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Proibição de discriminação em razão da raça e da origem étnica no contexto europeu, em especial na relação laboral

PROHIBITION OF DISCRIMINATION ON GROUNDS OF RACE AND ETHNIC ORIGIN IN THE EUROPEAN CONTEXT, IN PARTICULAR IN THE EMPLOYMENT RELATIONSHIP

Resumo

No presente artigo pretende-se abordar um dos fatores de discriminação proibidos em vários instrumentos normativos europeus: a raça e a origem étnica. Parte-se de uma análise mais geral para a respectiva aplicação da proibição de discriminação em razão da raça e da origem étnica na relação laboral. O estudo é contextualizado à luz de um conjunto de acontecimentos que tem motivado o debate público sobre a temática. É efetuada uma reflexão sobre o conceito de “raça” e “origem étnica” a partir da análise de fontes internacionais e europeias, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Busca-se examinar a relação intrínseca entre a proibição de discriminação e a dignidade da pessoa humana, o que exige a proclamação do trabalho digno.

Discriminação; raça; origem étnica; Europa; trabalho

Abstract

This article intends to address one of the discrimination factors prohibited in several European normative instruments: race and ethnic origin. It starts with a more general analysis for the respective application of the prohibition of discrimination on grounds of race and ethnic origin to the employment relationship. The study is contextualized in the light of a set of events that have motivated the public debate on the subject. A reflection on the concept of “race and ethnic origin” is carried out, the international and European sources are analyzed, as well as the jurisprudence of the ECJ and the ECHR. The intrinsic relationship between the prohibition of discrimination and the dignity of the human person is sought, which requires the proclamation of decent work.

Discrimination; race; ethnic origin; Europe; work

INTRODUÇÃO

A presente reflexão surge a partir da sequência de um conjunto de acontecimentos que motiva o debate e o interesse da opinião pública sobre a questão da discriminação racial.

Por um lado, o movimento Black Lives Matter , originado com a morte do afro-americano George Floyd às mãos da polícia de Mineápolis, tornou-se o maior movimento da história dos Estados Unidos da América (EUA), com apoiantes por todo o mundo ( BUCHANAN, QUOCTRUNG e PATEL, 2020BUCHANAN, Larry; QUOCTRUNG, Bui; PATEL, Jugal K. Black Lives Matter May Be the Largest Movement in U.S. History. The New York Times, 3 jul. 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/07/03/us/george-floyd-protests-crowd-size.html. Acesso em: 15 fev. 2021.
https://www.nytimes.com/interactive/2020...
).

Por outro lado, em Portugal, uma notícia publicada no Jornal Expresso , de 17 de outubro de 2020, com o título “Há raças mais inteligentes? 23% dos portugueses acreditam que sim”,1 1 Disponível em: https://expresso.pt/sociedade/2020-10-17-Ha-racas-mais-inteligentes-23-dos-portugueses-acreditam-que-sim . Acesso em: 21 out. 2020. suscita o debate em torno da discriminação racial. Este artigo refere-se a uma sondagem do ICS/ISCTE (colaboração entre o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), o Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e o grupo Impresa Publishing S.A) em que 17% dos portugueses inquiridos consideram que a mistura racial ou étnica pode prejudicar “a evolução biológica da espécie humana”. Além disso, 41% concordam que a convivência entre diferentes raças ou etnias causa quase sempre problemas; mais de quatro em cada dez portugueses consideram que há diferenças significativas entre grupos étnicos ou raciais; e cerca de um quarto dos portugueses acredita que algumas raças ou etnias são mais inteligentes do que outras.

Mais recentemente, um relatório de janeiro de 2021, intitulado “State of Hate – Far-Right Extremism in Europe” ( MULHALL e KHAN-RUF, 2021MULHALL, Joe; KHAN-RUF, Safya. State of Hate: Far-Right Extremism in Europe. Londres: HOPE Not Hate Charitable Trust: Amadeu Antonio Stiftung: Expo Foundation, 2021. ), elaborado pelas organizações antirracistas HOPE not hate (Reino Unido), Fundação Amadeu Antonio (Alemanha) e Expo (Suécia), buscou observar as áreas de interesse que grupos radicais e de extrema direita tentam explorar; no estudo, há um inquérito, realizado em sete países europeus (Suécia, França, Alemanha, Reino Unido, Hungria, Polónia e Itália), que concluiu que 25% dos europeus têm sentimentos negativos em relação aos muçulmanos, quase 33% têm opiniões hostis quanto aos imigrantes em geral e mais de 33% têm opiniões negativas sobre os ciganos. Nesse relatório são, também, analisados os riscos do crescimento de movimentos da extrema direita europeia.

Tudo isto demonstra que na sociedade contemporânea se debate diariamente o racismo, a discriminação e a segregação étnica. Trata-se, portanto, de um momento em que existe todo o interesse em revisitar o tema do direito antidiscriminatório na Europa e, em especial, a raça e a origem étnica enquanto fundamentos proibidos de discriminação na relação laboral.

A Europa, devido a fenómenos como a globalização e a integração europeia, está enfrentando um processo de rápida evolução sociocultural, uma vez que o contexto social tende a ser cada vez mais multiétnico e multirracial ( SESSAREGO, 2020SESSAREGO, Sandro. Racial Discrimination in Europe and Spain: A Multidimensional Perspective. Revista Internacional de Derechos Humanos, v. 10, n. 2, p. 145-180, 2020. , p. 172). E a relação laboral não é indiferente a estes constantes desafios.

Assim, pretende-se estudar a proibição de discriminação no âmbito laboral por meio de um diálogo entre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), analisando a discriminação em razão da raça e da origem étnica.

Em termos metodológicos, o artigo, que se baseia em uma análise jurisprudencial, percorreu um caminho de pesquisa que utiliza dois critérios: primeiro, pesquisa na base de dados on-line do TEDH e do TJUE por meio das palavras-chave “raça” e “etnia”; segundo, passou-se a uma pesquisa com a palavra-chave “discriminação” aplicada à seleção anterior. Utilizado o critério mencionado anteriormente, houve uma segunda etapa de seleção das decisões que tivessem uma relação direta com o tema em análise neste artigo, ou seja, que versassem sobre um conflito laboral ou que discutissem os conceitos de “raça” e “etnia”. Após essa segunda seleção, os acórdãos em causa foram alvo de uma análise minuciosa e os resultados são apresentados no presente texto. Assim, utilizando a metodologia mencionada, foram estudados detalhadamente quatro acórdãos.

1. DO CONCEITO DE RAÇA E DE ORIGEM ÉTNICA

A raça e a origem étnica representam um dos fatores de discriminação proibidos em diversos instrumentos normativos de âmbitos internacional, europeu e nacional. Essa uniformidade generalizada, nas sociedades contemporâneas, “da raça como um fundamento proibido de discriminação deve-se à circunstância de as sociedades humanas (incluindo as ocidentais) terem ao longo da sua história atravessado, em maior ou menor medida, um processo de ‘racialização’” ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 102). Mestre (2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 102) clarifica, ainda, que

este termo designa o processo de individualização de um determinado grupo humano de acordo com algumas características comuns que lhes são atribuídas, nomeadamente características físicas (cor da pele ou aparência exterior), sinais visíveis externos (vestuário, marcadores étnicos ou religiosos) ou indicadores sociais (como a cultura e o status sócio-económico).

Ao longo dos tempos, a raça foi sendo um fator de diferenciação entre seres humanos, ou seja, os cidadãos eram classificados em função de sua pertença a determinado grupo racial. Segundo Mestre (2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 103),

os casos paradigmáticos foram a Alemanha no tempo do nacional-socialismo e a África do Sul no tempo do apartheid , mas também os EUA tiveram leis de segregação racial (as designadas “Jim Crow Laws” aprovadas no Sul dos EUA), assim como a Rodésia (atual Zimbabwe), entre outros; atualmente a Constituição da Libéria de 1847 restringe a nacionalidade a “negroes or persons of negro descent” (art. V, sec. 13), impedindo assim o acesso à naturalidade a cidadãos de ascendência europeia, asiática ou ameríndia, ainda que nascidos no território ou casados com um natural desse país.

Atualmente, ainda persistem formas de discriminação que, apesar de não constituírem uma classificação formal dos cidadãos pelo poder público, resultam de diferenciações de facto. Desta forma, tornou-se fundamental solidificar nos diferentes ordenamentos jurídicos fontes de proteção da discriminação em função da raça e da origem étnica.

Entretanto, afinal, o que se entende por “raça” e “origem étnica” à luz dos instrumentos normativos que proíbem a discriminação?

A grande dificuldade surge em demonstrar a pertença de um determinado indivíduo a um grupo subjetivo, o qual corresponde a uma das categorias (raça e origem étnica) que a lei descreve. Todavia, estes requisitos de pertença podem se revelar exigentes e de difícil compreensão. E, de facto, estas dúvidas concetuais verificam-se em relação à raça e à etnia ( LOPES e SILVA, 2002LOPES, Dulce; SILVA, Lucinda Dias da. Xadrez Policromo: A Diretiva 2000/43/CE do Conselho e o Princípio da Não Discriminação em Razão da Raça e Origem Étnica. In: GOMES, Júlio. Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2002. ).

Apesar das dificuldades subjacentes ao âmbito destes conceitos, não podemos deixar de apontar como ponto de partida a Diretiva 2000/43/CE,2 2 Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica (JO L 180 de 19.7.2000, p. 22-26). em que se esclarece que a “União Europeia rejeita as teorias que tentam provar a existência de raças humanas separadas, pelo que a utilização do termo “origem racial” na presente directiva não implica a aceitação de tais teorias” (Considerando n. 6). Apesar de o direito comunitário não referir expressamente a língua, a cor ou a ascendência como caraterísticas protegidas, isso não significa que estas não possam ser protegidas como parte da raça ou da origem étnica. Isto porque a língua, a cor e a ascendência encontram-se intrinsecamente vinculadas à raça ou à etnia ( AGENCIA DE LOS DERECHOS FUNDAMENTALES DA LA UNIÓN EUROPEA, 2011AGENCIA DE LOS DERECHOS FUNDAMENTALES DA LA UNIÓN EUROPEA. Manual de legislación europea contra la discriminación. Luxemburgo: Oficina de Publicaciones de la Unión Europea, 2011. , p. 109).

É interessante observar que

a despeito da (in)consistência de científica da autonomização de várias raças, é uma evidência que a sociedade se comporta pressupondo essa mesma multiplicidade racial, assume-se que um diploma destinado a combater a discriminação com base nesse fator não pode deixar de partir daquela suposição. ( ROUXINOL, 2018ROUXINOL, Milena Silva. A tutela antidiscriminatória do trabalhador sobrevivente de cancro – subsídio para um enquadramento dogmático-normativo. In: NAMORA, Nuno Cerejeira et al. (coord.). Health at Work, Ageing and Environmental Effects on Future Social Security and Labour Law Systems. New Castle: Cambridge Scholar Publishing, 2018. p. 136-165. , p. 148)

Mestre aponta dois modelos distintos para caracterizar o conceito de “raça” e de “origem étnica”: o modelo essencialista e o modelo construtivista ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 107). Enquanto o primeiro “assenta a definição na identificação de determinados marcadores biológicos que individualizariam as diferentes raças humanas”, o segundo “considera a raça essencialmente como uma construção social” ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 107). Acompanhando o estudo do autor, realça-se que a jurisprudência tem adotado um conceito de raça que assenta em um modelo de construção social, ou seja, construtivista, já que o conceito tem sido preenchido por referência a determinados marcadores que permitem individualizar certos seres humanos ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 107). Esta densificação do conceito é feita por “referência a uma construção social que funciona mediante a identificação/realce de determinados marcadores que (a) permita a identificação de outras pessoas, (b) seja relativamente imutável, (c) sirva como uma forma de significação social” ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 107).

Para melhor ilustrar o alcance das dificuldades terminológicas, note-se que, atualmente, na Alemanha está em debate a supressão da palavra “raça” da Constituição e a sua eventual substituição pela expressão “motivos raciais” ( RATH, 2021RATH, Martin. Bringt es wirklich etwas, die “Rasse” zu streichen? Legal Tribune Online, 31 jan. 2021. Disponível em: https://www.lto.de/recht/hintergruende/h/rasse-grundgesetz-eugenik-diskriminierung-art3-rassistisch-rassenhygiene-nationalsozialismus-arier/. Acesso em: 3 mar. 2022.
https://www.lto.de/recht/hintergruende/h...
). Isto porque o termo “raça” tem sido apontado como admitindo a existência de diferentes categorias de pessoas, o que pode colidir com a previsão da Lei Fundamental de que todas as pessoas são iguais perante a lei.

É, portanto, evidente a complexidade da tarefa de buscar definir o conceito de “raça”, bem como de o distinguir do conceito de “origem étnica”. Tal como referido anteriormente, a jurisprudência tem sido determinante para a definição e a distinção dos conceitos.

No âmbito da jurisprudência do TJUE, no acórdão Chez,3 3 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 16 de julho de 2015, CHEZ Razpredelenie Bulgaria AD contra Komisia za zashtita ot diskriminatsia (C-83/14). em que se tratava da discriminação provocada pelos parâmetros de construção de postes de eletricidade em bairros habitados pela população Roma, é referido que “o conceito de origem étnica, que procede da ideia de que os grupos sociais são marcados, nomeadamente, por uma comunidade de nacionalidade, de fé religiosa, de língua, de origem cultural e tradicional e de meio de vida, aplica‑se à comunidade Roma”.

Também no acórdão Jyske Finans,4 4 Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção), de 6 de abril de 2017, Jyske Finans A/S contra Ligebehandlingsnævnet (C-668/15). recorrendo à jurisprudência já vertida no acórdão Chez, o TJUE volta a afirmar que “o conceito de ‘origem étnica’ procede da ideia de que os grupos sociais são marcados, nomeadamente, por uma comunidade de nacionalidade, de fé religiosa, de língua, de origem cultural e tradicional e de meio de vida”. Acrescenta, ainda, que “uma origem étnica não pode ser determinada com base num único critério, devendo, pelo contrário, assentar num conjunto de elementos, alguns dos quais de natureza objetiva e outros de natureza subjetiva”.

No entanto, a jurisprudência pioneira na concretização destes conceitos terá sido a do TEDH, a qual foi posteriormente citada, por exemplo, no acórdão Chez do TJUE.5 5 O acórdão CHEZ Razpredelenie Bulgaria AD contra Komisia za zashtita ot diskriminatsia (C-83/14), ao referir-se ao conceito de origem étnica, efetua a seguinte remissão: “v., neste sentido, a propósito do artigo 14.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, TEDH, Natchova e o. c. Bulgária n.os 43577/98 e 43579/98, TEDH 2005-VII, e Sejdić e Finbci c. Bosnia-Herzegovina n.os 27996/06 e 34836/06, §§ 43 a 45 e 50, CEDH 2009”. Segundo o TEDH, no caso Timishev vs. Rússia,6 6 Timishev vs. Rússia, App. ns. 55762/00 e 55974/00, data de julgamento 13 de dezembro de 2005, n. 55. etnia e raça são conceitos relacionados e sobrepostos. Considerando que a noção de raça está enraizada na ideia de classificação biológica dos seres humanos em subespécies de acordo com caraterísticas morfológicas, como a cor da pele ou as caraterísticas faciais, a etnia tem a sua origem na ideia de grupos sociais marcados por nacionalidade comum, filiação tribal, fé religiosa, linguagem comum ou origens culturais e tradicionais. Assim, à luz da jurisprudência do TEDH, língua, religião, nacionalidade e cultura podem ser fatores indissociáveis da raça.

2. A PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO

2.1. FONTES INTERNACIONAIS

São diversas as fontes do direito internacional que se ocuparam da proibição de discriminação em razão da raça e da origem étnica, todavia, destacamos aquelas que nos parecem mais relevantes no contexto concreto da relação laboral.

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), destaca-se, neste âmbito, o art. 2º, com um elenco exemplificativo de fundamentos proibidos de discriminação, designadamente, a raça. Isto, na sequência de o art. 1º estabelecer que todos os seres humanos nascem livres e iguais na dignidade e em direitos.

O Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) promove a igualdade em seu art. 2º, em tudo semelhante ao art. 2º da DUDH, consagrando que os Estados têm a obrigação de assegurar os direitos consagrados nesse pacto, sem qualquer distinção que derive, nomeadamente, da raça.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seu art. 26, proclama uma cláusula geral de igualdade e consagra o dever de a lei assegurar a proibição de discriminação em função da raça, cor, origem nacional ou social. Os Estados têm, portanto, o dever de assegurar todas as formas de discriminação, designadamente, as que têm por base os motivos aí elencados. Realça-se o caráter abrangente deste preceito ao abarcar um conceito mais amplo de raça, o qual contempla a cor e a origem nacional e social. No art. 27 consagra o dever de os Estados garantirem às minorias (étnicas, religiosas ou linguísticas) o direito de professar a sua cultura dentro do território desse Estado.

Ainda no âmbito das Nações Unidas, cumpre destacar a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Esta, ao contrário dos instrumentos jurídicos anteriormente mencionados, tem um âmbito mais restrito, já que visa combater a discriminação contra um determinado grupo: as minorias raciais. Entre os aspetos mais relevantes, salienta-se a definição de discriminação racial como

qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objetivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.

Voltamos a sublinhar a adoção de um conceito amplo de raça, estendendo-o à cor, à ascendência, à origem nacional ou étnica.

Por fim, ainda no âmbito das Nações Unidas, evidencia-se a título exemplificativo, e em matéria específica das relações laborais, a Convenção n. 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre discriminação em matéria de emprego e profissão. No âmbito desta convenção, a discriminação compreende toda distinção, exclusão ou preferência fundada, entre outras, na raça, “que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão” (art. 1º).

Já no âmbito do Conselho da Europa cabe referir a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), cujo cumprimento é garantido pela tutela do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e pela Carta Social Europeia (CSE).

Na CEDH, está consagrada a proibição de contemplar a raça como fator de discriminação no gozo dos demais direitos previstos na Convenção (art. 14). Diferentemente de outras fontes internacionais, a CEDH não se refere ao princípio da igualdade, tampouco consagra uma proibição geral de discriminação. Na verdade, o referido art. 14 apresenta uma proibição de discriminação com fundamento nos motivos reconhecidos na própria convenção. Daí que a inexistência do princípio da igualdade do texto da CEDH tenha permitido ao TEDH interpretar aquele preceito como consagrando uma obrigação negativa para os Estados, ou seja, abster-se de garantir os direitos previstos na convenção de forma discriminatória sem que estejam obrigados a adotar medidas que garantam a igualdade ( MESTRE I MESTRE, 2017MESTRE I MESTRE, Ruth María. Prohibición de discriminación general. In: ATIENZA, Cristina Monereo; PÉREZ, José Luis Monereo (coord.). La garantía multinivel de los Derechos Fundamentales en el Consejo de Europa: El Convenio Europeo de Derechos Humanos y la Carta Social Europea. Granada: Comares, 2017. , p. 292).

No domínio deste instrumento jurídico, destacam-se duas decisões do TEDH que, embora se situem fora do âmbito laboral, merecem menção. No caso Chapman vs. Reino Unido (27238/1995), estava em causa o direito de uma senhora cigana residir em um determinado local. O TEDH considerou que, neste caso, haveria, discriminação indireta nos termos dos artigos 8º e 14 da CEDH. No caso Timishev vs. Rússia (43577/1998 e 43579/1998) foi exposto que as autoridades policiais russas sujeitavam os veículos de matrícula chechena a operações STOP de maior duração e intensidade. E, por esse facto, havia discriminação em função da raça no gozo do direito à liberdade de circulação. O TEDH, no caso Timishev contra Rússia, n. 58:

o Tribunal considera que nenhuma diferença de tratamento baseada de forma exclusiva ou determinante na origem étnica de uma pessoa pode ser objectivamente justificada numa sociedade democrática contemporânea, assente nos princípios do pluralismo e do respeito pelas diversas culturas.

No âmbito da CSE, a qual, à semelhança de outros instrumentos jurídicos anteriormente referidos, consagra uma proteção contra a discriminação focada no gozo dos direitos consagrados na própria carta. Assim, o gozo dos direitos reconhecidos na carta “deve ser assegurado sem qualquer distinção baseada, nomeadamente, na raça” (art. E) e “não constituem motivos válidos de despedimento, designadamente: a raça” (art. 24, n. 3).

2.2. FONTES EUROPEIAS

É notável, no âmbito do Direito da União Europeia, o acervo de fontes que pretendem combater a discriminação.

Em primeiro lugar, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) consagra, a par de um princípio geral de proibição da discriminação, um elenco exemplificativo de fundamentos proibidos de discriminação, do qual se destaca a raça, a cor e a origem étnica ou social como fundamentos expressamente proibidos de discriminação no âmbito do direito fundamental de proteção contra a discriminação (art. 21, n. 1).

O ano de 2000 foi particularmente relevante no âmbito da aprovação de instrumentos normativos na União Europeia (UE) relativamente à luta contra a discriminação, excetuando a discriminação quanto ao género já amplamente desenvolvida: trata-se da Diretiva 2000/43/CE, sobre o princípio da igualdade de tratamento, sem distinção da origem racial ou étnica7 7 O Conselho, em 2013, aprovou uma recomendação que insta à adoção de medidas em uma série de domínios, nomeadamente a luta contra a discriminação, a fim de reforçar a integração dos ciganos. Cfr. Recomendação do Conselho, de 9 de dezembro de 2013, relativa a medidas eficazes para a integração dos ciganos nos Estados-Membros (JO C 378, de 24 de dezembro de 2013, p. 1-7). e da Diretiva 2000/78/CE, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional. Estas diretivas introduziram alterações significativas ao nível dos instrumentos jurídicos de afirmação da igualdade de tratamento na UE ( PASTOR, 2005PASTOR, María Amparo Ballester. Las directivas sobre aplicación del principio de igualdad de trato de las personas por razón de su origen racial o étnico (2000/43) y por motivos de religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual (2000/78). In: MOLINA, F. Salinas. La protección de derechos fundamentales en el orden social. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2005. ).

No âmbito do direito derivado e tendo em conta, especificamente, a proibição da discriminação, em matéria laboral, começamos por destacar a Diretiva 2000/43/CE, aplicável tanto ao setor público quanto ao setor privado, a qual foi muito aplaudida pelo seu amplo âmbito de aplicação, que se estende para além dos domínios tradicionais do emprego e do mercado laboral.

Esta diretiva consagra um quadro jurídico destinado a combater a discriminação, direta e indireta, e o assédio, com fundamento na origem racial ou étnica no âmbito do acesso ao emprego, a condições de trabalho, acesso à formação profissional, à proteção social e a cuidados de saúde, à educação, a benefícios sociais e ao fornecimento de bens e prestações de serviços postos à disposição do público, incluindo habitação (art. 3º).8 8 No âmbito do acompanhamento desta diretiva, cf. (1) Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu – Aplicação da Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica [COM(2006) 643 final de 30 de outubro de 2006]; (2) Recomendação do Conselho, de 9 de dezembro de 2013, relativa a medidas eficazes para a integração dos ciganos nos Estados-Membros (JO C 378 de 24.12.2013, p. 1-7); (3) Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho: Relatório conjunto sobre a aplicação da Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica («Diretiva relativa à igualdade racial») e da Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional («Diretiva relativa à igualdade no emprego») [COM(2014) 2 final de 17 de janeiro de 2014].

Destaca-se, ainda, o facto de a possibilidade de justificação de um tratamento discriminatório limitar-se a “um requisito genuíno e determinante para o exercício da actividade profissional” (art. 4º).

Em termos terminológicos, começa por esclarecer que “rejeita as teorias que tentam provar a existência de raças humanas separadas, pelo que a utilização do termo ‘origem racial’ na presente directiva não implica a aceitação de tais teorias” (Considerando n. 6).

Esta diretiva acaba por seguir o mesmo formato das demais diretivas laborais no que toca aos conceitos basilares no âmbito da discriminação, nomeadamente, discriminação direta, indireta, assédio e medidas de ação positiva. Note-se que esta diretiva apresenta menor amplitude ante à anteriormente analisada, uma vez que somente se aplica ao emprego, o que deixa de fora, por exemplo, o regime de segurança social.

Merece ainda uma referência lateral a Diretiva 2000/78/CE, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional. Tem por objetivo combater a discriminação com fundamento na religião ou em convicções, na deficiência, idade ou orientação sexual. Observa-se que não se refere à raça e à origem étnica. Neste sentido, Mestre (2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 44-45) refere que

resulta que, perante o legislador europeu, estes fatores de discriminação não gozam da mesma amplitude de proteção do que a proporcionada ao “sexo” e à “raça/origem étnica”, muito embora os legisladores nacionais tenham vindo a alargar esse âmbito de proteção de forma a evitar lacunas de tutela.

Ambas as diretivas introduziram novidades significativas em matéria de igualdade de tratamento, designadamente, porque definem a discriminação direta e a indireta,9 9 De acordo com a Diretiva 2000/78, haverá discriminação direta quando uma pessoa seja, tenha sido ou possa vir a ser tratada de modo menos favorável do que outra em uma situação análoga; e haverá discriminação indireta quando uma disposição, um critério ou uma prática aparentemente neutros possa dar origem a uma desvantagem particular para certa pessoa com religião, deficiência, idade ou orientação sexual determinadas relativamente a outras pessoas; salvo se essa disposição, esse critério ou essa prática seja objetivamente justificado por uma finalidade legítima e os meios sejam adequados e necessários. Não só existe discriminação quando se trata de modo diferente as pessoas em situação semelhante, mas também quando pessoas que se encontram em situação diferente recebem o mesmo tratamento; esta forma de discriminação é conhecida como indireta. estabelecem considerações sobre o assédio, a possibilidade de qualquer indivíduo intentar uma ação judicial e/ou administrativa para salvaguarda do princípio da igualdade de tratamento e a inversão do ónus da prova. Prevê, ainda, a proteção contra represálias e a criação de um organismo especializado de luta contra a discriminação que exerça as suas funções de modo independente.

3. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO NO CONTEXTO LABORAL: A JURISPRUDÊNCIA DO TJUE E DO TEDH

A primeira decisão do TJUE, em matéria de raça e origem étnica, tendo por base a Diretiva 2000/43/CE, a qual era esperada com certa expectativa, é respeitante ao caso Feryn, de julho de 2008,10 10 Acórdão do TJUE Feryn, proc. C-54/07, de 10 de julho de 2008. a qual continua a se revelar de importância extrema na interpretação da diretiva.

Este acórdão resulta de uma queixa do organismo belga para a promoção da igualdade de tratamento, o qual solicitava que fosse reconhecida a adoção de uma política de contratação discriminatória pela empresa Feryn especializada na venda e instalação de portões. O pedido justificava-se pelas declarações públicas do diretor da empresa que, a propósito da necessidade de contratar pessoal, afirmava que não poderia empregar trabalhadores não autóctones para satisfazer as exigências dos clientes que tinham medo de lhes dar acesso ao seu domicílio para a execução dos trabalhos.

O TJUE concluiu que “uma declaração pública feita por uma entidade patronal no contexto de um processo de contratação, que tem por efeito recusar as candidaturas de pessoas de determinada origem étnica, constitui uma discriminação directa, na acepção do artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Directiva 2000/43/CE do Conselho”. E acrescenta ainda que

A entidade patronal, ao manifestar publicamente a sua intenção de não contratar pessoas de determinada origem racial ou étnica, exclui, com efeito, essas pessoas do processo de candidatura e do próprio emprego. Não está simplesmente a falar de discriminação, está a discriminar. Não está simplesmente a proferir palavras, está a praticar um “acto verbal”.

O conteúdo deste acórdão é bastante relevante, desde logo, porque proporciona uma interpretação ampla do conceito de discriminação direta, incluindo situações em que não existe uma vítima identificável do comportamento discriminatório, ou seja, uma pessoa afetada pela política discriminatória, mas, também, porque uma simples declaração de caráter abstrato pode configurar discriminação, na medida em que tais declarações podem dissuadir candidatos àquele posto de trabalho. Posteriormente, no acórdão Bougnaoui c. Micropole SA, de 14 de março de 2017, C-188/15, o TJUE, em um caso que tratava a discriminação em razão da religião, centrando-se na questão das preferências dos clientes, recusou a classificação desse elemento como um requisito ocupacional genuíno, nos termos do disposto no art. 4º, n. 1 da Diretiva 2000/78/CE ( MACHADO, 2016MACHADO, Susana Sousa. O cliente tem sempre razão? Breve comentário à recente jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o uso de lenço islâmico no local de trabalho. Prontuário de Direito do Trabalho, Lisboa, v. 1, n. 1, p. 127-147, 2016. , p. 127-147).

No acórdão Chez, estava em causa a instalação de contadores de eletricidade em postes a uma altura inacessível, em um bairro maioritariamente ocupado por habitantes de etnia Roma, quando em outros bairros esses contadores estavam instalados a uma altura normal. O TJUE considerou que essa prática era suscetível de configurar uma discriminação baseada na origem étnica. Apesar de admitir que os contadores foram alvo de abusos nesse bairro, considerou que a prática adotada pela empresa de eletricidade era desproporcional.

O TJUE esclareceu que o princípio da igualdade de tratamento também se aplica a todos aqueles que, embora não pertencentes a certa etnia, são alvo de um tratamento menos favorável ou de uma desvantagem em razão de uma medida discriminatória. Esclarece ainda que o facto de o bairro também ser habitado por pessoas que não pertencem à etnia Roma não exclui que se trate de uma prática discriminatória, já que a maioria dos habitantes pertence àquela etnia. Remeteu, no entanto, para o órgão jurisdicional nacional a análise de todas as circunstâncias, com vista a determinar se a prática discriminatória foi instituída por motivos étnicos e, assim, se constitui uma discriminação direta à luz da diretiva. Consequentemente, analisou a possibilidade de o órgão jurisdicional nacional não considerar a existência de discriminação direta e, nesse caso, admite que a prática controvertida poderia constituir uma discriminação indireta pelo facto de ter sido adotada para responder a abusos no bairro e basear-se em critérios aparentemente neutros que afetam maioritariamente pessoas da etnia Roma, colocando-os em uma situação de desvantagem comparativamente a outras pessoas que não pertencem a essa etnia.

No acórdão Jyske Finans11 11 Acórdão do Tribunal de Justiça, processo C-668/15, de 6 de abril de 2017. foi analisada a exigência feita por uma instituição de crédito de identificação adicional (fornecimento da cópia do passaporte ou da autorização de residência) a um cliente cuja carta de condução referia um país de nascimento que não é Estado-Membro da UE ou da Associação Europeia de Comércio Livre (European Free Trade Association – EFTA). Neste caso, o TJUE considerou que uma simples referência ao país de nascimento não é suficiente para enquadrar a questão no conceito de origem étnica para efeitos da Diretiva 2000/43/CE. Sublinha, com efeito, que “não se pode presumir que em cada Estado soberano exista uma e uma só origem étnica”, inexistindo qualquer relação de similitude entre ambos os conceitos. Na verdade, esclarece que “a Diretiva 2000/43 não tem em vista as diferenças de tratamento em razão da nacionalidade”.

Ainda em matéria de discriminação em razão da origem étnica, cabe salientar o acórdão do TJUE Wardyn,12 12 TJUE Wardyn, processo C-391/09, de 12 de maio de 2011. no qual se afirmou que não configura discriminação em razão da origem étnica uma legislação nacional segundo a qual os nomes e apelidos dos cidadãos “devem ser redigidos, nos actos de registo civil, apenas com recurso aos caracteres da língua nacional e sem utilizar sinais diacríticos, ligaturas ou outras alterações gráficas das letras do alfabeto latino empregues noutras línguas”, ao passo que os nomes de cidadãos de outros Estados devem ser redigidos nos mesmos documentos com caracteres latinos ( LOZANO, 2011LOZANO, Gérman M. Teruel. La jurisprudencia del Tribunal de Justicia de la UE sobre el reconocimiento del nombre en el espacio europeo. Notas sobre la construcción de un estatuto personal común como ciudadanos europeos y su impacto en el derecho internacional privado de los estados. Anales de Derecho, n. 29, p. 177-223, 2011. , p. 177).

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS: A EXIGÊNCIA DE UM TRABALHO DIGNO

Como vimos, a proibição de discriminação em função da raça e da origem étnica nem sempre é de fácil aplicação desde logo, pela dificuldade em definir os conceitos de raça e origem étnica ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 115). Tendo em conta a rejeição de teorias que procuram provar a existência de raças humanas distintas, no Considerando n. 6 da Diretiva 2000/43/CE, essa distinção torna-se ainda menos evidente. De acordo com Bruno Mestre, o acórdão Timishev “não rejeitou totalmente a atendibilidade das caraterísticas morfológicas na distinção entre os dois conceitos, muito embora tal referência apenas se possa fazer por via indireta, remissiva, no âmbito da jurisprudência”, presente no acórdão Chez em que se definiu etnia sem qualquer referência ao conceito de raça ( MESTRE, 2000MESTRE, Bruno. Direito antidiscriminação: uma perspetiva europeia e comparada. Porto: Vida Económica, 2000. , p. 115).

A somar-se a esta dificuldade, haverá ainda que referir a divergência entre a CEDH e a Diretiva 2000/43/CE, uma vez que esta exclui a nacionalidade do conceito de raça ou origem étnica ao passo que aquela, embora se refira à nacionalidade como uma categoria autónoma, foi interpretada pela jurisprudência do TEDH como admitindo a possibilidade de a nacionalidade representar um elemento constitutivo da origem étnica.

Na verdade, a litigiosidade com fundamento na discriminação em razão da raça ou da origem étnica tem sido reduzida na Europa. Destaca-se a jurisprudência alemã a respeito da discriminação de indivíduos de origem estrangeira com a justificação do deficiente domínio da língua alemã, tendo os tribunais enquadrado essas situações como discriminação em função da origem étnica. Neste domínio impera o princípio da proporcionalidade, visto que as exigências linguísticas feitas a cada trabalhador não devem ser superiores às que ele necessita para o desempenho da função. Vejamos alguns exemplos a seguir.

No acórdão do Tribunal de Trabalho de Hamburgo, de 26 de janeiro de 2010 (25 Ca 282/09), estava em causa um anúncio de emprego que exigia um falante de alemão sem sotaque, tendo o tribunal considerado que existia uma situação de discriminação indireta em função da origem étnica. Foi considerada justificada a exigência de um bom domínio da língua alemã tendo em conta que o posto de trabalho a preencher era de funcionário dos correios, no entanto, o domínio da língua sem sotaque não era uma exigência proporcional.

No acórdão do BAG, de 22 de junho de 2011 (8 AZR 48/10), o tribunal considerou que a exigência feita a um trabalhador estrangeiro, que exercia funções de atendimento ao público, para que frequentasse um curso de língua alemã não constituía discriminação direta em função da origem étnica, na medida em que o trabalhador em causa não ficaria em uma situação pior do que a de um trabalhador nativo que não dominasse a língua alemã. No entanto, sublinhou que a exigência de um determinado nível de conhecimento da língua poderia constituir uma forma de discriminação indireta em função da origem étnica, por os não nativos serem afetados de forma não proporcional. De qualquer modo, a discriminação indireta poderia justificar-se por razões objetivas nos casos em que o posto de trabalho exija determinado nível de proficiência da língua alemã para o exercício das funções.

Mais recentemente, o Tribunal de Trabalho de Frankfurt, em 29 de junho de 2017, (8 AZR 402/15) voltou a esclarecer que o requisito de o candidato ter o alemão como língua nativa nos anúncios de emprego é uma discriminação indireta com fundamento na origem étnica. Tratava-se de um caso de um estudante nascido na Ucrânia e falante nativo de russo que se candidatou a um emprego cujo anúncio exigia como requisito necessário ter o alemão como língua nativa. O tribunal considerou que o empregador, ao expressar o interesse em contratar apenas quem cresceu em um ambiente de língua alemã, independentemente do conhecimento real do idioma, constituía discriminação em razão da origem étnica. Os juízes consideraram, portanto, que não existia objetivo legítimo que justificasse o tratamento desigual.

Como ponto unificador de tudo o que vem sendo dito em matéria de proibição da discriminação não podemos esquecer a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, a do trabalhador. O homem que trabalha deve, a todo o momento, ver respeitada a sua dignidade e, dessa forma, ver garantida a igualdade de oportunidades para exercer livremente todos os seus direitos, o que exige que todos os trabalhadores recebam o mesmo tratamento.

A subordinação jurídica do trabalhador não pode corresponder à privação da liberdade e dignidade da pessoa ( REDINHA, 2017REDINHA, Maria Regina. A dimensão igualitária no trabalho digno. In: MÉNDEZ, Lourdes Mella; MARTÍNEZ, Silvia Fernández (coord.). Los actuales cambios sociales y laborales: nuevos retos para el mundo del trabajo. Berna: Peter Lang Publishing, 2017. 2 v. , p. 175). Esta dignidade não pode permitir a imposição dos poderes do empregador em uma área blindada como a que corresponde ao direito à dignidade da pessoa humana. Isso exige um tratamento decente ou digno na relação laboral, especialmente em tudo o que se relaciona com a tutela do princípio da igualdade e não discriminação ( PÉREZ e LOZANO, 2018PÉREZ, José Luis Monereo; LOZANO, Pompeyo Gabriel Ortega. Prohibición de discriminación. Temas Laborales: Revista Andaluza de Trabajo y Bienestar Social, n. 145, p. 327-370, 2018. , p. 368).

Recorde-se que o art. 4º da CEDH se refere à proibição da escravatura e do trabalho forçado e o art. 7º da DUDH estabelece que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação [...]”.

É necessário garantir ao trabalhador, independentemente da raça ou origem étnica, o direito a condições equitativas e satisfatórias de trabalho que correspondem ao trabalho digno, o qual deve garantir um direito do trabalho de um determinado modo e em determinadas condições, com respeito pela dignidade da pessoa que trabalha ( PÉREZ e LOZANO, 2018PÉREZ, José Luis Monereo; LOZANO, Pompeyo Gabriel Ortega. Prohibición de discriminación. Temas Laborales: Revista Andaluza de Trabajo y Bienestar Social, n. 145, p. 327-370, 2018. , p. 362).

Portanto, não é suficiente qualquer trabalho, mas um trabalho digno, o qual é essencial para a plena integração e participação na sociedade a que se pertence ( PÉREZ e LOZANO, 2018PÉREZ, José Luis Monereo; LOZANO, Pompeyo Gabriel Ortega. Prohibición de discriminación. Temas Laborales: Revista Andaluza de Trabajo y Bienestar Social, n. 145, p. 327-370, 2018. , p. 363). Um trabalho indigno, sem respeito pela igualdade, não permite alcançar essa finalidade integradora em uma ordem social democrática de convivência.

Assim, entendemos que o grande desafio das sociedades multiculturais reside na capacidade de respeitar os direitos humanos e, ao mesmo tempo, promover a inclusão das minorias. Para o efeito, é determinante a garantia do princípio da igualdade e a proibição da discriminação.

Referências

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  • SESSAREGO, Sandro. Racial Discrimination in Europe and Spain: A Multidimensional Perspective. Revista Internacional de Derechos Humanos, v. 10, n. 2, p. 145-180, 2020.
  • 1
  • 2
    Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica (JO L 180 de 19.7.2000, p. 22-26).
  • 3
    Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 16 de julho de 2015, CHEZ Razpredelenie Bulgaria AD contra Komisia za zashtita ot diskriminatsia (C-83/14).
  • 4
    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção), de 6 de abril de 2017, Jyske Finans A/S contra Ligebehandlingsnævnet (C-668/15).
  • 5
    O acórdão CHEZ Razpredelenie Bulgaria AD contra Komisia za zashtita ot diskriminatsia (C-83/14), ao referir-se ao conceito de origem étnica, efetua a seguinte remissão: “v., neste sentido, a propósito do artigo 14.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, TEDH, Natchova e o. c. Bulgária n.os 43577/98 e 43579/98, TEDH 2005-VII, e Sejdić e Finbci c. Bosnia-Herzegovina n.os 27996/06 e 34836/06, §§ 43 a 45 e 50, CEDH 2009”.
  • 6
    Timishev vs. Rússia, App. ns. 55762/00 e 55974/00, data de julgamento 13 de dezembro de 2005, n. 55.
  • 7
    O Conselho, em 2013, aprovou uma recomendação que insta à adoção de medidas em uma série de domínios, nomeadamente a luta contra a discriminação, a fim de reforçar a integração dos ciganos. Cfr. Recomendação do Conselho, de 9 de dezembro de 2013, relativa a medidas eficazes para a integração dos ciganos nos Estados-Membros (JO C 378, de 24 de dezembro de 2013, p. 1-7).
  • 8
    No âmbito do acompanhamento desta diretiva, cf. (1) Relatório da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu – Aplicação da Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica [COM(2006) 643 final de 30 de outubro de 2006]; (2) Recomendação do Conselho, de 9 de dezembro de 2013, relativa a medidas eficazes para a integração dos ciganos nos Estados-Membros (JO C 378 de 24.12.2013, p. 1-7); (3) Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho: Relatório conjunto sobre a aplicação da Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica («Diretiva relativa à igualdade racial») e da Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional («Diretiva relativa à igualdade no emprego») [COM(2014) 2 final de 17 de janeiro de 2014].
  • 9
    De acordo com a Diretiva 2000/78, haverá discriminação direta quando uma pessoa seja, tenha sido ou possa vir a ser tratada de modo menos favorável do que outra em uma situação análoga; e haverá discriminação indireta quando uma disposição, um critério ou uma prática aparentemente neutros possa dar origem a uma desvantagem particular para certa pessoa com religião, deficiência, idade ou orientação sexual determinadas relativamente a outras pessoas; salvo se essa disposição, esse critério ou essa prática seja objetivamente justificado por uma finalidade legítima e os meios sejam adequados e necessários. Não só existe discriminação quando se trata de modo diferente as pessoas em situação semelhante, mas também quando pessoas que se encontram em situação diferente recebem o mesmo tratamento; esta forma de discriminação é conhecida como indireta.
  • 10
    Acórdão do TJUE Feryn, proc. C-54/07, de 10 de julho de 2008.
  • 11
    Acórdão do Tribunal de Justiça, processo C-668/15, de 6 de abril de 2017.
  • 12
    TJUE Wardyn, processo C-391/09, de 12 de maio de 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    20 Jan 2022
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