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O movimento funcional de alcance em uma abordagem ecológica

The functional reaching movement under an ecological approach

Resumos

Teorias de controle motor tradicionais assumiam um modelo de representação interna responsável pela organização e regulação do alcance, tendo por controlador o sistema nervoso central (SNC). Perspectivas contemporâneas questionam a habilidade de somente o SNC controlar e regular os movimentos. Ações podem não ser guiadas apenas pelo SNC, mas também por informações presentes no ambiente, estando o controle no sistema indivíduo-ambiente. A detecção da informação é um processo ativo: o indivíduo explora o ambiente, percebe possibilidades de ação fornecidas por ele e age em reposta ao que é oferecido. O objetivo deste estudo foi descrever o desenvolvimento e a coordenação do alcance em uma perspectiva teórica fundamentada na abordagem ecológica à percepção-ação, para promover melhor compreensão do movimento humano. Discutem-se nesta revisão de literatura o desenvolvimento do alcance desde a infância até a idade adulta, formas de operacionalização, fatores extrínsecos e intrínsecos relacionados, relações invariantes entre indivíduo e objeto a ser alcançado. Esse referencial teórico pode permitir a compreensão de como intervenções alteram a estabilidade vigente no sistema, levando à emergência de novas soluções funcionais. Em uma visão ecológica, o alcance é entendido de forma ampla: para explicar a ocorrência do movimento, devem considerar-se as informações do ambiente, além das características intrínsecas do indivíduo.

Atividade motora; Desempenho psicomotor; Fenômenos ecológicos e ambientais; Modelos teóricos


Traditional motor control theories rely on a model of internal representation responsible for the organization and regulation of reaching movements, controlled by the central nervous system (CNS). Contemporary perspectives argue the ability of the CNS alone to control and regulate voluntary movements, since actions may also be guided by environmental information, wherein control would be exerted by the individual-environment system. The detection of information is an active process: subjects explore the environment, perceive possibilities of action, and act in response to the environment. The purpose of this study is to describe development and coordination of reaching movements from a theoretical perspective based on an ecological approach to perception-action, in order to provide better understanding of human movement. This literature review discusses the development of reaching movements from infants to adults, operational functions, related extrinsic and intrinsic factors, and invariant relations between the subject and the target object. This theoretical framework allows for a better understanding on how interventions may alter system stability, leading to the emergency of new functional solutions. In an ecological approach, reaching is understood in a broad way: in order to explain movement, environment information is considered, besides subjects' intrinsic characteristics.

Ecological and environmental phenomena; Models, theoretical; Motor activity; Psychomotor performance


REVISÃO REVIEW

O movimento funcional de alcance em uma abordagem ecológica

The functional reaching movement under an ecological approach

Renata Cristina Magalhães LimaI; Lucas Rodrigues NascimentoII; Luci Fuscaldi Teixeira-SalmelaIII

IDoutoranda no programa de Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação da UFMG

IIMestrando no programa de Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação da UFMG

IIIProfa. Dra. titular do Depto. de Fisioterapia da UFMG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Luci F. Teixeira-Salmela Depto. de Fisioterapia / UFMG Av. Antônio Carlos 6627 Pampulha 31270-010 Belo Horizonte MG e-mail: lfts@ufmg.br; lrn@ufmg.br; renatalima.prof@newtonpaiva.br

RESUMO

Teorias de controle motor tradicionais assumiam um modelo de representação interna responsável pela organização e regulação do alcance, tendo por controlador o sistema nervoso central (SNC). Perspectivas contemporâneas questionam a habilidade de somente o SNC controlar e regular os movimentos. Ações podem não ser guiadas apenas pelo SNC, mas também por informações presentes no ambiente, estando o controle no sistema indivíduo-ambiente. A detecção da informação é um processo ativo: o indivíduo explora o ambiente, percebe possibilidades de ação fornecidas por ele e age em reposta ao que é oferecido. O objetivo deste estudo foi descrever o desenvolvimento e a coordenação do alcance em uma perspectiva teórica fundamentada na abordagem ecológica à percepção-ação, para promover melhor compreensão do movimento humano. Discutem-se nesta revisão de literatura o desenvolvimento do alcance desde a infância até a idade adulta, formas de operacionalização, fatores extrínsecos e intrínsecos relacionados, relações invariantes entre indivíduo e objeto a ser alcançado. Esse referencial teórico pode permitir a compreensão de como intervenções alteram a estabilidade vigente no sistema, levando à emergência de novas soluções funcionais. Em uma visão ecológica, o alcance é entendido de forma ampla: para explicar a ocorrência do movimento, devem considerar-se as informações do ambiente, além das características intrínsecas do indivíduo.

Descritores: Atividade motora; Desempenho psicomotor; Fenômenos ecológicos e ambientais; Modelos teóricos

ABSTRACT

Traditional motor control theories rely on a model of internal representation responsible for the organization and regulation of reaching movements, controlled by the central nervous system (CNS). Contemporary perspectives argue the ability of the CNS alone to control and regulate voluntary movements, since actions may also be guided by environmental information, wherein control would be exerted by the individual-environment system. The detection of information is an active process: subjects explore the environment, perceive possibilities of action, and act in response to the environment. The purpose of this study is to describe development and coordination of reaching movements from a theoretical perspective based on an ecological approach to perception-action, in order to provide better understanding of human movement. This literature review discusses the development of reaching movements from infants to adults, operational functions, related extrinsic and intrinsic factors, and invariant relations between the subject and the target object. This theoretical framework allows for a better understanding on how interventions may alter system stability, leading to the emergency of new functional solutions. In an ecological approach, reaching is understood in a broad way: in order to explain movement, environment information is considered, besides subjects' intrinsic characteristics.

Key words: Ecological and environmental phenomena; Models, theoretical; Motor activity; Psychomotor performance

INTRODUÇÃO

O membro superior está envolvido em uma ampla variedade de tarefas que o requerem para produzir diferentes configurações articulares, regulações temporais ou seqüenciamento dos movimentos articulares para executar determinada função1. Dentre as possibilidades de ação dos membros superiores, destaca-se a capacidade humana para alcance - definido como posicionamento voluntário da mão no espaço em direção a um local ou objeto para atingir um objetivo específico2,3.

Comumente, humanos alcançam objetos que permitem uma miríade de possibilidades para ações e atividades de vida diária, tais como beber, comer, ler e escrever3. Segundo Berthier e Keen4 a ação de alcance envolve a escolha de movimentos que levam a mão ao seu destino de modo rápido, acurado, coordenado e com o menor custo energético permitido, características presentes em padrões de movimento coordenados.

De modo geral, humanos são capazes de gerar padrões comportamentais estritamente coordenados ao ambiente e direcionados a seu objetivo. A execução adequada desses movimentos implica uma adequada coordenação da ação - uma vez que diversos componentes musculoesqueléticos são temporariamente organizados em um padrão de movimento coordenado - e implica, também, a percepção de informações sobre o mundo e o corpo5.

Nesse contexto, parece natural presumir, para essa organização do comportamento motor e do alcance humano, a existência de um controle centralizado da ação - gerador de padrão, plano de ação ou um modelo de representação interna responsável por sua organização e regulação5. Tradicionalmente, atribui-se ao sistema nervoso central (SNC) o papel de controle e representação interna dos movimentos a serem executados2,6.

Entretanto, perspectivas contemporâneas questionam a possibilidade de o SNC ser o controlador e único regulador dos movimentos humanos. Tais perspectivas baseiam-se nos questionamentos propostos por Nicolai Bernstein, que compreendia o movimento humano como um sistema cinemático complexo sugerindo que, nesse contexto, fatores extrínsecos ao indivíduo deveriam ser considerados na análise de sua capacidade de ação7,8. Também contrastando visões centralizadoras, Gibson9 propôs que ações podem não ser guiadas apenas pelo SNC, mas também por informação do ambiente, estando o controle, nesse caso, no sistema indivíduo-ambiente5,9. Informação, nesse contexto, refere-se a um padrão de energia que especifica precisa e fielmente a existência e as características de objetos e eventos do mundo real e informa fielmente sobre o mundo físico sem necessidade de processamento inferencial ou da existência de processos probabilísticos10. A perspectiva ecológica, defendida inicialmente por Gibson, traz a idéia de que indivíduos são capazes de captar as informações disponíveis no ambiente e agir (percepção-ação)10,11 .

Dessa forma, o objetivo deste ensaio foi descrever o desenvolvimento e a coordenação do alcance humano em uma perspectiva teórica fundamentada na abordagem ecológica à percepção e ação, para aprofundar a compreensão do movimento humano.

METODOLOGIA

Para execução do presente estudo foi realizada uma revisão da literatura na base de dados PubMed, assim como artigos e livros do acervo dos autores. Não foi estipulado limite temporal, visto que algumas referências importantes da área são antigas. Os descritores utilizados foram: reaching, ecological approach, perception-action. Estudos de pesquisadores renomados com publicações sobre a abordagem ecológica foram consultados, como por exemplo James Gibson e Michael Turvey. Nesta revisão foram finalmente consultados 20 artigos, uma dissertação de mestrado e três livros.

RESULTADOS

Novas perspectivas sobre a coordenação dos movimentos humanos diferem consideravelmente de visões tradicionais - neuromaturacionais - por propor que mesmo habilidades descritas como filogenéticas, como o engatinhar, andar e alcançar, são aprendidas por um processo de modulação dinâmica, no qual novas tarefas emergem, por meio de exploração e seleção, a partir de um determinado espaço de possíveis configurações restritas por leis naturais10,12.

Outrora, considerava-se o SNC como o único responsável pelo planejamento e ação do alcance em um modo de controle hierárquico, no qual a informação espacial é convertida em padrões motores musculares e articulares para mover a mão no espaço. Uma série de complicadas transformações converte sinais sensoriais em trajetórias de mão e seriam capazes de corrigir possíveis erros de movimento, quando mantida a integridade do SNC2. Tais perspectivas tradicionais influenciaram por mais de três décadas o estudo do alcance, com base no pressuposto geral de que as transformações motoras ocorridas na infância resultam prioritariamente da maturação do SNC e que alterações na capacidade de alcance de adultos estariam estritamente condicionadas a danos nesse sistema, o que levaria à sua incapacidade de controlar adequadamente o movimento6.

Como mencionado, alcance em uma visão contemporânea pode ser entendido como uma atividade funcional direcionada por objetivo3. Humanos alcançam objetos que possibilitam uma gama de possibilidades para outras ações. Fazem isso a partir da percepção da relação existente entre substâncias e superfícies do ambiente e características intrínsecas ao organismo, relativas a sua capacidade de alcançar3. Existe uma enorme complexidade biomecânica e neural envolvida nessa atividade. Thelen e Spencer13 conceituam alcance como levar a mão para uma tarefa visualmente especificada em um espaço tridimensional. Nessa perspectiva, esses pesquisadores discutem a dificuldade de assumir um controle neurofisiológico de 1:1 entre padrões de ativação muscular e comportamento motor. O padrão de alcance é conseqüência do desenvolvimento de restrições intrínsecas e extrínsecas à tarefa, e não de processos maturacionais autônomos13.

Emergência e operacionalização do alcance

Experimentalmente, o processo natural de mudanças e desenvolvimento de habilidades motoras é melhor observado em crianças quando avaliadas dinamicamente em tarefas propostas, permitindo análise de suas estratégias e ajustes para solução de problemas ou desafios12. Nesse contexto, o desenvolvimento do alcance infantil tem despertado considerável interesse durante as últimas décadas4.

Na criança a emergência do controle do alcance pode ser observada por mudanças nas características espaço-temporais do trajeto da mão durante a atividade. Sabe-se que o início do alcance infantil consistente ocorre entre três e quatro meses de idade. Contudo, nesses primeiros meses, o alcance ocorre de modo inacurado e o sistema demonstra pobre coordenação da trajetória da mão, apresentando típicos movimentos em ziguezague, cinematicamente identificados como múltiplos segmentos de aceleração e desaceleração, operacionalizados como unidades de movimento (UM)14. Progressivamente, o alcance infantil torna-se mais retilíneo e efetivamente direcionado ao objeto, observando-se menores quantidades de UM para caracterizar a ação. Concomitante com a redução do número de UM, observa-se que a primeira UM ocupa maior proporção do alcance, de modo que uma aceleração seguida de desaceleração é capaz de posicionar a mão tridimensionalmente próxima ao objeto. Esse método de alcance aproxima-se do padrão de alcance observado em adultos sem comprometimentos sistêmicos - movimento retilíneo caracterizado por uma única UM3,4,14.

Outro fator usualmente considerado no desenvolvimento do alcance é denominado índice de retidão, definido pela razão entre a menor distância entre a mão e o alvo e a distância efetivamente percorrida pela mão, do início do alcance até o alvo. O índice de retidão de um adulto aproxima-se de 1, padrão que crianças progressivamente tendem a estabelecer4.

Aprimoramento do alcance

Descreve-se considerável melhora nos parâmetros do alcance infantil durante os dois primeiros anos de vida4 e mesmo após esse período15. Entretanto tais mudanças são comumente observadas de forma não-linear, de modo que diferentes crianças exibem diferentes padrões de desenvolvimento e mesmas crianças podem apresentar aparente regressão a padrões motores iniciais - com maior número de UM e índice de retidão diferente de 1 - decorrente de novas imposições de tarefas ou modificações dos parâmetros de sistema relacionados ao crescimento corporal4,13,16.

A coordenação da velocidade pode ser vista como indicativo de desenvolvimento no alcance. Inicialmente movimentos rápidos são gerados por contrações musculares fortes. Em uma unidade mecânica, multissegmentar, forças geradas em um segmento geram forças passivas em outros segmentos. Um aspecto crítico do movimento habilidoso é estabilizar os diversos segmentos, diminuindo-se a velocidade. Alcance estável emerge quando a criança aprende a diminuir a velocidade de seus movimentos, e usa estratégias para preservar as melhores trajetórias em diferentes velocidades13.

A estabilidade acontece após maior tempo de exposição à informação e à ação propriamente13. O processo de desenvolvimento do alcance envolve auto-organização e descoberta de padrões mais úteis4. Segundo Corbetta e Snapp-Childs16; a emergência de um novo padrão demora a ocorrer; a criança precisa de muita prática para que aconteçam mudanças. A exploração do objeto tem importante papel no desenvolvimento da percepção-ação, pois permite à criança captar as propriedades do objeto, gerando informação para ação16.

Fatores que interferem no alcance

As características do objeto e o propósito do indivíduo interferem no posicionamento da mão para o alcance1. No adulto essa atividade acontece pela detecção da possibilidade de um modo de alcance (affordance), permitindo a ação que melhor se enquadre ao leiaute ou modo de distribuição dos elementos no ambiente3. Gibson9 originalmente definiu affordances como todas as"possibilidades de ação" latentes no ambiente, objetivamente mensuráveis e independentes da habilidade do indivíduo de reconhecê-las, mas sempre em relação ao ator, portanto dependente de suas capacidades.

Para Choi e Mark3; affordance nesse contexto pode ser vista como a relação entre a capacidade de ação do indivíduo e as propriedades relevantes do ambiente para permitir determinada ação; por exemplo, o indivíduo deve ser capaz de perceber distâncias críticas que permitam um determinado modo de alcance. Quando esse modo de alcance específico não é mais possível (afforded), o indivíduo utiliza novas estratégias de ação coordenada e realiza transições entre modos de alcance, selecionando aquele que permite o cumprimento da tarefa3. Esses autores detalham possíveis modos de alcance, sugerindo que uma ação pode ser realizada utilizando-se apenas o braço, combinando movimentos de braço e ombro, com uso auxiliar de movimentos do tronco e, quando necessário, uso do levantar parcial ou completo para atingir o alvo3. Para serem alcançados, objetos posicionados além do comprimento do membro superior exigem ajustes posturais que permitem que o alinhamento do segmento corporal seja apropriado à perturbação que será causada pelo movimento do braço1. Independente do modo de alcance utilizado, são observadas relações invariantes no sistema indivíduo-ambiente, destacando-se o comprimento dos membros superiores do indivíduo em relação à distância em que o objeto se encontra e o peso do objeto em relação à força que o indivíduo pode gerar3. Fórmulas propostas por pesquisadores em alguns estudos conseguiram representar essas relações invariantes entre ator e ambiente, determinando mudanças entre um modo de alcance para outro3; assim como em outras ações, como preensão e garra17,18.

Características da relação indivíduo-ambiente irão influenciar diretamente o alcance. Os recursos dinâmicos do indivíduo, como força muscular, rigidez musculoesquelética, comprimento muscular, e recursos do objeto - como tamanho, peso, grau de fragilidade, fricção - guiam a relação entre ator e ambiente1. A capacidade de captar a informação visual e háptica é fundamental para estabelecimento dessa relação, e essas duas fontes de informação se complementam. Os atos de ver e tocar o objeto possibilitam sua exploração e são determinantes no desenvolvimento da percepção-ação16 .

Informação visual deve ser entendida não somente como captação de estímulo visual, mas sim captação de energia luminosa estruturada do ambiente e objetos, informando sobre as características do ambiente, o que possibilita ao indivíduo agir nesse contexto. O tamanho, formato e composição de uma determinada superfície estrutura a luz de tal forma que a luz refletida preserva as características dessa superfície. Esse processo é governado por leis naturais, físicas, e permite uma percepção direta do mundo real10. A visão do objeto possibilita guiar o alcance; quando não está disponível, a atividade é modificada, sendo necessárias outras fontes de informação para guiar a ação.

Outra importante fonte de informação é a percepção háptica ou tátil. As pessoas podem perceber várias propriedades dos objetos sem necessariamente utilizar a visão, pelo toque19. O toque dinâmico (dynamic touch ou kinesthetic touch) gera informação das características do objeto e sua relação com o indivíduo e ambiente. Quando o objeto é segurado, os receptores do indivíduo são mecanicamente estimulados respondendo ao alongamento, compressão, torção e inclinação. A resposta coletiva à mudança de fluxo de energia mecânica é a base neural primária do toque dinâmico. Suas capacidades espaciais resultam da sensibilidade dos tecidos corporais a quantidades específicas de dinâmica rotacional sobre um ponto fixo, que não varia com mudanças nas forças rotacionais e movimentos. O contato com o objeto deforma os tecidos e traz informação sobre o objeto19,20.

O peso do objeto é uma propriedade dinâmica importante para guiar a ação. Considerando ser o peso a força pela qual a Terra atrai o objeto para seu centro, para alcançar e pegar um objeto o indivíduo deve gerar força suficiente para levantar o objeto da sua superfície de suporte3. A base física para percepção do peso do objeto requer consideração do sistema háptico. Mas não se trata somente de uma propriedade física. O peso deve ser percebido não como propriedade física comum ou um dado estado mental, mas como motivado, como sugere Gibson, por affordance. As propriedades constituintes da affordance seriam não somente as características do objeto isoladamente, mas do objeto tomado em referência às propriedades e comportamento do indivíduo21. O mais importante no desenvolvimento de qualquer ação é a relação entre as características do ambiente e do indivíduo.

DISCUSSÃO

Na perspectiva de Nicholai Bernstein8; teorias que pleiteiam explicar o movimento humano devem ser capazes de definir o modo como os diversos sistemas que compõem a estrutura biológica humana lidam com diversos graus de liberdade de maneira sincronizada e com a variabilidade, uma vez que esta é condicionada ao contexto da tarefa. Uma explicação baseada no controle de movimentos por endereço específico, que requer uma representação interna do mundo no SNC, não seria capaz de compreender plenamente os movimentos e ações humanas7,8.

De acordo com Gibson9; a detecção de informação é um processo ativo, em que indivíduos exploram continuamente o ambiente; partes variadas do corpo estão diretamente relacionadas à captação de informação. O autor estabelece assim os princípios da perspectiva ecológica de percepção-ação, na qual os indivíduos são capazes de perceber possibilidades de ação (affordances) oferecidas ou suportadas pelo ambiente10,11.

Estudos sobre a percepção-ação demonstram que, desde o início do desenvolvimento, crianças estão continuamente coordenando seus movimentos com base em informações perceptuais disponíveis, que indicam como manter o equilíbrio, alcançar objetos e se locomover em diferentes superfícies12.

Existem múltiplos graus de liberdade em um membro superior articulado, determinando muitas possibilidades de mover as articulações de modo coordenado e percorrer um trajeto particular em direção a um alvo12. Entretanto, como sugerido por Bernstein, as possibilidades de ação tornam-se progressivamente reduzidas à medida que o sistema biológico encontra soluções eficientes para a ação. Nesse contexto, o aparelho motor se ajusta às partes e às forças correntes para manter a coordenação do movimento. Essa auto-organização foi descrita por Tuller et al.22 como estrutura coordenativa, definida como grupo de músculos restritos a agir como única unidade funcional. Dessa forma, as trajetórias e a coordenação motora possivelmente não se apresentam representadas internamente no sistema e os movimentos emergem de modo não-determinístico a partir de uma variedade de condições iniciais e são condizentes com os parâmetros disponíveis nesse sistema8,12.

A compreensão dos movimentos humanos como padrões emergentes em função das propriedades do sistema indivíduo-ambiente e das exigências da tarefa modifica o raciocínio na prática clínica e permite novas explicações de fenômenos observados, que usualmente tendem a ser relacionados a perspectivas centralizadoras de controle motor.

No âmbito da clínica, vem ocorrendo um interesse maior na reabilitação do membro superior (MS) de indivíduos que sofreram lesão de SNC, possibilitando pesquisas nessa área. Esses indivíduos apresentam pobre recuperação do MS e modificam o alcance como padrão de adaptação, em resposta à fraqueza muscular, desequilíbrio funcional e aumento da rigidez musculoesquelética1. Um dos tratamentos que vem sendo explorado para reabilitação do MS é a terapia de contensão e induzida (TCI), técnica pela qual se faz a restrição do MS menos acometido funcionalmente, induzindo o movimento do MS mais acometido por um tempo prolongado, proporcionando seu uso23.

Tradicionalmente, a explicação para os ganhos na funcionalidade do MS de indivíduos hemiparéticos expostos à TCI seria a de uma reorganização cortical como causa primária. Entretanto, considerando ações como padrões funcionais específicos a determinada situação, o uso e as trajetórias do MS não são internamente processadas, mas percebidas e aninhadas no contexto atual da tarefa e do histórico de atividades realizadas pelo indivíduo12. De acordo com esse modelo, a TCI como forma de reabilitação impõe aos indivíduos uma restrição real a determinada forma de movimentação e permite explorar novas possibilidades de ação para cumprir determinada tarefa. Segundo Nascimento et al.24; o aumento do uso espontâneo do MS acometido sugere que esse método de intervenção promove motivação e percepção de possibilidades de seu uso em atividades funcionais, possivelmente reduzindo o desuso aprendido24. Essa possibilidade de exploração levaria à modificação em vários sistemas, dentre eles o SNC, como fator secundário a essa nova gama de possibilidades. Um estudo que utilizou a TCI25 comprova a correspondente modificação estrutural encefálica, ou seja, reorganização cortical. É importante ressaltar que deve ser feita, antes do uso de terapias que restringem o movimento, uma avaliação criteriosa dos parâmetros estruturais e funcionais dos sistemas envolvidos, uma vez que novos modos de ação emergem em sistemas capazes de executá-los.

No que se refere ao uso espontâneo do MS em atividades de vida diária, descreve-se a importância de intervenções clínicas que não primem apenas por atividades unimanuais, envolvendo o MS mais acometido, mas incluindo atividades bimanuais que se aproximam da realidade das atividades usualmente realizadas1. Os membros superiores devem funcionar como uma estrutura coordenada, agindo de maneira cooperativa, para que as duas mãos interajam para conquistar um objetivo22. A velocidade e força de preensão em uma das mãos podem ser modificadas em função da outra para que ambas realizem a ação adequadamente1. Estudos observacionais longitudinais devem ser conduzidos de modo a avaliar modos de interação entre membros superiores e possíveis parâmetros de controle do movimento, visando à compreensão de como os sistemas agem cooperativamente.

Por fim, um tema central é a indivisibilidade de percepção e ação na emergência e evolução de novas habilidades. A distinção entre perceber e agir é uma forma tradicional de estudar movimentos humanos; entretanto, ao se tentar compreender os mecanismos de coordenação de ações, deve-se questionar o quanto essa separação é de fato real ou meramente didática. Uma análise adequada das ações e de seu desenvolvimento não deve se basear em quais são as habilidades programadas de um sistema ou quais partes do comportamento são geneticamente ou internamente representadas, mas como partes cooperam de modo a produzir estabilidade ou determinar mudanças12. De acordo com Reed26; todo movimento funcional, como o alcance, é relacionado a uma situação complexa e aninhado em um cenário postural. Ambos, contexto ambiental e contexto postural, afetam a natureza e o sucesso dos movimentos26.

CONCLUSÃO

Terapeutas envolvidos no estudo e reabilitação do comportamento motor devem compreender a estrutura de funcionamento do sistema biológico em toda sua complexidade, bem como a história pregressa do paciente, para selecionar adequadamente a teoria que melhor explica a ação de alcance e outros movimentos funcionais, direcionando a prática clínica de modo a compreender como intervenções podem alterar a estabilidade vigente e permitir a emergência de novas soluções para que o indivíduo seja funcional. Em uma visão ecológica, o alcance deve ser entendido de forma ampla, considerando-se as características intrínsecas do indivíduo e, também, as informações disponíveis no ambiente.

Apresentação: jul. 2009

Aceito para publicação: abr. 2010

Estudo desenvolvido no Depto. de Fisioterapia da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

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  • Endereço para correspondência:
    Luci F. Teixeira-Salmela
    Depto. de Fisioterapia / UFMG
    Av. Antônio Carlos 6627 Pampulha
    31270-010 Belo Horizonte MG
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2009
    • Aceito
      Abr 2010
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