Acessibilidade / Reportar erro

Prevenção de incapacidade na hanseníase com apoio em um manual de autocuidado para pacientes

Disability prevention in leprosy using a self-care manual for patients

Resumos

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa, de evolução lenta, que se manifesta por sinais e sintomas dermatoneurológicos, com lesões na pele e nos nervos periféricos. O objetivo deste estudo foi avaliar o status físico e funcional de olhos, mãos e pés de pacientes com hanseníase, em relação ao aparecimento e evolução de deficiências sensitivo-motoras, grau de incapacidade e qualidade de vida, tendo os pacientes recebido e utilizado durante um ano um manual especialmente elaborado, com orientações de autocuidados para prevenção de incapacidade. Foram realizadas e comparadas avaliações fisioterapêuticas inicial e após 12 meses de uso do manual, de 26 pacientes com hanseníase: palpação de nervos periféricos, teste de sensibilidade da córnea, teste de sensibilidade cutânea, teste manual de função muscular e dinamometria isométrica de preensão e pinças dos dedos, sendo aplicado ainda o questionário de qualidade de vida SF-36 e classificado o grau de incapacidade. Os nervos mais acometidos foram o ulnar e o tibial posterior. Embora o grau de incapacidade e as deformidades preexistentes tenham persistido, houve melhora significativa nos domínios dor e aspectos sociais do questionário SF-36, bem como na função muscular das mãos e dos pés e no ressecamento da pele. Como estas últimas são diretamente relacionadas ao autocuidado, sugere-se que o manual de orientações pode ter importante papel coadjuvante na melhora de sintomas dos pacientes com hanseníase.

Deformidades adquiridas; Hanseníase; Qualidade de vida; Saúde da pessoa com deficiência ou incapacidade


Leprosy is an infectious disease of slow evolution, manifested by dermatoneurological signs and symptoms, with skin and peripheral nerve injuries. The aim of this study was to assess physical and functional status of eyes, hands and feet of patients with leprosy, as well as to assess evolution of sensory-motor disabilities, degree of disability and quality of life, having specially produced and handed the patients an illustrated self-care manual for preventing disability. Twenty-six patients with leprosy were assessed initially and after 12 months of using the manual as to: skin inspection, peripheral nerves palpation, corneal sensitivity, skin sensitivity, limb muscle function, hand muscle strength (finger grip and pinch strength); the disability degree was determined and patients answered the SF-36 questionnaire. Most affected nerves were the ulnar and posterior tibial ones. Results showed that, though the degree of disability and deformities persisted, there were significant improvements in SF-36 social aspects and pain domains, as well as improvements in skin dryness and hands and feet muscle function. Since the latter are directly related to self-care, this suggests that the self-care manual may have an important supporting role in relieving symptoms of patients with leprosy.

Deformities, acquired; Disabled health; Leprosy; Quality of life


PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH

Prevenção de incapacidade na hanseníase com apoio em um manual de autocuidado para pacientes

Disability prevention in leprosy using a self-care manual for patients

Fernanda Carvalho Batista RodiniI; Mayara GonçalvesII; Ana Regina de Souza Bavaresco BarrosIII; Nilton MazzerIV; Valéria Meirelles Carril EluiV; Marisa de Cássia Registro FonsecaVI

IFisioterapeuta Ms.

IIGraduanda em Fisioterapia no RAL/FMRP/USP

IIIFisioterapeuta do Centro de Reabilitação do Hospital das Clínicas da FMRP/USP

IVMédico ortopedista; Prof. Dr. associado do RAL/FMRP/USP

VTerapeuta ocupacional; Profa. Dra. do Depto. de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica da FMRP/USP

VIFisioterapeuta; Profa. Dra. RAL/FMRP/USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fernanda C. B. Rodini Curso de Fisioterapia - FMRP/USP Av. Bandeirantes 3900 14049-900 Ribeirão Preto SP e-mail: ferbats@hotmail.com; marisa@fmrp.usp.br

RESUMO

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa, de evolução lenta, que se manifesta por sinais e sintomas dermatoneurológicos, com lesões na pele e nos nervos periféricos. O objetivo deste estudo foi avaliar o status físico e funcional de olhos, mãos e pés de pacientes com hanseníase, em relação ao aparecimento e evolução de deficiências sensitivo-motoras, grau de incapacidade e qualidade de vida, tendo os pacientes recebido e utilizado durante um ano um manual especialmente elaborado, com orientações de autocuidados para prevenção de incapacidade. Foram realizadas e comparadas avaliações fisioterapêuticas inicial e após 12 meses de uso do manual, de 26 pacientes com hanseníase: palpação de nervos periféricos, teste de sensibilidade da córnea, teste de sensibilidade cutânea, teste manual de função muscular e dinamometria isométrica de preensão e pinças dos dedos, sendo aplicado ainda o questionário de qualidade de vida SF-36 e classificado o grau de incapacidade. Os nervos mais acometidos foram o ulnar e o tibial posterior. Embora o grau de incapacidade e as deformidades preexistentes tenham persistido, houve melhora significativa nos domínios dor e aspectos sociais do questionário SF-36, bem como na função muscular das mãos e dos pés e no ressecamento da pele. Como estas últimas são diretamente relacionadas ao autocuidado, sugere-se que o manual de orientações pode ter importante papel coadjuvante na melhora de sintomas dos pacientes com hanseníase.

Descritores: Deformidades adquiridas/prevenção & controle; Hanseníase; Qualidade de vida; Saúde da pessoa com deficiência ou incapacidade

ABSTRACT

Leprosy is an infectious disease of slow evolution, manifested by dermatoneurological signs and symptoms, with skin and peripheral nerve injuries. The aim of this study was to assess physical and functional status of eyes, hands and feet of patients with leprosy, as well as to assess evolution of sensory-motor disabilities, degree of disability and quality of life, having specially produced and handed the patients an illustrated self-care manual for preventing disability. Twenty-six patients with leprosy were assessed initially and after 12 months of using the manual as to: skin inspection, peripheral nerves palpation, corneal sensitivity, skin sensitivity, limb muscle function, hand muscle strength (finger grip and pinch strength); the disability degree was determined and patients answered the SF-36 questionnaire. Most affected nerves were the ulnar and posterior tibial ones. Results showed that, though the degree of disability and deformities persisted, there were significant improvements in SF-36 social aspects and pain domains, as well as improvements in skin dryness and hands and feet muscle function. Since the latter are directly related to self-care, this suggests that the self-care manual may have an important supporting role in relieving symptoms of patients with leprosy.

Key words: Deformities, acquired/prevention & control; Disabled health; Leprosy; Quality of life

INTRODUÇÃO

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa de evolução lenta. Para um diagnóstico precoce, é necessário que os profissionais da saúde estejam treinados e que a população esteja atenta para os sinais e sintomas iniciais. Os pacientes em tratamento podem conviver normalmente com sua família, seus colegas de trabalho e amigos sem qualquer restrição1. Pode manifestar-se de várias formas, desde à forma localizada às sistêmicas, podendo ser classificada em: indeterminada, tuberculóide, neural pura, dimorfa e virchoviana2,3. Se alterações nos nervos periféricos não forem identificadas, monitoradas e controladas adequadamente, poderá haver deformidades e incapacidade4 nos olhos (lagoftalmo parcial ou total, triquíase, opacidade da córnea, ausência de sensibilidade da córnea, madarose)5; nas mãos e nos pés (garras rígidas ou móveis, ressecamento de pele, hipotrofias, úlcera, reabsorção óssea)1. Porém, se as alterações sensitivo-motoras forem tratadas precocemente, incapacidades físicas podem ser minimizadas6,7.

Estimativas sugerem que aproximadamente 2 a 3 milhões de indivíduos no mundo tenham algum grau de incapacidade como resultado da doença8. A hanseníase é endêmica no Brasil, registrando-se em média 47 mil casos novos por ano; é o país que tem o segundo maior número absoluto de casos no mundo1,8-11. Apesar da redução drástica no número de casos nos últimos 20 anos, a hanseníase ainda constitui um problema de saúde pública que exige uma rigorosa vigilância10,11. Por ser uma doença crônica de caráter dermatológico e neurológico, deve ter um acompanhamento em longo prazo com avaliações periódicas e padronizadas.

O desenvolvimento de instrumentos que avaliam a qualidade de vida reflete, em parte, a necessidade de demonstrar a efetividade de programas de tratamento e cuidados na área da saúde, além de estabelecer os efeitos que uma doença ou seu tratamento causam na vida de um indivíduo12. Por meio desses instrumentos, é possível obter uma visão mais abrangente do paciente, quando incorporam a perspectiva deste em relação ao tratamento realizado12. O SF-36 é um questionário genérico de qualidade de vida relacionada à saúde, dirigido ao paciente, traduzido e validado para o Brasil13.

Os programas de prevenção de incapacidade em hanseníase têm como objetivo evitar as possíveis deformidades e incapacidade, visando interromper a propagação das perdas funcionais14. Os profissionais da equipe de saúde detêm atualmente subsídios teóricos para uma abordagem avaliativa e de tratamento físico específico7; mas os pacientes recebem apenas instruções verbais. O objetivo deste estudo foi avaliar o status físico e funcional dos olhos, mãos e pés de pacientes com hanseníase, em relação ao aparecimento e evolução de deficiências sensitivo-motoras, grau de incapacidade e qualidade de vida, tendo os pacientes recebido e utilizado durante um ano um manual especialmente elaborado, com orientações de autocuidados para prevenção de incapacidade.

METODOLOGIA

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). A amostra de conveniência foi determinada pelos pacientes que fizeram parte de um grupo de discussão e orientação sobre hanseníase, coordenado por uma equipe multiprofissional, atendidos no Ambulatório de Dermatologia e no Centro de Reabilitação do HCFMRP-USP, (centro de referência nacional em Dermatologia Sanitária em Hanseníase) entre março de 2007 e julho de 2008. Foram selecionados pacientes maiores de 18 anos de ambos os sexos, mesmo que com comorbidades, desde que diagnosticadas, relatadas e controladas. Na aceitação de participarem da pesquisa, assinaram um termo de consentimento.

Foram avaliados no início do estudo 55 pacientes, 36 homens e 19 mulheres. Ao todo, 29 pacientes foram excluídos porque não compareceram à avaliação final (12 meses), sendo que um faleceu por fatores não-relacionados à hanseníase. Os pacientes que precisaram de tratamento fisioterapêutico foram encaminhados ao serviço de fisioterapia da cidade de origem.

Para avaliar as diferentes disfunções sensitivo-motoras e deformidades dos olhos, membros superiores e inferiores, foram realizados: anamnese, inspeção, palpação dos nervos periféricos (ulnar, mediano, radial, fibular comum e tibial posterior), teste manual da função muscular, testes isométricos de força de preensão dos dedos (com dinamômetro Jamar) e das pinças polpa-polpa, trípode e lateral (com dinamômetro Preston Pinch Gauge), de sensibilidade da córnea (fio dental) e o teste de limiar sensitivo cutâneo nas mãos e pés (estesiômetro Sorri, Bauru, SP). O estesiômetro consiste num conjunto de monofilamentos coloridos - são os mais indicados, pois fornecem um número absoluto e registro ilustrado para medidas comparativas do mesmo paciente. É um teste válido, preciso e barato para detecção do limiar sensitivo, quando calibrado e aplicado corretamente15. Os filamentos exercem diferentes pressões, podendo ser percebidos desde o toque leve até a pressão profunda: verde (0,05 g), azul (0,2 g), violeta (2,0 g), vermelho escuro (4,0 g), laranja (10,0 g) e vermelho magenta (300 g). Sentir o filamento verde corresponde ao limiar sensitivo mínimo, considerado normal para mão e pé; o azul refere-se à diminuição do toque leve e à discriminação fina na mão, podendo ser considerado normal para o pé; o violeta indica diminuição da sensibilidade protetora na mão, com discriminação de forma e temperatura diminuída; o vermelho escuro, limiar de perda da sensibilidade protetora na mão e às vezes no pé, com perda de discriminação quente/frio; o laranja, perda da sensibilidade protetora no pé; e o vermelho magenta, caracteriza a perda da sensação de pressão profunda, podendo ainda sentir dor. Quando o paciente não sentir nenhum filamento, significa que perdeu a sensibilidade à pressão profunda e não sente dor.

Para identificar a presença do comprometimento funcional na hanseníase, um músculo referente a cada inervação deve ser testado rotineiramente16. Neste estudo, foram testados os músculos orbicular, abdutor do 5º dedo, abdutor curto do polegar, extensor radial do carpo, tibial anterior e extensor longo do hálux1. As forças de preensão isométrica dos dedos e de pinças representam a interação combinada dos músculos intrínsecos e extrínsecos das mãos e fornecem informações acerca da função dos membros superiores17. As posições para a realização dos testes de preensão dos dedos e pinças no dinamômetro foram adotadas como recomendado pela Sociedade Americana dos Terapeutas da Mão, coletando o valor médio de três medidas alternadas18,19. O ressecamento da pele é avaliado por inspeção, bem como a presença ou não de úlceras, garras, hipotrofias, reabsorção óssea, fissuras, triquíase, madarose, entre outros.

Foi aplicado também o questionário SF-3612,13; subdividido em oito domínios: capacidade funcional, aspectos físicos, aspectos emocionais, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais e saúde mental. O escore em cada domínio é transformado em uma escala de 0 a 100, onde 100 indica a percepção do sujeito de melhor qualidade de vida relacionada à saúde nesse domínio.

Com as informações coletadas foi possível determinar o grau de incapacidade estabelecido pela Organização Mundial da Saúde1. Os graus de incapacidade são classificados numericamente como 0, 1 ou 2; zero corresponde à ausência de dano nos olhos, mãos e pés (resposta positiva aos filamentos verde, azul e/ou violeta); grau 1 corresponde à diminuição da sensibilidade (ausência de resposta ao filamento violeta), sem dano ou deformidade visível nas áreas avaliadas; e 2 corresponde à presença de deformidades devidas à hanseníase1,20.

Após a avaliação inicial, foi explicado e entregue aos pacientes com hanseníase um manual, elaborado pela pesquisadora, contendo orientações básicas e informações simples e ilustradas sobre prevenção de incapacidades físicas e sensoriais, para pacientes com diversos níveis de escolaridade. O manual contém explicações para os pacientes sobre a doença, autocuidados gerais com olhos, mãos e pés, como higienização, hidratação, lubrificação, alongamentos, exercícios, orientações sobre adaptação de instrumentos, objetos e calçados, entre outras dicas (Anexo 1).

O manual foi detalhadamente apresentado ao paciente (e a seu cuidador ou acompanhante), de modo que entendesse o como e o porquê de cada atividade necessária ao tratamento, orientando-o sobre a forma de prevenir ou tratar alterações que porventura pudesse apresentar, estimulando o autocuidado. As atividades, todas passíveis de serem realizadas em casa, foram executadas ou simuladas com o paciente. É importante salientar que cada indivíduo apresenta problemas distintos, não sendo possível fixar uma conduta rígida, devendo o profissional adaptá-la segundo as necessidades de cada paciente.

A comparação estatística entre os valores medidos na avaliação inicial e após um ano foi feita pelos modelos lineares de efeitos mistos e o teste exato de Fisher21,22.

RESULTADOS

A amostra analisada foi de 26 pacientes avaliados no início e após 12 meses. Nesse período todos os pacientes compareceram ao retorno agendado aos 6 meses de tratamento, para receberem medicação e orientações. A média de idade foi 51 anos, sendo 15 (58%) homens e 11 (42%) mulheres, de variados estados civis. Considerando o nível de escolaridade, 22 (85%) eram alfabetizados e 4 (15%) eram analfabetos. Do total, 7 (27%) estavam afastados das respectivas ocupações. Em relação ao tipo de hanseníase, 9 (35%) eram virchoviana, 5 (19%) dimorfa/tuberculóide, 7 (15%) dimorfa/virchoviana, 4 (15%) neural pura e 1 (3%) dimorfa. Todos os 26 pacientes receberam o tratamento com poliquimioterapia; na avaliação final, 17 (65%) terminaram o tratamento medicamentoso e 9 (35%) continuaram em tratamento; 19 pacientes (73%) não tiveram reação tipo 1 (reversa) nem tipo 2 (eritema nodoso hansênico) durante 12 meses; porém 7 (27%) tiveram reação tipo 1 ou 2 durante a evolução da doença.

Para determinar o grau de incapacidade pela OMS foram utilizados vários itens da avaliação física. Durante a inspeção dos olhos foram verificadas triquíase e alteração na sensibilidade da córnea em um paciente e madarose em cinco. Na comparação entre a avaliação inicial e final houve melhora na sensibilidade da córnea. Em relação aos membros superiores, foram verificadas algumas alterações: na avaliação inicial foi detectada presença de cinco mãos com garras móveis ulnares, duas com hipotrofia e nove casos de ressecamento da pele. Na avaliação final, apenas quatro casos de ressecamento da pele, porém sem alteração do quadro instalado de deformidades e hipotrofia. Em relação aos membros inferiores, foi verificada inicialmente presença de duas úlceras plantares, uma deformidade em pé equino e 20 casos de ressecamento da pele. Na avaliação final, as úlceras tiveram um aumento, de duas para três; houve um pé com garra móvel dos artelhos, sem alteração da deformidade em pé equino. Houve melhora no ressecamento de pele nos membros inferiores de 20 para 6 casos.

Foi relatada, em ambas as avaliações, durante a palpação, presença de dor em todos os nervos periféricos dos membros superiores e inferiores, principalmente nos nervos ulnar e tibial posterior, mas sem interferir nas atividades de vida diária. Em relação à função muscular dos olhos, não houve alterações no músculo orbicular. Na comparação entre as avaliações da função muscular dos membros superiores (abdutor do 5o dedo, abdutor curto do polegar e extensor radial do carpo), houve melhora da função em pelo menos um grau; nos membros inferiores, houve melhora da função nos músculos tibial anterior e extensor longo do hálux.

Não foi observada diferença significativa na comparação entre as avaliações inicial e final quanto aos valores médios das forças de preensão e pinças dos dedos. Porém os valores médios da força dos pacientes estiveram sempre menores em relação aos parâmetros de normalidade da população brasileira18,19; como é em geral esperado, no caso da doença.

Na comparação entre as avaliações da alteração de sensibilidade cutânea nas mãos, foi verificada nítida piora em quase todos os nervos, principalmente nos nervos ulnar e mediano. Nos pés, houve piora no nervo tibial posterior (Gráfico 1).


Quanto ao grau de incapacidade, na avaliação inicial, 6 pacientes apresentaram grau 0; 14 pacientes apresentaram grau 1; e 6 apresentaram grau 2. Um dos pacientes que foi classificado como grau 0 na avaliação inicial evoluiu na final para grau 2 e os demais não sofreram alterações.

Ao comparar os escores obtidos no questionário SF-36 nas avaliações inicial e final, foi encontrada melhora estatisticamente significativa nos domínios dor (p=0,01) e aspectos sociais (p=0,03). Na avaliação inicial não houve diferença entre os pacientes alfabetizados e os analfabetos nos domínios do SF-36 mas, na avaliação final, houve diferença significativa apenas em relação aos aspectos sociais (p=0,04), com melhores resultados nos pacientes alfabetizados.

Não foi encontrada correlação entre o grau de incapacidade e a força de preensão dos dedos, nem entre o grau de incapacidade e os domínios do questionário SF-36 sobre dor, capacidade funcional e aspectos sociais.

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

A importância de diagnosticar a hanseníase precocemente, bem como de tratá-la adequadamente, detectar os prejuízos funcionais incipientes, estabelecer um plano de intervenções visando a prevenção de incapacidade, bem como da educação dos pacientes sobre a doença, está bem estabelecida na literatura23,24.

Diversos estudos têm procurado correlacionar programas de prevenção de incapacidade com um melhor desfecho clínico após determinado tempo de seguimento dos pacientes, baseados no grau de incapacidade23-25. Um estudo23 avaliou o grau de incapacidade dos pacientes em tratamento e após alta, em 11 municípios do Paraná, e verificou que 79,8% dos pacientes apresentaram grau de incapacidade 1 e 2. Um outro estudo24 acompanhou 1.215 pacientes com grau de incapacidade 1 e 2 por 3 anos em um programa de base comunitária que consistiu em treinamento e supervisão dos agentes de saúde; o programa mostrou-se efetivo, com boa aceitabilidade e houve cura de 62,8% das úlceras plantares. Na comparação da evolução da incapacidade dos pacientes atendidos em dois serviços no estado de São Paulo no período de 5 anos, houve uma evolução mais satisfatória, tendo as avaliações e orientações sobre prevenção de incapacidade sido mais freqüentes25.

Embora o grau de incapacidade preconizado pela OMS seja um dos instrumentos mais utilizados para a avaliação dos pacientes com hanseníase, algumas limitações podem ser observadas quanto à sua utilização, pois a alteração do limiar de sensibilidade relativo aos graus 0 e 1 pode variar muito.

O impacto da incapacidade para o paciente em sua função física e social é variável: uma pessoa com incapacidade grave pode continuar realizando suas atividades de vida diária sem maiores problemas e, para outras, uma mínima incapacidade dificulta a vida social26. Dentre os pacientes avaliados, a maioria (20 de um total de 26) já apresentava grau de incapacidade 1 e 2, provavelmente como conseqüência de diagnóstico tardio, o que tornou mais difícil a realização de uma abordagem preventiva.

Uma dificuldade encontrada no estudo foi a taxa de abandono, pois dos 55 pacientes avaliados inicialmente, apenas 26 aderiram à intervenção completa. A não-adesão dos pacientes pode ser justificada pelas condições socioeconômicas e culturais, por sua procedência (pois muitas vezes dependem de transporte da prefeitura), pela baixa expectativa em relação a tratamentos não-medicamentosos e por se tratar de uma doença crônica e estigmatizante, que gera resistência ao ambiente hospitalar.

A qualidade de vida tem sido objeto de estudo nos últimos anos por interferir na evolução da doença e na auto-estima dos pacientes27. A escolha do Questionário SF-36 para este estudo fundamentou-se na necessidade de utilizar um instrumento de avaliação genérica sobre a qualidade de vida relacionada à saúde e por abordar separadamente vários aspectos da vida, enquanto outros questionários (como DLQI e Salsa) apresentam uma pontuação única para avaliar as limitações dos pacientes em suas atividades de vida diária. Porém todos esses domínios envolvem atividades rotineiras e, em sua maioria, exigem funções neurais preservadas, comumente alteradas nos pacientes com hanseníase28-31. Apesar de o SF-36 ser um questionário auto-aplicável, nenhum dos pacientes avaliados conseguiu respondê-lo sozinho; foi lido pela pesquisadora em entrevista. Isso ocorreu provavelmente devido ao baixo grau de instrução, que não permitiu a leitura e compreensão do questionário. A comparação entre os pacientes alfabetizados e analfabetos nos domínios do SF-36 na avaliação final indica que a melhora no item aspectos sociais pode ter sido mais pronunciada nos pacientes alfabetizados. É possível que, com uma menor taxa de abandono, e conseqüentemente uma amostra maior, houvesse resultados mais satisfatórios em outros domínios. Novos estudos clínicos randomizados com amostras maiores são necessários.

Alguns dos benefícios do programa de prevenção de incapacidade só são verificáveis após alguns anos de implementação consistente do programa. Não se pode esperar que a prevenção de incapacidade produza sempre resultados imediatos, embora qualquer prevenção ou redução de impedimentos seja de grande benefício para os indivíduos, evitando a necessidade de reabilitação potencialmente onerosa.

Os pacientes com hanseníase que chegam ao serviço de atenção à saúde do SUS, sem qualquer tipo de incapacidade, sendo monitorados e orientados durante todo o tratamento, têm grande chance de evitar o aparecimento de deformidades e incapacidade quando seguem as orientações dos profissionais da saúde - na dependência também da evolução da doença, resposta imunológica do paciente ao bacilo e medicação. Esses profissionais, por sua vez, têm de utilizar estratégias para aumentar a adesão e envolvimento do paciente, tornando-o participante de seu tratamento. Pacientes que chegam ao serviço com diagnóstico tardio, em muitos casos, apresentam lesões irreversíveis, como foi observado nesta amostra. Nestes, medidas preventivas podem evitar o agravamento decorrente da lesão estabelecida e danos posteriores32.

Na avaliação inicial, os pacientes apresentavam um leque amplo de acometimentos. Tendo em vista as características da evolução da doença, não era de se esperar melhoras uniformes na amostra, como se pode ver pelo fato de pouco mais de um terço ainda permanecerem em tratamento medicamentoso por ocasião da avaliação final. Com tantos fatores intervenientes, não é possível estimar o impacto da utilização do manual, paralela ao tratamento medicamentoso. A melhora significativa detectada pelo SF-36, dos aspectos sociais e da percepção de que a dor interferiu menos na qualidade de vida, pode dever-se ao conjunto das medidas terapêuticas adotadas. De modo geral, as deformidades e o grau de incapacidade permaneceram. No entanto, algumas melhoras foram constatadas, especialmente na função muscular das mãos e dos pés e no ressecamento da pele, que poderiam ser atribuídas à utilização do manual, já que são mais diretamente relacionadas ao autocuidado - lembrando que tal utilização foi enfatizada e acrescida de explicações, ao longo do monitoramento dos pacientes. Os resultados sugerem pois que o manual de orientações pode ter um importante papel coadjuvante na melhora de sintomas dos pacientes com hanseníase.

Apresentação: nov. 2009

Aceito para publicação: abr. 2010

Estudo desenvolvido no RAL/FMRP/USP - Depto. de Biomecânica, Medicina e Reabilitação do Aparelho Locomotor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

Este estudo teve financiamento do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de prevenção e reabilitação em hanseníase: normas e manuais técnicos; manual de prevenção de incapacidades. Brasília; 2008.
  • 2 Lehman LF, Orsini MBP, Grossi MAF, Villarroel MF. A mão na hanseníase. In: Freitas PP, editor. Reabilitação da mão. São Paulo: Atheneu; 2005. p.301-18.
  • 3 Almeida JA, Almeida SND, Magalhães HM. Avaliação e tratamento dos membros inferiores para prevenção de incapacidades. In: Opromolla DVA, Baccarelli R. Prevenção de incapa-cidades e reabilitação em hanseníase. Bauru: Instituto Lauro de Souza Lima; 2003. p.112-5.
  • 4 Lehman LF, Orsini MB, Nicholl AR. Development and adaptation of the Semmes-Weinstein monofilaments in Brazil. J Hand Ther. 1993;6(4):290-7.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Manual de condutas para alterações oculares em hanseníase. Brasília; 2008.
  • 6 Van Brakel WH, Shute J, Dixon JA, Arzet H. Evaluation of sensibility in leprosy-comparison of various clinical methods. Lepr Rev. 1993; 65:106-21.
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Hanseníase no Brasil: dados e indicadores. Brasília; 2009.
  • 8 Gonçalves SD, Sampaio RF, Antunes CMF. Fatores preditivos de incapacidade em pacientes com hanseníase. Rev Saude Publica. 2009;43(2):267-74.
  • 9 Brasil. Ministério da Saúde. Painel de indicadores do SUS. Brasília; 2006.
  • 10
    Brasil. Ministério da Saúde. A responsabilidade da atenção básica no diagnóstico da hanseníase: informe da atenção básica. Brasília; 2007.
  • 11 Write C. Sociocultural considerations in the treatment of leprosy in Rio de Janeiro, Brazil. Lepr Rev. 2002;73:356-65.
  • 12 Holmes S. Assessing the quality of life - reality or impossible dream? A discussion paper. Int J Nurs Stud. 2005;42(4):493-501.
  • 13 Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol. 1999;39(3):143-50.
  • 14 Owen BM, Stratford CJ. Assessment of the methods available for testing sensation in leprosy patients in a rural setting. Lepr Rev. 1994;(66):55-72
  • 15 Bell-Krotoski JA. Sensibility testing with the Semmes-Weinstein monofilaments. In: Hunter JM, Callahan AD, Mackin EJ, Osterman AL, Skirven TM, Schneider LH. Rehabilitation of the hand and upper extremity. 5th ed. London: Mosby; 2002. p.194-213.
  • 16 Baccarelli R. Avaliação motora na neuropatia. In: Duerksen F, Virmond M. Cirurgia reparadora e reabilitação em hanseníase. Rio de Janeiro: Palavra & Ação; 1997. p.85-92.
  • 17 Abdalla LM, Brandão MCF. Forças de preensão palmar e da pinça digital. In: Sociedade Brasileira dos Terapeutas da Mão. Recomendações para avaliação do membro superior. Joinville; 2005. p.38-41.
  • 18 Caporrino FA, Faloppa F, Santos JBG, Réssio C, Soares FHC, Nakachima LR, et al. Estudo populacional da força de preensão palmar com dinamômetro Jamar. Rev Bras Ortop. 1998;33(2):150-4.
  • 19 Araújo MP, Araújo PMP, Caporrino FA, Faloppa F, Albertoni WM. Estudo populacional das forças das pinças polpa-a-polpa, trípode e lateral. Rev Bras Ortop. 2002;37(11/12):496-504.
  • 20 Broekhuis SM, Meima A, Koelewijn LF, Richardus JH, Benbow C, Saunderson PR. The hand-foot impairment score as a tool for evaluating prevention of disability activies in leprosy: an exploration in patients treated with corticosteroids. Lepr Rev. 2002;71(3):344-54.
  • 21 Mclean RA, Sanders WL, Stroup WW. A unified approach to mixed linear models. Am Stat. 1991;45(1):54-64.
  • 22 Mehta CRE, Patel NR. A network algorithm for performing Fisher's exact test in rXc contingency tables. J Am Stat Assoc. 1983;78(382):427-34.
  • 23 Silva Sobrinho RA, Mathias TAF, Gomes EA, Lincoln PB. Avaliação do grau de incapacidade em hanseníase: uma estratégia para sensibilização e capacitação da equipe de enfermagem. Rev Latino-Am Enfermagem. 2007;15(6):1125-30.
  • 24 Li J, Mu H, Ke W, Bao X, Wang Y, Shen LM, et al. Government health workers as implementers of prevention of disability measures: an assessment of a prevention of disability project in selected counties of Guizhou Province, Pleoples' Republic of China. Lepr Rev. 2008;79(3):295-8.
  • 25 Nardi SMT, Paschoal,VDA, Zanetta DMT. Frequência de avaliação e seu impacto na prevenção das incapacidades físicas durante o tratamento dos pacientes com hanseníase. Hansenol Int. 2005;30(2):157-66.
  • 26 Shumin C, Diangchang L, Bing L, Lin Z, Xioulu L. Assesment of disability, social and economic situations of people affected by leprosy in Shandong Province, People's Republic China. Lepr Rev. 2003;74:215-21.
  • 27 Fayers PM, Machin D. Quality of life: assessment, analysis and interpretation. Chichester: John Wiley; 2000.
  • 28 Martins BDL, Torres FN, Oliveira MLWDR. Impacto na qualidade de vida em pacientes com hanseníase: correlação do Dermatology Life Quality Índex com diversas variáveis relacionadas à doença. An Bras Dermatol. 2008;83(1):39-43.
  • 29 Ebenso J, Velema JP. Test-retest reliability of the Screening Activity Limitation and Safety Awareness (SALSA) Scale in North-West Nigeria. Lepr Rev. 2009;80:197-204.
  • 30 The Salsa Collaborative Study Group. The development of a short questionnaire for screening of activity limitation and safety awareness (Salsa) in clients affected by leprosy or diabetes. Disabil Rehabil. 2007;29(9):689-700.
  • 31 Fenley JC, Santiago LN, Nardi SMT, Zanetta DMT. Limitação de atividades e participação social em pacientes com diabetes. Acta Fisiatr. 2009;16(1):14-8.
  • 32 Kelly-Santos A, Monteiro S, Rozemberg B. Significados e usos de materiais educativos sobre hanseníase segundo profissionais de saúde pública do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 2009;25(4):857-67.
  • Endereço para correspondência:
    Fernanda C. B. Rodini
    Curso de Fisioterapia - FMRP/USP
    Av. Bandeirantes 3900
    14049-900 Ribeirão Preto SP
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2010
    • Recebido
      Nov 2009
    Universidade de São Paulo Rua Ovídio Pires de Campos, 225 2° andar. , 05403-010 São Paulo SP / Brasil, Tel: 55 11 2661-7703, Fax 55 11 3743-7462 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revfisio@usp.br