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Biopolítica, ordem discursiva e Comunicação

Biopolítica, orden discursvia y Comunicación

Resumos

O presente trabalho tem por objetivo mapear o tema da ordem discursiva em sua relação biopolítica com o campo da Comunicação. Utilizando o método de pesquisa bibliográfica, partimos da premissa foucaultiana de que a ordem do discurso é essencialmente uma ferramenta de poder, antes de uma aproximação com a verdade. Desta forma, intentamos dissecar o problema da institucionalização da linguagem e, consequentemente, da Comunicação. Ao se institucionalizar o desejo, este se vê forçado a se manifestar sob a forma aparentemente translúcida do discurso, no qual inicia-se o império disciplinar da biopolítica, que limita a forma de satisfação do desejo tão somente à alçada institucional. A biopolítica, forma moderna de controle das multidões, se dá pelo controle do individuo, de seu corpo e de seu espírito, passando, portanto, necessariamente pelo controle do discurso. Pudemos assim concluir que não é qualquer discurso que terá validade, apenas aqueles moldados e codificados à maneira da instituição, por ela providos de poder e capazes de bem nomear, deixando-se desta forma de fora muito do potencial desejante, dialógico e comunicacional.

Biopolítica; Discurso; Comunicação; Poder; Desejo


El presente trabajo tiene por objetivo mapear el tema de la orden discursiva en su relación biopolítica con el campo de la Comunicación. Utilizando el método de investigación bibliográfica, partimos de la premisa foucaultiana de que la orden del discurso es esencialmente una herramienta de poder, antes de una aproximación con la verdad. Así intentamos disecar el problema de la institucionalización del lenguaje y de la Comunicación. Cuando se institucionaliza el deseo, este se ve obligado a se manifestar bajo la forma aparentemente translucida del discurso, donde se inicia el imperio disciplinar de la biopolítica, que limita la forma de satisfacción del deseo a la alzada institucional. La biopolítica, forma moderna de controle de las multitudes, se da por el control del individuo, de su cuerpo y de su espirito, pasando necesariamente por el control del discurso. Por conclusión, afirmamos que no todo discurso tiene validad, apenas aquellos moldados y codificados al modo de la institución, por ella providos de poder y capaces de bien nombrar, quedando-se fuera el potencial dialógico, desejante y comunicacional.

Biopolítica; Discurso; Comunicación; Poder; Deseo


The present work aims to map the discursive order in its biopolitical relationship with the field of Communication. Using the method of bibliographical research, we started with the premise that the foulcaldian discursive order is essentially a tool of power rather than an approach to truth. Therefore, we intend to dissect the problem of the institutionalization of language and Communication. When it becomes institutionalized, desire is forced to manifest under the apparently translucent form of discourse, where the discipline kingdom of biopolitics take place, limiting the satisfaction of desire to the institutional realm. Biopolitics, the modern form of controlling multitudes, works by controlling individuals, their bodies, their spirits and, of course, their discourse. In conclusion, we state that not all discourses are valid but only those shaped and coded by the institution, the instance of power that says which discourses are able to say the truth, leaving behind the instances of desire, dialogue and Communication.

Biopolitics; Discourse; Communication; Power; Desire


Desde que foram excluídos os jogos e o comércio dos sofistas, desde que seus paradoxos foram amordaçados, com maior ou menor segurança, parece que o pensamento ocidental tomou cuidado para que o discurso ocupasse o menor lugar possível entre o pensamento e a palavra.

Michel Foucault

It is no measure of health to be well adjusted to a profoundly sick society.

J. Krishnamurti

Ordem, discurso e verdade

Nas primeiras páginas de A ordem do discurso (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.), aula inaugural pronunciada no Collège de France em 1970, Michel Foucault apresenta um curioso diálogo entre o desejo e a instituição. O desejo principia estabelecendo sua premissa paradoxal: o que deseja é não comunicar, isto é, ser compreendido imediatamente, sem necessidade de utilizar estas ferramentas toscas e inadequadas, as palavras. O desejo não quer conversa. "Eu não queria entrar nesta ordem arriscada do discurso, não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo". (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996., p.7). Busca tão somente satisfação e não suporta escolher. Entre um e outro objeto, prefere os dois. É primário, pulsional, vivo. Não gosta de obstáculos que dificultem seu acesso aos objetos desejados. Quer a "transparência calma, profunda, indefinidamente aberta"; não tem tempo a perder com discussões, com barganhas, com mal entendidos.

O desejo quer já estar lá, sem precisar atravessar o caminho, sem percalços, sem concessões. Não quer entrar na ordem do código. A ele não interessa dispender nenhuma energia além da estritamente necessária para sua realização. Quer que o compreendam pelo que ele é, sem explicações ou justificativas. Sua suposta desordenação não provém de si, mas do olhar que sobre ele lança a instituição. É dotado de ordem, porém, de uma ordem violenta, titânica. O desejo quer e pronto.

Do outro lado da linha deste conturbado processo encontra-se o extremo oposto do desejo: a instituição. A instituição não pode lidar com o desejo em sua forma pura. Ela precisa do discurso, e não do diálogo. É da parte da instituição que surge a decisão arbitrária de fazer calar o diálogo para que então instaure-se a lei. Sua função é refrear o desejo, convencê-lo a inserir-se em uma determinada ordem discursiva. "Estamos todos aqui para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma" (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996., p.7).

Não há nada que temer uma vez que, estando inserido na ordem das leis, o discurso encontra-se sob o jugo institucional. Assim é que, sedutoramente, a instituição finda por convencer o desejo a se manifestar sob a forma aparentemente translúcida do discurso. É aqui que tem início o império disciplinar da biopolítica, que limita a forma de satisfação do desejo tão somente à alçada institucional.

A biopolítica, forma moderna de controle das multidões, se dá pelo controle do individuo, de seu corpo e de seu espírito, passando, portanto, necessariamente pelo controle do discurso. Afinal, não é qualquer discurso que tem validade, apenas aqueles moldados e codificados à maneira da instituição, por ela providos de poder e capazes de bem nomear. É por isso que não se pode falar de diálogo, mas antes de designação, rotulação, nomeação. Para os discursos que não se inserem em sua ordem, a instituição também tem seus rótulos: desviante, sem sentido, delirante, louco, descabido, infantil.

Foucault nos mostra como, desde o divisor de águas inaugural da biopolítica moderna que foi o século 18, a instituição não tem feito outra coisa senão apropriar-se do discurso, fazendo dele como que sua propriedade exclusiva e criando o sentido moderno de verdade. Verdade é tudo o que pode ser dito, tudo o que deve ser buscado, tudo o que se insere na ordem, tudo o que faz sentido dentro de um certo regime de signos. A ordem comunicacional, nela incluído o universo midiático, não está isenta de tal imperativo. É um conjunto de regulamentos e procedimentos que visam a produção da lei e a distribuição dos enunciados, estando, portanto, intimamente ligada a um determinado sistema de poder. "A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem" (FOUCAULT, 1986________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986., p.14).

Antes de se referir ao conhecimento das coisas, a verdade refere-se a um poder de enunciação. Trata-se de uma questão ético-política antes de ser uma questão lógica ou epistemológica. Quem diz é tão ou mais importante do que aquilo que é dito; isto é, a verdade ou falsidade não são tão somente características do mundo, mas dependem daquele que a ele se refere. E é justamente pela diferenciação clara, binária e restritiva entre verdade e falsidade que a instituição irá exercer seu poder, fundar sua lógica, tentar dar cabo do paradoxo e controlar o desejo. A distinção ela mesma nada tem de verdadeira, já que é justamente o que funda a separação verdadeiro/falso. O fato de todo este processo ter local e data de fundação, especificamente o século 18 europeu, apenas evidencia mais ainda seu caráter arbitrário. A instituição esquece-se estrategicamente daquilo que a filosofia faz questão de lembrar, a saber, que antes de haver discurso há o mistério.

A verdade seria assim um tipo de ordem discursiva particular, malgrado suas pretensões universalizantes. E sua principal característica é o fato de não poder ser refutada, já que ela própria determina seus critérios, arrogando para si um direito à autonomia de que careceriam as outras ordens discursivas (como a do desejo, por exemplo). Desta forma é igualmente um sistema de poder que se estabelece em nome da aparentemente cristalina e pura verdade. Do mesmo modo que jamais saberíamos o que vem a ser a liberdade se não houvesse sido inventado o cativeiro, jamais buscaríamos a verdade se não se tivesse criado a ideia de que há o erro. Ambos surgem no mesmo movimento ordenador, ambos são frutos de uma mesma relação de poder. "Não fosse pela verdade, não saberíamos sequer errar" (AMARAL, 1996AMARAL, Marcio Tavares D'. O vigor da cultura comunicacional: o paradoxo moderno contemporâneo. In: AMARAL, Marcio Tavares D". (Org.). Contemporaneidade e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996. p.9-27., p.20).

Verdade e ordem estão aqui intimamente ligadas por meio do poder institucional que se impõe com ares de naturalidade enquanto nos avisa que não há o que temer, que tudo está sob controle. Ora, é exatamente porque tudo está sob controle que há o que temer, e muito. Pois o controle institucional não é um controle qualquer, mas justamente um que se pretende absoluto, proprietário privativo da verdade, aquele que pretende organizar, selecionar e distribuir todos os discursos que porventura sejam produzidos pelos indivíduos bem como os próprios corpos dos indivíduos no espaço. A instituição se arroga direitos exclusivos sobre a cultura e todas as suas produções discursivas, afastando assim tudo o que esteja relacionado com o acaso, a diferença e o desejo. A lei que rege esta ordem é: não se pode dizer tudo (assim como a primeira lei já interditara o desejo em sua imediatez: não se pode fazer ou desejar tudo).

O que fica patente com tamanho zelo é que há algo de grandioso e de muito arriscado na questão do discurso. Por que esta, que aparentemente é a mais banal e inocente das produções da cultura, requer tamanhos cuidados e proteções? Por que a instituição tem tanto medo que o discurso, por assim dizer, caia na boca do povo? Foucault nos ajuda a desvendar o mistério: é que o discurso é ele mesmo objeto do desejo. Ele não é somente meio, aquilo que reproduz os sistemas de dominação, mas é também aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar. Discurso é poder, quem o detém, a história nos ensina, é quem manda. E quem detém o poder, quem controla o discurso é a instituição. Não esta ou aquela instituição (até porque elas vão e vêm, ganham e perdem hegemonia), mas o próprio fato de haver instituição, o poder institucional enquanto tal, aquele que diz o que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve, este que não sai nunca de cena.

Instituição e disciplina

Uma das ferramentas utilizadas pela instituição para manter desejo sob controle é a disciplina, palavra que traz a riqueza do duplo sentido. Disciplina é tanto "o regime de ordem imposta ou livremente consentida, a ordem que convém ao funcionamento regular duma organização (militar, escolar etc.)" quanto "o conjunto de conhecimentos em cada cadeira dum estabelecimento de ensino" (FERREIRA, 1985FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da lingua portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., p.603). Quando é da pedagogia que se trata, a disciplina é a forma específica de a instituição se apoderar de um tipo particular de discurso: o discurso sobre o saber. A disciplina, nos diz Foucault, é "um conjunto de métodos, um corpus de proposições, um sistema anônimo de regras e definições verdadeiras" (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996., p.30). Por trás de tão asséptica definição o que encontramos é um rígido código de restrições que determina o que cabe no campo do saber e o que dele deve ser excluído:

Transmitir o ensino passa a significar desde então, do ponto de vista político, usurpar do aluno qualquer acesso à verdade que não esteja implicada no saber do mestre, e a técnica dos exames prolongados e reiterados permite a manutenção dessa forma de poder disciplinar (RIBEIRO, 1996RIBEIRO, Fernando J. Fagundes. A comunicação extra-código. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) - ECO – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1996., p.206).

Não são pequenas as exigências que uma proposição deve cumprir para merecer fazer parte do campo de uma disciplina, assim como não são poucas as exigências que os indivíduos têm de cumprir para poderem circular no âmbito da instituição. Ora, direis, mas sem disciplina, sem instituição e sem ordem seria o caos, a barbárie dos instintos selvagens, puros fluxos pulsionais e desejantes. Ora, diremos, este tipo de proposição faz parte justamente do discurso da ordem, utilizado para se monopolizar a violência sob o nome da moral.

Controlando os fluxos por intermédio de um código mais rígido ou mais flexível, conforme o caso, a moral, ao se apresentar como o baluarte da normalidade e da boa sociabilidade, mais não faz do que afastar qualquer possibilidade de uma nova ordem desejante, uma nova produção de sentido e uma nova ordem comunicativa, descrevendo à risca como devem se comportar os indivíduos para que tudo se mantenha na ordem. Tal naturalização da ordem moral faz parte intrínseca do controle biopolítico. Uma questão sobre a qual Foucault irá se debruçar particularmente é o da moral sexual. A ordem discursiva oficial obriga o sexo a realizar-se apenas e tão somente nos limites do casamento, sendo

confiscado à intimidade dos lares burgueses. No limite, não havendo como controlá-las de todo, as sexualidades ilícitas seriam hipocritamente toleradas, desde que praticadas apenas em alguns espaços clandestinos, circunscritos, codificados, os rendez-vous, as casas de saúde" (GADELHA, 2009GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009., p.64).

O que não cabe em certa jurisdição discursiva, não podendo simplesmente ser extinto, terá que ser necessariamente enquadrado em outra. O que não fica claro é que se trata sempre de uma ordem, não da ordem propriamente dita. A ordem da verdade universal é estratégica, nunca natural; relaciona-se ao "projeto de dominação de um tipo singular sobre os demais" (ANTOUN, 1993ANTOUN, Henrique. As aspas e as raspas em Nietzsche e Benjamin: o problema do eterno retorno na produção da cultura e da história. Tese de Doutorado em Comunicação ECO/UFRJ Rio de Janeiro, 1993., p.238), isto é, à tentativa de se estabelecer um padrão de comportamento para todo o humano, indivíduo ou grupo, com base em um determinado tipo de conduta. A estratégia implícita no projeto da biopolítica moderna é a de produção de uma certa memória. Para isto são desenvolvidas as mais variadas mnemotécnicas, por vezes recorrendo-se ao "uso de sistemas de crueldade para gravar a fogo algumas ideias indeléveis" (ANTOUN, 1993ANTOUN, Henrique. As aspas e as raspas em Nietzsche e Benjamin: o problema do eterno retorno na produção da cultura e da história. Tese de Doutorado em Comunicação ECO/UFRJ Rio de Janeiro, 1993., p.204). No entanto, ainda que subjugado, o desejo permanece vivo, insistindo em sua luta por satisfação.

A ordem desejante não é menos ordenada do que a institucional. Apenas a segunda, ao monopolizar a palavra e o discurso sobre a normalidade, deixa à outra tão somente a pecha de caótica e desordenada. Segundo a ótica de uma determinada ordem discursiva, qualquer outra ordem é desprovida de sentido. Se, aos olhos do homem grego todos os demais eram bárbaros, para o europeu moderno as instituições e regras de conduta dos orientais não fazem sentido algum, a recíproca não sendo menos verdadeira.

A relação da instituição com seus membros ou membros em potencial é, portanto, de sujeição ao discurso oficial. Um sistema disciplinar de ensino mais não faz do que ritualizar a palavra, dar a ela um caráter fixo, fazendo o mesmo com os sujeitos que dela se utilizam. "A professora não se questiona quando interroga um aluno, ... ela ensina, dá ordens" (DELEUZE, GUATTARI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs vol. 2 Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., p.11). Ensinar, dentro da estrutura disciplinar, não tem relação com questionar ou duvidar mas com moldar, dar uma forma determinada, portanto en-signar. Questionar é algo muito perigoso, leva à rebeldia e ao desrespeito pela ordem estabelecida. Instituição e questionamento nunca seguiram pelo mesmo caminho. Ao contrário, quando há muito questionamento ou aproxima-se um período de mudança de paradigmas institucionais, a instituição vigente recrudesce seu poderio e costuma prevalecer a ordem dominante, mesmo que à custa de um punhado de vidas humanas. Abafar a possibilidade do questionamento é o modo que a instituição tem de fazer prevalecer uma determinada verdade como sendo toda a verdade. Tornar o discurso transparente é parte importante desta estratégia.

A transparência do discurso

Para que possa funcionar como ferramenta de controle, é preciso que o discurso tenha o mínimo de realidade possível, servindo apenas para estabelecer a mediação entre o indivíduo e uma ordem cada vez mais tecnoburocrática. Foucault aponta para três formas históricas pelas quais a realidade do discurso é elidida em nome de outra. Em todas as três o discurso é visto tão somente como meio, nunca como uma entidade dotada de sentido em si mesma, muito menos como uma instância produtora de sentido. Trata-se de três formas de se articular discurso e significação, discurso e verdade, discurso e passado.

A primeira forma de se suprimir o discurso como entidade dotada de realidade apresenta-se no tema da experiência originária. Aqui é de uma cumplicidade primeira com o mundo que se trata (ao contrário da desconfiança cartesiana que se seguirá). A significação não está do lado do sujeito, mas do mundo. "As coisas murmuram de antemão um sentido que nossa linguagem precisa fazer manifestar" (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996., p.48). O mundo é obra divina que, por sua semelhança com o discurso, é trazida novamente à presença por meio da linguagem. O discurso nesta ordem é comentário da obra de deus, imagem de uma verdade primeira, atualização de uma latência que apenas aguarda seu desvelamento. A semelhança é a figura fundamental desta etapa do pensamento que vigorou até meados do século 16. Referir o mundo aqui implica em olhar para aquilo que os signos indicam, "deixando vir às claras e cintilar na sua própria luz a própria semelhança" (FOUCAULT, 1990_______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1990., p.45).

Uma segunda forma de relacionar palavra e verdade está presente no tema do sujeito fundante. Com a entrada em cena no pensamento da figura ímpar do cogito, o sentido não irá mais partir da realidade. Encontra-se sob o domínio do elemento encarregado de significar tanto o mundo quanto o próprio discurso a partir de um centro, centro este que só pode ser ocupado pelo próprio sujeito. A significação está do lado do sujeito e é ele que se volta para o mundo, de posse de um discurso estruturado por leis metódicas, para então dar o sentido de tudo o que há, para por em prática o princípio de racionalidade cientificista que passa a imperar desde então. A solidez da linguagem se dissolve, a semelhança não cintila mais em sua própria luz. Mundo e linguagem se estranham, não participam mais do mesmo. Discurso e coisas não se assemelham mais.

Linguagem será agora a arte de produzir signos e significações a partir de um centro autônomo separado do mundo, responsável por nomear as coisas, não mais por descobrir seu nome oculto. A institucionalização do discurso será doravante coisa de homens. Não de quaisquer homens, bem entendido: apenas daqueles que raciocinam, isto é, dos que pensam bem e conhecem cientificamente. Libertas do jugo da semelhança, as palavras se autonomizam e podem ser mais facilmente manuseadas e manipuladas pela instituição, agora sob a tutela do sujeito do conhecimento. Quanto à semelhança, esta sim será identificada ao erro, ao hábito e ao lugar comum. Semelhança é o que deve ser ultrapassado para se alcançar o conhecimento verdadeiro. As imagens que se apresentam a nossos sentidos devem passar por um processo de ortopedização enquanto o olho que vê precisa ser treinado, 'oftalmologizado', disciplinado. Os sentidos nos enganam, portanto é preciso de métodos. O racionalismo irá permitir a sistematização ordenada dos conhecimentos, buscando a completa enumeração de tudo e de todos e a máxima capacidade de calcular e prever a cada etapa qual a que deve necessariamente se seguir. A lingua-gem aqui deve ser neutra, transparente, cristalina e o discurso, asséptico, lógico, racional.

Finalmente, a terceira forma de se manifestar o discurso como ordem intermediária apresenta-se na mediação universal, aquela em que supostamente o discurso ganha sua autonomia, estando presente em toda parte como a ponte entre homem e mundo, sujeito e realidade. Aqui o centro não é mais o sujeito do racionalismo idealista nem tampouco o mundo do materialismo divino, mas o próprio discurso, finalmente trazido à baila dos acontecimentos. No entanto, adverte Foucault, este discurso não é portador de novidades. O discurso da mediação universal é um já-dito, reverberação de uma verdade passada tanto quanto as outras duas ordens. Verdade continua se dizendo no singular, permanece atada ao poder institucional, desta vez entregue à ordem da operacionalidade funcional.

Aquilo que não devia ser mais que meio torna-se um fim, uma necessidade imanente, fim em si. Esta é a ordem da razão instrumental, portadora de efeitos perversos, de desordem e degradação que estabelecem uma ordem contra o homem. É a sociedade louca (BALANDIER, 1988BALANDIER, George. Le désordre: eloge du mouvement. Paris: Fayard, 1988., p.152).

Esta atitude anti-filosófica e castradora busca abarcar o universo de tudo quanto haja na ordem discursiva, falar de tudo, explicitar tudo, trazer tudo para o campo da linguagem. Nada menos de acordo com a ordem desejante, já que aqui se prescinde do mistério, do não-dito, do oculto. É fundamental que algo não esteja na ordem da linguagem para que possa haver discurso, é preciso que algo não receba nome.

O vazio da linguagem, o que não cabe em nenhum discurso já que é o que possibilita toda produção discursiva, é o que não se apresenta neste mundo em que linguagem se torna técnica. Por trás desta logofilia, que parece imperar em nossa civilização ocidental globalizada, o que se inscreve é de fato uma logofobia, representada pela rede institucional que se apodera de um discurso tão logo ele surja, rotulando, classificando, explicitando. Se o desejo é erótico, buscando sensualizar e povoar o discurso de afetos, a mediação universal é pornográfica em seu intuito de objetificar o mundo, o homem e o discurso. É o que acontece, por exemplo, com o discurso médico que 'farmacotiza' toda a subjetividade, fazendo com que não haja mais sujeitos desejantes, falantes, produtores, mas sim sintomas ambulantes, rotulados de antemão e que incorporam inteiramente esta ordem discursiva externa, dizendo coisas como: "Sou bipolar, e você?"

Três atitudes fazem-se necessárias para uma retomada do discurso em condições éticas: o questionamento da vontade de verdade universal do sujeito, a restituição do caráter de acontecimento que o discurso deixa de lado para se inserir na ordem institucional e a suspensão da soberania do significado em prol da produção e da criação de sentidos. Não há nada menos natural do que um discurso. As coisas não estão no mundo à espera que lhes sejam dados seus nomes próprios. Dar nome às coisas e produzir conexões entre elas é um exercício que os membros de uma determinada espécie realizam para poderem compreender, dar coerência àquilo que os cerca, e comunicar, transmitir isto que parece ter coerência aos outros. A regra não é do mundo, mas do homem. Não deciframos um mundo que nos é dado, construímos um ou vários mundos partindo do dado e indo além dele por intermédio de nossa linguagem. Assim sendo, isto que convencionamos chamar de ordem (seja ela institucional ou desejante) é antes de tudo o exercício de um poder e o que chamamos verdade é uma estratégia de sobrevivência, a lei do mais forte (ou do mais fraco, segundo Nietzsche1 1 "O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas." (NIETZSCHE, 1987, p.31). ) fazendo prevalecer sua vontade.

Instituir é monopolizar o exercício do poder. Curiosamente este processo não aparece para o senso comum como violência, mas justamente como seu negativo, como o que impede que a violência (enquanto ato) se constitua. E o argumento que se utiliza é bastante convincente: afinal de contas, é da democracia que se trata, a mais livre dentre as formas de governo conhecidas. Quem não está satisfeito pode, com seu voto, mudar a situação. Mas ... será que pode mesmo? O poder dos indivíduos face ao poder do estado (como de resto face a todo poder institucional) é de fato mínimo e a influência de um voto no cômputo geral de uma eleição é insignificante.

É extremamente difícil para um indivíduo ou grupo alterar as regras do jogo, interferir de qualquer forma que seja no terreno dominado pela instituição. A tecnoburocracia exerce tamanha pressão sobre os indivíduos, deixando de tal forma evidente que é ela quem governa, ordena e discrimina, que qualquer ação que não passe pelos seus trâmites é imediatamente desvalorizada, recebendo esta sim o rótulo de ato de violência. Alem do que na instituição democrática há um poder sutilmente disfarçado, o despotismo da maioria, para o qual Alexis de Tocqueville já chamava a atenção em princípios do século 19:

E desse modo o que vem a ter verdadeira importância não é aquele em que há razão e virtude, mas aquele que é querido pela maioria, o que se impõe unicamente pela quantidade de pessoas. O que constitui o poder legítimo acabará legitimando a maior das tiranias. A quem poderá apelar, pergunta-se Tocqueville, um homem ou um grupo que sofre injustiça? (MARTÍN-BARBERO, 2001MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001., p.57).

Em oposição ao ato de violência temos, portanto, o estado de violência. Quando é do estado que se trata, frequentemente substituímos a palavra violência pelo termo força (SODRÉ, 1992, p.13). Força seria então a imposição de uma ordem social governada por uma minoria, enquanto a violência tenderia à destruição desta ordem. Ora, quem exerce a violência e quem é vítima desta? Chamar de violência a resposta que porventura alguém venha a externar quando se vê impossibilitado de agir face a um sistema opressor travestido de democracia é como responsabilizar o rio turbulento quando na verdade são as margens que o fazem assim, como na metáfora brechtiana.

O código e a institucionalização da linguagem

"A comunicação é um processo de tentativa contínua de superação dos limites da palavra instituída pelo código lingüístico" (SODRÉ, 1984________. O monopólio da fala, Petrópolis: Vozes, 1984., p.50). O código é o que há de comum, o que todos os falantes da língua têm de aceitar para que possam se fazer compreender. E, no entanto seguir o código incondicionalmente tampouco nos levaria a comunicar. O código é tão somente a estrutura básica, a lei mínima de funcionamento da língua, não sendo suficiente para permitir que o processo comunicativo se dê. De seu campo encontram-se excluídos o excesso, o desejo, a diferença. Se seguirmos apenas e tão somente as regras pré-estabelecidas e convencionais do código não estaremos propriamente comunicando, no sentido intensivo da palavra, visto não haver reciprocidade, intercâmbio de experiências, transgressão de espécie alguma. Seguir o código à risca é um meio de moralizar a Comunicação, como se fosse possível se conversar em gramática. "É o esqueleto que nos traz de pé, mas ele não informa nada, como a gramática é a estrutura da língua, mas sozinha não diz nada. As múmias conversam entre si em gramática pura" (VERÍSSIMO, 1974VERÍSSIMO, Luis Fernando. O popular: crônicas ou coisa parecida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974., p.12). Não há Comunicação sem que algum nível de transgressão se dê. "Para estabelecer comunicação os sinais têm de ter ao menos algum valor de surpresa, de inesperado" (CHERRY, 1966CHERRY, Colin. On human communication - a review, a survey, a criticism. London e Cambrige: MIT PRESS, 1966., p.14).

Toda instituição, ao instituir-se, explicita o código segundo o qual pode vigorar: palavras que dizem de palavras que podem e de que não podem, de que, quando, onde, como e por que. Sempre que uma determinada instituição (educacional, científica. religiosa, midiática ou outra) nos impõe um código qualquer, levando a Comunicação a se dar no espectro de suas bem estabelecidas premissas, o que se vê é antes a manifestação do controle do que propriamente Comunicação. Institucionalmente falando, "comunicar é organizar, ordenar" (CHERRY, 1966CHERRY, Colin. On human communication - a review, a survey, a criticism. London e Cambrige: MIT PRESS, 1966., p.5).

Para o controle institucional, não há como se permitir a Comunicação como liberdade, como instância de superação do código e de produção singular de sentido. A ideia de indivíduos livres utilizando a linguagem como ferramenta de desejo é insuportável a um sistema com pretensões biopolíticas globais. Diante deste quadro, cabe refletir sobre a violência institucional cristalizada e sistemática que se coloca como refreadora do pensamento e que se apresenta atualmente sob a forma da modernidade tardia, na qual se insiste em jogar o jogo da verdade e da representação enquanto já se nos apresentam possibilidades menos rígidas e mais flexíveis de habitar a linguagem e exercer a Comunicação.

Sustentando o desejo de uma possível apreensão da unidade do sentido, de uma verdade única a ser alcançada, encontra-se uma apropriação ideológica do real que transparece no campo da Comunicação através da transformação da linguagem em técnica e da despotencialização de seu caráter poiético, criativo. "Onde quer que se esteja 'descobrindo' verdades, está-se apenas reafirmando uma forma de poder garantida pela hegemonia de um código" (VEIGA NETO, 1995VEIGA NETO, Alfredo. O terceiro ouvido - Nietzsche e o enigma da linguagem. Cadernos de subjetividade, v.1, n. 1, PUC-SP, São Paulo, 1995., p.152).

Mutações contemporâneas

Para que mantenha seu poderio, a instituição não pode ser de todo rígida e disciplinar. De tempos em tempos é preciso que sofra uma revisão paradigmática, quando novos discursos passarão a se articular dentro do espaço institucional. Bem entendido, não se trata propriamente da substituição de um modelo por outro. O espaço institucional é paradoxal o suficiente para que nele coabitem instituições rígidas e outras mais flexíveis. Policiais, juízes, políticos e demais baluartes da ordem continuam existindo. A escola e a família, por sua vez, vão enfrentando como podem suas respectivas crises. Quando é de flexibilidade que se trata, no entanto, o capital é a instituição imbatível. O capital em sua fase pós-industrial, que Lipovetsky denomina "capitalismo hedonista" ou "neo-narcisista", instaura uma nova fase do individualismo burguês (LIPOVETSKY, 1989VEIGA NETO, Alfredo. O terceiro ouvido - Nietzsche e o enigma da linguagem. Cadernos de subjetividade, v.1, n. 1, PUC-SP, São Paulo, 1995., p.48). Nenhuma revolução se apresenta no horizonte da política e a escravidão é defendida como se fosse a própria liberdade.

A emancipação do indivíduo pelo estado moderno o torna livre para lutar por seu espaço no mercado de trabalho. Na era do vazio, o mercado de trabalho é um espaço virtual; está em toda parte e não está em parte alguma. A virtualidade é uma característica muito presente nesta fase do desenvolvimento do capital: enquanto a polícia, o governo e o aparelho judiciário ocupam um lugar bem definido e espacializado, a mídia e o crédito têm existência e poder de ação bem mais sutis, fazendo surgir um novo modelo de controle social não mais calcado na obrigação e na disciplina, mas na fruição e no gozo.

A mutação antropológica de que fala Lipovetsky, caracterizada pela desvitalização do espaço público e das grandes questões políticas a ele relacionadas, é a face visível das novas relações de produção presentes no capitalismo hedonista, com ênfase máxima no consumo. A ordem do consumo é também aquela da consumação imediata, em que não há resto na operação: nada sobra para a memória, nada se aprende que possa perdurar, nenhuma experiência é adquirida. A liberalização dos costumes e da economia não deve ser encarada como tendência menos institucional que aquela presente nas repressivas e autoritárias instituições de outras eras. O que ocorre é tão somente uma mudança de máscaras. De tempos em tempos, 'é preciso que tudo mude para que tudo permaneça como estava'. As instituições têm a tendência camaleônica de se transformarem, superpondo-se umas às outras de acordo com a situação. Mas não nos iludamos: permanece clara a distinção entre o que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve ser dito e feito.

Conclusão

Liberalizar é uma estratégia eficaz, como as demais empregadas em outros tempos, para que se mantenha tudo como está, na mais perfeita ordem possível. A permanência da ordem não permite que se veja com clareza que outras ordens são possíveis que não somente a institucional.

Aqui os indivíduos não são coagidos pela força, isto é, por um poder que se exerce apenas de fora. O mercado universal tem uma parte exterior e outra interior. Seu poder vem em boa parte de sua capacidade de acolher, de convencer, de fazer com que cada um assuma os mecanismos de controle como produção sua, como uma pele sobre a própria pele, passando a ser não somente um consumidor, mas também um adepto da máquina que o sobrecodifica.

Quer nos moldes da coerção disciplinar, do esforço e da produção, quer nos moldes da fruição, da auto-sedução e do controle auto-gerido panopticamente, é sempre da ordem e de sua manutenção que se trata. Quando se deseja produzir efeitos de memória, o sistema age de determinado modo, empregando aparelhos tradicionais como a escola, a família e o estado. Já quando o que se deseja é produzir esquecimento, utiliza-se os meios de massa, aparelhos mais velozes e efêmeros. Na atualidade, portanto, o sistema aprendeu a se apropriar do paradoxo: alimenta-se de ordem assim como de desordem (uma desordem re-ordenada, sobrecodificada, reterritorializada). Aqui, mesmo a desordem é programada, tem seu lugar a ocupar dentro da ordem. "Por trás deste nivelamento encontram-se os efeitos da desordem (com o esquecimento que esta traz) e de ordem (com a memória e a duração implicadas nesta)" (BALANDIER, 1988BALANDIER, George. Le désordre: eloge du mouvement. Paris: Fayard, 1988., p.177).

Para se realizar, o capitalismo precisa exercer "uma conjugação generalizada que transborda e reverte os aparelhos precedentes" (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs vol. 2 Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., p.33). Doravante é ele que sobre codificará o estado, a moral, a religião, passando a ocupar o lugar central na produção de verdade e na apropriação de palavras e de homens. Na forma estado, quem dá as cartas é o governo. Na forma moral, quem pune e recompensa é o pai. Na forma religião, quem impera é a igreja. Mas na forma capitalismo, quem manda é o próprio capital, o próprio sistema de trocas que impõe a todos uma tradutibilidade geral de todos os valores e uma sobrecodificação de todos os desejos.

O capitalismo, sistema econômico de controle das possibilidades atuais, esconde-se por trás de uma máscara de naturalidade agora apresentada em escala planetária ou global, o que Guattari denomina 'capitalismo mundial integrado'. No CMI predomina a lógica do um: Há um modo de adquirir bens: comprando. Há um modo de exercer o trabalho: assalariado. Há um modo de habitar o mundo: a propriedade. "Convém atribuir a cada um uma infância, uma posição sexual, uma relação com o corpo e com o saber, uma representação do amor, da honestidade, da morte" (GUATTARI, 1981________. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981., p.188). Nos invadindo a todo instante com sua lógica excludente, o capitalismo mundial integrado não permite que o homem se dê ao tempo, sufocando-o na angústia do presente e no imperativo do consumo e da produção. Consuma para ser diferente; produza para sobreviver, adquira para ter a ilusão de não ser adquirido. Alcançando uma flexibilidade jamais vista por qualquer instituição, o capitalismo avança de forma rizomática, fazendo uso de todas as ferramentas disponíveis, reterritorializando todas as linhas de fuga e tudo capitalizando.

Produzida com vocação universal, manipuladora da força de trabalho coletiva, tanto material quanto semiótica, a cultura do CMI gera indivíduos-terminais, consumidores de uma subjetividade pré-produzida com a qual se identificam passivamente. "O capitalismo mundial integrado tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e serviços para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe, de subjetividade" (GUATTARI, 1991________. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1991., p.31). É quando se troca Comunicação por informação, verdade por publicidade, poiésispor técnica. É quando o tempo do homem é substituído por um tempo maquínico.

No extremo oposto deste homem apassivado, encontramos a ideia foucaultiana de cuidado de si, um convite para que se realizem outras práticas e que se tenha outra relação com o corpo e a alma. Recolhendo dados advindos da cultura estóica, Foucault propõe aqui um cuidado muito mais amplo do que a atual paranóia generalizada que torna sinônimos saúde e medicalização. Cuidado de si tem a ver com mente, com espírito, com cultura: cultivar-se, fugir dos condicionamentos, libertar-se.

Não se trata, bem entendido, de um cuidado de si narcisista que prescinda do outro, hiperindividualista e independente do mundo a sua volta, pois este já é o indivíduo que encontramos na sociedade de consumo contemporânea. Ao libertar-se do jugo institucional codificante, o homem deve tornar-se capaz de pensar e agir por conta própria, mas não a revelia do outro. Cuidar de si é também cuidar do outro, garantir as condições para que o próximo também o faça, donde a dimensão ética da questão. É por considerar o outro que o homem do cuidado de si pode e deve comunicar de forma mais plena. Nunca de forma total e absoluta, mas ao menos de forma tal que se possa apropriar de seu processo comunicacional.

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    "O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas." (NIETZSCHE, 1987NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Nietzsche, col. Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1987., p.31).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2013
  • Aceito
    22 Maio 2014
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