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A “criminosa” está aqui? A pergunta pela mulher em artigos sobre tráfico de drogas de uma revista de Ciências Criminais brasileira

IS THE “FEMALE OFFENDER” HERE? THE WOMAN QUESTION IN ARTICLES ABOUT DRUG TRAFFICKING IN A BRAZILIAN JOURNAL OF CRIMINAL SCIENCES

Resumo

Este artigo tem como objetivo mapear e discutir as representações construídas em torno da “criminosa” em um periódico das Ciências Criminais brasileiras, bem como demarcar ausências dessa categoria, a partir de um método jurídico feminista. Para tanto, utilizamos a análise documental, recortando uma amostra composta de artigos da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCrim) publicados nos últimos vinte anos com a temática do comércio ilícito de entorpecentes. O material foi lido sob a ótica da técnica de análise de conteúdo, direcionada pela proposta de Katharine Bartlett em Feminist Legal Methods. Ao final, no contexto de crescente aumento da criminalização da mulher e do interesse pelo tema, concluímos que, apesar de a categoria “criminosa” estar presente em grande parte da amostra, ela foi mobilizada mais de forma descritiva - para a composição de um cenário - do que como categoria analítica, a partir da reflexividade sobre gênero e crime.

Palavras-chave
Criminosa; criminalidade feminina; Ciências Criminais; tráfico de drogas; método legal feminista

Abstract

This work aims to map and discuss the representations constructed around the “female offender” in a Brazilian Criminal Sciences journal, as well as to demarcate absences of this category, using a feminist legal method. For this, we used the documentary analysis, cutting a sample composed of articles from the Brazilian Journal of Criminal Sciences published in the last twenty years with the theme of the illicit trade in narcotics. The material was read through the content analysis technique, directed by Katharine Bartlett’s proposal in Feminist Legal Methods. In the end, in the context of a growing increase on women’s criminalization and in the interest on this theme, we conclude that, although the “female offender” category is present in most of the sample, it was mobilized more descriptively - for the composition of a scenario - than as an analytical category, by the reflexivity on gender and crime.

Keywords
Female offender; female criminality; Criminal Sciences; drug trafficking; feminist legal method

Introdução

As duas últimas décadas foram marcadas por um aumento exponencial do encarceramento feminino no Brasil, impulsionado pela criminalização das mulheres pela prática do comércio ilegal de drogas. Nesse período, aumentaram também as produções em torno da mulher encarcerada.1 1 Júlia Ferro Bucher-Maluschke, Jonas Silva e Isabela Brito de Souza (2019) realizaram uma revisão dos estudos de mestrados e doutorados sobre o cárcere feminino entre os anos 2006 e 2016, observando a presença destes especialmente no campo da Psicologia, das Ciências Sociais e do Serviço Social. Já Alessandra Teixeira e Hilem Oliveira (2017) apresentaram o estado da arte das pesquisas sobre encarceramento feminino e maternidade, que indicou uma consistente produção nos últimos vinte anos no Brasil. Se os estudos prisionais com abordagens de gênero são mais recentes, o estudo referente à mulher “criminosa”2 2 Utilizamos aspas para nos referirmos à “criminosa” como forma de estranhar essa etiqueta atribuída à mulher autora de delitos, empregada em diversas instâncias de poder no Direito - policial, judiciária, penitenciária, intelectual - e que, como explica Ana Gabriela Braga (2015, p. 529), passa a compor parte importante da subjetividade das mulheres que enfrentam a legislação penal, sobrepondo-se a outros papéis sociais que formam sua identidade. tem raízes antigas, uma vez que já estava presente nos trabalhos positivistas do século XIX.

Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero publicaram, em 1893, La donna delinquente​​, la prostituta e la donna normale, em que enunciam a dupla excepcionalidade da mulher delinquente: como criminosa, ela é excepcional em relação à sociedade não criminosa, e, como mulher, é excepcional diante do número total de criminosos. Nessa perspectiva teórica, as marcas da degeneração feminina (que levariam a mulher ao desvio, ao crime ou à prostituição) aparecem diretamente relacionadas à construção do gênero mulher (LOMBROSO e FERRERO, 2017LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. A mulher delinquente: a prostituta e a mulher normal. Curitiba: Antonio Fontoura, 2017. E-book., p. 433).

No Brasil, os estudos criminológicos positivistas de Nina Rodrigues sobre a mulher desviante têm a raça como um fator central de diferenciação entre as “criminosas” e a mulher “civilizada”, “a partir de uma contraposição da moralização de mulheres brancas e negras/mestiças e indígenas” (FRANKLIN, 2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e Criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da Criminologia positivista de Nina Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2017., p. 139). Nesse sentido, a representação da “criminosa” é formada com base na figura das mulheres negras “infanticidas, prostitutas, amorais, aborteiras” (FRANKLIN, 2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e Criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da Criminologia positivista de Nina Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2017., p. 140).

Atualmente, a infiltração do paradigma de gênero e a consolidação de uma “Criminologia feminista” (CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.; MENDES, 2017MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.) abrem espaço para trabalhos que destacam a importância da inserção do gênero, além de outros marcadores sociais da diferença, como categorias de análise das Ciências Criminais. Elas também compartilham da crítica às visões biologizantes e essencialistas do feminino como explicação para a criminalização ou a vitimização de mulheres.

Pesquisas recentes (PRANDO, 2012PRANDO, Camila Cardoso de Mello. O saber dos juristas e o controle penal: o debate doutrinário na Revista de Direito Penal (1933-1940) e a construção da legitimidade pela defesa social. 2012. 294 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.; FRANKLIN, 2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e Criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da Criminologia positivista de Nina Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2017.; GINDRI, 2018GINDRI, Eduarda Toscani. As disputas dóxicas no campo da Revista Discursos Sediciosos (1996-2016): metacriminologia, engajamento político, e os debates sobre raça e gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2018.) demonstram a importância de analisar os discursos e as representações construídos pelas Ciências Criminais, a fim de entender o lugar ocupado por pesquisadores e pesquisadoras no campo, sua relação com o objeto ou sujeito de estudos e o quanto avançamos (ou não) no tratamento de determinados temas.

Camila Prando (2012PRANDO, Camila Cardoso de Mello. O saber dos juristas e o controle penal: o debate doutrinário na Revista de Direito Penal (1933-1940) e a construção da legitimidade pela defesa social. 2012. 294 f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.) utiliza como fonte de pesquisa as publicações da Revista de Direito Penal entre os anos 1933 e 1940 para entender a formação desse conhecimento no Brasil dos anos 1930 e as discussões que desembocaram no Código Penal de 1940. Eduarda Gindri (2018GINDRI, Eduarda Toscani. As disputas dóxicas no campo da Revista Discursos Sediciosos (1996-2016): metacriminologia, engajamento político, e os debates sobre raça e gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2018.) também explora um periódico da área, a revista Discursos Sediciosos, e suas publicações entre 1996 e 2016, e indaga sobre padrões de raça e gênero implícitos nas disputas do campo. Naila Franklin (2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e Criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da Criminologia positivista de Nina Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2017.) tem como fonte de pesquisa cinco obras de Nina Rodrigues, publicadas entre 1894 e 1933, e as utiliza para compreender como esse autor construiu discursos de controle social racializadores em relação às mulheres.

Neste artigo, objetivamos mapear e discutir as representações construídas em torno da “criminosa”, bem como pensar o lugar dessa categoria, a partir de um método jurídico feminista. Buscamos contribuir para a sedimentação dos estudos de gênero no Direito ao pensar as elaborações acerca da autoria feminina em um espaço de produção e divulgação científica, relacionando-as com as construções, expressas ou implícitas, dos marcadores sociais da diferença em torno da figura da “criminosa”. Para tanto, utilizamos a técnica de análise documental e, como fonte de pesquisa, um relevante periódico da área no país, a Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCrim).

Estabelecemos dois critérios para constituição da amostra: temporal e temático, relacionados entre si na medida em que nos interessa pensar a produção sobre gênero e criminalização em diálogo com o aumento do encarceramento feminino nas últimas décadas, impulsionado pela guerra às drogas. Selecionamos, então, artigos publicados entre os anos 2000 e 2019 que tivessem o tráfico de drogas como tema. Esse corpus empírico foi lido sob a ótica da técnica de análise de conteúdo, direcionada pelo método feminista da autora estadunidense Katharine Bartlett (1990BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Cambridge, v. 103, n. 4, p. 829-888, fev. 1990.), sistematizado por ela em Feminist Legal Methods.

Este artigo está dividido em quatro seções. Na primeira, apresentamos um panorama das interações entre feminismos, Direito e Ciências Criminais, e destacamos os obstáculos enfrentados pelas pesquisadoras para conciliar seus trabalhos na agenda dos dois últimos campos. Na segunda, discutimos as questões metodológicas em torno da pesquisa que dá origem a este artigo, e apresentamos o método de Bartlett e como ele é transportado para a pesquisa.

Na terceira e na quarta seções, descrevemos alguns dos resultados alcançados com a investigação. Partindo da “pergunta pela mulher”, primeiro eixo do método legal feminista de Bartlett, observamos que os questionamentos nele contidos poderiam ser respondidos em dois sentidos. Assim, primeiro, analisamos a influência da linguagem para a construção de representações simplistas e figurativas da “criminosa”, bem como as lacunas nas reflexões em torno da autoria feminina, quando comparadas à figura do “criminoso”. Já em um segundo plano, observamos como a “criminosa” aparece (ou não) no corpus empírico, a partir tanto de uma análise quantitativa, da ocorrência das palavras “mulher” e “mulheres” nos textos, quanto da observação dos limites das discussões tratadas nos artigos.

Por último, mas não menos importante do ponto de vista de uma escrita feminista, cabe justificar a escolha pela linguagem em relação à classificação de gênero dos substantivos e das pessoas no decorrer deste texto. Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995., p. 72) faz referência à gramática como um mecanismo para os feminismos, uma forma de distinção que é “ao mesmo tempo explícita e plena de possibilidades não examinadas. Explícita porque o uso gramatical envolve regras formais que resultam da atribuição do masculino e/ou do feminino”, ao mesmo tempo que permite a criação de linguagens “sem sexo” ou “neutras”.

Nesse sentido, ainda em uma linguagem binária (que classifica as palavras e as pessoas como masculinas ou femininas, sem o uso de neologismos de uma linguagem neutra), adotamos a duplicidade de gênero como forma de flexioná-la, buscando escapar do “masculino universal”, que é a regra, e dos apagamentos que ele pode proporcionar.

1. O Direito e as Ciências Criminais têm gênero? Feminismos e o campo jurídico-criminal

Na história do movimento feminista, o interesse pelo Direito foi uma constante. Atualmente, os estudos feministas sobre o Direito - e no Direito - estão difundidos globalmente, seja pela inserção do pensamento feminista na formação jurídica, seja pela produção teórica das feministas às margens do Direito e em outras áreas do conhecimento, e pelo ativismo jurídico feminista (SILVA, 2019SILVA, Salete Maria da. Feminismo jurídico: um campo de reflexão e ação em prol do empoderamento jurídico das mulheres. Gênero e Direito, [s. l.], v. 8, n. 3, p. 127-150, 2019., p. 128).

Desenvolveram-se nos Estados Unidos os primeiros estudos feministas na chave “Gênero e Direito” - lá denominados Feminist Jurisprudence ou Feminist Legal Studies (LERUSSI e COSTA, 2017LERUSSI, Romina Carla; COSTA, Malena. Los feminismos jurídicos en Argentina. Notas para pensar un campo emergente. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 1-13, 2017., p. 1; SEVERI, 2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. 240 f. Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017., p. 46). Autoras como Catherine Mackinnon, Katharine Bartlett, Carole Pateman, Angela Harris e Kimberlé Crenshaw são consideradas algumas das precursoras da crítica feminista ao Direito elaborada a partir da década de 1980 (RAMOS, 2020RAMOS, Marcelo Maciel. Teorias feministas e teorias queer do Direito: gênero e sexualidade como categorias úteis para a crítica jurídica. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2020.). Entre suas principais pautas estavam a denúncia de seu caráter androcêntrico, a desvalorização das mulheres no campo, a importância da interdisciplinaridade e a aproximação entre a teoria jurídica e a prática militante nas discussões sobre justiça (SEVERI, 2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. 240 f. Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017., p. 47).

Na América Latina, a entrada das feministas no campo jurídico vinculou-se às lutas pela promoção de direitos humanos com enfoque de gênero, por meio de mudanças legislativas que pudessem alterar aspectos variados de suas vidas - social, familiar, de trabalho, sexual, etc. (LERUSSI e COSTA, 2017LERUSSI, Romina Carla; COSTA, Malena. Los feminismos jurídicos en Argentina. Notas para pensar un campo emergente. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 1-13, 2017., p. 2). Ao mesmo tempo que os debates acadêmicos latino-americanos, a partir da década de 1990, sofreram influência dos trabalhos estadunidenses (LERUSSI e COSTA, 2017LERUSSI, Romina Carla; COSTA, Malena. Los feminismos jurídicos en Argentina. Notas para pensar un campo emergente. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 1-13, 2017., p. 5), as teorias desenvolvidas aqui não incorporaram acriticamente as produções dos países centrais.

Os estudos feministas em geral assumem uma postura de desconfiança e crítica em relação ao Direito, e transitam entre “a denúncia, a reformulação, a desconstrução e o uso estratégico do saber/fazer jurídico” (SILVA, 2019SILVA, Salete Maria da. Feminismo jurídico: um campo de reflexão e ação em prol do empoderamento jurídico das mulheres. Gênero e Direito, [s. l.], v. 8, n. 3, p. 127-150, 2019., p. 131). Ao questionar se “o Direito tem gênero”,3 3 Em “A mulher do discurso jurídico”, Carol Smart (2020, p. 1421) realiza um “mapeamento da teoria feminista sociojurídica”, a fim de discutir como o Direito é gendrado. Para tanto, ela divide a teoria em três estágios de interpretação do tema: “[...] o direito é sexista”, “o direito é masculino” e “o direito é gendrado” (SMART, 2020, p. 1422). Carol Smart (2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020.) entende que ele não apenas reproduz desigualdades estruturais e desqualifica os discursos feministas, mas também é produtor de discursos e padrões identitários marcados pelo gênero e outros marcadores sociais da diferença. É, portanto, “gendrado”.4 4 O uso do termo “gendrado” segue o sentido utilizado pelas tradutoras do texto “The Woman of Legal Discourse”, publicado em 2020 pela Revista Direito e Práxis. Nessa publicação, as autoras utilizam a expressão como tradução possível para o termo “gendered” (a forma nominal de “gender”). Essa é uma constatação importante, uma vez que contribui para a desconstrução da ideia de um Direito neutro, objetivo e imparcial, sempre capaz de dar respostas corretas (SEVERI, 2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. 240 f. Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017., p. 72).

A partir do reconhecimento nada ingênuo do “poder do Direito”, depreende-se uma visão estratégica para o feminismo jurídico: pensar o Direito não só como uma ferramenta de luta, mas principalmente como um lugar a ser disputado (SMART, 2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1420). Em uma analogia a Audre Lorde (2019LORDE, Audre. Irmã outsider. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019., p. 137), ainda que as ferramentas do mestre não derrubem a casa-grande, cabe o reconhecimento de que o Direito é uma arena de poder, na qual se produzem gênero e outras hierarquias sociais e raciais. Parte da aposta do projeto jurídico-feminista é ocupar a “casa-grande” para construir as próprias ferramentas.

Uma das manifestações da ideia de que o Direito é “gendrado”, discutida por Smart e outras autoras (COSTA, 2014COSTA, Malena. El pensamiento jurídico feminista en América Latina. Escenarios, contenidos y dilemas. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, [s. l.], n. 2, p. 24-35, 2o sem. 2014.; CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.), é a produção de uma identidade fixa para a categoria mulher, a partir de sistemas classificatórios calcados no gênero e na sexualidade. Smart diferencia as construções discursivas do Direito sobre a “Mulher”, tomada em oposição ao “Homem”, daquelas criadas em torno de “um tipo de Mulher”, que pode compreender a criminosa, a prostituta, a solteira, a infanticida, etc. (SMART, 2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1431, grifo da autora).5 5 Mantemos o uso das expressões “Mulher”, “Homem” e “tipo de Mulher” com maiúsculas, da forma como apresentado no texto de Smart. Entendemos que o uso desse recurso possibilita que se evidencie a categoria que se inscreve a partir desses substantivos.

Nessa construção dupla, mas simbiótica, os discursos jurídicos tomam um tipo específico de mulher a ser comparado com outros tipos, diferenciando-os positiva ou negativamente, tal como a tipologia elaborada por Lombroso e Ferrero (2017LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. A mulher delinquente: a prostituta e a mulher normal. Curitiba: Antonio Fontoura, 2017. E-book.) em torno da “mulher normal”, “mulher delinquente” e “prostituta”. Entretanto, como pano de fundo comum está sua oposição em relação ao “homem”: “dessa maneira, ela pode ser uma mulher desviante por conta da distância que a separa das outras mulheres, mas, simultaneamente, ela celebra a diferença natural entre Mulher e Homem” (SMART, 2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1431).

No mesmo sentido, Malena Costa (2014COSTA, Malena. El pensamiento jurídico feminista en América Latina. Escenarios, contenidos y dilemas. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, [s. l.], n. 2, p. 24-35, 2o sem. 2014.), em diálogo com Alberto Bovino, elabora a noção de “mulher normativa” como uma abstração homogeneizada de um coletivo que é complexo, garantindo a proteção do Direito, pela lei, a uma figura que não corresponde às experiências e necessidades da realidade da maioria das mulheres. Cria-se, assim, uma ideia de proteção e abrangência jurídica que é falsa (COSTA, 2014COSTA, Malena. El pensamiento jurídico feminista en América Latina. Escenarios, contenidos y dilemas. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, [s. l.], n. 2, p. 24-35, 2o sem. 2014., p. 28).

Tais construções de gênero no âmbito jurídico requerem a assunção de uma posição dupla dos feminismos: ao mesmo tempo que é necessário negar tais posições deterministas e padronizadas da “mulher”, não se pode ignorar as constantes conformações produzidas pelos discursos de poder (CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020., p. 280), devendo-se pensar nas estratégias pelas quais “a Mulher e as mulheres são trazidas à existência” (SMART, 2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1430) pelo Direito.

As figuras da “criminosa” e da “vítima” como “tipos de mulher” das Ciências Criminais também são “gendradas”. Priscilla Placha Sá (2016SÁ, Priscilla Placha. As ciências penais têm sexo? Têm, sim senhor! Boletim IBCCrim, n. 280, mar. 2016. Disponível em: Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5726-As-ciencias-penais-tem-sexo-Tem-sim-senhor . Acesso em: 6 jul. 2021.
https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_a...
), ao perguntar se “as Ciências Penais têm sexo”, responde positivamente, caracterizando-as como “a mais masculina do ‘mundo do Direito’”.6 6 A partir da leitura do texto de Sá (2016), em conjunto com as discussões trazidas por Smart (2020) no texto “A mulher do discurso jurídico”, entendemos que suas reflexões estão mais atreladas à segunda abordagem descrita por Smart, de que o Direito é “masculino”, uma vez que mantém posições binárias entre o masculino e o feminino. Apesar disso, a exposição da autora é ilustrativa do cenário das Ciências Criminais, especialmente do ponto de vista da dogmática penal. Essa identificação, segundo ela, dá-se pela presença masculina - e pela ausência da feminina - nos espaços de produção de conhecimento no campo e pelo que é gerado a partir dessa produção. No mesmo caminho, outras pesquisas têm demonstrado a ausência da mulher como tema, do gênero como categoria e a presença do masculino como formador de discursos (ANDRADE, 2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.; DINIZ, 2015DINIZ, Débora. Pesquisas em cadeia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 573-586, jul./dez. 2015.; MENDES, 2020MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020.; CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.). Tendo em conta esse cenário, as feministas buscam inserir-se no campo das Ciências Criminais.

A entrada do pensamento feminista na Criminologia se destaca com o desenvolvimento da ideia de uma “Criminologia feminista” como proposta alternativa, “documentando a repetida omissão, a falsa representação das meninas, adolescentes e mulheres na pesquisa criminológica e examinando os crimes por elas cometidos para corrigir as tradicionais metodologias masculinas” (CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020., p. 219).

Analisando a Criminologia no Brasil, Carmen Hein de Campos (2020CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020., p. 260) critica a visão de autores que entendem a Criminologia feminista (ou o paradigma de gênero) como dependente dos paradigmas do que se convencionou nomear Criminologia Crítica por aqui.7 7 No Norte global, a denominação “crítica” como qualitativo de correntes criminológicas não está historicamente atrelada à tradição materialista histórica como no Brasil; funciona como “an umbrella term for a variety of criminological theories and perspectives that challenge core assumptions of mainstream (or conventional) criminology in some substantial way and provide alternative approaches to understanding crime and its control” (FRIEDRICHS, 2009, p. 210). Isso porque, desde essa concepção, nega-se a cientificidade das teorias que se desenvolvem de forma independente, bem como se dificulta a possibilidade de crítica também a essa corrente criminológica.

Além de ter gênero, o campo acadêmico brasileiro também é racializado. Thula Pires (2017PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia Crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 25, v. 135, p. 541-562, set. 2017.) analisa o pacto narcísico em torno das narrativas da Criminologia brasileira e nos provoca a repensar seus impactos na produção de conhecimento criminológico no país. Ao afirmar que “não basta dizer que há seletividade racial e de gênero no modo de atuação dos órgãos de justiça criminal” (PIRES, 2017PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia Crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 25, v. 135, p. 541-562, set. 2017., p. 542), a autora denuncia a insuficiência das narrativas criminológicas que não ultrapassam as abordagens do negro e da negra como “tema” e dos estereótipos criados a partir delas (PIRES, 2017PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia Crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 25, v. 135, p. 541-562, set. 2017., p. 548).

Já no Direito Penal, observa-se a influência do positivismo jurídico,8 8 Importante diferenciar as correntes denominadas positivistas dentro da Criminologia, como é o caso das produções de Lombroso e Ferrero, citadas na introdução, e do positivismo jurídico desenvolvido na dogmática penal. O primeiro é identificado por Rosa del Olmo como um precursor dos estudos criminológicos. Tinha como objeto o “homem delinquente” e significou uma virada em favor do determinismo, com a atenção focada no pessoal e psicológico (OLMO, 2004, p. 38-39). Já o positivismo na dogmática pode ser descrito como “uma concepção do trabalho do jurista segundo a qual o que se diz do direito deve corresponder […] ao que dizem as normas ditadas pelo legislador” (MENDES, 2020, p. 75). Identifica-se, portanto, com a manifestação máxima do princípio da legalidade, em que os enunciados da dogmática só poderiam ser aceitos se atrelados a expressões “juridicamente verdadeiras”, lastreadas na norma e exteriorizadas por meio de locuções como “segundo a lei […]” (MENDES, 2020, p. 75). em que a legalidade opera como fundamento máximo de legitimidade científica, por meio do desenvolvimento de técnicas e pressupostos para sua aplicação, e exclui de seu âmbito aquilo que se afasta de um estudo dogmático (CACICEDO, 2019CACICEDO, Patrick Lemos. Ideologia e Direito Penal. 2019. 236 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019., p. 18). A dogmática penal, ao (re)produzir conceitos e institutos universalizantes, como é o caso do ideário de gênero constituído nas categorias “homem médio”, “cidadão de bem” e “mulher honesta”, reveste o discurso jurídico de qualidades como neutralidade e isonomia, invisibilizando as estruturas que produzem e são produzidas por tais conceitos, institutos e sujeitos.

Nos estudos sobre a criminalização de mulheres, tais problemas influenciam no desinteresse daqueles que produzem Ciência Criminal em tratar da criminalidade feminina ou pesquisar a partir de questões de gênero (BARCINSK, 2009BARCINSK, Mariana. Centralidade de gênero no processo de construção da identidade de mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas. Ciência & Saúde Coletiva, [s. l.], v. 14, n. 5, p. 1843-1853, 2009., p. 1844). E mesmo algumas das produções que se propõem a abordar o tema ainda se limitam a análises rasas, marcadas por caracterizações estereotipadas, pautadas em uma suposta natureza feminina e que reforçam lugares de pouca autonomia.

Nas últimas décadas, a aproximação entre a Ciência Criminal e os estudos feministas fez crescer o interesse por abordagens de gênero e por trabalhos sobre mulheres em relação ao sistema de justiça. Esta pesquisa é uma tentativa de entender essas interlocuções, perguntando pela “mulher criminosa” nas Ciências Criminais, e busca provocar questionamentos de ordem epistemológica e política acerca da constituição do saber criminológico na atualidade.

2. Considerações metodológicas

A pesquisa que dá origem a este artigo tem como objetivo mapear e analisar as representações construídas pelas Ciências Criminais sobre a “criminosa” nos últimos vinte anos - 2000 a 2019 - no Brasil, focando na mulher criminalizada pela prática do comércio ilícito de entorpecentes, que constitui maioria absoluta das mulheres encarceradas no país.

Partindo do pressuposto de Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995., p. 71) de que “as palavras, como as ideias e as coisas que elas pretendem significar, têm uma história”, realizamos análise documental de artigos de relevante periódico nacional da área criminal que tratavam do delito de tráfico de drogas, em busca da nomeação “criminosa”. O corpus empírico foi lido a partir da técnica de análise de conteúdo em conjunto com a proposta de metodologia feminista da autora estadunidense Katharine Bartlett, resultando no que denominamos uma “análise de conteúdo direcionada”.

A organização metodológica e a aplicação dessas técnicas de investigação trouxeram desafios especiais ao trabalho, o que resultou na realização de adaptações a partir da pesquisa exploratória. Em um primeiro momento, buscamos pensar o método de Bartlett na análise de textos dogmáticos (publicados no formato do que chamamos de “manuais”). Entretanto, enfrentamos as barreiras de uma dogmática penal que trabalha com sujeitos universais e não situados. A pergunta pela mulher resultou infrutífera nesse campo, na medida em que tivemos dificuldade de avançar muito além da constatação da sua ausência em uma construção discursiva abstrata, que tem o homem e o plural masculino como padrão.

Apesar da importância desse tipo de produção na formação de estudantes e juristas no país - uma vez que é bibliografia central dos cursos de graduação em Direito, assim como dos concursos para carreiras jurídicas -, sua proposta generalista, de descrição e interpretação das normas, não contempla as representações da criminosa. Porém, mais do que uma falha, a falta de reflexividade caracteriza esse saber jurídico tradicional, no encobrimento de posicionalidades e descorporificação de quem fala e dos sujeitos de quem se fala.

Diante dessa dificuldade, posicionamo-nos em um “entrecaminho” da dogmática e das desconstruções propostas pela crítica feminista9 9 A sistematização de métodos legais feministas parte de concepções críticas feministas, às ciências e ao Direito, que questionam lugares de universalidade e imparcialidade, em favor da posicionalidade (BARTLETT, 1990) e de uma racionalidade e objetividade feministas (HARAWAY, 1995), que concebem apenas conhecimentos situados, que levam em consideração as interações entre sujeito e “objeto” de estudos. No Direito, Bartlett direciona seu método para evidenciar possíveis vieses de seus operadores e operadoras e para o questionamento das “verdades” produzidas pelo discurso jurídico. ao selecionar como material de pesquisa trabalhos reunidos em uma produção científica na área das Ciências Criminais no país. A RBCCrim se situa como fonte enunciadora de um discurso acadêmico-jurídico que não está restrito ao Direito, ao mesmo tempo que é nessa área específica das Ciências Sociais que o nominativo Ciências Criminais encontra ressonância.10 10 Vera Regina Pereira de Andrade (2012, p. 96-97) classifica como Ciência Penal um modelo de integração entre as discussões presentes na Criminologia, no Direito Penal dogmático e nas Políticas Criminais. No mesmo sentido, Caíque Galícia (2017, p. 777) entende as Ciências Criminais como gênero que tem como espécies o direito penal, o processo penal e a Criminologia. Já Paula Alves (2016, p. 79), ao discutir a posição ocupada pelos criminólogos no meio acadêmico, considera que, apesar de estarem localizados majoritariamente no campo do Direito, é possível que se coloquem também em outros espaços, sendo esta uma questão em aberto no Brasil. A revista busca dialogar com os dois campos, sendo tanto referência para os “operadores do Direito” quanto fonte de estudos (e outras publicações) nas pesquisas de Ciências Criminais.11 11 No website do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a revista é descrita da seguinte forma: “A publicação apresenta pareceres e estudos sobre a dogmática jurídica e sua integração com os diversos campos do conhecimento, como criminologia, política criminal, antropologia, sociologia e psicologia” (disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/exibir/11; acesso em: 24 jan. 2021). Descrição semelhante aparece em suas “diretrizes para autores”.

Além disso, o periódico atendia aos objetivos de pesquisa por três motivos: por se enquadrar no lapso temporal que buscávamos (foi criada em 1992 e se mantém ativa até os dias de hoje); por ser um periódico temático das Ciências Criminais; e por reunir e representar o que seriam as produções de ponta na área no país, uma vez que está classificada no mais alto estrato da Capes (Qualis A1).

Outra adaptação metodológica realizada no percurso da pesquisa foi o estranhamento e a reelaboração da metodologia de Bartlett. Em Feminist Legal Methods, a autora busca sistematizar as críticas das epistemologias feministas e utilizá-las como alternativa aos métodos tradicionais de se pensar o Direito. Um método legal feminista parte da crítica de que as regras vigentes representam excessivamente as estruturas de poder existentes e, assim, valorizam a flexibilidade e a habilidade de identificar “pontos de vista ausentes” (BARTLETT, 1990BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Cambridge, v. 103, n. 4, p. 829-888, fev. 1990., p. 832).

São três os eixos metodológicos apresentados pela autora. No primeiro, denominado pergunta pela mulher, busca-se analisar o Direito como campo não neutro, que perpetua comportamentos sociais que relegam à mulher um lugar de subordinação. Para tanto, ela apresenta algumas perguntas que podem ser “feitas ao texto” em análise, entre as quais: “As mulheres foram negligenciadas nesse texto? Se foram, de que maneira isso aconteceu?” (BARTLETT, 1990BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Cambridge, v. 103, n. 4, p. 829-888, fev. 1990., p. 837).

O segundo, chamado raciocínio prático feminista, busca expor as múltiplas perspectivas de um problema e evita generalizações típicas da análise jurídica. Essa forma de pensar não nega a necessidade de certos graus de abstração e generalização no Direito, mas trabalha a partir das experiências das mulheres, especialmente pela necessidade de trazer outras questões relevantes para as análises jurídicas.

A tomada de consciência, terceiro eixo metodológico, é vista pela autora como um “metamétodo” que “[...] oferece uma subestrutura para outros métodos ao possibilitar que as feministas construam desde suas próprias experiências e de outras mulheres, utilizando-os para desafiar as versões dominantes” (BARTLETT, 1990BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Cambridge, v. 103, n. 4, p. 829-888, fev. 1990., p. 866). Ela atua por meio das interações e dos relatos de experiências vividas e da reflexão conjunta sobre elas (BARTLETT, 1990BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Cambridge, v. 103, n. 4, p. 829-888, fev. 1990., p. 863-864).

Pensar a aplicação de um método desenvolvido nos Estados Unidos, para análise das produções nacionais das Ciências Criminais exigiu sua “decolonização”, traduzindo-o para a realidade brasileira. Para isso, levamos em consideração aspectos como as peculiaridades de um Direito e Ciências Criminais inscritos na tradição da civil law, que têm como foco a lei e não os casos precedentes, afastando a corporalidade e substantividade dos parâmetros de justiça. Também consideramos a necessidade de incorporação de uma visão da teoria feminista decolonial e interseccional e, portanto, analisar questões que vão além da terminologia “mulher” ou “mulheres”, para falar de gênero em confluência com outros marcadores sociais da diferença.

Em relação a esse último aspecto, influenciadas pelas críticas feministas ao uso da categoria “mulher” e suas possibilidades de enquadramento (hooks, 2019hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.; HARRIS, GOMES e CONCEIÇÃO, 2020HARRIS, Angela P.; GOMES, Camilla de Magalhães; CONCEIÇÃO, Ísis Aparecida. Raça e essencialismo na Teoria Feminista do Direito. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p. 43-73, ago. 2020.), buscamos pensar a “pergunta pela mulher” em diálogo com o gênero como categoria analítica, constitutiva das relações sociais e que as significam como relações de poder (SCOTT, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995., p. 86). Além disso, mobilizamos a categoria mulher de uma perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 10, p. 171-188, 1o sem. 2002.), considerando que ela tenha correlação com raça, classe, nacionalidade, entre outros marcadores sociais da diferença. Partimos da concepção de que dialogar com o gênero na escrita feminista permite que evidenciemos os materiais e sujeitos estudados sem cair nos mesmos problemas das escritas tradicionais, ou seja, as visões unidimensionais, essencialistas e excludentes.

A aplicação do método feminista como técnica de análise de dados foi feita juntamente com a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.). Nesse sentido, a pergunta pela mulher e o raciocínio prático feminista12 12 Apesar de a autora trazer três eixos em seu método, a interpretação feita de seu texto, bem como as primeiras leituras do material seguindo o método legal feminista, demonstraram que o terceiro deles, a tomada de consciência, não se alinha às fases iniciais da pesquisa, de leitura dos documentos, categorização das unidades de análise e apresentação dos resultados. Como metamétodo, que busca a articulação dos demais eixos, a tomada de consciência tem papel estrutural. Assim, não foi traduzido em perguntas e utilizado diretamente nas análises, mas aparece como eixo que viabiliza o diálogo entre a amostra e a literatura feminista mobilizada, localizando os artigos temporal e historicamente, bem como permitindo sua desconstrução por meio dos demais métodos. foram utilizados como ferramentas interpretativas, que direcionaram a análise do material, bem como a formação de categorias.

A seleção dos artigos publicados na RBCCrim para composição do corpus empírico da presente análise foi feita a partir do uso dos termos de busca “tráfico de drogas” e “tráfico” aplicados no campo de busca on-line da revista. Assim, não objetivamos selecionar apenas as produções que abordassem a criminalidade feminina, mas todas aquelas que tivessem o comércio ilícito de entorpecentes como pano de fundo.

Já o recorte temporal da amostra abrangeu artigos publicados entre os anos 2000 e 2019, mapeando duas décadas de produção sobre o tema. O marco inicial se justifica pois é concomitante ao boom do encarceramento feminino no país, com taxas de aumento que ultrapassaram os 500% (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres. 2. ed. Brasília, 2018. Disponível em: Disponível em: https://conectas.org/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf . Acesso em: 24 fev. 2023.
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). Os termos de busca abrangeram os títulos, as palavras-chave, o sumário e o resumo dos artigos coletados.13 13 Em edições mais antigas da revista, os resultados se restringiam aos títulos dos artigos, o que, consequentemente, reduz a possibilidade de encontrar textos com as palavras buscadas. Como resultado, obtivemos um total de quinze edições da revista que traziam artigos referentes à temática, nas quais encontramos, após as examinar individualmente, 25 textos que tratavam do tráfico de drogas. Estes foram organizados numericamente (de 1 a 25) para análise. Após a leitura deles, selecionamos 19 que foram considerados centrais para as investigações.14 14 Os outros seis artigos não compõem essa fase de análise, pois trazem o tráfico de drogas apenas de passagem, povoando o universo mais amplo da “questão das drogas” com discussões sobre o consumo de drogas, o crime de associação para o tráfico e a formação de milícias. Ademais, um dos artigos trata do tráfico de drogas no contexto italiano.

A análise dos textos foi feita a partir da leitura individual de cada artigo da amostra com o auxílio de uma “ficha de leitura” criada por nós. Nela, ressaltamos aspectos que consideramos importantes para a busca de nossas respostas, bem como para entender o contexto em que as representações da “criminosa” se davam (ou não).15 15 A ficha contém os seguintes indicadores: a) “autor(a)” - com definição de gênero, raça, região de atuação, área de atuação e profissão, obtida pela busca nos currículos lattes e pelas descrições contidas nos textos; b) “palavras-chave” definidas no texto; c) “conceitos-chave” - pequenas expressões ou palavras destacadas pelas pesquisadoras a partir da leitura dos artigos, escolhidas pelos critérios de afinidade com as perguntas de Bartlett; relevância no contexto do artigo (por resumirem ideias ou aparecerem com frequência); frequência na literatura sobre o tema; d) “linguagem” - forma como autor(a) posiciona os sujeitos da análise (uso do masculino universal, emprego de flexões de gênero, etc.); e) “materiais e métodos” - objetivos, metodologia empregada na pesquisa e referenciais teóricos, quando explicitados; f) “eixos de Bartlett” - interpretação dos textos a partir da pergunta pela mulher/gênero raciocínio prático, buscando tecer considerações críticas a respeito da localização do sujeito considerado criminoso nesses textos, quando ela existe. Em um segundo momento, utilizamos o software Nvivo, a fim de organizar as categorias e explorar visualmente os resultados.

Selecionamos como unidade de análise adequada para a investigação palavras ou pequenas expressões presentes nos textos, que foram posteriormente categorizadas de forma a responder às questões referentes à “pergunta pela mulher” e ao “raciocínio prático feminista”. Além da categorização e da produção de inferências a partir das unidades de registro coletadas, também emprestamos da análise de conteúdo a observação de questões atinentes aos recursos linguísticos utilizados no texto.

A investigação aqui apresentada é pautada tanto em uma exploração quantitativa do uso das palavras “mulher” e “mulheres”, “criminosa” e “criminoso”, nos dezenove textos analisados, quanto em uma análise qualitativa desses artigos. Entretanto, dada a impossibilidade de abordar explicitamente todos os dezenove textos no espaço deste artigo, selecionamos os que consideramos mais significativos para as discussões que propomos. Para fins de organização, eles foram divididos tematicamente entre aqueles que tinham como objetivo tratar da criminalização de mulheres (ou utilizavam o recorte de gênero como um elemento central) e aqueles que não utilizavam esses recortes, por abordarem outros temas relacionados ao tráfico, conforme os Quadros 1 e 2.

Quadro 1 -
Artigos que não objetivam discutir a criminalização de mulheres
Quadro 2 -
Artigos que objetivam discutir a criminalização de mulheres

As duas seções que seguem são as respostas que obtivemos a partir da “pergunta pela mulher”.16 16 Este artigo é recorte de pesquisa de mestrado mais ampla, a qual empregou os métodos feministas de Bartlett da “pergunta pela mulher” e do “raciocínio prático feminista” como direcionadores das análises, como explicitado anteriormente. Neste artigo, restringimos o âmbito de análise para abranger precipuamente as discussões relativas à “pergunta pela mulher”. Entretanto, é importante considerar que esses métodos são interligados. Assim, o “raciocínio prático feminista” também pauta as discussões, na medida em que miramos a “criminosa” como uma sujeita capaz de romper com construções universalizantes acerca do gênero, a ser “conhecida” e entendida nos limites das representações do campo. Pensando nisso, as análises que se direcionam especificamente aos usos do termo “criminosa” também dialogam com esse método. Damos enfoque a aspectos linguísticos, aos usos da palavra “criminosa” no material e às análises feitas a partir do uso (ou não) do gênero como categoria, observando as discussões sobre a autoria feminina travadas nos textos. Ao investigar a construção da mulher acusada de crimes nos artigos, estranhamos a universalidade do gênero masculino nas construções discursivas, que leva ao apagamento da “criminosa”.

3. A “criminosa” está aqui? A pergunta pela mulher e a figuratividade da linguagem

As formas de nomeação pela linguagem sempre foram uma preocupação dos feminismos. Como aponta Joan Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995., p. 72), “na gramática, o gênero é compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um sistema socialmente consensual de distinções e não uma descrição objetiva de traços inerentes”. Questionamos seu uso, sua apropriação para a definição e a limitação de identidades, existências e culturas, o modo como “fazem dela uma arma que pode envergonhar, humilhar, colonizar” (hooks, 2008hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, set./dez. 2008., p. 858).

Partindo do pressuposto de que a linguagem não só representa, mas cria a realidade, ela é reivindicada como um “espaço de resistência” (hooks, 2008hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, set./dez. 2008., p. 859), de denúncia e de produção de epistemologias alternativas, essenciais para a construção de uma visão contra-hegemônica: “Mudar a maneira como nós pensamos sobre a linguagem e como nós a usamos necessariamente altera a maneira como nós sabemos o que nós sabemos” (hooks, 2008hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857-864, set./dez. 2008., p. 862).

O uso do masculino como universal, empregado para nomear toda a espécie, enquanto o feminino é recurso para demarcar o específico ou o particular, é uma das principais manifestações de poder masculino (FACIO e FRIES, 2005FACIO, Alda; FRIES, Lorena. Feminismo, género y patriarcado. Revista sobre enseñanza del Derecho de Buenos Aires, Buenos Aires, año 3, n. 6, p. 259-294, 2005., p. 283). Assim, uma forma de subversão das normas da língua portuguesa, além da adoção de uma linguagem neutra, ainda pouco aceita na escrita acadêmica, seria estabelecer o feminino como universal ou adotar estratégias de flexão de gênero, sendo esta especialmente relevante na escrita feminista. Pensando nisso, durante a leitura dos artigos, observamos as escolhas e as reflexões em torno da linguagem, e como elas produzem engendramentos próprios.

As escolhas linguísticas foram explicitadas apenas no texto 8, que trata das implicações de gênero na vida de adolescentes em atendimento socioeducativo. Nele, justificam-se as flexões de gênero trabalhadas a partir das relações de poder ligadas ao gênero que permeiam o cenário da investigação:

Os técnicos que atuam na socioeducação são, em sua maioria, assistentes sociais, psicológicos e pedagogos. Nesse texto, utilizo dois modos de falar: os técnicos serão referenciados em masculino, seguindo o domínio patriarcal da linguagem, visto que são atores do poder patriarcal. Eles movem a engrenagem da questão social em um marco de direitos, sob a ótica punitiva. As adolescentes, que também nomeio meninas, serão a referência em feminino. Utilizo adolescentes pois é a linguagem da política pública, que entende essa categoria entre os 12 e 18 anos. (ARTIGO 8, 2018)

No restante da amostra, identificamos outros três textos que trabalham com flexões de gênero ao longo de toda escrita (textos 9, 11 e 14), e dois deles se voltavam para análises sobre mulheres (9 e 11). Mesmo naqueles que tinham como objetivo tratar da criminalização de mulheres, o feminino foi usado de forma específica, normalmente em referências concretas a uma ou a mais mulheres, enquanto o masculino foi mobilizado para as análises em torno de criminalidade, sociedade e demais temas que permeavam os textos. No quadro geral dos artigos, o masculino “universal” aparece como estratégia mais frequente, sendo adotado em nove artigos.

O artigo 24 é ilustrativo dessa tendência. Apesar de não ter como objetivo tratar especificamente da criminalização feminina, mas do tráfico de drogas em geral, quase todas as citações diretas de pronunciamentos judiciais utilizadas no texto aludem a processos que têm mulheres como autoras. Isso, entretanto, não impede que se utilize o masculino universal no texto, ainda quando se refere ao perfil delas:

Outro elemento muito recorrente nos processos analisados é o perfil dos acusados. Em geral, os acusados são jovens [...].

No caso presente, além dos quatro papelotes de cocaína, encontrados com a ré [...] dentro do veículo gol preto tendo a ré colocado a cabeça no interior do automóvel e com ela além daqueles papelotes foram apreendidos R$ 40,00 [...]. A acusada e o menor, ambos desocupados, dedicavam ao nefando comércio de substância entorpecente. [...] declarou a apelada que não trabalhava “porque não sai para procurar” [sic] [...] A ré não trabalhava e não tinha nenhuma fonte de renda, sendo seu amásio um adolescente também sem profissão. [...] Não é crível que, não sendo ela viciada [...].

A justiça criminal oficializa determinada representação social, existente em nossa sociedade, sobre o traficante que o define como “pobre”, “desocupado”, “vagabundo” e “favelado”. (ARTIGO 24, 2009, grifo nosso)

Como exceção no “mundo” do crime, marcado pela masculinidade (DINIZ, 2015DINIZ, Débora. Pesquisas em cadeia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 573-586, jul./dez. 2015., p. 584), a “criminosa” aparece camuflada nas concepções universalizantes do “traficante”, mesmo quando é o sujeito dos processos, como acusada, ré, condenada, presa. O feminino tem lugar na linguagem de nossa amostra apenas quando se fala dos casos “específicos” das mulheres criminalizadas, das “peculiaridades” da autoria feminina.

Se a linguagem é mecanismo de “criação de realidades” e determina “o que existe e o que não existe” (FACIO e FRIES, 2005FACIO, Alda; FRIES, Lorena. Feminismo, género y patriarcado. Revista sobre enseñanza del Derecho de Buenos Aires, Buenos Aires, año 3, n. 6, p. 259-294, 2005., p. 282-283), a ausência de marcação linguística do feminino nos textos pode implicar também ausência de reflexão sobre a mulher como parte do contexto - de criminalização - retratado e das relações que ela estabelece com aquele espaço - com o “mundo do crime” ou com o “sistema de justiça criminal”.

Não é possível vislumbrar em quais aspectos ela faz parte daquela “universalidade” - de estatísticas, de teses e de perguntas - e de quais ela não participa. Incita-nos a questionar: a “criminosa” está aqui? Nesse sentido, o uso estratégico da linguagem possibilita demarcar a presença da “criminosa”, desenvolver reflexões sobre os significados dessa representação complexa e a inserção de temáticas tidas como específicas de gênero no debate criminológico mais amplo.

A maioria dos artigos, ao usar o universal masculino em suas análises, mobiliza de forma muito específica o termo “criminosa”. Recorrendo ao Nvivo, observamos que, apesar de a palavra “criminosa” estar presente em dez dos dezenove textos do corpus analítico, apenas em três ela é utilizada como substantivo, nomeando a pessoa (a “criminosa”). Nos outros sete, é empregada como forma de adjetivar ações, práticas, associações ou organizações (“ações criminosas”, “organizações criminosas”). Em contrapartida, a palavra “criminoso”, que aparece em treze textos, é utilizada como substantivo em nove artigos (o “criminoso”). Vemos, então, uma inversão em relação à nomeação feminina, que pode ser compreendida a partir da construção de categorias que têm o homem como padrão e sujeito universal.

Nos três textos que mencionam expressamente a “criminosa”, o termo está associado à ideia de rótulo, que enfatiza a “sub-humanidade” do corpo tido como “criminoso”:17 17 Sobre os usos das palavras “criminoso” e “delinquente” no Direito, tanto na academia quanto nos pronunciamentos judiciais e nas leis, Maíra Machado (2005) apresenta discussão em que ressalta a possibilidade de seu uso crítico, como forma de denominar etiquetas construídas socialmente, enquanto “‘Criminoso’ e ‘delinquente’, ao buscarem indicar o que uma pessoa é, não têm lugar no direito” (MACHADO, 2005, p. 88, grifo da autora).

Além do estigma normalmente atribuído àquele que delinque, a mulher desviante, em face dessa cultura patriarcal, carrega o rótulo de “criminosa”, bem como o de inconsequente e irresponsável (por agir sem pensar na criação dos filhos) e também acaba perdendo, perante os demais, a sua feminilidade, por praticar condutas socialmente atribuídas ao gênero masculino. (ARTIGO 6, 2018, grifo nosso)

No trecho anterior, pertencente a artigo que aborda o tráfico de drogas na cidade do Recife, o uso do termo “criminosa” entre aspas enfatiza sua demarcação como rótulo atribuído a algumas mulheres, o qual define representações específicas - de desvio - dentro das subjetividades que as constituem e dos papéis de gênero atribuídos a elas.

Nos artigos 7 e 13, que em seus títulos trazem as palavras “gênero” e “mulheres”, o termo “criminosa” também aparece no contexto das discussões sobre conformações de gênero, reproduzidas desde os estudos lombrosianos, sendo “criminosa” aquela que se afasta das representações relacionadas ao “feminino”:

Ademais, todavia, a mulher que fosse vista como criminosa já estava fora do perfil desejado pela sociedade, portanto, já se encontrava em uma condição indesejável, sendo retratada como uma aberração. (ARTIGO 7, 2018, grifo nosso)

Trata-se de um complexo de normas, agentes e agências que, autorizadas a determinar mulheres como criminosas, faz com que o rótulo a ela esteja aderido enquanto condição de sub-humanidade que se prolonga no tempo e no espaço, transcendendo os próprios limites temporais da pena. (ARTIGO 13, 2018, grifo nosso)

A ideia de rotulagem construída a partir do uso da palavra “criminoso” aparece, entretanto, com mais frequência nos artigos que tratam do tráfico de drogas de maneira ampla, por meio do recurso a expressões como “estereótipo”, “etiqueta” e “estigma”, criados em torno da figura do “traficante de drogas”, pensada no masculino. É o caso do texto 5, que realiza investigação empírica sobre como a prisão cautelar em casos de tráfico de drogas se insere nas dinâmicas de controle social:

O estereótipo criado em torno da figura do “traficante de drogas”, de ente acima de tudo perigoso, tem, assim, uma importante razão de ser, sendo útil às instâncias de controle que se valem dessa suposta periculosidade inerente para legitimar uma atuação de controle altamente seletiva e racializada. [...] Desse modo, embora representados pela mídia como a personificação do “mal”, são os “pequenos traficantes não violentos, primários, presos em flagrante sozinhos e desarmados” (BOITEUX, 2014, p. 84) que lotam as prisões brasileiras. São, em sua maioria, “jovens-homens-negros” (REIS, 2005), que ocupam as posições das franjas do tráfico, os que massivamente lotam as prisões. (ARTIGO 5, 2018, grifo nosso)

A figura do “traficante de drogas” tem como fator de destaque uma ideia de alta periculosidade, a qual não condiz com a realidade das pessoas efetivamente presas por esse delito. Essa abstratividade do “criminoso” também aparece no artigo 19, que critica a fundamentação judicial em condenações sobre tráfico de drogas: “Demonstrou-se que a baixa constitucionalidade da jurisprudência penal bandeirante é ancorada na imagem abstrata do traficante de drogas, produto não do caso concreto, mas da consciência do julgador” (ARTIGO 19, 2016, grifo nosso).

Essas construções discursivas remetem à discussão de Vera Regina Pereira de Andrade sobre as posições do masculino e do feminino no sistema penal, divididos entre o “cara - o anti-herói socialmente construído como criminoso” e a “coisa” - a figura objetificada, ligada a um estereótipo de passividade (ANDRADE, 2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012., p. 143). Nesse sentido, a figura do “criminoso” é desenhada com facilidade nas instâncias penais e reproduzida pela mídia e pela sociedade. Em relação a ela, a academia desenvolve posição crítica, que a descola da realidade nacional, que prende os “jovens-homens-negros”.

Já a mulher envolvida com o crime é menos representada na figura da “criminosa”, sendo mais comumente vista sob a perspectiva da “criminalizada”, o corpo utilizado para o transporte de drogas, a “substituível”, a “coisa”, como fala Andrade (2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.), que tem seu destino definido por outros. As críticas às construções sociais em torno da “criminosa” são mais pontuais e fazem referência às concepções positivistas, as quais, por sua vez, atribuem àquelas rotuladas dessa forma características masculinas, que se afastam também da ideia de “sujeito” para tratá-las como verdadeiros “monstros” (LOMBROSO e FERRERO, 2017LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. A mulher delinquente: a prostituta e a mulher normal. Curitiba: Antonio Fontoura, 2017. E-book., p. 433).

Essa perspectiva aparece em expressões como “condição de sub-humanidade” e “condição indesejável”, que apontam para hierarquias de gênero e humanidade que, por sua vez, não estão restritas aos discursos científicos do século XIX, mas aparecem com frequência nas entrelinhas dos discursos judiciais, policiais, midiáticos e científicos atuais. A ligação entre a literalidade das expressões utilizadas por Andrade (2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.) e as discussões apontadas até aqui nos faz pensar, então, na dificuldade enfrentada por aquelas e aqueles que investigam a autoria feminina em ultrapassar as barreiras das construções essencialistas sobre o “ser mulher”, que afastam a figura da “mulher” e da “criminosa”, não permitindo que se avance nas investigações sobre autoria feminina.

4. O que o corpus (não) diz sobre a “criminosa”?

A palavra “mulher” foi uma das mais utilizadas nos textos que compuseram a amostra, conforme registrou o recurso de contagem de palavras do software Nvivo. Nele, o termo, bem como sua variação para o plural (“mulheres”), apareceu 1.057 vezes nos dezenove artigos submetidos a análise. Assim, foi uma das 50 palavras mais frequentes nos artigos. A observação dessa frequência mostrou que, dos dezenove textos, catorze faziam referência à palavra “mulher”. Destes, nove tinham como objetivo discutir especificamente a criminalização feminina ou trabalhar temas correlatos ao tráfico a partir de perspectivas de gênero. É nesses artigos que está concentrada a imensa maioria das referências à mulher, com frequências de ocorrência que variaram entre 30 e 245 aparições por texto. Nos outros cinco, o número de referências é bem menor, com o uso da palavra no máximo oito vezes.

Esse dado nos causou surpresa, uma vez que as abordagens sobre a mulher não eram tão frequentes nos conceitos e nas palavras-chave dos artigos. Entretanto, confrontando esse panorama quantitativo com as análises qualitativas posteriores, percebemos que, em alguns textos, apesar da presença da palavra “mulher”, ela não aparecia acompanhada de reflexões teóricas, operando de forma figurativa, descritiva no contexto analisado.

Os cinco textos que não tinham como objetivo tratar da autoria feminina, mas que mencionavam a “mulher” (1, 5, 14, 19 e 24), faziam-no na descrição dos dados, para compor o cenário do sistema de justiça no Brasil. Nos excertos a seguir, elas aparecem como uma estatística que se destaca no encarceramento de pessoas pelo tráfico de drogas, sendo elas as que mais são presas por esse delito:

Em 2014, esse delito passou a representar 28% do total de tipos penais, sendo que entre as mulheres esse delito representa 58% dos tipos penais responsáveis pelo encarceramento (INFOPEN Mulher, 2014). (ARTIGO 5, 2018)

Os crimes ligados ao tráfico representam 26% dos registros entre os homens, enquanto entre as mulheres esse percentual atinge 62% (INFOPEN, 2016, p. 43). (ARTIGO 1, 2019)

Já nos outros três textos (14, 19 e 24), ela aparece na citação de outras pesquisas e falas de outras autoras e autores que mencionam “mulheres”, sem que, entretanto, ela seja o alvo das discussões do artigo. A presença da mulher no texto pode ser vista como “acidental”, uma vez que não é determinante para a análise proposta. Exemplo disso é o trecho a seguir, de texto que analisa casos de consumo e tráfico de drogas em São Paulo e em Portugal:

Pelo contrário, não têm relevância para a determinação da medida da pena o sexo do réu, o fato de ser ou não consumidor, o número de réus no processo e o número de tipos de droga apreendidas. A ausência de efeitos do sexo do réu enquadra-se nos resultados contraditórios de Harper, Harper & Stockdale (2002) que referenciam uma maior porcentagem de penas de prisão efetivas para as mulheres ainda que acompanhada por uma menor quantidade de pena de prisão, nos dois casos com pequenas diferenciações. (ARTIGO 14, 2018, grifo nosso)

Nos nove artigos da amostra que utilizavam o recorte de gênero e/ou a mulher autora de delitos como tema, também identificamos momentos de menor reflexividade. Em dois artigos que aplicavam a técnica de análise de julgados, os discursos do sistema de justiça ocupam grande parte do texto e pouco desnaturalizam as falas de seus operadores sobre traficantes e tráfico de drogas.

Exemplo dessa forma discursiva foi o uso reiterado, nesses artigos, de citações diretas, com trechos de decisões judiciais, sem espaço para considerações analíticas, como no texto 6, que partia de uma pesquisa empírica para identificar práticas de “preconceito de gênero” em decisões judiciais. Os trechos a seguir ilustram o entrelaçamento da escrita das autoras e as narrativas construídas pelo sistema de justiça sobre a criminalização feminina:

A maioria dos policiais é do sexo masculino, logo qualquer abordagem física realizada em uma mulher pode ser considerada como abuso. [...] Só em imaginar um estranho colocando as mãos nas partes íntimas desta, a qual, provavelmente está sendo coagida a abrir as pernas, já configura explícita violação à sua dignidade, à sua intimidade, à sua sexualidade.

Utilizando-se nomes fictícios para representar as acusadas, tem-se, para exemplificar o acima exposto, o que aconteceu com Patrícia: [...] Da mesma forma ocorre no processo de Milena. A mulher narrou que recebeu ordens de policiais militares para ficar completamente despida para que a revista fosse realizada -, além da que já tinha sido encontrada em sua residência: [...] Ainda sobre a violação da dignidade da mulher, eis o depoimento de um policial militar que abordou Janaína e foi testemunha em seu processo: [...]. (ARTIGO 6, 2018, grifo nosso)

O texto mantém essa abordagem para outros temas apresentados, como o testemunho policial, o interrogatório das rés nas audiências e os argumentos das sentenças que fundamentam suas condenações. O artigo 10 também faz uso da pesquisa empírica para entender o perfil socioeconômico e racial da mulher presa na posse de drogas, bem como sua classificação como usuária ou traficante:

A proprietária da casa, identificada nos autos do processo criminal por tráfico de drogas como uma mulher “parda escura”, com 35 anos de idade, ensino fundamental completo e “do lar”, é parte de uma narrativa que se assemelha à de muitas das outras mulheres dos mais de cem processos que consultamos em uma pesquisa que origina o presente trabalho. (ARTIGO 10, 2018, grifo nosso)

Nesses dois artigos, a “criminosa” é representada pela mulher que consta das estatísticas do sistema de justiça, cujas narrativas e subjetividades são constituídas nos arquivos judiciais. Esse tipo de saber pode ser lido como um avanço na tradução e na compilação do olhar e da voz do sistema de justiça sobre as mulheres, porém ainda há um longo caminho para estabelecer “criminosa” como categoria geral de análise nas Ciências Criminais.

Em outros dois artigos, que buscavam trabalhar a criminalização feminina e a categoria de gênero sob uma perspectiva teórica, com o uso de revisões bibliográficas, as conclusões não se centraram na reflexividade da mulher criminalizada. Neles (textos 9 e 13), foi possível perceber a adoção de uma postura prescritiva, de distinção entre o posicionamento normativo, especialmente de normas internacionais, e a realidade da criminalização feminina brasileira. O uso da palavra-chave “efetividade de regras internacionais” no excerto a seguir é um exemplo.

Assim, percebemos que, apesar das inovações legislativas, dos indultos e das decisões de nossa Corte constitucional que reafirmam a necessidade de se pensar o encarceramento feminino de forma diversa, e que demonstram a tentativa de se adequar às Regras de Bangkok, isso não implica em seu efetivo cumprimento pelos agentes que operam o sistema de justiça criminal. Embora as previsões legais e judiciais existam, há ainda o grande desafio de fazer com que ganhem efetividade na prática. (ARTIGO 13, 2018, grifo nosso)

A “pergunta pela mulher” feita por Bartlett não considera apenas a perspectiva da ausência da mulher como um sujeito de Direito, mas também como esse sistema, com forma e linguagem próprios, é capaz de definir quais são as experiências e os discursos relevantes sobre as mulheres, produzindo “verdades” sobre elas, como diz Carol Smart (2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020.). Trabalhar apenas dentro das “fronteiras do Direito” (MOSSMAN, 1986MOSSMAN, Mary Jane. Feminism and Legal Method: The Difference It Makes. Australian Journal of Law and Society, [s. l.], v. 3, p. 30-52, 1986., p. 44), sem o desafiar de maneira contundente, pode contribuir para a permanência de discursos sobre a autoria feminina que as mantêm como figuras simplistas, descritivas e não como uma representação complexa.

O trabalho de Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.) ajuda-nos a situar nosso campo de estudos. A autora classifica o uso do gênero no campo da história em duas abordagens: descritiva, “que se refere à existência de fenômenos ou de realidades, sem interpretar, explicar ou atribuir causalidade”, e causal, que “teoriza sobre a natureza dos fenômenos e das realidades, buscando compreender como e porque eles tomam as formas que têm” (SCOTT, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995., p. 74-75). Para a autora, nos usos descritivos do termo “gênero”, ele é “um conceito associado ao estudo de coisas relativas às mulheres”. ‘Gênero’ é um novo tema, um novo domínio de pesquisa histórica, mas não tem o poder analítico suficiente para questionar (e mudar) os paradigmas históricos existentes” (SCOTT, 1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995., p. 76).

Utilizamos essa tipologia para elaborar a segunda resposta à pergunta pela mulher. Trabalhos como os citados permitem a observação das representações produzidas pelo sistema de justiça, especialmente por magistrados, e a relevância destas para entender a partir de quais lentes as Ciências Criminais têm travado discussões atualmente. Ao mesmo tempo, mostram um retrato das Ciências Criminais, que ainda têm o masculino como universal e engatinham na questão da mulher e do gênero para além de uma abordagem descritiva.

Na trilha de Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, [s. l.], v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.), podemos afirmar que a possibilidade de produzirmos um saber que interrogue e transforme os paradigmas jurídicos está ligada à capacidade de mobilizarmos o gênero e os demais marcadores sociais da diferença como formas de compreender as produções do sistema de justiça criminal, avançando, assim, na composição de um quadro analítico que não só mencione a mulher (ou o gênero, a raça, a classe), mas que interprete, explique ou atribua causalidade a partir dessas categorias.

Importante ressaltar que, ao nos guiarmos pela pergunta pela mulher, não consideramos que essa questão ou mesmo que as análises de gênero e/ou feministas sejam necessárias, aplicáveis ou mesmo pertinentes a todos os debates nas Ciências Criminais, tampouco nas produções em torno da criminalização das drogas. Há um amplo espectro de temas e abordagens possíveis que podem ser mais adequadas às pretensões analíticas e ao contexto de cada pesquisador(a).

No entanto, como juristas feministas, interessa-nos mapear os lugares que as mulheres têm ocupado no campo jurídico-penal e os graus de profundidade que esse debate tem alcançado. Isso para provocar um saber que mobilize as análises de gênero e interseccionais não apenas quando se fala da “questão da mulher” - como uma situação de peculiaridade dentro de um sistema masculino e branco -, mas também como ferramentas analíticas centrais para se discutir violência institucional, masculinidades, branquitude, assim como as relações de poder no sistema de justiça e nos espaços de criminalização.

Conclusão

Neste artigo, partimos da “pergunta pela mulher” e do gênero como categoria de análise para pensar as representações construídas sobre a “criminosa” em publicações das últimas duas décadas em um periódico das Ciências Criminais no Brasil. Desde o momento da constituição da amostra de pesquisa, encontramos nos artigos as condições de possibilidade de um saber sobre essas mulheres e o modo como suas representações são constituídas nas Ciências Criminais a partir dos ecos de nosso sistema de justiça.

Consideramos que a forma como (re)produzimos conhecimento, por meio da linguagem, é um fator importante para romper concepções estagnadas e essencialistas sobre mulheres, especialmente em espaços de criminalização, marcados pela masculinidade, em que elas aparecem, geralmente, inseridas em situações “específicas”. Nesse sentido, o uso estratégico da língua, o rompimento de alguns padrões de escrita e a demarcação do sujeito e do corpo de que se fala no texto podem trazer a “criminosa” verdadeiramente para a discussão.

Também observamos a formação de representações da “criminosa” a partir de uma categoria simplista, descritiva, de pouca profundidade, que é pouco refletida nas produções do corpus empírico. Ademais, a ausência de marcações de gênero na palavra escrita colabora para uma presença da mulher que é apenas figurativa, que se perde em um cenário que não a tem como preocupação central.

Nesse sentido, o uso do masculino “universal”, no pretexto de dizer sobre todos(as), não diz sobre ninguém. Encontramos “etiquetas”, “preconceitos” e “rótulos” que circundam a ideia de uma mulher “criminosa”. Estes, mais nítidos nos discursos de uma ciência penal de séculos passados, e de um judiciário retrógrado, também estão nas entrelinhas dos textos, que constroem posições fixas e dicotomizadas em torno das figuras da “vítima”, da “criminosa”, da “pequena traficante” e da “dona da boca”.

Também entendemos que pensar a mulher “criminosa” no contexto do tráfico, na academia, envolve ultrapassar os discursos do sistema de justiça. Entendê-los e observar a presença de estereótipos de gênero nesses espaços é relevante, uma vez que coloca em xeque qualquer pretensão de neutralidade do Direito, seja na figura da lei (e de legisladores), seja na das decisões judiciais (e de operadores). Entretanto, é função da academia construir novos e melhores discursos, que, sabendo desses problemas, os superem, com os recursos já adquiridos nas crescentes pesquisas sobre o tema, no diálogo com as mulheres nas prisões e nas pesquisas empíricas desenvolvidas ao longo deste século.

AGRADECIMENTOS

As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo apoio financeiro à pesquisa (processo n. 2020/04179-9).

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  • 1
    Júlia Ferro Bucher-Maluschke, Jonas Silva e Isabela Brito de Souza (2019BUCHER-MALUSCHKE, Júlia Sursis Nobre Ferro; SILVA, Jonas Carvalho; SOUZA, Isabela Brito dos Santos de. Revisão sobre o presídio feminino nos estudos brasileiros. Psicologia e Sociedade, [s. l.], v. 31, p. 1-15, 2019.) realizaram uma revisão dos estudos de mestrados e doutorados sobre o cárcere feminino entre os anos 2006 e 2016, observando a presença destes especialmente no campo da Psicologia, das Ciências Sociais e do Serviço Social. Já Alessandra Teixeira e Hilem Oliveira (2017TEIXEIRA, Alessandra; OLIVEIRA, Hilem. Maternidade e encarceramento feminino: o estado da arte das pesquisas no Brasil. BIB, São Paulo, n. 81, p. 25-41, 1o sem. 2016 (publicada em ago. 2017).) apresentaram o estado da arte das pesquisas sobre encarceramento feminino e maternidade, que indicou uma consistente produção nos últimos vinte anos no Brasil.
  • 2
    Utilizamos aspas para nos referirmos à “criminosa” como forma de estranhar essa etiqueta atribuída à mulher autora de delitos, empregada em diversas instâncias de poder no Direito - policial, judiciária, penitenciária, intelectual - e que, como explica Ana Gabriela Braga (2015BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Entre a soberania da lei e o chão da prisão: a maternidade encarcerada. Revista Direito GV, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 523-546, jul./dez. 2015., p. 529), passa a compor parte importante da subjetividade das mulheres que enfrentam a legislação penal, sobrepondo-se a outros papéis sociais que formam sua identidade.
  • 3
    Em “A mulher do discurso jurídico”, Carol Smart (2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1421) realiza um “mapeamento da teoria feminista sociojurídica”, a fim de discutir como o Direito é gendrado. Para tanto, ela divide a teoria em três estágios de interpretação do tema: “[...] o direito é sexista”, “o direito é masculino” e “o direito é gendrado” (SMART, 2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1422).
  • 4
    O uso do termo “gendrado” segue o sentido utilizado pelas tradutoras do texto “The Woman of Legal Discourse”, publicado em 2020 pela Revista Direito e Práxis. Nessa publicação, as autoras utilizam a expressão como tradução possível para o termo “gendered” (a forma nominal de “gender”).
  • 5
    Mantemos o uso das expressões “Mulher”, “Homem” e “tipo de Mulher” com maiúsculas, da forma como apresentado no texto de Smart. Entendemos que o uso desse recurso possibilita que se evidencie a categoria que se inscreve a partir desses substantivos.
  • 6
    A partir da leitura do texto de Sá (2016SÁ, Priscilla Placha. As ciências penais têm sexo? Têm, sim senhor! Boletim IBCCrim, n. 280, mar. 2016. Disponível em: Disponível em: https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5726-As-ciencias-penais-tem-sexo-Tem-sim-senhor . Acesso em: 6 jul. 2021.
    https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_a...
    ), em conjunto com as discussões trazidas por Smart (2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020.) no texto “A mulher do discurso jurídico”, entendemos que suas reflexões estão mais atreladas à segunda abordagem descrita por Smart, de que o Direito é “masculino”, uma vez que mantém posições binárias entre o masculino e o feminino. Apesar disso, a exposição da autora é ilustrativa do cenário das Ciências Criminais, especialmente do ponto de vista da dogmática penal.
  • 7
    No Norte global, a denominação “crítica” como qualitativo de correntes criminológicas não está historicamente atrelada à tradição materialista histórica como no Brasil; funciona como “an umbrella term for a variety of criminological theories and perspectives that challenge core assumptions of mainstream (or conventional) criminology in some substantial way and provide alternative approaches to understanding crime and its control” (FRIEDRICHS, 2009FRIEDRICHS, David O. Critical Criminology. In: MILLER, J. Mitchell. 21st Century Criminology: A Reference Handbook. SAGE Publications, Inc., 2009. p. 210-218. Disponível em: Disponível em: https://www.doi.org/10.4135/9781412971997.n24 . Acesso em: 11 out. 2021.
    https://www.doi.org/10.4135/978141297199...
    , p. 210).
  • 8
    Importante diferenciar as correntes denominadas positivistas dentro da Criminologia, como é o caso das produções de Lombroso e Ferrero, citadas na introdução, e do positivismo jurídico desenvolvido na dogmática penal. O primeiro é identificado por Rosa del Olmo como um precursor dos estudos criminológicos. Tinha como objeto o “homem delinquente” e significou uma virada em favor do determinismo, com a atenção focada no pessoal e psicológico (OLMO, 2004OLMO, Rosa Del. A América Latina e sua Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2004., p. 38-39). Já o positivismo na dogmática pode ser descrito como “uma concepção do trabalho do jurista segundo a qual o que se diz do direito deve corresponder […] ao que dizem as normas ditadas pelo legislador” (MENDES, 2020MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020., p. 75). Identifica-se, portanto, com a manifestação máxima do princípio da legalidade, em que os enunciados da dogmática só poderiam ser aceitos se atrelados a expressões “juridicamente verdadeiras”, lastreadas na norma e exteriorizadas por meio de locuções como “segundo a lei […]” (MENDES, 2020MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020., p. 75).
  • 9
    A sistematização de métodos legais feministas parte de concepções críticas feministas, às ciências e ao Direito, que questionam lugares de universalidade e imparcialidade, em favor da posicionalidade (BARTLETT, 1990BARTLETT, Katharine T. Feminist Legal Methods. Harvard Law Review, Cambridge, v. 103, n. 4, p. 829-888, fev. 1990.) e de uma racionalidade e objetividade feministas (HARAWAY, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995.), que concebem apenas conhecimentos situados, que levam em consideração as interações entre sujeito e “objeto” de estudos. No Direito, Bartlett direciona seu método para evidenciar possíveis vieses de seus operadores e operadoras e para o questionamento das “verdades” produzidas pelo discurso jurídico.
  • 10
    Vera Regina Pereira de Andrade (2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012., p. 96-97) classifica como Ciência Penal um modelo de integração entre as discussões presentes na Criminologia, no Direito Penal dogmático e nas Políticas Criminais. No mesmo sentido, Caíque Galícia (2017GALÍCIA, Caíque Ribeiro. Editorial: O pesquisador e a pesquisa em Ciências Criminais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 769-787, set./dez. 2017., p. 777) entende as Ciências Criminais como gênero que tem como espécies o direito penal, o processo penal e a Criminologia. Já Paula Alves (2016ALVES, Paula Pereira Gonçalves. Trocando em miúdos: narrativas brasileiras em torno da Criminologia. 2016. 188 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2016., p. 79), ao discutir a posição ocupada pelos criminólogos no meio acadêmico, considera que, apesar de estarem localizados majoritariamente no campo do Direito, é possível que se coloquem também em outros espaços, sendo esta uma questão em aberto no Brasil.
  • 11
    No website do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a revista é descrita da seguinte forma: “A publicação apresenta pareceres e estudos sobre a dogmática jurídica e sua integração com os diversos campos do conhecimento, como criminologia, política criminal, antropologia, sociologia e psicologia” (disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/exibir/11; acesso em: 24 jan. 2021). Descrição semelhante aparece em suas “diretrizes para autores”.
  • 12
    Apesar de a autora trazer três eixos em seu método, a interpretação feita de seu texto, bem como as primeiras leituras do material seguindo o método legal feminista, demonstraram que o terceiro deles, a tomada de consciência, não se alinha às fases iniciais da pesquisa, de leitura dos documentos, categorização das unidades de análise e apresentação dos resultados. Como metamétodo, que busca a articulação dos demais eixos, a tomada de consciência tem papel estrutural. Assim, não foi traduzido em perguntas e utilizado diretamente nas análises, mas aparece como eixo que viabiliza o diálogo entre a amostra e a literatura feminista mobilizada, localizando os artigos temporal e historicamente, bem como permitindo sua desconstrução por meio dos demais métodos.
  • 13
    Em edições mais antigas da revista, os resultados se restringiam aos títulos dos artigos, o que, consequentemente, reduz a possibilidade de encontrar textos com as palavras buscadas.
  • 14
    Os outros seis artigos não compõem essa fase de análise, pois trazem o tráfico de drogas apenas de passagem, povoando o universo mais amplo da “questão das drogas” com discussões sobre o consumo de drogas, o crime de associação para o tráfico e a formação de milícias. Ademais, um dos artigos trata do tráfico de drogas no contexto italiano.
  • 15
    A ficha contém os seguintes indicadores: a) “autor(a)” - com definição de gênero, raça, região de atuação, área de atuação e profissão, obtida pela busca nos currículos lattes e pelas descrições contidas nos textos; b) “palavras-chave” definidas no texto; c) “conceitos-chave” - pequenas expressões ou palavras destacadas pelas pesquisadoras a partir da leitura dos artigos, escolhidas pelos critérios de afinidade com as perguntas de Bartlett; relevância no contexto do artigo (por resumirem ideias ou aparecerem com frequência); frequência na literatura sobre o tema; d) “linguagem” - forma como autor(a) posiciona os sujeitos da análise (uso do masculino universal, emprego de flexões de gênero, etc.); e) “materiais e métodos” - objetivos, metodologia empregada na pesquisa e referenciais teóricos, quando explicitados; f) “eixos de Bartlett” - interpretação dos textos a partir da pergunta pela mulher/gênero raciocínio prático, buscando tecer considerações críticas a respeito da localização do sujeito considerado criminoso nesses textos, quando ela existe.
  • 16
    Este artigo é recorte de pesquisa de mestrado mais ampla, a qual empregou os métodos feministas de Bartlett da “pergunta pela mulher” e do “raciocínio prático feminista” como direcionadores das análises, como explicitado anteriormente. Neste artigo, restringimos o âmbito de análise para abranger precipuamente as discussões relativas à “pergunta pela mulher”. Entretanto, é importante considerar que esses métodos são interligados. Assim, o “raciocínio prático feminista” também pauta as discussões, na medida em que miramos a “criminosa” como uma sujeita capaz de romper com construções universalizantes acerca do gênero, a ser “conhecida” e entendida nos limites das representações do campo. Pensando nisso, as análises que se direcionam especificamente aos usos do termo “criminosa” também dialogam com esse método.
  • 17
    Sobre os usos das palavras “criminoso” e “delinquente” no Direito, tanto na academia quanto nos pronunciamentos judiciais e nas leis, Maíra Machado (2005MACHADO, Maíra Rocha. A pessoa-objeto da intervenção penal: primeiras notas sobre a recepção da Criminologia Positivista no Brasil. Revista Direito GV, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 79-90, maio 2005.) apresenta discussão em que ressalta a possibilidade de seu uso crítico, como forma de denominar etiquetas construídas socialmente, enquanto “‘Criminoso’ e ‘delinquente’, ao buscarem indicar o que uma pessoa é, não têm lugar no direito” (MACHADO, 2005MACHADO, Maíra Rocha. A pessoa-objeto da intervenção penal: primeiras notas sobre a recepção da Criminologia Positivista no Brasil. Revista Direito GV, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 79-90, maio 2005., p. 88, grifo da autora).
  • Como citar este artigo: BRAGA, Ana Gabriela Mendes; FERREIRA, Letícia Cardoso. A “criminosa” está aqui? A pergunta pela mulher em artigos sobre tráfico de drogas de uma revista de Ciências Criminais brasileira. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e2316, 2023. https://doi.org/10.1590/2317-6172202316

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    09 Nov 2022
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