Acessibilidade / Reportar erro

O comportamento em informação de mulheres vítimas de violência doméstica: análise das barreiras sociais de acesso à informação na perspectiva de Chatman

The information behavior of women victims of domestic violence: analysis of social barriers to access to information from Chatman's perspective

Resumo:

Examina as características do comportamento em informação de mulheres vítimas de violência doméstica em relação às barreiras sociais de acesso à informação. Especificamente, descreve as circunstâncias que encorajaram mulheres vítimas de violência doméstica a buscarem informações. As reflexões desta pesquisa fazem menção aos trabalhos desenvolvidos na área da Ciência da Informação por Chatman. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com duas profissionais do Centro das Mulheres do Cabo e com quatro mulheres vítimas de violência doméstica que lá buscaram atendimento. Os dados obtidos foram examinados à luz da análise de conteúdo. O estudo evidenciou as questões sociais que atravessam os fluxos informacionais, além das normas sociais que conformam o comportamento em informação das mulheres vítimas de violência doméstica, explicitadas na naturalização dessa crueldade, na manutenção do sigilo acerca de suas necessidades em informação e nos recursos de autoproteção adotados. Portanto, pode-se assumir que essas mulheres vivenciam uma realidade de pobreza em informação.

Palavras-chave:
comportamento em informação; normas sociais; pobreza em informação; violência doméstica

Abstract:

It examines the characteristics of information behavior of women victims of domestic violence in relation to social barriers to accessing information. Specifically, it describes the circumstances that encouraged women victims of domestic violence to seek information. The reflections of this research mention the works developed in the area of Information Science by Chatman. Data were collected through semi-structured interviews with two professionals from the Centro das Mulheres do Cabo and with four women victims of domestic violence who sought care there. The data obtained were examined in the light of content analysis. The study highlighted the social issues that cross information flows, in addition to the social norms that shape the information behavior of women victims of domestic violence, explained in the naturalization of this cruelty, in the maintenance of secrecy about their information needs and self-protection resources. adopted. Therefore, it can be assumed that these women experience a reality of poverty in information.

Keyword:
information behavior; social norms; information poverty; domestic violence

1 Introdução

Para contar a história da vida das mulheres, é preciso falar em silêncios e em marginalização. Silenciadas dos seus direitos e do processo informacional e marginalizadas do centro das decisões públicas, elas foram colocadas em um lugar de submissão, de invisibilidade e de passividade e à parte do centro das decisões familiares e políticas. Por tudo isso, vivenciam diversas formas e expressões de exclusão, uma delas em relação ao que Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) denominou de “pobreza em informação”. Para essa autora, um mundo de pobreza em informação é aquele em que uma pessoa não deseja ou não sabe resolver um problema crítico, pois se percebe desprovida de quaisquer fontes de informação que poderiam ajudá-la.

Esforços de resistência são empenhados por movimentos sociais que lutam pelo fim da segregação feminina e por igualdade de direitos. Esses movimentos, em geral, estruturados em organizações não governamentais (ONGs) feministas, empreendem ações de emancipação política que impulsionam o empoderamento e a cidadania das mulheres, além de dar notoriedade às causas femininas e propor modos críticos de analisar as relações sociais entre homens e mulheres (GREGORI, 2017GREGORI, Juciane de. Feminismos e resistência: trajetória histórica da luta política para conquista de direitos. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 30, n. 2, p. 47-68, jul./dez. 2017. Disponível em: https://www.doi.org/10.14393/CEF-v30n2-2017-3 . Acesso em: 6 mar. 2023.
https://www.doi.org/10.14393/CEF-v30n2-2...
; SARTI, 1988SARTI, Cynthia. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 64, p. 38-47, fev. 1988. ). Para Marteleto (2001MARTELETO, Regina Maria. Informação e construção do conhecimento para a cidadania no terceiro setor. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 11, n. 1, 2001. ), a disponibilização de informações por entidades do terceiro setor como as ONGs é o combustível para que as mulheres se apropriem de novos conhecimentos e reavaliem as próprias relações sociais.

Embora tenham um histórico ascendente de visibilidade e conquista de direitos, as mulheres ainda precisam percorrer um longo caminho. A despeito do advento de leis protetivas, no caso do Brasil, a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Presidência da República, 2006. ), os casos de feminicídio e os registros oficiais de agressão às mulheres vêm aumentando gradativamente. Em um recorte temporal ilustrativo, no Brasil, durante a pandemia mundial da COVID/19, os números relativos ao fenômeno da violência doméstica triplicaram durante os meses de março a dezembro de 2020. Em catorze estados brasileiros, o número de feminicídios aumentou. Juntos, eles tiveram um aumento de 20% em comparação com o mesmo período de 2019. Casos de violência doméstica aumentaram em 50% durante a pandemia. Em 2020, durante os meses mais críticos da pandemia, 1.005 mulheres morreram pelo simples fato de serem mulheres. Isso quer dizer que, por dia, pelo menos três mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, no auge das rotinas pandêmicas (CONTEÚDO, 2020CONTEÚDO, Marco Zero . Na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios por dia. MarcoZero, Recife, 8 out. 2020. Disponível em: https://marcozero.org/na-pandemia-tres-mulheres-foram-vitimas-de-feminicidios-por-dia/ . Acesso em: 1 jun. 2022.
https://marcozero.org/na-pandemia-tres-m...
).

Este estudo teve o objetivo de examinar as características do comportamento em informação de mulheres vítimas de violência doméstica em relação às barreiras sociais de acesso à informação. Nessa perspectiva, as reflexões desta pesquisa fazem menção aos trabalhos desenvolvidos por Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999., 2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ) sobre o comportamento em informação, especificamente suas análises sobre as barreiras sociais de acesso à informação. Na área da Ciência da Informação (CI), a autora tem-se destacado por estudar mulheres circunscritas a determinados contextos sociais, e os resultados de suas pesquisas representam uma importante contribuição teórica para as investigações empíricas sobre o comportamento em informação.

Isso posto, o objeto deste estudo é o comportamento em informação de mulheres vítimas de violência doméstica e privilegiou conversar com mulheres que buscaram apoio e orientação no Centro das Mulheres do Cabo (CMC), ONG que atua em diversas frentes de resistência feminina, dentre elas, o enfrentamento da violência doméstica, no território de Suape, que compreende oito municípios do estado de Pernambuco: Cabo de Santo Agostinho, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Escada, Ribeirão, Rio Formoso, Sirinhaém e Ipojuca.

A escolha por esse espaço se justifica porque ele é pioneiro no movimento feminista em Pernambuco e no Nordeste. Foi fundado em março de 1984, e mais de 9.000 mulheres já foram beneficiadas por suas ações formativas e educativas, que consistem em disponibilizar informações seguras e úteis amparadas no referencial teórico-político do feminismo. A ONG também transmite, desde 1997, programas de rádio diários, em uma emissora comunitária, por meio da qual leva para o grande público conhecimentos sobre empreendedorismo social e responsável, acesso à saúde e à educação e sobre a violência doméstica. Alcança um número expressivo de ouvintes.

2 O comportamento em informação em contextos informacionais empobrecidos: a visão de Elfreda Chatman

Ao longo do tempo, propostas de modelos de comportamento em informação foram apresentadas na tentativa de mapear a multiplicidade de contextos e enfoques em relação aos usuários e às fontes informacionais. Como o próprio Wilson (1999WILSON, Tom. Models in information behaviour research. Journal of Documentation, Yorkshire, v. 55, n. 3, p. 249-27, jul. 1999. Available in: https://doi.org/10.1108/EUM0000000007145 . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1108/EUM0000000007145...
) reconhece, a maioria dos modelos, no campo geral de comportamento em informação, são declarações que tentam descrever uma atividade de busca de informação, as causas e as consequências dessa atividade ou as relações entre os estágios da busca. “Raramente tais modelos avançam para o estágio de especificação de relações entre proposições teóricas: em vez disso, eles estão em um estágio pré-teórico” (WILSON, 1999WILSON, Tom. Models in information behaviour research. Journal of Documentation, Yorkshire, v. 55, n. 3, p. 249-27, jul. 1999. Available in: https://doi.org/10.1108/EUM0000000007145 . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1108/EUM0000000007145...
, p. 250, tradução nossa), embora possam sugerir relações frutíferas para explorar ou testar.

Nesse tema, destacamos Elfreda Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, 2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ), cujas investigações enriqueceram os estudos socioculturais do comportamento em informação e para quem o comportamento em informação das pessoas está ligado aos contextos de interação social, às necessidades circunstanciais e às normas sociais convencionadas a determinados indivíduos ou grupos.

Sob o ponto de vista de Chatman (2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ), para entender o processo de busca e apropriação da informação, é mais adequado, primeiro, compreender o comportamento da pessoa em relação à informação. Para ela, o comportamento em informação é um estado em que uma pessoa pode ou não buscar uma informação relevante, pode ou não agir com base na informação recebida e estar sempre subjugada às normas sociais do grupo social no qual se insere.

Em seus estudos sobre comportamento em informação, Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999., 2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ) investiga grupos de mulheres em estado de vulnerabilidade social em contextos específicos, visando avaliar como determinadas conjunturas microssociais intervêm no comportamento em informação de seus membros. As pesquisas são empreendidas no sentido de descrever os obstáculos para o acesso à informação e ao conhecimento e a forma como as pessoas percebem suas necessidades informacionais, assim como o uso dado às informações em seu cotidiano.

2.1 O contexto informacional de um mundo pequeno

Para Chatman (2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ), é fundamental observar o papel que a informação desempenha em um mundo pequeno (small world), o que caracteriza em um horizonte informacional restrito, como no caso de pessoas que dividem diariamente todos os espaços de convivência entre si. “Um fator que parece justificar isso é a base de uma realidade compartilhada” (CHATMAN, 2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. , p. 207, tradução nossa). Para ilustrar, o estudo de Merton (1972MERTON, Robert. Insiders and outsiders: A chapter in the sociology of knowledge. American journal of sociology, Chicago, v. 78, n. 1, p. 9-47, 1972. Available in: https://www.doi.org/10.1086/225294 . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://www.doi.org/10.1086/225294...
) utilizado por Chatman (2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ) sobre teoria e estrutura social é adequado. O autor identificou dois tipos de indivíduos e as redes que eles escolhem para pedir apoio e aconselhamento: os “cosmopolitas” e os “locais”. Ser cosmopolita ou “outsider” significa ter uma orientação para fora, com ênfase no ambiente macrossocial. Por outro lado, os “locais” são “insiders”, cujos interesses focam a realidade cotidiana e limitada da vida ao seu redor. Sobre o comportamento dos “insiders” em relação à informação que não esteja facilmente disponível em seus “pequenos mundos” de convívio social, Chatman afirma:

O que torna essas informações potencialmente dignas de nota é que são produzidas dentro de um contexto específico para uso dentro desse contexto. Consequentemente, elas se encaixam facilmente na realidade da vida cotidiana. Mesmo que as dúvidas possam permanecer sobre a verdadeira natureza da informação, sua capacidade de moldar uma visão de mundo coletiva raramente é questionada (CHATMAN, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999., p. 208-209, tradução nossa).

Consequentemente, as informações sobre a sociedade em geral têm um interesse mínimo. Ao contrário dos cosmopolitas, os habitantes locais dedicam a maior parte de seu tempo e energia para manter os relacionamentos na comunidade. Chatman (1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.) utiliza a teoria de Luckmann (1970LUCKMANN, Benita. The small life-worlds of modern man. Social Research, New York, v. 37, n. 4, p. 580-596, 1970.), que caracterizou um mundo pequeno definido por crenças compartilhadas por seus membros: agindo de acordo com as normas e as expectativas geralmente reconhecidas, que emanam da visão conjunta de mundo, as pessoas sabem sobre a ordem certa das coisas e que fazem sentido naquele ambiente particular, destacando-se aqui a dominação masculina.

Na visão de Chatman (1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.), um elemento que une esse mundo pequeno é o controle social. Berger (19631 1 BERGER, P. L. Invitation to sociology. New York: Anchor Books, 1963. ApudChatman (1999). apudCHATMAN, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.) observa que a função primária das normas sociais é de dizer a um indivíduo exatamente o que ele pode fazer e o que pode esperar da vida. Assim sendo, é fácil entender por que esses conjuntos de normas e valores são compartilhados e aceitos coletivamente. Nos limites desses pequenos mundos, aceitam-se certas maneiras de falar, de se comportar e de aceitar ou rejeitar informações.

2.2 O papel dos insiders e dos outsiders no contexto informacional

Ao introduzir o papel dos insiders e dos outsiders e dizer o que isso significa à luz do comportamento em informação, Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) assevera que nenhuma discussão séria sobre insiders/outsiders é concluída sem um exame da maior contribuição feita pelos estudos de Merton (1972MERTON, Robert. Insiders and outsiders: A chapter in the sociology of knowledge. American journal of sociology, Chicago, v. 78, n. 1, p. 9-47, 1972. Available in: https://www.doi.org/10.1086/225294 . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://www.doi.org/10.1086/225294...
), cujo tema central do debate é sobre o acesso ao conhecimento e sua aquisição. Dito de outra maneira, os insiders reivindicam acesso privilegiado para certos tipos de conhecimento e acreditam que somente eles podem realmente compreender o mundo social e informacional de outros insiders. “Embora esse conhecimento tenha um escopo estreito, serve para isolar e proteger a visão de mundo dos insiders da intervenção dos outsiders” (CHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, p. 195, tradução nossa). Por outro lado, os outsiders também reivindicam acesso a novos conhecimentos, embora suas reivindicações repousem em suas percepções de que eles têm uma visão de mundo mais cosmopolita, portanto, de fácil acesso aos seus recursos.

Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.) se refere aos insiders como as pessoas que estão incluídas dentro de um mundo pequeno, ou uma comunidade, portanto, compreendem bem mais as normas sociais vigentes. Ao fazer isso, eles estabelecem padrões para todos os outros. Uma das principais tarefas dos insiders é a de formar a identidade de uma comunidade. Isso significa que eles têm um domínio sobre as normas e as maneiras de julgar o que é importante, em comparação com o que é trivial ou inútil. “Eles são o quadro de referência por excelência para observar e controlar não apenas o comportamento, mas também o fluxo de informações em um mundo social” (CHATMAN, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999., p. 212, tradução nossa). O papel dessas normas é de definir as informações que são legítimas para buscar e apropriadas para compartilhar.

A ideia de que as coisas só podem ser compreendidas por outros insiders pode explicar por que existem barreiras informacionais entre esses dois mundos. Uma razão, segundo Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), é a dúvida que os insiders têm em relação à capacidade dos outsiders (das pessoas de fora) de entenderem o mundo deles. “Parece então que, além de uma visão de mundo isolada e pequena, a sensação de que os outsiders não podem compreender um mundo diferente do seu leva a uma condição de sigilo e proteção” (CHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, p. 194, tradução nossa). Essa dinâmica reforça o que Chatman chama de pobreza em informação.

2.3 Pobreza em informação

“Um mundo empobrecido de informações é aquele em que uma pessoa não deseja ou é incapaz de resolver uma inquietação ou preocupação crítica” (CHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, p. 197, tradução nossa). Um fator que contribui para a escassez de informações, de acordo com as análises de Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), é a comunidade de insiders. Isso significa que nosso lugar, dentro de um contexto social, é moldado pelas normas de outros insiders.

Em seu estudo com idosas residentes em uma casa de repouso, Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, 2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ) concluiu que elas não estavam envolvidas na busca ou na partilha de informações porque desejavam mostrar uma aparência de normalidade. Em alguns casos, a impressão de bem-estar significava a capacidade de manter certo grau de independência e autonomia ou revelava o medo de enfrentar a possibilidade real de ser expulsa da comunidade de aposentados. A condição para se manter na comunidade de aposentadas era de estar relativamente saudável, o que significava que as que precisassem dos serviços de enfermagem tinham que partir. E como as idosas temiam ser destituídas, escolheram parecer mais saudáveis do que realmente eram.

Por essa razão, elas não contavam a ninguém sobre suas preocupações com a saúde, suas incertezas sobre o futuro e sua incapacidade de lidar com o processo de envelhecimento ou sobre sensações de isolamento e solidão, logo, ficavam em circunstâncias desfavoráveis e escondiam a situação, inclusive, dos próprios filhos. Uma razão para isso poderia ser vista como dependência.

Então, mesmo que as mulheres pudessem ter algum ganho a partir do compartilhamento de suas necessidades, depois de analisar as possíveis consequências, elas optaram por não arriscar a compartilhá-las. Os limites desse mundo aparentemente isolado de apoio mútuo e de ajuda, constituído numa pequena sociedade em que o envelhecimento das mulheres foi impulsionado por comportamentos de autoproteção, num esforço para transparecer normalidade (enganando aos outros e a si mesmas), enquanto suas vidas iam desfalecendo, é o que Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) denomina de pobreza em informação. Ou seja, pessoas pobres em informação se percebem desprovidas de quaisquer fontes de informação que poderiam ajudá-las. Como essa não é uma condição isolada, a pobreza de informação é definida pelos comportamentos de autoproteção que são adotados com base nas normas sociais. Nas reflexões de Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), é o predomínio de quatro conceitos essenciais que constitui um estilo de vida pobre em informação: sigilo, engano, assumir riscos e relevância situacional. Dois deles são explicitados neste artigo.

2.4 O sigilo e o engano como mecanismos de autoproteção

O propósito do sigilo é de se proteger da invasão indesejada de qualquer pessoa, principalmente outsiders, à esfera particular de nossas vidas. De acordo com Simmel (19502 2 SIMMEL, G. The sociology of Georg Simmel. Wolf: The free press, 1950. ApudChatman (1996). apudCHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), o sigilo é a ocultação da realidade por meios negativos ou positivos. Luhrmann (19893 3 LUHRMANN, T. M. The magic of secrecy. Ethos, Hoboken, v. 17, n. 2, p. 131-165, jun. 1989. ApudChatman (1996). apudCHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) entende o sigilo como um mecanismo que as pessoas utilizam para se proteger de invasões ao seu espaço privado.

Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) afirma que ocultar informação faz parte de um mecanismo em que uma pessoa deseja ser vista como insider. Na vida cotidiana, um segredo é algo que, se divulgado, acarreta um enorme risco. Portanto, a informação é retida para preservar a autonomia.

O sigilo, portanto, dá uma visão importante a respeito da aquisição e do uso da informação. O ponto é que, no sigilo, o objetivo é de proteger do compartilhamento, como consequência, o indivíduo deixa de ser receptivo às informações. Decorre disso que a necessidade de sigilo explica por que as mulheres vítimas de violência doméstica escondem sua verdadeira situação.

O engano, por seu turno, é uma tentativa deliberada de mascarar a realidade, a qual vai sendo conscientemente distorcida. Isso é um processo destinado a esconder a verdadeira condição com informações falsas e enganosas. O resultado é menos possibilidade de receber informações úteis e um comportamento que faz parecer que a informação solicitada é irrelevante (CHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
).

3 A violência contra a mulher

A violência pode ser tratada como um transtorno social enraizado na cultura patriarcal, que acontece a partir de conflitos coletivos e privados, em diferentes graus e esferas, e atinge todo e qualquer tipo de pessoa ou classe social. E quando se trata das questões de gênero, as mulheres são bem mais atingidas socialmente por esse fenômeno, que abrange violência doméstica, sexual, psicológica, patrimonial e outras. A Organização das Nações Unidas (ONU) entende a violência contra as mulheres como uma forma de discriminar e de violar os direitos humanos. Sandenberg (2016SANDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; TAVARES, Márcia Santana; GOMES, Márcia Queiroz. Monitorando a Lei Maria da Penha: reflexões sobre a experiência do Observe. In: SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; TAVARES, Márcia Santana. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 41-67. ) explica que a violência doméstica contra a mulher se exerce apenas porque ela é mulher. Atinge mulheres de todas as idades, classes, castas, raças, etnias e orientações sexuais. Inclui agressão ou sofrimento físico, mental ou sexual, ameaças, coerção e outros atos que privam as mulheres de liberdade. Mas “é no âmbito familiar e doméstico e, principalmente da parte de parceiros ou ex-parceiros conjugais, que as mulheres acabam por vivenciar situações de violência” (SANDENBERG, 2016SANDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; TAVARES, Márcia Santana; GOMES, Márcia Queiroz. Monitorando a Lei Maria da Penha: reflexões sobre a experiência do Observe. In: SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; TAVARES, Márcia Santana. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 41-67. , p. 42). Portanto, a violência doméstica envolve relações pessoais e íntimas conectadas a contextos afetivos familiares.

A frequência e a suposta naturalidade da forma como e onde ocorrem os episódios de violência são resultados da estrutura social que garante ao homem poder sobre as mulheres. De acordo com Espírito Santo (2008ESPÍRITO SANTO, Patrícia. Os estudos de gênero na ciência da informação. Em Questão, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 317-332, jul./dez. 2008., p. 328), “os problemas enfrentados hoje pelas mulheres têm raízes históricas e sociais, são vistos como naturais até por elas mesmas e, como tal, difíceis de serem combatidos”. E como essa violência é um fenômeno complexo, analisá-la e enfrentá-la requer esforços para identificar convenções sociais e aspectos culturais e estruturais da sociedade para além de levantamentos de informações estatísticas.

De modo geral, as vítimas silenciam seus sofrimentos, seja por medo, seja por desconhecer seus direitos e falta de acesso à informação. No Brasil, a Lei no 11.340 de sete de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, veio ao encontro dos anseios feministas devido ao reconhecimento dos crimes sofridos pelas mulheres apenas por serem mulheres. Essa lei representa um grande avanço quanto à responsabilidade do Estado em manter um aparelhamento público para auxiliar as mulheres vítimas de violência, como centros de atendimento integral e multidisciplinar, casas-abrigo para mulheres e filhos menores em risco iminente de feminicídio, delegacias especializadas da mulher, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal, todos especializados em atendimento feminino.

Temos, ainda, os esforços de organizações não governamentais feministas que reivindicam a libertação da mulher de todos os padrões e expectativas comportamentais baseados na discriminação de gênero. “O feminismo tem a própria historicidade que articula luta, militância e fundamentação teórica” (SILVA, 2019SILVA, Jacilene. Feminismo na atualidade: a formação da quarta onda. Recife: Independently Published, 2019., p. 12).

Destarte, temos o Centro das Mulheres do Cabo (CMC) como local de nossa investigação. Trata-se de uma organização feminista, fundada em 1984 e constituída como entidade sem fins econômicos, com a missão de construir a igualdade de gênero e raça e afirmar os direitos humanos das mulheres na perspectiva feminista. Historicamente, o CMC atuou em defesa dos direitos humanos, da democracia e da justiça social, colocando a mulher na posição protagonista em suas relações sociais.

4 Procedimentos metodológicos

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com quatro mulheres vítimas de violência doméstica atendidas pelo CMC. O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Pernambuco, em 14 de julho de 2021, e aprovado para ser executado em 21 de julho de 2021, conforme parecer de número 4.858.966. Ademais, o compromisso ético da pesquisa foi complementado com a utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Inicialmente foram realizadas duas visitas à sede da entidade visando a uma familiarização com o espaço a ser analisado e entrevistar a coordenadora do CMC e a psicóloga, profissional responsável pelo acolhimento inicial das mulheres que buscam apoio na entidade. Nesses contatos iniciais, soube-se que o CMC já teve, entre suas associadas, figuras expoentes do cenário municipal e regional, como uma de suas fundadoras e primeira diretora, Efigênia Oliveira, a primeira mulher a se tornar vereadora na cidade do Cabo de Santo Agostinho, e a advogada Lucidalva Nascimento, que ingressou ainda nos anos iniciais de sua fundação. Ativista do feminismo negro e do enfrentamento à violência contra as mulheres, Lucidalva Nascimento representou o CMC na rede de organizações feministas e trabalhou na elaboração do texto-base para a criação da Lei Maria da Penha. Portanto, as entrevistas com as duas profissionais do Centro das Mulheres foram fundamentais para conhecer o histórico da ONG e possibilitar o acesso às mulheres que deveriam ser entrevistadas.

As mulheres vítimas de violência doméstica participantes deste estudo foram indicadas pela psicóloga do CMC. Foram selecionadas as histórias mais representativas de mulheres que ela conseguiu contatar. Portanto, as entrevistadas eram mulheres que mantiveram um vínculo de participação ativo com o CMC.

As entrevistas, que foram feitas individualmente e de forma remota, por meio de chamadas de vídeo pelos aplicativos WhatsApp e Google Meet, como protocolo de prevenção ao contágio do coronavírus, no período de janeiro a março de 2022, foram gravadas em formato de áudio e transcritas. Na transcrição, trabalhou-se apenas na pontuação (com base no ritmo da linguagem oral).

Como se trata de um estudo com foco em entrevistas individuais, não foi definido o número de entrevistadas previamente. A primeira, feita como teste, já indicou que seria preciso estar com as entrevistadas durante muito tempo, para aprofundar com elas os episódios vividos. Todas as entrevistadas demonstraram necessidade e urgência em falar, como se quisessem expurgar as dores sofridas. Por esse motivo, cada entrevista durou entre uma e duas horas, o que impossibilitou se obter um número maior de depoimentos. Todavia, ao se inserir com mais profundidade no campo de estudo, percebeu-se quantas entrevistas poderiam atingir os objetivos da pesquisa. Há que se considerar que algumas mulheres resistiram em falar sobre o assunto e se negaram a participar da pesquisa. Assim, entrevistaram-se quatro mulheres, um número satisfatório para responder ao objetivo do estudo.

As reflexões desta pesquisa fizeram menção aos trabalhos desenvolvidos na área da Ciência da Informação por Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
, 1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999., 2000CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000. ), especificamente, suas análises das barreiras sociais de acesso à informação. Para analisar e interpretar os dados, recorreu-se aos conceitos definidos por Chatman, no que diz respeito ao comportamento em informação, mais especificamente, quais as circunstâncias que impulsionaram as mulheres a buscarem informações no Centro das Mulheres Cabo.

Os resultados foram explorados com base na análise de conteúdo, um meio de produzir inferências acerca dos dados, verbais ou simbólicos, obtidos nas entrevistas e nas observações de interesse da investigação (BARDIN, 2006BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006.; FRANCO, 2018FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de conteúdo. Brasília: Liber Livro Editora, 2018.). A descrição das mensagens faladas e gravadas foi a primeira etapa da análise, e a interpretação, a última. A inferência foi o procedimento intermediário que possibilitou a passagem da descrição para a interpretação. Produzir inferências, de acordo com Franco (2018FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de conteúdo. Brasília: Liber Livro Editora, 2018.), é o que confere relevância teórica à análise de conteúdo.

A categorização é uma operação que consiste em classificar a partir dos objetivos da pesquisa. “Formular categorias, em análise de conteúdo, é, via de regra, um processo longo, difícil e desafiante” (FRANCO, 2018FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de conteúdo. Brasília: Liber Livro Editora, 2018., p. 63). Os componentes das mensagens analisadas foram agrupados em uma categoria molar (mais ampla e relacionada aos objetivos da pesquisa) e, posteriormente, reagrupados por categorias moleculares (mais específicas, de acordo com as inferências da pesquisadora), como apresentado no Quadro 1.

Quadro 1 -
Criação de categorias de análise do conteúdo

Uma categoria molar foi criada a priori e três categorias moleculares foram determinadas a posteriori, portanto, delimitadas como análise temática (MINAYO, 2005MINAYO, Maria Cecília de Souza. Laços perigosos entre machismo e violência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 23-26, mar. 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000100005 . Acesso em: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200500...
), a partir da identificação de temas que caracterizavam a constituição e a essência do fenômeno em estudo, com base no conteúdo das entrevistas. Posteriormente, os temas foram revisados para verificar sua capacidade descritiva sobre a amostra de dados qualitativos coletados nas entrevistas.

5 O comportamento em informação das mulheres vítimas de violência doméstica

Nesta seção, apresentam-se os resultados e as análises da pesquisa. Na primeira subseção, o perfil das entrevistadas, e na segunda, os dados qualitativos referentes ao comportamento em informação dessas mulheres na busca de orientação para romper com a violência doméstica que sofriam.

5.1 Perfil das mulheres vítimas de violência doméstica

Para preservar a identidade das participantes utilizaram-se nomes de autoras feministas negras brasileiras (Quadro 2). Na primeira parte do roteiro de entrevista utilizado foram delineados aspectos com vistas a traçar o perfil sociodemográfico dessas mulheres, apresentado sinteticamente no Quadro 2.

Quadro 2 -
Perfil das entrevistadas

Lélia Gonzalez, a primeira das entrevistadas, não demonstrou nenhum problema para falar das violências sofridas. É reconhecida no município do Cabo de Santo Agostinho por conceder inúmeras entrevistas a veículos locais e nacionais. Foi a primeira mulher a acionar a Lei Maria da Penha no Brasil, quando, no dia 22 de setembro de 2006, seu ex-marido foi enquadrado sob a legislação recém-promulgada. Atualmente mora com um dos seus quatro filhos, em uma casa alugada, no maior e mais pobre bairro da cidade do Cabo de Santo Agostinho; Conceição Evaristo mora sozinha, numa casa própria, em um dos bairros mais populosos do Cabo de Santo Agostinho, e já trabalhou como auxiliar administrativa e recepcionista; Djamila Ribeiro é casada e mora em casa própria, localizada em um bairro limítrofe entre as zonas urbana e rural; Carla Akotirene está concluindo o último ano do ensino médio, mora com os três filhos, em uma casa própria, em um bairro da zona rural do Cabo de Santo Agostinho, é beneficiária de um programa de auxílio financeiro governamental e complementa sua renda como faxineira. Sua renda mensal é de um salário mínimo e meio.

O perfil sociodemográfico das entrevistadas retratou mulheres que vivenciam vulnerabilidade social, eram trabalhadoras de baixa renda ou desempregadas, com dificuldade de aceder à educação e, consequentemente, ao mercado de trabalho formal. Residentes em bairros pobres, viviam em mundos pequenos, numa demarcação espacial e social em que vivenciavam rotinas e preocupações em comum, expostas a situações circunscritas a um horizonte informacional pequeno e restrito, cujos limites influenciam o seu comportamento em informação. Nesse mundo pequeno, segundo Chatman (1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.), as experiências em comum e as convicções são aceitas pelos grupos sem nenhum questionamento, naturalizam-se e transformam-se em padrões de comportamento.

O perfil sociodemográfico reforça a exclusão social e informacional dessas mulheres. A busca por uma informação depende de uma série de restrições dos mundos pequenos onde vivem, o que evidencia um comportamento em informação que caracteriza pobreza informacional (CHATMAN, 1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
).

5.2 Circunstâncias que impulsionaram a busca por orientação no CMC

As circunstâncias que levaram as mulheres entrevistadas a romperem com o ciclo de violência incluíram muita desconfiança, vulnerabilidade e incertezas. Seus relatos são evidências e testemunhos do difícil processo de reconhecer sua condição como um problema passível de solução e, portanto, de procurar pela ajuda necessária. Os depoimentos entremeados de lágrimas, silêncios e pausas e a desordem na cronologia dos fatos, devido à dificuldade (relatada por elas) de resgatar dores e sofrimentos passados, revelavam sentimentos e dores antigas e o desamparo por desacreditarem, à época, que alguém poderia lhes auxiliar a dar fim à violência de que eram vítimas.

5.2.1 Vergonha e medo de assumir sua condição de vítima de violência doméstica

Os relatos das vítimas de violência doméstica expressam caminhos cruciais para se entender como as pessoas se veem, são definidas por outras e o efeito que esse processo tem sobre o uso ou na atitude de evitar ou buscar a informação. O Quadro 3 fornece pistas sobre como a informação pode ser considerada ou até mesmo negada, de acordo com as normas sociais dos grupos.

Quadro 3 -
Vergonha e medo de assumir sua condição de vítima de violência doméstica

A vergonha sela, com a cumplicidade coletivamente compartilhada das pessoas que formam o grupo social dessas mulheres, um pacto de produção e reprodução da violência doméstica e da soberania masculina. Devido ao apoio familiar e social, a vítima é responsabilizada pela violência a que é submetida. Assim, é frequente a comunidade entrar gradativamente numa espiral de dominação de gênero. E como não sabe como se desfazer de seu mal-estar, deposita na própria vítima a culpa e a responsabilidade pela crueldade com a qual é tratada. Como consequência, as mulheres vítimas de violência podem se transformar em culpadas, são censuradas e, até, aconselhadas a permanecer em relações abusivas e a suportar, grande parte do tempo sozinhas, a ardileza das violências que sofrem.

A vergonha de expor para a sociedade e para agentes públicos as agressões sofridas expressa a autoridade e o poder masculino que ainda fundamentam a base estruturante da família, suportados pela própria legitimação social dessa hierarquia. Ademais, são a cultura e a tradição dos povos que formam as normas e as leis e geram direitos e obrigações (MUNIZ; FORTUNATO, 2018MUNIZ, Alexandre Carrinho; FORTUNATO, Tammy. Violência doméstica: da cultura ao direito. In: BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Violência contra a mulher: um olhar do Ministério Público brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. p. 8-19). Embora hoje esses valores cedam lugar para outras composições, com relações democráticas, essa transição ainda se encontra em curso, pois o peso da tradição instrui e pereniza muitas gerações e traz obstáculos para as transformações. Portanto, assumir e compartilhar que a relação conjugal e familiar tenha problemas é um passo difícil para muitas mulheres, até porque a própria sociedade, em geral, não quer ouvi-las.

As falas fornecem pistas que indicam que as mulheres sentiam necessidade de manter em sigilo sua condição de vítima. De acordo com Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), o sigilo e o engano são recursos de autoproteção para evitar o julgamento dos outros a respeito de suas aflições, angústias e incertezas. O sigilo, nesse sentido, a ocultação da realidade, foi o recurso que essas mulheres encontraram para reivindicar uma dimensão privada de suas vidas. Assim sendo, encontraram um modo de manter em segredo suas experiências reais e de assumir sozinhas o fardo da violência.

Suas necessidades e o direito a uma vida sem violência não foram, algumas vezes, bem compreendidas pelos familiares e por outros membros da comunidade, e o engano foi uma tentativa deliberada de atuar, isto é, de distorcer a realidade de sofrimentos e humilhações. O engano, conforme Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), é um processo destinado a esconder suas verdadeiras condições, fornecendo informações falsas e enganosas sobre a realidade vivida.

Esses relatos ilustram que a participação como membros de um grupo social particular contribui para a pobreza informacional, uma vez que compartilhar informações não necessariamente significava que as mulheres vítimas de violência doméstica receberiam apoio. A necessidade de ter êxito no casamento, de ser bem-sucedida ou, no mínimo, de lidar bem com todo mundo é, segundo Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
), derivada das normas sociais. Compreender o efeito das normas sociais sobre o comportamento significa que, para essas mulheres, buscar informações não é apenas reconhecer, mas também compartilhar uma situação problemática com membros de um meio social homogêneo. Ademais, embora a reação de cada mulher à sua situação de vítima seja única, as tensões acumuladas no cotidiano, as injúrias e as ameaças tecidas pelo agressor criam, na vítima, uma sensação de perigo eminente. Assim, o sigilo é uma tentativa de preservar e proteger suas vivências (seus pequenos mundos) de estranhos e do convívio social.

5.2.2 A decisão de buscar informações

A ação de reunir forças e buscar ajuda no CMC foi o ponto último do desespero e da esperança para as mulheres (Quadro 4). Romper com o silêncio a respeito das violações que sofriam, reunir forças para buscar apoio e acesso às informações para enfrentar o quadro de violência no qual se encontravam significou querer viver com dignidade, experimentar a sensação de autonomia e se livrar das amarras de seus algozes.

Quadro 4 -
A decisão de buscar orientação informacional no Centro das Mulheres do Cabo

O tempo necessitado por cada mulher para romper o silêncio e buscar ajuda é uma evidência de que, no mundo real, uma quantidade razoável de pessoas não sabe onde localizar as informações de que necessita. Como consequência, as entrevistadas preferiram não ser informadas na tentativa deliberada (ou não) de falsear a realidade em que vivam. Continuar desinformadas foi o mecanismo que encontraram para se manterem em conformidade com as normas sociais determinadas pelo grupo social no qual estavam inseridas (Quadro 4).

Essa dinâmica caracteriza o que Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) denomina de pobreza de informação. De acordo com a autora, pessoas pobres em informação percebem-se desprovidas de quaisquer fontes de informação que poderiam ajudá-las. Como essa não é uma condição isolada, a pobreza de informação é definida pelos comportamentos de autoproteção que são adotados com base nas normas sociais.

O silêncio que oculta muitos tipos de violência contra a mulher reforça a premissa de que a denúncia é importante, mas a mudança deve ser social. Quando o problema deixar de ser visto como pessoal e alcançar status de problema social, é que se poderá obter a visibilidade necessária ao fenômeno da violência. Essa nova percepção deve repercutir na família, na sociedade e nas políticas públicas do Estado. Como destacam Muniz e Fortunato (2018MUNIZ, Alexandre Carrinho; FORTUNATO, Tammy. Violência doméstica: da cultura ao direito. In: BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Violência contra a mulher: um olhar do Ministério Público brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. p. 8-19, p. 8), “A impulsão do Estado pelos movimentos feministas à busca dos direitos das mulheres é algo que se destaca, mas há muito o que ser modificado, principalmente no que tange à valorização das mulheres na sociedade”.

Com efeito, embora perdure a situação de violência, este estudo aponta que existem mulheres que lutaram por respeito e reconhecimento e contra as condições de opressão e que, apesar da demora, iniciaram um processo para ampliarem seus direitos perante a sociedade, na perspectiva de alcançarem uma vida sem violências obtendo apoio psicológico, social, jurídico, dentre outros, para exercerem um novo papel na sociedade: o de cidadãs, empoderadas e protagonistas da própria historicidade.

5.2.3 A cooperação e o acolhimento de outras mulheres

Em todos os casos analisados (Quadro 5), as mulheres só conseguiram transpor as dificuldades para reagir às violências que sofriam e buscar os meios de ação contra seus agressores por causa do incentivo e da ajuda de outras mulheres de sua comunidade, parentes ou amigas. A busca de informação foi um processo que resultou do reconhecimento de que existia um problema e que uma solução era necessária. No entanto, foi fruto de um longo e conflitivo período de tempo. Há de se ressaltar a importância da capacidade das mulheres de ajudarem umas às outras, fator decisivo que impulsionou as vítimas de violência a se dirigirem ao CMC.

Quadro 5 -
O apoio e o acolhimento de outras mulheres

Considerando as condições familiares precárias em que as mulheres entrevistadas estavam inseridas, a busca por alguma informação que pudesse ajudá-las ocorreu em momentos limítrofes, quando elas já não suportavam os sofrimentos aos quais eram submetidas. Enfim, elas entenderam que precisavam agir. Todavia, conforme expressaram suas falas, a interferência de vizinhas e de outras mulheres foi crucial para buscarem informações no CMC. Foram essas mulheres solidárias que resolveram acolher e cooperar para que as vítimas de violência pudessem acessar alguma forma de colocar um ponto final nos episódios violentos aos quais estavam expostas.

Nessa perspectiva, não mais se justifica que os problemas de família sejam vistos como de cunho privado. A velha máxima de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” cedeu em favor de uma preocupação de maior magnitude: igualdade de gênero é um problema social. No Brasil, o aplicativo “Mete a Colher” (METE A COLHER, 2016METE A COLHER . Sinta-se livre: Aqui você mete a colher sim. Mete a Colher, Recife, 2016. Disponível em: https://www.meteacolher.org/ . Acesso em: 7 mar. 2023.
https://www.meteacolher.org/...
), que recebe pedidos de ajuda e oferece orientações a vítimas, e muitas organizações de apoio que têm uma rede de advogadas, psicólogas e assistentes sociais espalhadas pelo país, estão disponíveis para auxiliar, sem custos, as vítimas de violência doméstica.

Insistir na convicção de que a violência doméstica é assunto privado é praticar mais um ato de violência. Entender que a mulher agredida é quem deve assumir se deverá ou não se expor e expor sua família é descarregar nela um fardo que se acresce à violência que ela já suporta. A depender da pressão e das normas sociais às quais essa mulher está exposta, ela não encontra condições de decidir, nem mesmo em causa própria. Portanto, ‘meter a colher’, nesse caso, não é invadir a privacidade, é, antes de tudo, aprofundar ações coletivas pelo fim da violência contra mulheres, para garantir que suas vozes e histórias sejam ouvidas, em vez de desacreditadas ou silenciadas.

Assim, quando decidem buscar apoio no CMC, em vez de procurar atendimento nos centros de referência e nas delegacias especializadas, essas mulheres corroboram o que Chatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
) chama de uma permanente tensão entre insiders e outsiders. Embora exista a necessidade por informação, as mulheres acreditam que os outsiders (delegacias e centros de referência), em relação ao seu círculo social, não podem, não sabem ou não se interessam em ajudá-las. Ainda que esses outsiders detenham a informação relevante e a competência para ajudar as mulheres, a prioridade em buscar o CMC reside no fato de que a entidade já está inserida no cotidiano comunitário e é um insider confiável para fornecer orientações.

6 Considerações finais

Como já referido, o objetivo geral desta pesquisa foi de examinar as características do comportamento em informação de mulheres vítimas de violência doméstica que buscaram algum tipo de orientação informacional no Centro das Mulheres do Cabo. Especificamente, a pesquisa descreveu as circunstâncias que encorajaram as mulheres a buscarem informações.

Entrevistar mulheres vítimas de violência significou reviver os anos de sofrimento, vergonha e medo. Entre as vozes embargadas, as falas tanto eram entrecortadas por pausas que remetiam às lágrimas como também por sorrisos de felicidade pela coragem de combater a opressão. Se a elevação do crime de feminicídio à categoria de crime hediondo não é a solução para o fim da discriminação da mulher, é, com certeza, um modo de emponderá-la, atribuindo, via aparato legal, uma punição mais severa aos agressores. Embora a realidade brasileira faça concluir que a Lei Maria da Penha não será o fim da agressão contra as mulheres, ela é uma contribuição para que se possa reconhecer a condição de ser mulher. O sentido das práticas que foram reiteradas por homens e mulheres é agora questionado.

As experiências vivenciadas e as normas sociais que conformam o comportamento dessas mulheres foram explicitadas na aceitação e na naturalização da violência. O que é inadmissível é a dinâmica social em que a própria vítima de violência doméstica se sente culpada pelas crueldades que sofre. Suas condutas, pensamentos e crenças passavam pela aprovação dos insiders, membros da comunidade onde viviam. Esse comportamento as colocava em uma posição de fragilidade em seus pequenos mundos e em relação ao mundo dos outsiders, para os quais não conseguiam dispensar confiança nem credibilidade. Esse era um dos motivos que as levavam a suportar caladas, tentando manter em sigilo e, até, mascarar os atos de violência que sofreram.

Como esta pesquisa mostrou, a vivência de exclusões sociais ativas e passivas confina as mulheres a um contexto informacional limitado e circunscrito. Esse entrave só pode ser transposto quando elas se insurgem e buscam garantias sociais por meio do acesso às instituições do direito, que, quase sempre, estão fora do seu círculo social. Os movimentos feministas, nesse sentido, são importantes mecanismos de apoio e de acesso aos marcos legais na busca da equidade de gênero. Ao atravessar esses limites, elas depreendem que os episódios de violência que enfrentam não devem ser encarados como determinações do destino ou que não devem acatar os comportamentos agressivos masculinos.

Este estudo possibilitou e potencializou novos pontos de vista, não apenas sobre a violência doméstica contra as mulheres, mas também sobre a importância e a magnitude social do movimento feminista, em específico, das organizações não governamentais feministas. O feminismo, com suas nuances e interseccionalidades, já é um tema de importância social, cultural, midiática e política, mas seus elementos mobilizadores - as ações efetivas - é que fazem dele um mecanismo essencial, não apenas para entender os papéis estabelecidos para as mulheres em nossa sociedade, mas também para combater as desigualdades sociais entre elas e os homens. São notórios o envolvimento e a aproximação do Centro das Mulheres do Cabo com as mulheres, por meio de diálogos e disponibilização de informações de forma horizontal, sem rebuscamentos, quase familiar.

Esta pesquisa teve, pelo menos, duas limitações. A primeira foi relativa aos procedimentos metodológicos. Sabemos que Chatman privilegiou a etnografia como procedimento de coleta de dados. O contato via entrevistas semiestruturadas, em comparação com os estudos de Chatman, resultou em uma visão de campo talvez limitada acerca de todas as questões e nuances contidas no processo analisado. Ampliar a análise para um escopo maior da vida social dessas mulheres pode trazer novos elementos intervenientes nos comportamentos em informação.

Quanto à segunda limitação, foi relativa à amostra. Mas, embora menor do que prevista incialmente, a amostra coletada foi suficiente, já que nos possibilitou identificar e caracterizar os fatores definidos na teoria de Chatman presentes no comportamento em informação de populações que experimentam vivências circunscritas a mundos pequenos, onde as normas sociais influenciam o modo de agir, de pensar e de se apresentar ao mundo.

É importante ressaltar que não foi fácil encontrar uma resposta para este estudo. Para cada mulher, o problema da violência doméstica se apresenta cheio de nuances, embora a pesquisa tenha mostrado que o comportamento em informação é produto de normas sociais e envolve conflitos decorrentes das posições familiares, sociais e até mesmo culturais que as mulheres ocupam. Podemos afirmar que o estudo poderá contribuir para evidenciar as questões sociais que atravessam os fluxos informacionais na sociedade da informação. Além disso, mostrou as formas por meio das quais as barreiras informacionais de diversas esferas da vida cotidiana, e sob diferentes níveis, influenciam o comportamento em informação de mulheres que sofrem violência doméstica.

Referências

  • BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006.
  • BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília (DF): Presidência da República, 2006.
  • CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T Accessed on: 6 mar. 2023.
    » https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T
  • CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.
  • CHATMAN, Elfreda Annmary. Framing social life in theory and research. The New Review of Information Behaviour Research, London, v. 1, p. 3-17, dec. 2000.
  • ESPÍRITO SANTO, Patrícia. Os estudos de gênero na ciência da informação. Em Questão, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 317-332, jul./dez. 2008.
  • FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise de conteúdo. Brasília: Liber Livro Editora, 2018.
  • GREGORI, Juciane de. Feminismos e resistência: trajetória histórica da luta política para conquista de direitos. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 30, n. 2, p. 47-68, jul./dez. 2017. Disponível em: https://www.doi.org/10.14393/CEF-v30n2-2017-3 Acesso em: 6 mar. 2023.
    » https://www.doi.org/10.14393/CEF-v30n2-2017-3
  • LUCKMANN, Benita. The small life-worlds of modern man. Social Research, New York, v. 37, n. 4, p. 580-596, 1970.
  • MARTELETO, Regina Maria. Informação e construção do conhecimento para a cidadania no terceiro setor. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 11, n. 1, 2001.
  • MERTON, Robert. Insiders and outsiders: A chapter in the sociology of knowledge. American journal of sociology, Chicago, v. 78, n. 1, p. 9-47, 1972. Available in: https://www.doi.org/10.1086/225294 Accessed on: 6 mar. 2023.
    » https://www.doi.org/10.1086/225294
  • METE A COLHER . Sinta-se livre: Aqui você mete a colher sim. Mete a Colher, Recife, 2016. Disponível em: https://www.meteacolher.org/ Acesso em: 7 mar. 2023.
    » https://www.meteacolher.org/
  • MINAYO, Maria Cecília de Souza. Laços perigosos entre machismo e violência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 23-26, mar. 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000100005 Acesso em: 6 mar. 2023.
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000100005
  • MUNIZ, Alexandre Carrinho; FORTUNATO, Tammy. Violência doméstica: da cultura ao direito. In: BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Violência contra a mulher: um olhar do Ministério Público brasileiro. Brasília: CNMP, 2018. p. 8-19
  • SANDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; TAVARES, Márcia Santana; GOMES, Márcia Queiroz. Monitorando a Lei Maria da Penha: reflexões sobre a experiência do Observe. In: SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar; TAVARES, Márcia Santana. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 41-67.
  • SARTI, Cynthia. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 64, p. 38-47, fev. 1988.
  • SILVA, Jacilene. Feminismo na atualidade: a formação da quarta onda. Recife: Independently Published, 2019.
  • CONTEÚDO, Marco Zero . Na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídios por dia. MarcoZero, Recife, 8 out. 2020. Disponível em: https://marcozero.org/na-pandemia-tres-mulheres-foram-vitimas-de-feminicidios-por-dia/ Acesso em: 1 jun. 2022.
    » https://marcozero.org/na-pandemia-tres-mulheres-foram-vitimas-de-feminicidios-por-dia/
  • WILSON, Tom. Models in information behaviour research. Journal of Documentation, Yorkshire, v. 55, n. 3, p. 249-27, jul. 1999. Available in: https://doi.org/10.1108/EUM0000000007145 Accessed on: 6 mar. 2023.
    » https://doi.org/10.1108/EUM0000000007145
  • 1
    BERGER, P. L. Invitation to sociology. New York: Anchor Books, 1963. ApudChatman (1999CHATMAN, Elfreda Annmary. Theory of life in the round. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 50, n. 3, p. 207-217, 1999.).
  • 2
    SIMMEL, G. The sociology of Georg Simmel. Wolf: The free press, 1950. ApudChatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
    https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
    ).
  • 3
    LUHRMANN, T. M. The magic of secrecy. Ethos, Hoboken, v. 17, n. 2, p. 131-165, jun. 1989. ApudChatman (1996CHATMAN, Elfreda Annmary. The impoverished life-world of outsiders. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 47, n. 3, p. 193-206, 1996. Available in: https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(199603)47:3%3C193::AID-ASI3%3E3.0.CO;2-T . Accessed on: 6 mar. 2023.
    https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4571(...
    ).
  • Declaração de autoria

    Concepção e elaboração do estudo: Natalia Francisca Nascimento da Silva, Nadi Helena Presser. Coleta de dados: Natalia Francisca Nascimento da Silva Análise e interpretação de dados: Natalia Francisca Nascimento da Silva, Nadi Helena Presser. Redação: Natalia Francisca Nascimento da Silva, Nadi Helena Presser. Revisão crítica do manuscrito: Izabel França de Lima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2022
  • Aceito
    14 Fev 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Ramiro Barcelos, 2705, sala 519 , CEP: 90035-007., Fone: +55 (51) 3308- 2141 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: emquestao@ufrgs.br