesse coletivo, prestado em âmbito nacional e internacional, no regime privado, que possibilita a oferta de capacidade de transmissão, emissão e recepção de informações multimídia, permitindo inclusive o provimento de conexão à internet, utilizando quaisquer meios, a Assinantes dentro de uma Área de Prestação de Serviço”.
  • 19
    “[E]m se tratando de atividade privada, há um direito subjetivo à entrada e permanência no mercado, que, naturalmente, pode ser limitado por normas de direito público, ainda mais quando a atividade for fortemente regulamentada em razão do seu liame com o interesse público, mas, mesmo nesses casos, há um mínimo daquele direito subjetivo de iniciativa privada que deverá ser sempre resguardado. [...] Se ultrapassar estes lindes, a limitação legal ou administrativa na verdade terá deixado de o ser, constituindo uma servidão administrativa, uma requisição, uma desapropriação ou um confisco puro e simples. Não é por outra razão que o núcleo essencial dos direitos fundamentais são chamados de ‘limite dos limites’” (ARAGÃO, 2005ARAGÃO, Alexandre Santos de. Autorizações administrativas. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, v. 13, n. 62, p. 192-212, maio/jun. 2005., p. 194-195).
  • 20
    Lei n. 9.472/1997, art. 128: “Art. 128. Ao impor condicionamentos administrativos ao direito de exploração das diversas modalidades de serviço no regime privado, sejam eles limites, encargos ou sujeições, a Agência observará a exigência de mínima intervenção na vida privada, assegurando que: I - a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público; II - nenhuma autorização será negada, salvo por motivo relevante; III - os condicionamentos deverão ter vínculos, tanto de necessidade como de adequação, com finalidades públicas específicas e relevantes; IV - o proveito coletivo gerado pelo condicionamento deverá ser proporcional à privação que ele impuser; V - haverá relação de equilíbrio entre os deveres impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos”.
  • 21
    Lei n. 9.472/1997, art. 129: “Art. 129. O preço dos serviços será livre, ressalvado o disposto no § 2° do art. 136 desta Lei, reprimindo-se toda prática prejudicial à competição, bem como o abuso do poder econômico, nos termos da legislação própria”.
  • 22
    22“The internet modules use the addresses carried in the internet header to transmit internet datagrams toward their destinations. The selection of a path for transmission is called routing” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1981INTERNET ENGINEERING TASK FORCE. Internet Protocol, Darpa Internet Program, Protocol Specification. RFC 791, set. 1981. Disponível em: https://tools.ietf.org/html/rfc791. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://tools.ietf.org/html/rfc791...
    ).
  • 23
    Sobre o uso do termo “agnóstico” para definir a rede, vide: Getschko (2018)GETSCHKO, Demi. Por uma rede agnóstica. Observatório da Internet no Brasil, publicado em 28 jan. 2018. Disponível em: https://observatoriodainternet.br/post/por-uma-rede-agnostica. Acesso em: 14 jan. 2019.
    https://observatoriodainternet.br/post/p...
    e Burnham (2010)BURNHAM, Brad. Internet access should be application-agnostic. Huffpost, 20-12-2010. Disponível em: https://www.huffingtonpost.com/brad-burnham/internet-access-should-be_b_799028.html?guccounter=1. Acesso em: 14 jan. 2019.
    https://www.huffingtonpost.com/brad-burn...
    .
  • 24
    Entendemos que a norma contida no art. 9º está relacionada especificamente à camada física e aos aspectos mais básicos da camada lógica da internet, conforme conceituadas em Benkler (2000, p. 562)BENKLER, Yochai. From consumers to users: shifting the deeper structures of regulation toward sustainable commons and user access. Federal Communications Law Journal, v. 52, n. 3, 2000. Disponível em: https://www.repository.law.indiana.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1242&context=fclj. Acesso em: 18 maio 2019.
    https://www.repository.law.indiana.edu/c...
    . São essas camadas as responsáveis pelo “tráfego de pacotes” tratado no Marco Civil.
  • 25
    Parecer proferido em Plenário sobre o Projeto de Lei n. 2.126/2011, apresentado em 25-03-2014.
  • 26
    É importante esclarecer o conteúdo da seguinte referência constante do parecer do Deputado: “[O] que não pode ocorrer, sob risco de se prejudicar a estrutura aberta da Internet, bem como a inovação e os consumidores, é aumentar o controle sobre o uso do meio, da infraestrutura física. Modelos diferenciados de cobrança e tratamento dos pacotes podem resultar no fim do modelo descentralizado da Internet e no início da oferta de pacotes fatiados por tipos de serviços, o que não seria aceitável, por ir contrariamente à inovação, aos direitos do consumidor, bem como à arquitetura aberta, livre e descentralizada da Internet, propensa a novos entrantes no mercado”. Note-se que os “modelos diferenciados de cobrança e tratamento dos pacotes”, mencionados nesse trecho, são referentes às hipóteses de degradação de tráfego originadas ou destinadas a determinados provedores de conteúdo. Citamos anteriormente um exemplo preciso de prática censurável pela óptica do Deputado: o tratamento dispensado por determinado operador de rede aos servidores BitTorrent. Vale dizer que a crítica está voltada à cobrança de valores diferenciados dos provedores de conteúdo por parte dos detentores de infraestrutura, sob pena de degradação do tráfego daquele provedor, caso o acordo comercial não seja firmado. Não há qualquer relação, portanto, com o estabelecimento de modelos comerciais praticados junto aos usuários finais dos serviços de telecomunicações, como é o caso da consulente - em linha com o que demonstramos ao longo deste artigo.
  • 27
    Em sentido semelhante, há manifestação de José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça à época dos debates, a respeito do Marco Civil da Internet: “O respeito ao princípio da neutralidade de rede na internet veda a discriminação no tráfego de dados na internet em razão de seu conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação” (CARDOZO, 2014CARDOZO, José Eduardo Martins. Prefácio. In: LEITE, George; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014., p. xxvi).
  • 28
    Exemplo desse tipo de discriminação, que a nosso ver seria objeto de questionamento com fundamento na vedação à discriminação técnica que empregue as medidas previstas no § 3º do art. 9º do Marco Civil, é o caso havido com a operadora norte-americana Comcast, que estaria monitorando e degradando a qualidade da conexão entre usuários de sua rede que trafegavam pacotes em modalidade peer-to-peer por meio do protocolo BitTorrent. A Federal Communications Commission decidiu que a prática da Comcast violava a neutralidade de rede, demonstrando a adoção de perspectiva focada em impedir a discriminação de pacotes de dados na camada de tráfego - nesse caso, inclusive mediante inspeção profunda do conteúdo de pacotes. Para a descrição das razões consideradas no caso citado, vide FCC, Memorandum Opinion and Order, File n. EB-08-IH-1518, FCC 08-183, Formal Complaint of Free Press and Public Knowledge Against Comcast Corporation for Secretly Degrading Peer-to-Peer Applications.
  • 29
    Quanto ao ponto, fazemos referência à Análise n. 180/2018/SEI/OR, proferida pelo Conselheiro da Anatel Otávio Luiz Rodrigues Junior, na qual é apresentado exemplo didático de conduta que seria ordinariamente contrária ao caput do art. 9º por implicar bloqueio de determinados pacotes de dados em provimento do SCM. No caso, contudo, a Anatel opinou no sentido de que se tratava de conduta abarcada pelos §§ 1º e 2º do art. 9º, em conta de ser relativa a bloqueio considerado necessário para resguardar a estabilidade, a segurança e a funcionalidade da rede.
  • 30
    O cabeçalho é tecnicamente definido da seguinte forma: “The portion of a packet, preceding the actual data, containing source and destination addresses, and error checking and other fields. A header is also the part of an electronic mail message that precedes the body of a message and contains, among other things, the message originator, date and time” (INTERNET ENGINEERING TASK FORCE, 1994INTERNET ENGINEERING TASK FORCE. FYI on Questions and answers to commonly asked “new internet user” questions. RFC 1594, mar. 1994, substituída pela RFC 2664, ago. 1999. Disponível em: https://tools.ietf.org/html/rfc2664. Acesso em: 3 abr. 2018.
    https://tools.ietf.org/html/rfc2664...
    ).
  • 31
    Para uma outra abordagem do conceito de zero-rating, ver Ramos (2018)RAMOS, Pedro Henrique Soares. Neutralidade da rede: a regulação da arquitetura da internet no Brasil. São Paulo: Editora IASP, 2018..
  • 32
    Para além desses exemplos, há uma série de outras experiências internacionais de provimento não oneroso de acesso móvel à internet para aplicações específicas, sejam elas redes sociais, aplicativos de mensagens eletrônicas ou serviços de streaming de músicas. De fato, pesquisas indicam que ao menos metade das operadoras de telefonia móvel do mundo empregam, de alguma maneira, planos e promoções que utilizam o modelo do zero-rating (ver, por exemplo, App Centric Operators on the Rise, Allot MobileTrends Report H1/2014. Disponível em: https://investors.allot.com/news-releases/news-release-details/allot-mobiletrends-report-records-rise-application-centric. Acesso em: 3 abr. 2018).
  • 33
    Por não haver uma restrição regulatória ex ante, eventuais preocupações acerca de condições de competição geradas por acordos ou práticas de zero-rating poderão e deverão ser analisadas no âmbito próprio e considerando as circunstâncias de cada acordo ou prática. Ver acerca do tema a Seção 4 deste artigo.
  • 34
    A respeito da adequação de uma análise concorrencial ex post, ver: Oliveira e Paiva (2017, p. 23-50)OLIVEIRA, Ana Cláudia Beppu Santos; PAIVA, Tomás Filipe Schoeller. Zero rating - notas sobre abordagens regulatórias ex ante e ex post. Revista Fórum de Direito na Economia Digital - RFDED, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 23-50, 2017.; Silva, Leurquin e Belfort (2016, p. 21-56)SILVA, Leandro Novais; LEURQUIN, Pablo; BELFORT, André. Os acordos de zero-rating e seus impactos concorrenciais: os limites da regulação da neutralidade de rede. RDC, v. 4, n. 1, p. 21-56, maio 2016..
  • 35
    Deve-se destacar, evidentemente, a possibilidade de que a lei contenha delegação da competência para disciplinar determinada situação ao regulamento, caso em que a norma infralegal poderá conter norma inteiramente nova, desde que aderente à moldura legal estabelecida pela lei em sentido estrito. Não é o que se observa no Marco Civil da Internet, contudo. Naquela lei, conforme buscamos demonstrar nas seções anteriores deste artigo, há norma restritiva de liberdade de conteúdo específico e fechado - qual seja, a vedação de discriminação entre datagramas em trânsito que não seja necessária nos termos do § 1º do art. 9º. Ou seja, nos casos em que a obrigação vem delimitada pela própria lei, que reflete a opção de política pública adotada quando de sua edição, não cabe ao Chefe do Poder Executivo elencar eventuais princípios e diretrizes presentes na lei como razão para subverter a obrigação prevista na própria lei, instituindo obrigação autonomamente criada por decreto.
  • 36
    Técnica hermenêutica mediante a qual se busca identificar o sentido da norma infralegal compatível com a Constituição para, então, aplicá-la. A respeito, conferir: Mendes e Branco (2013, p. 93-98)MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013..
  • 37
    Ver, por exemplo: CRAWFORD, Susan. Zero for Conduct. Disponível em: https://medium.com/backchannel/less-than-zero-199bcb05a868. Acesso em: 20 jan. 2019, ou ainda, Ammori (2013)AMMORI, Marvin. On internet freedom. Washington D.C.: Elkat Books, 2013.. Cf., ainda, no âmbito nacional, Ramos (2018)RAMOS, Pedro Henrique Soares. Neutralidade da rede: a regulação da arquitetura da internet no Brasil. São Paulo: Editora IASP, 2018..
  • 38
    CADE, Inquérito Administrativo n. 08700.004314/2016-71.
  • 39
    SUPERINTENDÊNCIA GERAL DO CADE. Inquérito Administrativo n. 08700.004314/2016-71. Nota Técnica n. 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE, datada de 31-08-2017. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOTVltdzdZLqhkfLgLcg20sp2COFkT0u4F6kpO2C8HmeI4kRnRnEVbwvcVZhI5-Ryodazm-kfXdvuF-MMocM8XW. Acesso em: 9 abr. 2018.
  • 40
    SUPERINTENDÊNCIA GERAL DO CADE. Inquérito Administrativo n. 08700.004314/2016-71. Nota Técnica n. 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/CADE, datada de 31-08-2017. Disponível em: https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yOTVltdzdZLqhkfLgLcg20sp2COFkT0u4F6kpO2C8HmeI4kRnRnEVbwvcVZhI5-Ryodazm-kfXdvuF-MMocM8XW. Acesso em: 9 abr. 2018.
  • 41
    Esse entendimento do MCTIC está em consonância com o documento da Anatel “Neutralidade de rede: proposta de consulta pública à sociedade sobre a regulamentação prevista no Marco Civil da Internet” (2015).
  • 42
    AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES (ANATEL). Processo n. 53500.020772/2016-69. Informe n. 4/2016/SEI/SCP, de 06-09-2016. Disponível em: https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?Yj72kUioo_z14_E1ere_NErKAAYpCDMsB4uhQFHnURw7-zDaMfPIMI8E37WdZvnvmvwOy8fPIjL8ye4k6Og2tVyMnK2VwG4a1o52XKIxVibtkB7nDUfxhoq956Rs3lD7. Acesso em: 9 abr. 2018.
  • 43
    Essa abordagem está também refletida na experiência europeia mais recente. Em análise publicada no final de 2018 a respeito da aplicação das diretivas europeias sobre neutralidade de rede pelas autoridades dos estados-membros, a BEREC novamente indica que o tratamento de questões relacionadas a zero-rating depende de uma análise caso a caso: “The Regulation neither allows nor prohibits certain commercial practices per se. The zero-rating cases mentioned in this report illustrate that it is key to analyse the specifics details of the practice concerned and its circumstances. To this end, BEREC Net Neutrality Guidelines set out a number of criteria against which zero-rating needs to be assessed” (BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS [BEREC], 2018BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS (BEREC). Report on the implementation of Regulation (EU) 2015/2020 and BEREC Net Neutrality Guidelines. BoR, v. 18, n. 170, 4 out. 2018. Disponível em: https://berec.europa.eu/eng/document_register/subject_matter/berec/reports/8256-report-on-the-implementation-of-regulation-eu-20152120-and-berec-net-neutrality-guidelines. Acesso em: 18 jan. 2019.
    https://berec.europa.eu/eng/document_reg...
    ). Antes disso, em dezembro de 2017, outro relatório do órgão também já havia chegado à mesma conclusão (BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS [BEREC], 2017BODY OF EUROPEAN REGULATIONS FOR ELECTRONIC COMMUNICATIONS (BEREC). Report on the implementation of Regulation (EU) 2015/2120 and BEREC Net Neutrality Guidelines. BoR, v. 17, n. 240, 7 dez. 2017. Disponível em: http://www.mlex.com/Attachments/2017-12-13_8F6Q808MU1N87P2J/7529-berec-report-on-the-implementation-of-re_0.pdf. Acesso em: 11 mar. 2019.
    http://www.mlex.com/Attachments/2017-12-...
    ).

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a colaboração de Daniel Douek e de Isabela de Oliveira Parisio na elaboração deste artigo. Agradecem, ainda, as contribuições dos revisores anônimos e o rico debate promovido por suas observações.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2018
  • Aceito
    03 Abr 2019
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