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Direito e ciência: uma relação difícil

LAW AND SCIENCE: A DIFFICULT RELATIONSHIP

MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019

1. O que é a atitude científica?

O que é ciência? O que diferencia o raciocínio científico de outras formas de reflexão? Por que a ciência é tão importante no atual contexto de pós-verdade, de polarização política e de regressões autoritárias? Quais são os frutos da ciência e por que é preciso defendê-la contra aqueles que a atacam? Essas são algumas das questões que Lee McIntyre discute em seu novo livro, The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience (em tradução livre: A atitude científica: defendendo a ciência da fraude, da negação e da pseudociência). Esta resenha analisa resumidamente os principais argumentos do autor e busca adotar suas premissas para defender uma atitude científica no campo jurídico no Brasil.

Primeiro, o autor reconstrói as principais discussões travadas ao longo da história da filosofia da ciência acerca do que chama de problema demarcatório, ou seja, os fatores que delimitam e diferenciam a ciência da não ciência. Ele se contrapõe ao frequente argumento de que a existência de um método próprio é o que diferencia a ciência da não ciência. A definição da ciência a partir de um processo – que envolve observar, criar hipóteses, elaborar previsões, testar, analisar resultados e revisar as hipóteses – é simples demais e não dá conta de efetivamente a diferenciar da não ciência. McIntyre apresenta uma releitura da obra A lógica da descoberta científica (POPPER, 2013POPPER, Karl. A lógica da descoberta científica. São Paulo: Cultrix, 2013.) ao evidenciar que, embora o autor afirme que o método é um elemento importante da ciência, não existe um método exclusivamente científico. A linha demarcatória entre ciência e não ciência, para Karl Popper, é o fato de a primeira se pautar por teorias falsificáveis, isto é, teorias que podem ser provadas erradas. Da mesma forma, Thomas Kuhn (2018)KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2018., em A estrutura das revoluções científicas, tampouco afirma haver um método exclusivamente científico. A sua solução para o problema demarcatório recai sobre a mudança de paradigmas, que ocorre quando novos consensos científicos se formam para substituir um conhecimento antigo ou estabelecido sobre determinado fenômeno. É claro que a ciência adota métodos e processos ordenados de produção de conhecimento, mas o argumento de McIntyre é de que esses métodos não são exclusivos da ciência, não são a sua marca distintiva.

O que, então, pode ser utilizado como critério demarcatório entre a ciência, a pseudociência e a não ciência? A tese central do autor é de que a marca distintiva da ciência é a presença de uma atitude científica em face de evidências empíricas. Isso significa que, em um raciocínio científico, hipóteses e teorias devem ser formuladas com base em evidências, e não em ideologias, crenças, intuições ou desejos. Em suma, “o que marca a distinção da ciência é que ela se importa com evidências e está disposta a mudar suas teorias tendo por fundamento evidências empíricas”1 1 Todas as citações dessa e de outras obras em língua inglesa neste texto foram traduzidas pelo autor desta resenha. (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019., p. 7). A atitude científica é um ethos que significa “agir de acordo com um conjunto de práticas bastante escrutinizadas e que foram sancionadas pela comunidade científica porque historicamente conduziram a crenças bem justificadas” (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019., p. 49). Ou seja, a ciência não é especial graças às pessoas que com ela se engajam ou aos métodos que emprega, mas sim em virtude de seu comportamento diante de evidências empíricas. Na ciência, as evidências embasam a formulação de explicações gerais e eventualmente previsões (ou seja, teorias) sobre determinado fenômeno.

Além de se importar com evidências e levá-las em consideração na formulação de conclusões, o segundo elemento essencial da atitude científica é a presença de uma teoria. O papel da teoria científica, na visão de McIntyre, é “(i) identificar um padrão na nossa experiência; (ii) suportar previsões sobre esse padrão no futuro; e (iii) explicar por que esse padrão existe” (MCINTYRE, 2019, p. 36). A teoria é o que permite atribuir sentido aos dados analisados, sendo, portanto, um pressuposto para diversas tarefas caras à ciência, como a nomeação, a mensuração e a comparação de fenômenos empíricos. Para o autor, a teoria é a extrapolação ou a generalização de uma hipótese: “a teoria é mais ampla do que a hipótese porque ela é o resultado de uma hipótese que foi construída a partir de sua confrontação com dados e que sobreviveu a testes rigorosos antes que alguém a tenha posto adiante” (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019., p. 36). A teoria é a lente de análise que permite explicar por que determinado recorte do real importa. Afinal, “acumular fatos não é suficiente para lhes atribuir sentido” (BERTHELOT, 1991BERTHELOT, Jean-Michel. La construction de la sociologie. Paris: Presses Universitaire de France, 1991., p. 8).

O saber científico, por conseguinte, é a explicação teórica de fenômenos a partir de um esforço empírico. Ele é, para McIntyre, a tentativa de explicar fenômenos com base em algo observável no mundo real. Assim, pertencem à não ciência as áreas do conhecimento que não se baseiam em evidências empíricas, mas tampouco alegam fazê-lo. É o caso da literatura, das artes em geral e mesmo da filosofia ou da matemática. Não pertencer à ciência não significa que essas áreas não tenham muito a contribuir para o progresso da humanidade ou da nossa compreensão do mundo; significa, tão somente, que elas não chegam a esses objetivos por meio da coleta de dados empíricos sobre o mundo. A real ameaça à ciência não parte da não ciência, mas sim da pseudociência. Pertencem a esta última áreas de conhecimento que afirmam chegar a conclusões com base em evidências, mas na realidade não o fazem ou o fazem de maneira distorcida. São pseudociências, para McIntyre, a astrologia, a religião, entre outros. Por fim, são científicos os campos que sustentam suas afirmações em bases empíricas robustas e fundamentadas em teorias explicativas, como a física, a medicina, a química, entre outros.

Nessa classificação proposta por McIntyre, a ciência não é, de forma alguma, equivalente à verdade absoluta. Pelo contrário, afirmações e teorias científicas nunca chegam a certezas imutáveis. As verdades científicas estão sempre sujeitas a serem reinterpretadas, reavaliadas, refutadas. Esse ponto está relacionado a outra pergunta fundamental proposta por McIntyre: se a ciência não necessariamente nos leva à verdade, por que a defender? Porque a ciência almeja chegar à verdade. O valor da ciência reside em permitir chegar mais próximo à verdade, justamente porque ela se fundamenta em evidências e em teorias explicativas. Por serem as teorias científicas embasadas em evidências, elas fazem tentativas legítimas de previsões sobre fenômenos do mundo. O raciocínio científico é, portanto, aquele que mais propicia uma aproximação à verdade. Por isso, a ciência se mostra especialmente relevante para combater a pós-verdade, a relativização de todo tipo de produção de conhecimento e os efeitos adversos individuais e sociais que podem advir desses fenômenos.

Assim, o autor sustenta haver “uma sutil diferença entre afirmar que uma teoria é verdadeira e afirmar que há justificativa para acreditar nela” (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019., p. 42). Ou seja, o fato de as teorias científicas não serem verdades absolutas não nos exime do direito – e, talvez, até mesmo da responsabilidade – de acreditar nessas teorias. Nas palavras do autor, “afirmar que teorias científicas possuem legitimidade significa dizer que elas possuem uma reivindicação legítima a serem acreditáveis, ou seja, justificáveis diante de evidências” (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019., p. 42). Em outras palavras, “dadas as evidências em um certo tempo, os cientistas são racionais se acreditarem [em uma determinada teoria científica]”. Por outros termos, a ciência não se funda em verdades absolutas, mas sim na credibilidade de suas afirmações, “precisamente porque – dada a forma de funcionamento da ciência – se espera que no longo prazo virtualmente todas as nossas teorias empíricas acabarão sendo provadas falsas” (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019., p. 42, grifo meu). A incerteza não é uma fraqueza, mas sim uma fortaleza da ciência, pois corporifica posturas de humildade, transparência, sinceridade e mente aberta – características definidoras da atitude científica.

O mundo da pós-verdade é, sob muitos aspectos, o inverso da ciência. Não é à toa que o livro anterior de McIntyre (2018)MCINTYRE, Lee. Post-truth. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2018. aborda justamente a pós-verdade. O contexto da pós-verdade é marcado pelo processo em que “os fatos objetivos se tornam menos influentes na opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”, encorajando algumas pessoas a “moldar a realidade para se encaixar em suas próprias opiniões” (MCINTYRE, 2018MCINTYRE, Lee. Post-truth. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2018., p. 5). Nesse contexto, opiniões são formadas e decisões são tomadas de maneira profundamente consequencial, com base em intuições, ideologias, convicções, diminuindo-se a importância dos fatos objetivos e afastando-se de uma atitude científica. Em razão disso, essas pessoas passam a formar opiniões objetivamente equivocadas, levadas por uma forma de raciocínio rápida, irrefletida, automática e muitas vezes irracional. Segundo McIntyre (2018)MCINTYRE, Lee. Post-truth. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2018., a pós-verdade surge como um ataque à ciência quando, nas décadas de 1950 e 1960, empresas tabagistas se unem para produzir estudos que contestavam os então recentes achados científicos que associavam o fumo ao câncer; e se reforça depois, na década de 1980, quando empresas ligadas ao ramo do petróleo se valem da mesma estratégia para contestar evidências sobre o impacto da ação humana na mudança climática. Na pós-verdade, tudo é relativo, e por isso a ciência não é uma forma especial ou privilegiada de produção de conhecimento e de aproximação da verdade: a ciência representaria apenas mais um ponto de vista, com seus próprios interesses, agendas e vieses.

No contexto da pós-verdade, não são as evidências empíricas, mas sim as emoções, os sentimentos, os desejos e as ideologias que formam as opiniões e guiam as atitudes. No plano individual, isso deixa as pessoas vulneráveis e propensas a tomar decisões equivocadas. Os cientistas comportamentais têm chamado a atenção para alguns dos vieses cognitivos a que estamos submetidos quando nos deixamos levar por emoções e desejos, ignorando dados objetivos: a negligência sistêmica, o viés de disponibilidade, o viés de confirmação, entre outros (KAHNEMANN, 2012KAHNEMANN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.). Não há dúvidas de que nossas crenças, ideologias e processos de pensamento prévios podem moldar e condicionar nossos raciocínios e formas de tomada de decisão – McIntyre sem dúvida não faz um argumento em prol de uma pretensa e inexistente neutralidade axiológica na produção de conhecimento, mas ele afirma que “não podemos fazer de nossas crenças fundamentadas reféns da certeza” (MCINTYRE, 2019, p. 43). Ou seja, podemos ter crenças prévias e podemos inclusive as considerar pontos de partida para nossas investigações, mas devemos manter essas convicções prévias apenas enquanto elas se sustentarem na empiria. Ainda que a nossa própria biologia nos deixe vulneráveis a esses vieses cognitivos, que podem nos levar a erros em questões pessoais ou decisões particulares, há um grande problema quando esses vieses cognitivos são explorados coletivamente. Quando abandonamos a ciência e nos deixamos levar por desejos e emoções, corremos um risco elevado de sermos manipulados por líderes autoritários que negam a ciência como forma de governar e de dominar as pessoas.

É aí que reside, pois, a importância da ciência e de sua defesa: a ciência e a atitude científica são importantes para que não sejamos manipulados ou controlados. Para enfatizar esse ponto, McIntyre dedica um capítulo inteiro de sua obra para analisar a revolução científica na medicina. Até o fim do século XIX, a medicina era uma pseudociência. Por séculos, a prática médica incluiu tratamentos arcaicos como a perfuração de crânio, o uso de sanguessugas, a ingestão de mercúrio, entre outros. O problema não é apenas que esses tratamentos estavam equivocados, mas sim que eles se fundamentavam em intuições, folclores, convicções – e não em dados empíricos. Por séculos, esses métodos foram largamente empregados justamente porque havia um grande consenso sobre sua efetividade. Ou seja, como havia certezas absolutas, não havia razão para testá-los ou para duvidar de sua eficácia. A adoção progressiva de uma atitude científica permitiu que a medicina se transformasse profundamente em um período pouco superior a um século, passando a basear suas práticas em “observações cautelosas, cálculos, experimentos e uma flexibilidade de pensamento que permite aceitar uma ideia se (e somente se) ela for empiricamente demonstrada” (MCINTYRE, 2019, p. 117). Nesse período de revolução científica, a medicina desenvolveu a bacteriologia, a penicilina, as vacinas e grande parte dos pressupostos que permitiram tantos avanços ao longo do século XX. Não apenas a comunidade médica, mas toda a humanidade se beneficiou e se beneficia com a revolução científica da medicina.

2. Direito, Ciências Sociais e os riscos da pseudociência

Embora McIntyre (2019)MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019. não se refira especificamente ao campo jurídico, suas reflexões são essenciais para colocar em pauta algumas questões relevantes ao Direito como campo. As questões que me parecem centrais são as seguintes: o que conta, para o campo do Direito, como fato relevante no processo de tomada de decisões jurídicas? Quais são as marcas ou os paradigmas que movem decisões jurídicas? Tais questões precisam ser postas haja vista que os juristas não necessariamente são reconhecidos por seus colegas nos campos das Ciências Sociais como cientistas. A própria ausência do Direito na discussão sobre atitude científica no livro de McIntyre é reveladora dessa falta de reconhecimento.

As tentativas de incorporar métodos científicos ao processo de tomada de decisões jurídicas não são particularmente recentes. Até a primeira metade do século XX, o argumento de cientificidade do Direito como campo se construía sob uma lógica interna, isto é, acreditava-se que o Direito “adquire conhecimento com base na construção logicamente coerente a partir de princípios elementares. As técnicas utilizadas são a argumentação, a clarificação, a lógica e a discussão” (MCCRUDDEN, 2006MCCRUDDEN, Christopher. Legal Research and the Social Sciences. The Law Quarterly Review, n. 122, 2006., p. 633). Ou seja, a cientificidade do Direito estava conectada à obediência de uma lógica puramente interna, totalmente dissociada de fatores externos ao ordenamento jurídico (MCCRUDDEN, 2006MCCRUDDEN, Christopher. Legal Research and the Social Sciences. The Law Quarterly Review, n. 122, 2006.). Ainda na primeira metade do século, contudo, começam a surgir as primeiras tentativas de incorporar dados externos para informar e subsidiar o processo de tomada de decisões jurídicas. Exemplo disso é quando William Marston tenta realizar testes com o seu novo experimento, o detector de mentiras, no julgamento do caso Fryer, na década de 1920 (ALDER, 2007ALDER, Ken. The Lie Detectors: The History of an American Obsession. New York: Free Press, 2007.; BUNN, 1997BUNN, Geoffrey C. The Lie Detector, Wonder Woman and Liberty: The Life and Work of William Moulton Marston. History of the Human Sciences, v. 10, n. 1, p. 91-119, 1997.).

É apenas na segunda metade do século XX que elementos externos ao Direito, como dados produzidos nas Ciências Sociais, passam a ser considerados importantes para a formação de decisões jurídicas. O caso Brown v. Board of Education, julgado pela Suprema Corte estadunidense em 1954, é tido como o primeiro precedente da Corte que incorporou expressamente o uso de dados realizados por pesquisas sociais como fundamento de uma decisão jurídica relevante (MORAN, 2010MORAN, Rachel. What Counts as Knowledge? A Reflection on Race, Social Science, and the Law. Law and Society Review, v. 44, n. 3/4, 2010.). Ao afirmar que a política da segregação racial em escolas públicas inerentemente produziria desigualdades na qualidade do ensino, o juiz Earl Warren citou expressamente uma dezena de estudos psicológicos e sociológicos para afirmar os efeitos deletérios que a segregação racial de acesso a escolas públicas tem sobre crianças negras. Assim, o caso é o primeiro a ter realizado uma tentativa de tradução de achados das Ciências Sociais e Humanas para o campo da tomada de decisões jurídicas: os prejuízos ao desenvolvimento psicológico e social de crianças negras, comprovados por meio das melhores técnicas científicas disponíveis à época, foram determinantes para mover o campo jurídico e superar o precedente que até então permitia a segregação racial em escolas (MORAN, 2010MORAN, Rachel. What Counts as Knowledge? A Reflection on Race, Social Science, and the Law. Law and Society Review, v. 44, n. 3/4, 2010.).

Brown é seguramente uma das mais citadas e importantes decisões da Suprema Corte estadunidense até a presente data, por ser vista como um grande marco no avanço de direitos sociais e na ressignificação do princípio jurídico da igualdade. A todas essas contribuições é preciso somar essa primeira tentativa substancial de aproximar o Direito às Ciências Sociais. Mais precisamente, a decisão foi importante por apresentar novas possibilidades de pontos de referência de decisões jurídicas. A decisão provou um deslocamento epistemológico no Direito estadunidense: as tradicionais alusões à autoridade, a regras de hermenêutica ou à lógica deram lugar a um foco em dados, evidências e técnicas científicas. Essa face da importância de Brown é talvez pouco referenciada, porém não é menos relevante que as suas outras contribuições ao avanço da teoria jurídica. Tanto é verdade que essa decisão, bem como o contexto de luta por direitos civis que domina o debate estadunidense dos anos subsequentes, é vista como um dos fatores que permitiu o surgimento e a consolidação de movimentos jurídicos voltados a compreender as interpenetrações entre Direito e Ciências Sociais, como o Critical Legal Studies e o Law and Society, cuja finalidade precípua era (e continua sendo) refletir sobre soluções jurídicas a problemas concretos a partir de uma perspectiva multidisciplinar e da intensificação do diálogo ou da construção de pontes entre Direito e Ciências Sociais (MORAN, 2010MORAN, Rachel. What Counts as Knowledge? A Reflection on Race, Social Science, and the Law. Law and Society Review, v. 44, n. 3/4, 2010.).

As décadas de 1950 e 1960 pareciam apontar um contexto favorável à consolidação dos ideais do movimento Law and Society. Contudo, desde então, as relações entre ciência e Direito, e particularmente entre Direito e Ciências Sociais, não têm se desenvolvido de maneira linear. Diversos fatores podem ser apontados como causas da relação tensa ou conflituosa entre Direito e Ciências Sociais. O primeiro deles é que a tradução de achados científicos para o Direito não é um processo simples ou automático. Direito e ciência partem de pressupostos ou de culturas essencialmente diferentes:

A cultura do Direito é adversarial, e seu objetivo é orientado a obter respostas finais em casos específicos. A cultura das ciências, por outro lado, é investigativa, especulativa, generalizável e integralmente falível: a maior parte das conjecturas científicas é descartada mais cedo ou mais tarde. Mesmo as afirmações mais bem certificadas estão sujeitas a revisão se novas evidências assim demandarem, e o progresso é irregular e desigual. (HAACK, 2003HAACK, Susan. Trials & Tribulations: Science in the Courts. Daedalus, n. 132, p. 54-63, 2003., p. 57)

Essa diferença epistemológica não é apenas uma diferença de postura, mas de objetivos: enquanto o Direito trabalha com as informações que estiverem disponíveis com a finalidade de construir ou desconstruir argumentos, a ciência tem como objetivo contribuir para a compreensão de um fenômeno, adotando a necessária humildade envolvida nesse processo (MERTZ e YOVEL, 2004MERTZ, Elizabeth; YOVEL, Jonathan. The Role of Social Science in Legal Decisions. In: SARAT, Austin (ed.). Handbook of Law and Society. Liphook: Blackwell Press, 2004.). Para alguns autores, essa incompatibilidade epistemológica entre Direito e ciência é tão forte que aproxima o campo jurídico mais da teologia do que da ciência propriamente (SAMUEL, 2008SAMUEL, Geoffrey. Is Law Really a Social Science? A View from Comparative Law. Cambridge Law Journal, v. 67, n. 2, p. 288-321, jul. 2008.). Afinal, ainda conforme o raciocínio de Geoffrey Samuel, o paradigma sobre o qual se funda o raciocínio jurídico, tal como ocorre na teologia, é a autoridade. Assim, podemos pensar que a preocupação essencialmente normativa do Direito o impede de se tornar uma ciência. Segundo esse raciocínio, o Direito está voltado a ditar como devem se organizar as relações sociais, e não em descrevê-las como elas efetivamente são, o que envolve necessariamente julgamentos de valor, de aspirações e de projetos de sociedade que não simplesmente são objeto de preocupação da ciência ou das Ciências Sociais em particular. Por isso, qualquer afirmação de que achados científicos podem ou devem ser automaticamente traduzidos na linguagem e no raciocínio jurídico deve ser vista com desconfiança (MERTZ e YOVEL, 2004MERTZ, Elizabeth; YOVEL, Jonathan. The Role of Social Science in Legal Decisions. In: SARAT, Austin (ed.). Handbook of Law and Society. Liphook: Blackwell Press, 2004.). Por vezes, os pressupostos da ciência (incluindo aqui as Ciências Sociais) são simplesmente inaplicáveis ao Direito: objetividade, confiabilidade, apego ao método e não aos resultados não são necessariamente as finalidades almejadas por profissionais do Direito.

Essa tensão entre Direito e ciência tem como pano de fundo uma tensão maior a respeito de como devem ser tomadas as decisões em um regime democrático:

Os cidadãos em uma democracia têm um interesse, alguns afirmariam até mesmo um “direito”, de ter suas disputas resolvidas com base em uma compreensão sobre a realidade social que na medida do possível seja livre de pressupostos arbitrários ou preconceitos escancarados [...]. Contudo, a preocupação de que julgadores sejam apresentados a conhecimentos confiáveis sobre o mundo social por meio de sólidas evidências das Ciências Sociais é contrastada com uma outra preocupação, de cunho “jurisdicional”, que teme a redução de atores legais a um papel passivo de meros consumidores de dados científicos mal preparados para analisar criticamente essas evidências e influenciados por fatores “extracientíficos”. (MERTZ e YOVEL, 2004MERTZ, Elizabeth; YOVEL, Jonathan. The Role of Social Science in Legal Decisions. In: SARAT, Austin (ed.). Handbook of Law and Society. Liphook: Blackwell Press, 2004., p. 3)

A tensão entre ciência e Direito, como ressalta Rachel Moran (2010)MORAN, Rachel. What Counts as Knowledge? A Reflection on Race, Social Science, and the Law. Law and Society Review, v. 44, n. 3/4, 2010., é acentuada na atualidade devido à sobrecarga de disponibilidade de informações, dados, opiniões, o que torna difícil a competição por receber a devida atenção. A competição pelo que conta como conhecimento juridicamente relevante – pesquisas de opinião, blogs, editoriais de jornais ou mesmo comentários em redes sociais – se abre sem que os filtros ou as barreiras de entrada sejam delineados de maneira clara. Forma-se assim uma “falsa equiparação” (NICHOLS, 2018NICHOLS, Tom. The Death of Expertise: The Campaign Against Established Knowledge and Why It Matters. New York: Oxford University Press, 2018.) entre informações científicas e pseudocientíficas, um relativismo extremado em que quaisquer conclusões são percebidas como tendo igual valor, independentemente de terem ou não adotado uma atitude científica. O Direito como campo muitas vezes não consegue distinguir ou filtrar apropriadamente a diferença entre informações confiáveis, produzidas de acordo com as melhores técnicas e procedimentos científicos, e meras opiniões ou perspectivas, que simplesmente não podem ser tratadas da mesma forma.

Essa difícil relação entre ciência e Direito, ou o dificultoso processo de incorporação ou tradução de achados científicos para o Direito, é muito evidente no Brasil nas recentes discussões e decisões jurídicas adotadas no âmbito de reformas trabalhistas, tanto no âmbito judicial quanto no legislativo. No Recurso Extraordinário (RE) 958.252/MG, publicado no Diário de Justiça em 13 de setembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a terceirização de atividades trabalhistas poderia estender-se às chamadas atividades finalísticas das empresas. Conforme a ementa da decisão, a própria diferenciação entre atividades-meio e atividades-fim seria “imprecisa, artificial e incompatível com a economia moderna”. Também é feita referência à “necessária observância de metodologia científica” e alusão a supostos estudos empíricos “demonstrando efeitos positivos da terceirização quanto a empregos, salários, turnover e crescimento econômico”.

Uma análise inicial parece indicar que a decisão do STF sobre a terceirização se preocupou com efetivamente incorporar a atitude científica à análise de uma questão concreta. No entanto, uma leitura atenta das razões de julgamento do voto do relator, ministro Luiz Fux, demonstra que essa tentativa de incorporação de achados científicos se fez de maneira distorcida, desrespeitando processos e procedimentos elementares da ciência. No corpo da decisão, há dezenas de menções e de referências a estudos científicos que corroborariam a adoção de um modelo jurídico mais permissivo da terceirização. Contudo, apesar de referenciar diversos autores, muitas das citações são feitas de forma descontextualizada ou como base para um argumento apenas periférico ou abstrato da visão do relator. Por exemplo, o estudo Introduction to Empirical Legal Research é citado, no início do voto, como uma forma de corroborar a visão de que o relator está adotando uma postura científica, mas a citação por si só de forma alguma significa uma efetiva incorporação dos pressupostos necessários a pesquisas empíricas em Direito. Ademais, grande parte dos autores citados no voto do relator são professores das Business Schools estadunidenses – faculdades de administração de empresas cujos professores e ambiente acadêmico podem muito bem conter um viés pró-negócios que não é problematizado pelo relator.2 2 Os estudos citados no voto do relator que reproduzem pensamentos de professores de Business Schools são os estudos de Michael Porter (Competitive Strategy: Techniques for Analyzing Industries and Competitors), citado na p. 32 do acórdão, e de Phanish Puraman, Ranjay Gulati e Sourav Bhattacharya (“How Much to Make and How Much to Buy? An Analysis of Optimal Plural Sourcing Strategies”), citado na p. 35 do acórdão. Não há uma preocupação com o diálogo de estudos sobre terceirização vindos de outras áreas, como a Sociologia ou mesmo a Economia, o que pode ter tornado parciais os pressupostos teóricos do relator.

Por outro lado, o relator adota postura muito diferente quando se depara com argumentos apresentados pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), que atuou como amicus curiae no processo mencionado. Os dados da CUT são rechaçados, argumentando-se que a ideia de “precarização do trabalho” é genérica e o estudo que apontava a referida precarização fora feito pela própria CUT. O ministro é categórico ao afirmar que os argumentos da CUT que associam terceirização à precarização “não possuem qualquer valor científico” (p. 42 do voto do relator), pois afinal foram estudos feitos e financiados pela própria CUT, o que (e isso parece estar implícito na argumentação de Fux) demonstraria um inerente conflito de interesses que necessariamente torna o estudo enviesado ou não científico. Nesse ponto, o ministro relator confunde neutralidade com objetividade e confiabilidade de uso de dados; o ponto mais importante, contudo, é que essas mesmas críticas poderiam ser apontadas contra os argumentos do próprio relator, que afirma que a terceirização está relacionada à “modernização” da economia e ao crescimento econômico sem problematizar quem se beneficia com o crescimento proporcionado por esse tipo de nova dinâmica social do trabalho.

Um dos estudos citados pelo relator, de título Equilibrium Unemployment with Outsourcing Under Labor Market Imperfections, foi financiado pela Research Unit of Economic Structures and Growth (RUESG), não passou pelo processo de revisão por pares e foi publicado apenas como working paper. Ou seja, não é um estudo que foi submetido aos ritos próprios da comunidade científica. Outro estudo mencionado pelo relator (de título Global Outsourcing of Human Capital and the Incidence of Unemployment in the United States, citado na p. 45) foi publicado na revista Applied Econometrics and International Development, periódico que está registrado em alguns indexadores, mas não nos mais prestigiosos e internacionalmente reconhecidos, como a Scopus. A política editorial desse journal não faz nenhuma referência ao processo de revisão cega por pares, o que é um indício (embora não conclusivo) de que a revista e os artigos nela publicados não atendem a critérios básicos do processo de produção científica. Outro ponto importante é que o artigo foi publicado em 2004, em um contexto econômico mundial muito diferente do de 2019; ademais, desde 2011, esse artigo foi baixado apenas 34 vezes do site da própria revista, o que evidencia que o estudo não é reconhecido pela economia como uma fonte confiável que consegue explicar problemas reais e contemporâneos.3 3 Os dados sobre downloads do estudo podem ser encontrados em: https://logec.repec.org/scripts/paperstat.pf?h=RePEc:eaa:aeinde:v:4:y:2004:i:1_17. Acesso em: 1º mar. 2021. Ainda, o relator parafraseia em apenas duas linhas um amplo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de mais de 450 páginas com a simples afirmação de que os países que adotaram a “terceirização internacional” se “beneficiam de maior crescimento econômico, menores índices de desemprego e aumento de salários” (p. 45 do voto do relator). Essa paráfrase possui um claro enviesamento e parece leviana, uma vez que o autor não se preocupou minimamente em descrever o contexto do estudo, as suas limitações, nuanças, etc.4 4 O referido estudo, citado pelo ministro relator, está disponível em: http://www.oecd.org/site/tadicite/50258009.pdf. Acesso em: jul. 2020.

Em outras palavras, as desconfianças do relator em relação à fonte de financiamento de uma pesquisa e ao seu meio de publicação valem para rechaçar o estudo da CUT, mas são deixadas de lado na análise dos argumentos pró-terceirização. Essa postura de escolher seletivamente apenas os estudos que corroboram pontos de vista prévios (e estou assumindo que o ministro Fux era previamente favorável à terceirização irrestrita) é o oposto do que McIntyre define como atitude científica. Longe de incorporar a curiosidade, a humildade, a abertura cognitiva, o relator se engaja no chamado cherry-picking, cuidadosamente selecionando casos, argumentos e dados que corroboram os seus pontos de vista prévios, ignorando ou rejeitando apressadamente qualquer dado ou indício contrários a essas crenças. Efetivamente, ainda que faça referência a estudos científicos, o relator se baseia mais em argumentos de autoridade do que em dados cientificamente coletados: ele enfatiza quem está fazendo as afirmações, mais do que os dados e a teoria. Não há uma superação efetiva do paradigma da autoridade. A alusão à autoridade parece tão imbricada na justificativa do relator que argumentos contrários à sua perspectiva sequer são considerados: em vez de adotar uma postura curiosa e realmente disposta a se abrir e incorporar novas reflexões, o relator segue a tradicional lógica jurídica adversarial, que reduz complexos problemas sociais a lógicas binárias simplistas que refutam apressadamente quaisquer argumentos ou dados que possam gerar fissuras ou quebra de coerência nas conclusões a que se quer chegar.

As “falhas metodológicas” dos estudos da CUT são refutadas por uma citação do “economista laureado com o Prêmio Nobel” Gary Becker, segundo o qual “empregados com treinamento específico têm menos incentivo para pedir demissão, e as firmas têm menos incentivos para demiti-los, do que empregados sem treinamento ou com treinamento genérico, inferindo-se disso que as taxas de demissão serão inversamente relacionadas à quantidade de treinamento específico” (p. 40 do voto do relator). Nesse ponto específico de seu voto, o relator busca contrapor a ideia de que a terceirização está associada à maior rotatividade no trabalho, mas há um salto incompreensível entre a afirmação citada e a conclusão de que a terceirização não está associada à maior rotatividade do trabalho. Ainda com relação ao estudo da CUT, o relator afirma que “o não isolamento de outros fatores que possam contribuir para a verificação objetivada [nas taxas de rotatividade do trabalho] é um erro técnico tão comum quanto grave em pesquisas empíricas” (p. 40 do voto do relator). O que Fux desconsidera é que, em Ciências Sociais, o isolamento laboratorial de variáveis é impossível, o que não autoriza rejeitar por completo a existência de correlações entre variáveis, mesmo que elas sejam difíceis de mensurar.

A lógica seguida pelo ministro relator implica a necessidade de aplicação de todas as regras técnicas e científicas – algumas até mesmo não aplicáveis a fenômenos sociais – para estudos que contrariam sua posição, ao mesmo tempo que o seu próprio argumento é construído com base em premissas dúbias, enviesadas e com profunda marca ideológica. A famosa máxima “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” poderia ser atualizada a partir do voto do ministro Fux para algo como “aos amigos, tudo; aos inimigos, a ciência”. O ministro relator comete um erro há muito identificado e nomeado pela psicologia comportamental: a assimilação enviesada de informações, que significa a interpretação distorcida de dados ou informações de maneira a torná-los compatíveis com as crenças prévias (MUNRO e DITTO, 1997MUNRO, Geoffrey D.; DITTO, Peter H. Biased Assimilation, Attitude Polarization, and Affect in Reactions to Stereotype-relevant Scientific Information. Personality and Social Psychology Bulletin, v. 23, n. 6, p. 636-653, 1997.).

3. Direito, pandemia e o possível percurso para uma revolução científica do direito

A decisão do STF no RE 958.252/MG ilustra as dificuldades do processo judicial em incorporar evidências científicas, indicando um real risco de que decisões jurídicas se revistam de uma aparência científica sem, contudo, adotar uma genuína atitude científica. Contudo, essa decisão de forma alguma esgota as relações possíveis entre ciência e Direito. Se as relações do Direito com as Ciências Sociais possuem todas as nuanças e complexidades até aqui apontadas, talvez a sua relação com a medicina possa ilustrar um percurso de maior deferência e de um diálogo mais aprofundado entre o Direito e evidências científicas.

Em 2020, em razão da pandemia de COVID-19, juízes ordinários e ministros do STF se depararam com questões que, no fundo, diziam respeito a como o Direito deve dialogar com a ciência. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.586, por exemplo, o relator ministro Ricardo Lewandowski determinou que a Lei n. 13.979/2020 deve ser interpretada no sentido de corroborar a legitimidade da obrigatoriedade da vacinação contra a COVID-19. A sua decisão foi, em grande medida, fundamentada na “necessidade de observância de evidências científicas”. A legitimidade da vacinação obrigatória (que não se confunde com vacinação compulsória) foi em parte assegurada devido ao condicionamento da medida à observância de critérios científicos. Citando e buscando dialogar com ao menos alguns estudos epidemiológicos, o relator foi categórico ao afirmar e reafirmar que “a decisão política sobre a obrigatoriedade da vacinação deve, obviamente, levar em consideração os consensos científicos, a segurança e a eficácia das vacinas”. No corpo de sua decisão cautelar, ele também dialoga com decisão tomada no início da pandemia pelo ministro Alexandre de Moraes, que permitiu a estados e municípios a adoção de medidas restritivas do direito de locomoção para promover a saúde pública (medida cautelar na ADI 6.343). Nessa decisão, recomendações e evidências científicas foram utilizadas em abundância pelo relator, que citou estudos médicos e epidemiológicos em praticamente todas as páginas de seu voto, inclusive na própria ementa, que faz referência a dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a outros estudos. Uma leitura possível dessa decisão é que o STF condicionou a competência comum de estados e municípios para decretar medidas de isolamento social à necessidade de observância de parâmetros e recomendações científicas.

Essas decisões do Supremo não foram isoladas. Ainda que não haja dados sistemáticos sobre a utilização de critérios médicos e científicos como fundamento de decisões judiciais, é possível pensar ao menos em algumas ilustrações de juízes e tribunais que adotaram posturas semelhantes. No Distrito Federal, por exemplo, houve decisão determinando a suspensão da reabertura do comércio, fundamentando-se justamente na ausência de dados que comprovassem que a reabertura das atividades econômicas não essenciais estaria amparada por dados que permitissem concluir que esta não ocasionaria dano à saúde e segurança pública.5 5 Ação Popular n. 0704472-79.2020.8.07.0018, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), julgada em 8 de julho de 2020. Essa decisão foi posteriormente revertida por decisão monocrática do Tribunal de Justiça, o que demonstra as inerentes disputas existentes nesse campo. No estado de São Paulo, houve ao longo de 2020 dezenas de decisões judiciais a respeito de medidas sanitárias.6 6 O site do TJSP mantém banco de decisões relacionadas à pandemia do coronavírus em https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Coronavirus/material/DecisoesPublicoMaio-2020.pdf?637354724398319547. Acesso em: 1º mar. 2021. Em alguns casos, juízes impuseram medidas de restrição e de controle sanitário amparando-se em dados científicos e foram corroborados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP),7 7 A título de ilustração, cito a Ação Civil Pública n. 1000335-51.2020.8.26.0244. mas estudos mais sistemáticos são necessários para aferir a real extensão da adoção e da incorporação de dados científicos em decisões judiciais.

De qualquer forma, o ponto é que a crise sanitária pela qual o país passa representa uma oportunidade importante para repensar os paradigmas e os fundamentos das decisões jurídicas, que precisam passar a se preocupar mais com dados empíricos e assumir a atitude científica como técnica decisória.

Considerações finais

Essas discussões colocam em evidência que a interação entre achados científicos e processos decisórios no campo jurídico não é simples, automática ou mesmo consensualmente desejável. No entanto, apesar das diferenças históricas, epistemológicas e metodológicas existentes entre Direito e ciência, devemos almejar incorporar uma atitude científica no campo jurídico – talvez não em todas as decisões judiciais ou legislativas, mas ao menos naquelas que possuem potencial de ser amplamente consequentes e de impactar grandes parcelas da população brasileira, como decisões sobre leis trabalhistas ou medidas sanitárias. O empírico e os dados coletados de maneira sistematizada e por meio de técnicas e procedimentos científicos podem informar e ajudar a constituir o normativo, mas para que isso ocorra o campo jurídico e os juristas como um conjunto precisam se abrir a evidências vindas de fora do sistema do Direito, superando assim a ideia de autopoiese, há muito enraizada no campo. A ideia de que o Direito é autossuficiente e não necessita de conhecimento vindo de fora não se sustenta em um mundo com problemas complexos e multidisciplinares. Juristas precisam incorporar uma postura minimamente curiosa e disposta a rever suas opiniões e concepções prévias. Adotar uma atitude científica é um processo muito mais complexo, honesto e transparente do que simplesmente tentar revestir ou camuflar opiniões e ideologias políticas sob o manto da tecnicidade da ciência.

Como afirmou Jean-Michel Berthelot em importante obra sobre a epistemologia das Ciências Sociais, “uma disciplina se constrói: sua história é mais complexa que um simples desenvolvimento de ideias e de teorias; ela tem por implicação técnicas e métodos de pesquisa, formas de construção de seu objeto, lugares de aprendizado, de transmissão e de exercício, de indivíduos associados, das redes de trabalho, da troca e avaliação” (BERTHELOT, 1991, p. 5). O Direito como disciplina encontra-se em um momento de transformação e de reconstrução em todo o mundo, em todos os aspectos apontados por Berthelot. A realidade e os desafios apresentados aos operadores e pensadores do Direito tornam inescapável a aproximação do normativo ao real, o que traz a necessidade de sua aproximação com os métodos e procedimentos próprios da ciência. Por outro lado, é preciso levar a sério a complexidade dessa interação para que o campo jurídico não seja capturado e consolidado como uma pseudociência – isto é, um campo que afirma ser científico, mas que na prática apenas reveste crenças e dogmas em uma embalagem empírica desenhada para encobri-los (MCINTYRE, 2019MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019.).

Ainda que seja apenas um caso, a decisão emitida pelo STF no RE 958.252/MG serve para refletir sobre um problema mais amplo no campo jurídico, que aceita e normaliza a ausência de cautela na utilização de dados e teorias em processos de tomada de decisões relevantes. Na medida em que esse cenário persista, o Direito como campo não será utilizado como um instrumento de busca pela verdade e de solução pacífica de controvérsias sociais, mas sim como um instrumento de elitização, exclusão e dominação. Associar a tomada de decisões jurídicas a fatos empíricos é o que pode nos salvaguardar de investidas não democráticas do uso do Direito. Em um contexto de forte polarização política e de teste das instituições democráticas, fundamentar discussões políticas e jurídicas em dados pode ser o caminho mais seguro para chegarmos a consensos sobre questões controvertidas (SUNSTEIN, 2018SUNSTEIN, Cass. The Cost-Benefit Revolution. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2018.). Ou seja, uma ênfase exacerbada em discussões morais ou ideológicas pode apenas acelerar o processo de deterioração institucional e social em que estamos mergulhados.

agradecimentos

O autor agradece à equipe editorial da Revista Direito GV e a Everton Luiz Kircher de Moraes pelos comentários críticos que muito contribuíram para a elaboração desta resenha.

Referências

  • ALDER, Ken. The Lie Detectors: The History of an American Obsession. New York: Free Press, 2007.
  • BERTHELOT, Jean-Michel. La construction de la sociologie. Paris: Presses Universitaire de France, 1991.
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  • KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2018.
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  • MCINTYRE, Lee. The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2019.
  • MCINTYRE, Lee. Post-truth. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2018.
  • MERTZ, Elizabeth; YOVEL, Jonathan. The Role of Social Science in Legal Decisions. In: SARAT, Austin (ed.). Handbook of Law and Society. Liphook: Blackwell Press, 2004.
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  • NICHOLS, Tom. The Death of Expertise: The Campaign Against Established Knowledge and Why It Matters. New York: Oxford University Press, 2018.
  • POPPER, Karl. A lógica da descoberta científica. São Paulo: Cultrix, 2013.
  • SAMUEL, Geoffrey. Is Law Really a Social Science? A View from Comparative Law. Cambridge Law Journal, v. 67, n. 2, p. 288-321, jul. 2008.
  • SUNSTEIN, Cass. The Cost-Benefit Revolution. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2018.
  • 1
    Todas as citações dessa e de outras obras em língua inglesa neste texto foram traduzidas pelo autor desta resenha.
  • 2
    Os estudos citados no voto do relator que reproduzem pensamentos de professores de Business Schools são os estudos de Michael Porter (Competitive Strategy: Techniques for Analyzing Industries and Competitors), citado na p. 32 do acórdão, e de Phanish Puraman, Ranjay Gulati e Sourav Bhattacharya (“How Much to Make and How Much to Buy? An Analysis of Optimal Plural Sourcing Strategies”), citado na p. 35 do acórdão.
  • 3
    Os dados sobre downloads do estudo podem ser encontrados em: https://logec.repec.org/scripts/paperstat.pf?h=RePEc:eaa:aeinde:v:4:y:2004:i:1_17. Acesso em: 1º mar. 2021.
  • 4
    O referido estudo, citado pelo ministro relator, está disponível em: http://www.oecd.org/site/tadicite/50258009.pdf. Acesso em: jul. 2020.
  • 5
    Ação Popular n. 0704472-79.2020.8.07.0018, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), julgada em 8 de julho de 2020.
  • 6
    O site do TJSP mantém banco de decisões relacionadas à pandemia do coronavírus em https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Coronavirus/material/DecisoesPublicoMaio-2020.pdf?637354724398319547. Acesso em: 1º mar. 2021.
  • 7
    A título de ilustração, cito a Ação Civil Pública n. 1000335-51.2020.8.26.0244.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2020
  • Aceito
    09 Fev 2021
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