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Anomia de pesquisadores no compartilhamento de dados

Anomie of researchers in data sharing

Resumo:

O compartilhamento de dados é prática corrente em algumas disciplinas, enquanto em outras é particularmente crítico, dependendo de fatores como comportamento individual dos pesquisadores ou da cultura disciplinar. A anomia no compartilhamento dos dados pode ocorrer quando os conjuntos de valores culturais que governam a conduta dos pesquisadores e as metas institucionais encontram-se em desequilíbrio, pendendo para uma maior relevância dos valores culturais ou interesses particulares em relação às metas institucionais. Assim, os indivíduos percebem-se em desconformidade com que as instituições requerem e praticam condutas desviantes, ocorrendo uma possível retenção dos dados. O objetivo foi identificar e discutir fatores que podem instaurar um estado de anomia em pesquisadores no processo de compartilhamento de dados, apresentando um framework com os fatores identificados. A coleta ocorreu por meio da triangulação com a aplicação de questionário, entrevista estruturada e análise documental. Com a análise documental foi apresentado um framework com treze índices, baseado nas estruturas teóricas, Teoria Institucional de W. Richard Scott, na Teoria do Comportamento Planejado de Icek Ajzen e no modelo de pesquisa de comportamento de compartilhamento de dados em repositório de dados proposto de Youngseek Kim. Conclui-se que a anomia está relacionada a fatores como falta de clareza das leis e normativas, desequilíbrio entre metas institucionais e os caminhos para atingi-las, descumprimento de regras e negação da moral.

Palavras-chave:
anomia; compartilhamento de dados; dados de pesquisa

Abstract

Data sharing is standard practice in some disciplines, while in others it is particularly critical, depending on factors such as individual researchers’ behavior or disciplinary culture. Anomie in data sharing can occur when the sets of cultural values that govern the researcher’ conduct and institutional goals are out of balance, with cultural values or vested interests having greater relevance than institutional goals. Thus, individuals perceive themselves in disagreement with what institutions require and practice deviant behaviors, with possible data retention. The objective was to identify and discuss factors that can establish a state of anomie in researchers in the data sharing process, presenting a framework with the identified factors. The collection occurred through triangulation with the application of a questionnaire, a structured interview, and document analysis. With the documentary analysis, a framework with thirteen indexes was presented, based on the theoretical frameworks, W. Richard Scott's Institutional Theory, Icek Ajzen's Theory of Planned Behavior, and Youngseek Kim's proposed data repository sharing behavior research model. It is concluded that anomie is related to factors such as lack of clarity of laws and regulations, imbalance between institutional goals and the ways to achieve them, non-compliance with rules, and denial of morals.

Keywords:
anomie; data sharing; research data

1 Introdução

O processo de pesquisa tem nos dados um importante elemento de insumo e sustentação dos resultados publicados e disseminados que implica em maior investimento e empenho com os procedimentos relacionados a sua análise, sua gestão, seu compartilhamento, sua curadoria e seu reuso. Isso é notado, principalmente, em momentos de transformações tecnológicas abrangentes e velozes como as presenciadas com a ampliação do uso das tecnologias digitais no qual o volume, a velocidade e a variedade de dados aumentam exponencialmente.

No entorno da comunidade científica, há esforços significativos na conscientização e na motivação dos pesquisadores para compartilhar e reutilizar dados de pesquisa com o intuito de maximizar a reprodutibilidade das pesquisas e avançar nas descobertas científicas. Diante desse cenário a conscientização de pesquisadores tem sido tema recorrente na comunidade científica internacional e, muitas vezes, está relacionada ao contexto da Ciência Aberta.

A Ciência Aberta é um conceito holístico baseado em diferentes pilares que inclui o acesso aberto, metodologias abertas, dados abertos, ciência cidadã, revisão por pares aberta, código aberto, blocos de notas aberto, recursos educacionais abertos e redes sociais científicas, proporcionando ampla divulgação à sociedade e potencialização para a reprodutibilidade da ciência ( ALBAGLI, 2015ALBAGLI, S. Ciência aberta em questão. In: ALBAGLI, S.; MACIEL, M. L.; ABDO, A. H. (org.). Ciência aberta, questões abertas. Brasília, DF: IBICT; Rio de Janeiro: UNIRIO, 2015. p. 9-25.; BEZJAK et al., 2018BEZJAK, S. et al. Manual de formação em Ciência Aberta. Hannover: Foster, 2018. ; MORA, 2019MORA, F. (coord.). Compromisos de las universidades ante la Open Science. Madri: CRUE Universidades Espanholas, 2019. ; SANTOS, 2017SANTOS, P. X. (coord.). Livro verde - Ciência aberta e dados abertos: mapeamento e análise de políticas, infraestruturas e estratégias em perspectiva nacional e internacional. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017. ).

Adicionalmente, verifica-se outros elementos na agenda da Ciência aberta como: publicação aberta; metadados abertos; impacto e métricas abertas; os princípios FAIR e; os repositórios abertos, incluindo neste último os repositórios de dados.

A publicação de dados oriundos de pesquisas com financiamento de agências de fomento, em muitos casos, é obrigatória, e os repositórios de dados, entre outros canais de comunicação, podem ser opções para tais processos de publicação. Os repositórios de dados têm sua gênese na necessidade de gestão dos dados de pesquisa e contribuem para assegurar que os dados sejam publicados e disponibilizados para a comunidade científica com o menor número de restrições. Tais repositórios formam um conjunto de sistemas e serviços que visam atender requisitos como: o armazenamento, a gestão, a disponibilização e a curadoria de dados de pesquisa, com o objetivo de viabilizar a recuperação e o acesso aos dados, além de fornecer produtos e serviços de dados. Nesse contexto, requer que se tenha à disposição profissionais com competências específicas tais como as relacionadas ao tratamento técnico dos dados, treinamento dos pesquisadores e atendimento aos usuários.

Apesar dos repositórios de dados disponibilizarem informações que contemplem a gestão de dados, pode haver baixa aderência entre as perspectivas relacionadas à publicação e ao compartilhamento de dados pelos pesquisadores devido à ausência ou incompreensão (anomia) dessas informações. Pesquisadores podem ter uma série de dúvidas e preocupações ao compartilharem seus dados de pesquisa, instaurando um estado de “anomia” que pode impactar negativamente o compartilhamento de conjuntos de dados.

A palavra Anomia tem origem do grego anomos, em que “a” representa ausência, inexistência ou privação de; e “ nomos” significa lei, norma ( ALEIXO, 2020ALEIXO, D. V. B. O estado de anomia dos dados no acesso aos dados governamentais abertos no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2020. ). Ao longo da história, escritores sofistas, filósofos, sociólogos, entre outros, empregaram ou definiram Anomia nos contextos social e psicológico do ser humano.

O sociólogo e filósofo polonês Bauman apresenta anomia como “A ausência, ou a mera falta de clareza das normas - anomia - [...]” e destaca que essa anomia “[...] é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida.” ( BAUMAN, 2001BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 28). Nessa perspectiva, ao associar a anomia com o compartilhamento de dados, pode-se inferir que se os pesquisadores não conhecem ou não têm clareza sobre os diversos aspectos norteadores no compartilhamento dos dados, o que torna possível ocasionar a anomia e, consequentemente, possível retenção dos dados.

O compartilhamento de dados, com a disponibilização pública dos conjuntos de dados como em repositórios, ainda não é uma prática corrente entre as comunidades científicas ou de pesquisadores. A cultura de cada comunidade científica influencia o compartilhamento ou retenção dos dados, assim como a forma de publicação e/ou o compartilhamento.

A motivação para compartilhar dados de pesquisa pode ser prejudicada por motivos variados, como disputa pela prioridade de autoria de descobertas científicas ou competitividade, não perceber benefícios em sua carreira (como citação pelos seus dados), não sentir nenhuma obrigação ética em disponibilizar os dados para outros pesquisadores, ou perceber que outros terão mais benefícios com o uso dos dados publicados (como mais publicações derivadas) ou considerar o tempo e a energia necessária na gestão e preparo dos dados ( KIM, 2017KIM, Y. Fostering scientists’ data sharing behaviors via data repositories, journal supplements, and personal communication methods. Information Processing & Management, Elmsford, v. 53, n. 4, p. 871-885, 2017. ; KIM; ADLER, 2015KIM, Y.; ADLER, M. Social scientists’ data sharing behaviors: investigating the roles 241 of individual motivations, institutional pressures, and data repositories. International Journal of Information Management, Guildford, v. 35, n. 4, p. 408-418, ago. 2015. ).

À frente do cenário apresentado, visualizam-se fatores que podem influenciar o comportamento de pesquisadores no compartilhamento de dados, instaurando um estado de anomia, termo empregado por autores como Zygmunt Bauman, Émile Durkheim e Robert King Merton.

Este estudo tem como objetivo apresentar fatores que podem contribuir para um estado de anomia em pesquisadores no processo de compartilhamento de seus dados, e teve como base um levantamento de dados e de um repositório de dados utilizado e mantido por um consórcio de universidades. Como parte dos resultados, propõe-se a aplicar o conceito de anomia no contexto da Ciência da Informação, em especial no âmbito de processos de compartilhamento de dados e apresentar um framework com os fatores identificados.

2 O compartilhamento dos dados e a anomia dos atores envolvidos

A introdução, em larga escala, de dados na sociedade está redefinindo o domínio de ação e interação tanto entre humanos, quanto humanos-computador, em todas as esferas, públicas e privadas, redefinindo, inclusive, as atividades de pesquisa e os processos da comunicação científica, gerando novas atuações, intensificadas com as práticas advogadas pela Ciência Aberta.

A abertura dos dados das pesquisas científicas é uma das principais propostas da Ciência Aberta com intenso debate sobre princípios e padrões para o acesso a tais dados ( SANTOS, 2017SANTOS, P. X. (coord.). Livro verde - Ciência aberta e dados abertos: mapeamento e análise de políticas, infraestruturas e estratégias em perspectiva nacional e internacional. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017. ). O contexto do movimento em prol do acesso aberto à informação científica, teve como marco decisivo a Declaração de Budapest Budapest Open Access Initiative (BOAI) ( BOAI, 2002BOAI. Budapest Open Access Initiative. Hungary, 2002. Disponível em: https://www.budapestopenaccessinitiative.org/read/ . Acesso em: 22 jul. 2022.
https://www.budapestopenaccessinitiative...
), seguido das declarações Bethesda Statement on Open Access Publishing ( LEGACY.EARLHAM, 2003LEGACY.EARLHAM. Bethesda statement on Open Access publishing. Maryland, 2003. Disponível em: http://legacy.earlham.edu/~peters/fos/bethesda.htm . Acesso em: 22 jul. 2022.
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) e Berlin Declaration on Open Access to Knowledge in the Sciences and Humanities ( OPEN ACCESS, 2003OPEN ACCESS. Berlin declaration on Open Access to knowledge in the sicence and humanities. Berlin, 2003. Disponível em: Disponível em: https://openaccess.mpg.de/Berlin-Declaration . Acesso em: 22 jul. 2022.
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).

A Ciência Aberta pressupõe a abertura de todo o processo científico, maximizando sua transparência e colaboração; é um conceito complexo que exige adoção de novas práticas científicas incluindo a transformação no modus operandi da pesquisa, além de mudança no comportamento dos pesquisadores tanto na realização de pesquisas quanto no compartilhamento de seus resultados, incluindo os dados ( PONTIKA et al., 2015PONTIKA, N. et al. Fostering Open Science to research using a Taxonomy and an eLearning Portal. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON KNOWLEDGE TECHNOLOGIES AND DATA DRIVEN BUSINESS, 15., 2015, Graz. Anais [...]. Milton Keynes: The Open University, 2015. p. 1-8.). Nesse âmbito, observam-se mudanças e adaptações nas relações sociais, econômicas e de produção do conhecimento na sociedade as quais podem ser associadas às discussões de Zygmunt Bauman em seu conceito de “Modernidade Líquida” utilizado como forma de explicar como se processam as relações sociais na atualidade.

Bauman (2001BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.), ao abordar a modernidade da sociedade, destaca que a sociedade avança em diversos sentidos e discute como a dicotomia “do líquido e do sólido” a delineia, retratando a mudança da sociedade sólida para a líquida. A liquidez, apresentada em seu texto, está no fato de os líquidos não terem formas e se moldam conforme o recipiente em que são inseridos, diferentemente dos sólidos, que são rígidos e precisam sofrer uma força para moldar-se. Salienta-se que sua análise foi realizada no contexto do “bug do milênio”, em que computadores e aplicativos estavam preparados para executar até 1999, exigindo adaptações para não ocorrer o caos tecnológico.

Observa-se as adaptações na atualidade pela mudança nas práticas científicas advogadas pela Ciência Aberta. As áreas do conhecimento ou pesquisadores individuais que não estavam acostumados ou não eram adeptos à disponibilização pública dos dados deparam-se com a necessidade de adaptações na gestão de dados que podem fluir como o líquido, se ajustando às orientações de abertura e compartilhamento dos dados ou precisar de uma tensão de força para o mesmo.

As adaptações nas atuais práticas científicas podem gerar tensões ou enfraquecimento das relações na sociedade ou na ordem estabelecida entre as comunidades científicas. Essa abordagem tem como princípio a complexidade que a sociedade está atingindo, fator observado e discutido por Émile Durkheim em seus livros Da divisão do trabalho social e O suicídio. Durkheim é o sociólogo da moral e ressalta a importância da consciência coletiva, do compartilhar formas de pensar e de agir identificando males da sociedade, definidos como “anomia”, ou seja, negação da moral, falta de clareza e descumprimento das regras existentes.

O sociólogo Merton, pesquisador que deu continuidade ao debate acerca da Teoria da anomia iniciado por Durkheim elucida que:

Conforme foi elaborado por Durkheim, o conceito de anomia se referia a uma condição relativa [de] normalidade numa sociedade ou grupo. Durkheim deixou claro que este conceito se referia a uma propriedade da estrutural social e cultural, e não a uma propriedade dos indivíduos que confrontavam tal estrutura ( MERTON, 1973MERTON, R. K. The normative structure of science. In: MERTON, R. K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. p. 223-280., p. 235).

Merton apresenta a anomia na estrutura cultural. Para o autor:

A anomia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo especialmente quando houver uma aguda disjunção entre, de um lado, as normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo em agirem de acordo com as primeiras ( MERTON, 1968MERTON, R. K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1968. , p. 237).

No entendimento de Merton, a estrutura cultural (conjunto de valores que regulam o comportamento comum) e a estrutura social (relações sociais em que os membros estão inseridos) devem ser analisadas separadamente. As discussões do conceito sociológico de Merton (1973MERTON, R. K. The normative structure of science. In: MERTON, R. K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. p. 223-280.) ao longo do seu trabalho:

[...] pressupõe que o ambiente mais destacado dos indivíduos possa ser concebido de maneira útil, como envolvendo a estrutura cultural, de um lado, e a estrutura social, de outro. Tal conceito pressupõe que, mesmo sendo tais conceitos intimamente ligados, devem ser conservados separados para finalidades de análise, antes que sejam novamente reunidos ( MERTON, 1973MERTON, R. K. The normative structure of science. In: MERTON, R. K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. p. 223-280., p. 236).

Partindo da análise de Merton, observam-se aspectos na ruptura cultural da comunidade científica: culturalmente, após a análise dos dados e publicação dos resultados, os dados eram guardados ou descartados pelos pesquisadores ou grupos de pesquisa, com algumas exceções. Com a evolução da ciência, do instrumental tecnológico e a incorporação dos elementos adicionados nas práticas da Ciência Aberta, nota-se um intenso fomento para o compartilhamento dos dados, culminando em seu reuso e com a universalização do seu acesso.

Merton destaca que o conceito da anomia apresentado por Durkheim se faz compreensível para entender as diversas formas de comportamento, e destaca que o conceito psicológico, apresentado em suas discussões, “[...] é uma contrapartida do conceito sociológico da anomia, e não um substituto para ele.” ( MERTON, 1973MERTON, R. K. The normative structure of science. In: MERTON, R. K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. p. 223-280., p. 236).

Considerando o exposto, observa-se uma transição no comportamento da sociedade científica com a adição de novos elementos nas práticas científicas como o compartilhamento e reuso de dados.

O termo anomia é empregado com diversidade de definições, atribuídas em torno da vivência do indivíduo em sociedade e suas relações e atuações. O emprego do termo pelos autores apresentados caracteriza a dimensão cultural e a institucional, com suas normas e baixa aderência, ou não observância, entre as normas e a atuação dos indivíduos.

Considera-se como estado de anomia a baixa aderência entre o reconhecimento e prática das normas estabelecidas e as ações dos pesquisadores. Parte-se do pressuposto que existem normas, porém não são seguidas em conformidade com o estabelecido.

3 Procedimentos metodológicos

Para atingir os objetivos deste estudo, foi realizada uma pesquisa documental com abordagem qualitativa. O método Análise de conteúdo ( BARDIN, 2010BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2010.; FRANCO, 2008FRANCO, M. L. P. B. Análise de conteúdo. 2. ed. Brasília, DF: Liber Livros, 2008.) foi aplicado para apoiar os procedimentos metodológicos, em virtude de ser um método apropriado para reduzir e entender as informações das fontes onde os dados foram coletados. Com efeito, foram seguidos os procedimentos da Análise de conteúdo na fase da Pré-análise com a leitura flutuante e aplicando a regra da pertinência.

O escopo da pesquisa foi o repositório e-cienciaDatos do Consórcio Madroño, um repositório de dados constituído pelas seis universidades do Consórcio Madroño: Universidad de Alcalá, Universidad Autónoma de Madrid, Universidad Carlos III de Madrid, Universidad Politécnica de Madrid, Universidad Rey Juan Carlos y UNED. O repositório organiza os conjuntos de dados de cada uma das universidades cooperantes.

Os procedimentos metodológicos foram aplicados em dois universos:

  1. o primeiro, composto pelas universidades que possuem repositórios de dados e que formam o repositório e-cienciaDatos. Os dados foram coletados a partir dos documentos, das entrevistas e dos questionários aplicados aos bibliotecários em dezembro de 2018. Para a coleta de dados com os bibliotecários foi aplicado um questionário composto por 30 perguntas sendo dez abertas e 20 fechadas sobre as atividades desempenhadas com a gestão dos dados e seu ciclo de vida assim como as competências e habilidades necessárias para atuarem nos repositórios, tanto em serviços técnicos quanto no auxílio e treinamento dos usuários. O Comitê de Ética da Universidade Estadual Paulista aprovou a pesquisa. Os documentos selecionados para a leitura flutuante foram as Leis e Normativas, manuais, diretrizes, audiovisuais, infografias, declarações e informes. Na etapa da Pré-análise, a leitura flutuante se iniciou com os documentos disponibilizados nas páginas das bibliotecas, do Consórcio Madroño e os enviados pelos bibliotecários; a escolha dos documentos foi feita a posteriori seguindo a regra da pertinência; com a leitura foram levantadas as hipóteses que fizeram parte de um framework; também foi feita a referenciação das categorias e dos índices do framework;

  2. o segundo, composto pelos pesquisadores que depositaram seus conjuntos de dados no repositório. Foi aplicado um questionário com 19 questões, sendo sete abertas e doze fechadas. As perguntas abertas serviram para o roteiro da entrevista. Os pesquisadores ficaram livres para comentar as perguntas fechadas. Os entrevistados tiveram a liberdade de se retirar da pesquisa a qualquer momento, não sendo, nesse caso, necessário responder a qualquer pergunta para avançar no questionário ou na entrevista. As aplicações do questionário e da entrevista foram feitas via Skype e Hangout e as mesmas foram gravadas com autorização dos participantes. As respostas foram transcritas para análise final. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido precedeu a entrevista.

Na leitura flutuante dos documentos selecionados, foram definidos os índices: Cultural, Ciência aberta, Princípios FAIR, PGD, Financiadores, Normas e Leis, Repositório, Atividade profissional, Sociedade e Ética.

Com a continuação da leitura flutuante foram selecionadas as categorias identificadas na análise dos documentos. O tipo de análise escolhida para essa pesquisa foi a Análise Categorial do método Análise de Conteúdo. Com a análise Categorial, foram identificadas seis categorias: Cognitiva, Normativa, Reguladora, Carreira, Recursos e Social.

A seleção e delimitação dos índices e categorias foi amparada pela Teoria Institucional (TI) de Scott (1995SCOTT, W. R. Contemporary institutional theory. In: SCOTT, W. R. Institutions and organizations. Thousand Oaks: SAGE, 1995. p. 32-62.), Teoria do Comportamento Planejado de Ajzen (1991AJZEN, I. The theory of planned behavior. Organizational Behavior and Human Decision Process, Maryland Heights, v. 52, n. 2, p. 179-211, 1991.) e no Modelo de pesquisa de comportamento de compartilhamento de dados de Kim (2017KIM, Y. Fostering scientists’ data sharing behaviors via data repositories, journal supplements, and personal communication methods. Information Processing & Management, Elmsford, v. 53, n. 4, p. 871-885, 2017. ), sendo o último estruturado para fatores que influenciam o comportamento dos cientistas que compartilham dados por meio de repositórios de dados. Dito isso, o autor afirma que “[...] as pressões institucionais, motivações individuais e recursos afetam os diversos comportamentos de compartilhamento de dados dos cientistas [...]” ( KIM, 2017KIM, Y. Fostering scientists’ data sharing behaviors via data repositories, journal supplements, and personal communication methods. Information Processing & Management, Elmsford, v. 53, n. 4, p. 871-885, 2017. , p. 879).

4 Resultados e discussões

Nesta seção são apresentados, analisados e discutidos os resultados obtidos que retratam os fatores que podem levar à anomia no compartilhamento de dados por pesquisadores. A pesquisa abrange três grupos de documentos: (1) as leis, normativas, manuais, diretrizes, audiovisuais, infografias, declarações e informes disponibilizados pelo Consórcio Madroño e por suas bibliotecas; (2) os questionários e as entrevistas aplicados aos bibliotecários que trabalham com os repositórios; (3) questionários e entrevistas aplicados aos pesquisadores que são coordenadores de projetos que depositaram seus conjuntos de dados no repositório. Os resultados são apresentados e discutidos em três dimensões: Dimensão Institucional; Dimensão de Análise e Dimensão Pesquisador.

Cada seção trata de sua categoria e índices apresentados no framework.

4.1 Dimensão Institucional

O modelo teórico do framework elucida a possível anomia nos pesquisadores no compartilhamento de seus dados e em que medida os fatores institucionais, individuais e sociais os influenciam.

Figura 1 -
Framework das perspectivas e atitudes do compartilhamento dos dados

A Dimensão Institucional é fundamentada na Teoria Institucional que advém de estudos sociológicos e organizacionais e contribui para a conexão entre diferentes fatores que incluem instituições, infraestrutura e pessoas, além de examinar como os atores executam comportamentos aceitáveis ​​para serem legitimados diante das pressões institucionais ( KIM, 2017KIM, Y. Fostering scientists’ data sharing behaviors via data repositories, journal supplements, and personal communication methods. Information Processing & Management, Elmsford, v. 53, n. 4, p. 871-885, 2017. ; SCOTT, 1995SCOTT, W. R. Contemporary institutional theory. In: SCOTT, W. R. Institutions and organizations. Thousand Oaks: SAGE, 1995. p. 32-62.). A Teoria Institucional contempla três pilares: Cognitivo, Normativo e Regulador ( SCOTT, 1995SCOTT, W. R. Contemporary institutional theory. In: SCOTT, W. R. Institutions and organizations. Thousand Oaks: SAGE, 1995. p. 32-62.) que serviram para delimitar as categorias do framework e organizar os índices selecionados para análise. Os três pilares estão descritos no quadro 1.

Quadro 1 -
Pilares da Teoria Institucional

O arcabouço dos três pilares da TI embasaram a aderência com os elementos do Framework que são definidos nesse artigo como Categorias, além de seus índices.

Conforme ilustrado no Framework, as categorias são: Cognitivo com seu índice Cultura; Normativo com seus índices Ciência Aberta, Princípios FAIR, Agências de fomento, Plano de Gestão de Dados (PGD) e Repositórios; Regulador com seu índice Normas e Leis. Os índices e suas definições estão no quadro 2.

Quadro 2 -
Índices e suas definições

No quadro 3 são apresentados os aspectos identificados nas respostas dos pesquisadores participantes da pesquisa sobre as temáticas identificadas pelos índices e que estão relacionadas ao compartilhamento dos dados. As respostas mais relevantes dos pesquisadores são apresentadas e discutidas na sequência.

Quadro 3 -
Respostas dos pesquisadores referentes aos índices

Os resultados obtidos demonstram que, apesar dos índices da dimensão institucional estarem em forte discussão e divulgação no contexto dos pesquisadores, os mesmos têm pouco conhecimento ou clareza sobre as temáticas apresentadas.

O índice Cultura perpassa os outros índices, pois tem variadas práticas como apresentada por um dos pesquisadores: “[...] nossa disciplina, por um lado, não existe tal costume para depositar os dados.” (P2).

A cultura atuante em cada área do conhecimento indica as práticas do compartilhamento ou retenção dos conjuntos de dados, inclusive antes da finalização das publicações dos resultados das pesquisas. Oportuno mencionar que a Ciência aberta, os princípios FAIR e as agências de fomento demandam mudanças na cultura e nas práticas de pesquisas relacionadas, entre outros aspectos, ao compartilhamento dos dados de forma aberta.

Para compreender a cultura do contexto dos pesquisadores a esse respeito, eles foram indagados a dar opinião sobre as temáticas. Em suas respostas, foram apresentados que dados com financiamento público devem ser compartilhados em acesso aberto, com destaque para a resposta de P4, sem nenhuma ressalva: “[...] os dados de pesquisa eu acho que eles deveriam ser compartilhados abertamente.” (P4).

Há resistência ao compartilhamento dos dados antes da publicação dos resultados das pesquisas conforme apresentado pelos pesquisadores P1, P2 e P3. Destaca-se a fala do pesquisador P1 onde associa a publicação junto aos esforços aplicados sobre os dados, alinhado ao índice Esforços apresentado na Dimensão Pesquisador:

Eu creio que os dados de pesquisa, principalmente os financiados com recursos públicos, devem estar em acesso aberto uma vez publicados os resultados da pesquisa e somente depois, porque são dados que implica o esforço pessoal do investigador e não pode deixar que outras pessoas utilizem os dados antes que o pesquisador e seu grupo de pesquisa (P1, grifo nosso).

Essa fala se alinha a de outro pesquisador que destaca a necessidade de compartilhar os dados de pesquisa com financiamentos públicos e, também, com a ressalva de compartilha-los após a publicação dos resultados.

[...] bem eu creio que quando a pesquisa é financiada por fundos públicos deveria poder compartilhar para que não seja necessário repetir o trabalho que já foi feito [...] naturalmente, precisa haver um determinado período em que essa informação possa ser processada pela pessoa que gerou e que se possa publicar as análises que são necessárias para dar a ele, digamos, algum valor agregado a esses dados (P3, grifo nosso).

Scott (1995SCOTT, W. R. Contemporary institutional theory. In: SCOTT, W. R. Institutions and organizations. Thousand Oaks: SAGE, 1995. p. 32-62.) destaca que em ambientes sociais é considerado natural as pessoas seguirem interesses idealistas ou coletivistas. No interesse coletivista, é possível identificar que um pesquisador siga ou, ao menos considere, os interesses seguidos em sua comunidade. Esse aspecto é respaldado pela resposta do P2, quando indagado a dar sua opinião sobre o compartilhamento de dados, com sua observação sobre a postura dos membros de sua equipe do projeto, ao enfatizar que sua área de atuação é conservadora:

Eu acho que para entender um pouco a postura do pesquisador ou a postura coletiva que temos do projeto, tem que esclarecer que viemos de [...] um campo de pesquisa que tradicionalmente tem sido caracterizado por ser bastante proprietário e conservador em relação aos dados, ou seja, era muito comum coletar os dados e que os dados estivessem disponíveis apenas para quem os tinha coletado e era muito difícil acessá-los (P2, grifo nosso).

As agências de financiamento podem criar pressões com suas diretrizes para que os pesquisadores compartilhem os dados como uma condição para liberação de financiamentos, além de exigir o PGD. Cada pesquisador tem um nível de conhecimento sobre as diretrizes das agências de fomento relacionadas aos dados. A maioria dos pesquisadores não conhecia o tema.

Os repositórios são vias de compartilhamento dos conjuntos de dados, dos PGDs e da documentação de dados e deve-se propiciar visibilidade aos dados e aos pesquisadores, além de ter Bibliotecários com atuação voltada para a gestão dos dados, caso contrário, pode ser fator inibidor ao compartilhamento de dados.

E é algo que não me parece claro que os dados apareçam no repositório, mas nem sempre aparecem claramente a quem estão associados (P4).

[...] talvez seja isso mais problemático é como compartilhá-lo porque, por exemplo, em nosso caso armazenar dados [...] custa dinheiro e ser capaz de colocá-los ao alcance de qualquer pessoa porque tem um custo (P2).

De fato, é notória a importância das leis e normas que orientam e regulam aspectos da propriedade intelectual para que a comunidade científica tenha um sistema que gere confiança no compartilhamento e reutilização de dados e, assim, contribua para garantir a fluidez nos processos de comunicação científica, a fim de minimizar o medo da perda da prioridade da autoria em seus estudos, as possibilidades de plágio e uso indevido de dados.

A influência das Normas e Leis relacionadas à propriedade intelectual podem ter uma relação significativa com o compartilhamento de dados, no entanto, não foi verificada essa a relação, pois os pesquisadores têm pouco conhecimento a respeito.

Não conheço toda a legislação principalmente porque é uma coisa terrivelmente imensa [...] além do Modelo legislativo espanhol [...] eles adicionam modificação de uma coisa para outra, adicionando coisas que vêm da Europa [...] (P2).

Eu sei que há uma tendência de os dados serem abertos, isso é a única coisa que eu sei (P4).

O contexto em que os cientistas estão atuando fornece insights sobre como os atores sociais são influenciados pelas pressões institucionais dentro do ambiente institucional ( KIM; ADLER, 2015KIM, Y.; ZHANG, P. Understanding data sharing behaviors of STEM researchers: the roles of attitudes, norms, and data repositories. Library & Information Science Research, Noorwoold, v. 37, n. 3, p. 189-200, jul. 2015. ; SCOTT, 1995SCOTT, W. R. Contemporary institutional theory. In: SCOTT, W. R. Institutions and organizations. Thousand Oaks: SAGE, 1995. p. 32-62.). O compartilhamento de dados pelos pesquisadores está associado em seus respectivos contextos institucionais, fazendo-se necessário examinar as influências institucionais nos comportamentos de compartilhamento de dados dos pesquisadores ( KIM; ADLER, 2015KIM, Y.; ADLER, M. Social scientists’ data sharing behaviors: investigating the roles 241 of individual motivations, institutional pressures, and data repositories. International Journal of Information Management, Guildford, v. 35, n. 4, p. 408-418, ago. 2015. ).

Os valores culturais podem ajudar a desenvolver um comportamento que esteja em oposição aos mandatos do contexto institucional dos pesquisadores. Conforme observado nos resultados, a anomia pode ser instaurada quando pesquisadores não seguem as novas práticas de compartilhamento de dados por motivos como:

  1. seus valores culturais enraizados, ocasionando um desequilíbrio entre a crença nos objetivos culturais e o acesso aos meios institucionalizados para atingi-los, onde o pesquisador não respeita as regras de conduta científica de sua área do conhecimento ou comunidade científica ou há confusão entre as normas sociais e morais;

  2. falta de clareza das orientações ou perda das referências normativas relacionadas à Ciência Aberta, os princípios FAIR, aos PGDs, dos repositórios, das agências de fomento e da própria legislação;

  3. descumprimento das novas regras apresentadas pela dimensão institucional.

Nessa perspectiva destaca-se as observações de Durkheim. No livro Da divisão do trabalho social Durkheim (1999DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.) explanou sobre as consequências da divisão do trabalho na vida dos indivíduos e da sociedade considerando que, sob a tensão de mudanças repentinas na sociedade, nas normas e nas regras sociais já estabelecidas as mesmas tornam-se obsoletas e Queiroz (2015QUEIROZ, V. Anomia social e alienação: Émile Durkheim. São Paulo: Colunas Tortas, 2015. ) ressalta que “[...] falham em manter a uniformidade com atitudes e expectativas, consequentemente, quando estabelecidas de forma inapropriada resultam no desprezo por todas as outras regras.”. Nesse aspecto, Durkheim apresenta o estado de anomia que a sociedade se encontra. Para Durkheim, a anomia está associada à: negação da moral; falta de clareza; perda das referências normativas e ao descumprimento das regras existentes; condição em que as normas sociais e morais são confundidas, pouco esclarecidas ou simplesmente ausentes ( ALEIXO, 2020ALEIXO, D. V. B. O estado de anomia dos dados no acesso aos dados governamentais abertos no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2020. ; RIBEIRO, 2012RIBEIRO, F. M. V. Nuances da sociologia do desvio em Émile Durkheim. Revista Cadernos de Ciências Sociais da UFRPE, Recife. v. 1, n. 1, jul./dez. p. 1-19, 2012. ; QUEIROZ, 2015QUEIROZ, V. Anomia social e alienação: Émile Durkheim. São Paulo: Colunas Tortas, 2015. ).

Estar em um estado de anomia é mais comum em instituições nas quais a maioria dos pesquisadores sente que as normas, até então bem aceitas, perderam seu valor, ou algumas das normas impostas são contraditórias a sua cultura ou seus valores ( TSAHURIDU, 2006TSAHURIDU, E. E. Anomie and ethics at work. Journal of Business Ethics, Dordrecht, v. 69, n. 2, p. 163-174, nov. 2006. , 2011TSAHURIDU, E. E. An exploration of factors affecting work anomia. Journal of Business Ethics, Dordrecht, v. 99, n. 2, p. 297-305, mar. 2011. ). A anomia nas instituições de pesquisa e universidades é mais comum quando as normas, os valores e os procedimentos internos se tornam inadequados ou a organização fornece pouca orientação moral e ética a sua comunidade ( TSAHURIDU, 2006TSAHURIDU, E. E. Anomie and ethics at work. Journal of Business Ethics, Dordrecht, v. 69, n. 2, p. 163-174, nov. 2006. , 2011TSAHURIDU, E. E. An exploration of factors affecting work anomia. Journal of Business Ethics, Dordrecht, v. 99, n. 2, p. 297-305, mar. 2011. ).

4.2 Dimensão Análise

A Dimensão Análise está centrada no compartilhamento do pesquisador. A Dimensão é baseada na Teoria do Comportamento Planejado (TCP) “[...] uma teoria projetada para prever e explicar o comportamento humano em contextos específicos [...]” com fator centrar em que há “[...] a intenção do indivíduo em executar um determinado comportamento.” ( AJZEN, 1991AJZEN, I. The theory of planned behavior. Organizational Behavior and Human Decision Process, Maryland Heights, v. 52, n. 2, p. 179-211, 1991., p. 181, tradução nossa).

A Teoria do Comportamento Planejado apresenta uma relação clara de como as atitudes de um indivíduo, as normas subjetivas e os controles comportamentais percebidos influenciam seus comportamentos, mediados por intenções comportamentais ( AJZEN, 1991AJZEN, I. The theory of planned behavior. Organizational Behavior and Human Decision Process, Maryland Heights, v. 52, n. 2, p. 179-211, 1991.; KIM; ZHANG, 2015KIM, Y.; ZHANG, P. Understanding data sharing behaviors of STEM researchers: the roles of attitudes, norms, and data repositories. Library & Information Science Research, Noorwoold, v. 37, n. 3, p. 189-200, jul. 2015. ).

Quadro 4 -
Dimensão de análise

O compartilhamento de dados é influenciado pela percepção do pesquisador. A percepção pode ser entendida como os recursos e oportunidades disponíveis para o pesquisador que impactam suas intenções e ações e vão ditar a probabilidade de realização do compartilhamento dos conjuntos de dados; é entendida, também, como a percepção dos pesquisadores sobre a facilidade ou dificuldade em executar o comportamento de interesse. Ademais, corresponde a norma subjetiva pois refere-se à percepção da pressão social que vai influenciar a execução ou não do compartilhamento de dados. Suas intenções, juntamente com controle do comportamento percebido, são responsáveis por variações consideráveis no comportamento real.

4.3 Dimensão Pesquisador

O modelo de pesquisa de Kim (2017KIM, Y. Fostering scientists’ data sharing behaviors via data repositories, journal supplements, and personal communication methods. Information Processing & Management, Elmsford, v. 53, n. 4, p. 871-885, 2017. ) elucida de que forma os pesquisadores tomam suas decisões para o uso de métodos diversificados para compartilhar dados.

No quadro 5 são apresentadas as características das categorias e dos índices da Dimensão Pesquisador.

Quadro 5 -
Dimensão do pesquisador

Os índices da Dimensão Pesquisador são apresentados no quadro 6 e discutidos na sequência.

Quadro 6 -
Índices da Dimensão do pesquisador

Os aspectos éticos da pesquisa estão atrelados aos esforços, aos benefícios e aos riscos na carreira do pesquisador, assim como aos benefícios para a sociedade. O movimento da Ciência Aberta advoga pela abertura dos dados, porém, pesquisadores podem não ter o intuito de compartilhar seus dados por motivos variados como disputa pela prioridade de autoria de descobertas científicas ou competitividade.

Nesse aspecto, destaca-se as afirmações de Albagli (2015ALBAGLI, S. Ciência aberta em questão. In: ALBAGLI, S.; MACIEL, M. L.; ABDO, A. H. (org.). Ciência aberta, questões abertas. Brasília, DF: IBICT; Rio de Janeiro: UNIRIO, 2015. p. 9-25., p. 17) em relação à dimensão ética da Ciência aberta. A autora afirma que a ética “[...] diz respeito ao compromisso ético de tornar o trabalho de pesquisa e seus resultados imediatamente disponíveis para utilização e remix de outros [...]”

Compartilhar eu acho importante, mas teremos que esperar um certo tempo até que esta informação seja publicada porque senão outros poderiam se beneficiar do esforço que você ou que um grupo fez (P3).

[...] sob nenhuma circunstância devemos estar em aquela situação que era tão comum que os dados permanecessem na instituição e deixado ao livre arbítrio do pesquisador responsável [decidir] quem acessava os dados (P2).

A título de exemplo, pesquisadores também podem não compartilhar seus conjuntos de dados por não perceber benefícios em sua carreira (citação pelos seus dados), não sentir nenhuma obrigação ética em disponibilizar os dados para outros pesquisadores, ou perceber como riscos outros pesquisadores terem mais benefícios com seus dados do que ele (mais publicações) e, ainda, o pesquisador pode considerar que ao compartilhar seus conjuntos de dados não será citado, perdendo o reconhecimento sobre o resultado do seu trabalho, assim como terceiros podem reutilizar os conjuntos de dados como sendo seus e assinar a autoria sobre os mesmos. Adicionalmente, os pesquisadores necessitam aprimorar as habilidades inerentes a gestão dos dados para seu compartilhamento.

Eu, neste momento eu tenho [certa habilidade]. Em um tempo eu tive algum problema de preguiça por falta de habilidades porque significa um esforço e um esforço de tempo significa recompensa em termos de prestígio (P1, grifo nosso).

[...] porque eu não me dedico a essas coisas [referente a gestão dos dados], me dedico à parte científica (P3).

Ao longo das pesquisas, são despendidos tempo, energia e trabalho com o ciclo de vida dos dados. Publicar os dados ou torná-los públicos antes das publicações dos resultados das pesquisas e das análises dos dados pode, também, depender do quanto de esforço o pesquisador teve e como ele avalia o cenário para a publicação. Pode-se verificar esse aspecto na fala do pesquisador:

[...] publica [os dados] dependendo do tipo de esforço. Em nosso caso que tem sido uma longa pesquisa de anos e publicamos [os dados] abertamente em uma página Web depois de ter feito uma série de publicações, não foi uma publicação foi um grupo de publicações (P1).

No quadro 7 são apresentados os aspectos identificados nas respostas dos pesquisadores participantes da pesquisa sobre as temáticas que podem instaurar o estado de anomia.

Quadro 7 -
Respostas dos pesquisadores referentes aos índices

A percepção e as crenças dos pesquisadores sobre carreira (Benefícios, Riscos e Esforços), aspectos sociais (Benefícios para a sociedade e Ética) e recursos disponíveis (Suporte dos bibliotecários) influenciam os comportamentos dos pesquisadores em relação ao compartilhamento de dados e tem potencial de alinhar com os ideais apresentados da comunicação científica. Merton (1973MERTON, R. K. The normative structure of science. In: MERTON, R. K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. p. 223-280.) preconizava que “A concepção institucional da ciência como parte do domínio público está ligada ao imperativo de comunicação das descobertas. O sigilo é a antítese dessa norma” ( MERTON, 1973MERTON, R. K. The normative structure of science. In: MERTON, R. K. The sociology of science: theoretical and empirical investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. p. 223-280., p. 274, tradução nossa). Os resultados demonstram que as atitudes de compartilhamento dos pesquisadores corroboram os preceitos de Merton quando relacionado à comunicação de seus dados e o faz, após a comunicação de suas descobertas com a publicação científica tradicional.

Pesquisadores que percebem menos benefícios e mais riscos na carreira e maior esforço para o compartilhamento de dados são mais propensos a ter atitudes negativas em relação ao compartilhamento de dados descumprindo as regras gerando o estado de anomia. Com relação aos Recursos, a disponibilidade de serviços oferecidos pelos bibliotecários, e aos Benefícios para a sociedade e Ética podem apoiar a conscientização dos pesquisadores em comportamentos que levam ao compartilhamento de dados, mesmo antes da finalização dos projetos e publicação de todos os resultados, além de contribuírem para fortalecimento das regras e diminuição da negação da moral, aspectos que levam ao estado de anomia.

A análise dos dados mostrou a anomia no contexto dos pesquisadores com a pouca clareza ou confusão das normas institucionalizadas, sociais e morais, descumprimento das orientações das instituições, desequilíbrio entre as metas e os caminhos para atingi-las e pouca habilidade para a gestão dos dados.

5 Conclusões

Neste artigo, concentrou-se nas percepções de pesquisadores sobre fatores que podem levar a um estado de anomia no compartilhamento de dados, e ressalta-se a relevância de se identificar quais fatores podem instaurar um estado de anomia nos pesquisadores, pois com a anomia é possível gerar sentimentos e comportamentos negativos, como confusão ou falta de clareza das normas, incerteza, descumprimento de regras, desequilíbrio entre as metas institucionais e os caminhos para atingi-las e, consequentemente, a um comportamento desviante em relação ao compartilhamento dos dados.

Foi apresentado um framework com 13 índices referentes às categorias Cognitivo, Normativo, Regulador, Carreira, Recursos e Sociais que apresentam potencial para influenciar a decisão dos pesquisadores em compartilhar ou reter seus conjuntos de dados. A constituição dos índices teve sua origem nas temáticas identificadas nos documentos analisados e nas entrevistas e questionários aplicados aos bibliotecários, usuários dos repositórios de dados estudados.

Espera-se que o framework apresentado possa fornecer um cenário de fatores com relevante potencial para influenciar a atitude de pesquisadores no processo de compartilhamento de dados, principalmente quando consideradas questões relacionadas à pouca clareza das normas, ruptura entre as normas institucionais e os valores culturais, descumprimento das regras existentes, ou seja, de seu estado de anomia em relação ao compartilhamento de seus dados de pesquisa.

Destaca-se que os pesquisadores precisam de orientações sobre os diversos aspectos que envolvem o compartilhamento de dados e, assim, evitar a anomia que impacta negativamente a aderência entre suas percepções, perspectivas, a operacionalização de repositórios de dados e o compartilhamento de dados.

Durante a pesquisa, percebeu-se que os pesquisadores demonstraram não ter habilidades para preparar seus dados para reutilização e, ainda, têm pouca clareza das normas e condutas necessárias relacionadas aos agentes envoltos nos índices do framework: Ciência aberta, Princípios FAIR, Agências de fomento e Plano de gestão de dados.

Em uma sociedade há valores dominantes, valores culturalmente aceitos, os quais a maioria elege como ideais para uma convivência harmônica. Nesse aspecto, a comunidade acadêmica, em muitas áreas do conhecimento, tem como valores dominantes ou como cultura a retenção dos dados da pesquisa e publicação dos resultados na comunicação científica tradicional, como livros, capítulos de livros e artigos científicos.

Em âmbito geral observa-se que a cultura tem forte influência no comportamento dos pesquisadores, na medida em que é seguido ou praticado nas comunidades científicas com a publicação dos resultados, muitos em editores comerciais, e pouca ou nenhuma disponibilização pública dos dados, fato constatado com as declarações dos entrevistados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2022
  • Aceito
    05 Ago 2022
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