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Uma viagem pelo universo do zumbido Como citar este artigo: Mezzalira R. A journey through the tinnitus universe. Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:S1-S2.

O zumbido pode ser definido como a percepção de som na ausência de qualquer estímulo sonoro externo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 15% da população mundial tem zumbido e essa prevalência aumenta com a idade.11 Seidman MD, Jacobson GP. Update on tinnitus. Otolaryngol Clin N Am. 1996;29:455-65. Estudo populacional feito na cidade de São Paulo relata que 22% da população apresentam zumbido. Essa prevalência triplica em indivíduos com mais de 65 anos.22 Oiticica J, Bittar RS. Tinnitus prevalence in the city of São Paulo. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:167-76. Esse mesmo estudo observou que o incômodo pelo zumbido ocorreu em 64% dos casos e que interferiu nas atividades diárias em 18% dos indivíduos que relataram o sintoma.22 Oiticica J, Bittar RS. Tinnitus prevalence in the city of São Paulo. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:167-76. A perda auditiva está associada ao zumbido em aproximadamente 85‐96% dos casos.33 Jastreboff PJ. Phantom auditory perception (tinnitus): mechanisms of generation and perception. Neurosci Res. 1990;8:221-54. Esses números mostram que o zumbido não afeta as atividades diárias da maioria dos pacientes; entretanto, pode ter implicações negativas na qualidade de vida de uma parcela dos pacientes, tem relações comprovadas com a dificuldade de atenção e concentração, depressão e até mesmo ideação suicida. Esse grupo demanda maior atenção dos profissionais de saúde, embora todo zumbido deva ser investigado, independentemente de suas repercussões.

O estudo do zumbido obriga o médico a mergulhar no universo anatômico e fisiológico das vias auditivas e suas conexões, na tentativa de compreender sua origem e as reações que ele pode causar. O conhecimento das diversas redes neurais envolvidas nos diferentes aspectos do sintoma fez com que o zumbido deixasse de ser visto apenas como um fenômeno auditivo e passasse a ser considerado um distúrbio sensorial, cognitivo e emocional. O zumbido é gerado principalmente nas vias auditivas periféricas, a sua detecção ocorre nos centros subcorticais, enquanto sua percepção ocorre no córtex auditivo, o que faz com que cada paciente experimente diferentes reações ao sintoma.33 Jastreboff PJ. Phantom auditory perception (tinnitus): mechanisms of generation and perception. Neurosci Res. 1990;8:221-54. Várias comorbidades podem estar associadas ao zumbido. Entre as principais, destacam‐se as causas otológicas, cardiovasculares, metabólicas, hormonais, neurológicas, somatossensoriais e doenças com características somatopsíquicas. Dessa forma, o zumbido pode ser a manifestação inicial de várias doenças otológicas ou sistêmicas. Contudo, a depender do impacto do zumbido no indivíduo afetado, áreas do sistema límbico e do sistema nervoso autônomo que aumentam o desconforto do paciente podem ser ativadas. O processo cognitivo comportamental contribui para sua gravidade por meio de pensamentos negativos, atenção seletiva e hipervigilância. Portanto, é essencial distinguir entre a gravidade do zumbido e as reações causadas pelo mesmo. Para tanto, podem ser usados questionários que avaliam e quantificam o zumbido e seus efeitos na vida do paciente. Testes auditivos e eletrofisiológicos são necessários para avaliar as vias auditivas. Exames laboratoriais e de imagem também podem ser úteis, depende do tipo de zumbido.

O diagnóstico dos fatores envolvidos na origem do zumbido é o maior desafio no manejo desses pacientes. Uma vez superada essa dificuldade, a próxima etapa consiste em uma arte: o tratamento. A ciência tem sido muito generosa nesse ponto, pois várias opções de tratamento para o zumbido estão surgindo. A arte consiste em saber escolher e usar cada uma delas. O tratamento deve levar em consideração não apenas a etiologia, mas também as reações e expectativas do paciente em relação ao zumbido.44 Onishi ET, Coelho CC, Oiticica J, Figueiredo RR, Guimarães RC, Sanchez TG, et al. Tinnitus and sound intolerance: evidence and experience of a Brazilian group. Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:135-49. No entanto, independentemente da terapia escolhida, o aconselhamento é o principal componente de todas elas. Explicar ao paciente o motivo do zumbido muitas vezes reduz as reações negativas relacionadas a ele. Posteriormente, é necessário o tratamento das causas envolvidas na origem do zumbido, na tentativa de melhorar ou mesmo eliminar o sintoma. Infelizmente, isso nem sempre é possível, porque a causa pode não ser tratável ou porque o paciente tem uma percepção acentuada do zumbido ao nível cortical, o que dificulta a melhoria, mas isso não significa que essa percepção não possa ser abordada. Nesse caso, as ações terapêuticas se concentram no uso de métodos para ignorar as informações relacionadas ao zumbido.

A terapia cognitivo‐comportamental visa identificar e alterar o significado emocional do zumbido. Outra abordagem possível é o mindfulness, que vem demonstrando benefícios no zumbido, reduz o incômodo e facilita sua aceitação pelo paciente. Uma terceira forma de melhorar essa situação é a acupuntura, cuja descarga elétrica causada pela estimulação da agulha desencadeia potenciais de ação que influenciam a atividade do núcleo olivococlear ou modulam as conexões entre a via auditiva e o sistema límbico e amígdala, que são áreas relacionadas ao desconforto causado pelo zumbido. Seguindo esse mesmo caminho, existem ainda duas outras modalidades de tratamento que atuam nas vias auditivas centrais, que são a estimulação magnética transcraniana, que modula a neuroplasticidade em áreas corticais e talâmicas, e a neuromodulação, cujo mecanismo de ação no zumbido é atribuído à interferência nos sinais provenientes das vias auditivas centrais e seus circuitos associados que chegam ao córtex cerebral.

Devido à grande associação entre zumbido e perda auditiva, melhorar a estimulação acústica para superar a falta de estimulação do cortex auditivo é fundamental. Nesse sentido, o uso de próteses auditivas e/ou gerador de som são a primeira opção de tratamento. Além disso, os sons ambientais também podem ajudar a minimizar os efeitos da reorganização cortical mal‐adaptada e reduzir a percepção do zumbido. A terapia sonora também é indicada para pacientes com zumbido e audição normal.

Até o momento, não há medicamentos com indicação específica para o tratamento do zumbido. No entanto, muitos deles podem ser úteis no controle de sintomas associados, como depressão e ansiedade, ou na melhoria da função da orelha interna, e sua escolha deve levar em consideração as necessidades do paciente. Algumas opções são medicamentos que melhoram o suprimento vascular, o metabolismo da orelha interna e a função neuronal (Ginkgo biloba, vitamina D, vitamina B12, zinco), medicamentos que agem nos canais iônicos (gabapentina e carbamazepina), medicamentos que atuam nos neurotransmissores (clonazepam, inibidores seletivos da recaptação de serotonina, ciclobenzaprina) etc.44 Onishi ET, Coelho CC, Oiticica J, Figueiredo RR, Guimarães RC, Sanchez TG, et al. Tinnitus and sound intolerance: evidence and experience of a Brazilian group. Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:135-49.

As associações anatômicas e funcionais entre orelha, cabeça, articulação temporomandibular e pescoço são bem conhecidas e são responsáveis por um subgrupo muito comum de zumbido: o somatossensorial. O mecanismo é complexo e envolve a desinibição da atividade do núcleo coclear dorsal por meio da via somatossensorial serotoninérgica. Essa condição vem aumentando nos dias atuais com o home office e consequentes posturas inadequadas. Além disso, a incidência do bruxismo vem aumentando devido ao estresse causado pela pandemia de Covid‐19 e pela aceleração do ritmo de vida. Nesse contexto, a abordagem fisioterapêutica dos pontos‐gatilho miofasciais é o tratamento indicado para esse tipo de zumbido.55 Rocha CB, Sanchez TG. Efficacy of myofascial trigger point deactivation for tinnitus control. Braz J Otorhinolaryngol. 2012;78:21-6.

A variedade de fatores que podem gerar o zumbido e influenciar no grau de desconforto aponta para a necessidade de uma abordagem individualizada e geralmente interdisciplinar. Talvez a melhor abordagem seja o aconselhamento e a oferta de sons. Existem vários instrumentos disponíveis para tratar o zumbido e melhorar as reações negativas causadas por ele. Infelizmente, alguns estão disponíveis somente em centros de pesquisa, embora a maioria seja acessível a todos os pacientes. Cabe ao maestro escolher qual instrumento ou instrumentos usar e reger a orquestra.

References

  • 1
    Seidman MD, Jacobson GP. Update on tinnitus. Otolaryngol Clin N Am. 1996;29:455-65.
  • 2
    Oiticica J, Bittar RS. Tinnitus prevalence in the city of São Paulo. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:167-76.
  • 3
    Jastreboff PJ. Phantom auditory perception (tinnitus): mechanisms of generation and perception. Neurosci Res. 1990;8:221-54.
  • 4
    Onishi ET, Coelho CC, Oiticica J, Figueiredo RR, Guimarães RC, Sanchez TG, et al. Tinnitus and sound intolerance: evidence and experience of a Brazilian group. Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:135-49.
  • 5
    Rocha CB, Sanchez TG. Efficacy of myofascial trigger point deactivation for tinnitus control. Braz J Otorhinolaryngol. 2012;78:21-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    6 Set 2022
  • Aceito
    6 Set 2022
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